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sexta-feira, 11 de agosto de 2023

O humanismo científico português da época dos Descobrimentos

Escrito por António Sérgio




«A.S. – (...) O que é que acontece no Mundo – e isto é a nossa experiência de todos os dias... – para que a maior parte das pessoas não chegue a desabrochar na vida? São plantas que não se cumprem a si próprias e quando uma planta não se cumpre a si própria é porque foi mal plantada, ou o terreno é ingrato, ou não levou adubo suficiente, ou não caiu chuva bastante.

Temos de nos voltar, imediatamente, para as condições físicas que não permitem que a flor desabroche. Ora nós sabemos, perfeitamente, que na vida – e tem sido uma luta quotidiana do Homem para ver se vence isso – as condições materiais em que na maior parte das vezes temos vivido, as condições educacionais, as condições sociais, políticas, filosóficas, têm impedido uma porção de gente de desabrochar. Têm sido obrigados a ser aquilo que, num determinado momento, podiam ser e vamos ter de considerar quase como heróis aqueles que, para se cumprirem, arriscaram a vida e a morte tiveram.

Um deles é o próprio Camões.

Todas as aventuras que viveu, todo aquele longo Amor para o qual ele achava a vida curta se fez à custa dele próprio. Andou de aventura em aventura, sempre pobre, sem um Norte fixo na vida, sem a possibilidade, pelo menos, de uma reforma e Diogo de Couto teve de lhe pagar a passagem da Ilha de Moçambique de onde o “desgraçado” não sairia, pois nem dinheiro tinha para comer.»

Victor Mendanha («Conversas com Agostinho da Silva»).


«Solidário com os problemas nacionais, Sérgio tornara-se um solitário. Teve consciência da solitude, quando escreveu, acerca da sua intervenção pública: “Em certa altura da campanha a que me arrojei em Portugal – em livros, em artigos, em conferências, na Pela Grei – caí na tristeza insuperável de ver a impossibilidade de entender-me com a grande maioria dos meus patrícios”. Ele considerava a endémica situação do país: um povo mal governado e mal tratado, oprimido por uma carapaça de políticos, cujo perfil era por demais o de comedores, e por de menos o de servidores do povo, ou, como descreveu João Perestrelo, um povo vivendo na “escravização geral do país, como feudo político, do poder central”. Este perfil de submissão babilónica veio ainda expresso nas palavras sangrantes de uma personalidade moral: “O lavrador é o País, o Estado o seu Senhor e cobrador da renda”. Glosando a visão de Sampaio (Bruno) era a consciência de que Portugal sempre fora um povo infeliz, dominado, na expectativa do Príncipe Perfeito que o libertasse e redimisse. Para Bruno, esse Príncipe teria de ser o Povo, e o mesmo se dirá do pensamento de Sérgio, que via todas as tentativas de salvação nacional afundadas no pego da negligência e da traição. Inspirado no livro de Lysis, L’Erreur Français, escreveria sobre a impossibilidade democrática quando os regimes assentam no “vício da centralização”, que, bem vistos os fenómenos, foi opção ditatorial da Revolução Francesa, que proibiu os nacionalismos locais, perseguiu as próprias línguas regionais e, antes da trilogia Liberté, Egalité, Fraternité, houve o cuidado de antepor o lema Unité de L’État.

Olhando a condição portuguesa, e sem queda num juízo irremediável, há lugar para admitir que o melhor das ideologias se corrompeu. A generosidade teórica do Socialismo deu, em Portugal, um fruto: o egoísmo, de tal modo que muitos colhem a ideia de que em Portugal só é socialista quem invejar os bens do outro, ou quem se puser numa situação ostensiva de receber. Quem não inveje e esteja em posição de dar, não carece de ser socialista.»

Pinharanda Gomes («A “Escola Portuense”»).




«(...) V.M. – Eu próprio sinto-me um prisioneiro no meu país.

A.S. – Parece ser esse o pensamento de Manuel Bandeira e, se o português tem de ir para o Brasil para ser um português à solta, é porque há reformas necessárias e urgentes a fazer, para Portugal deixar de ser uma cadeia.

Portugal tem, todo ele e em todas as partes do Mundo, de rumar para uma liberdade em que o Homem se possa interessar pelo aspecto dos fenómenos para si mais atraentes, seja da Física, seja da Pintura ou da Mística, sentindo-se atraído, simultaneamente, para o intemporal e para o não-espacial.

Por isso me parece serem Os Lusíadas, para além de um poema narrativo, histórico e épico – por relatar acções heróicas – também um poema profético, tendo Camões uma ideia do heróico muito curiosa.

Por exemplo, é heróico Afonso Henriques quando diz a Deus “que estais vós a animar-me a mim? Ide pregar aos infiéis”; ou a pobre Inês de Castro, abatida pela razão de Estado quando, para ela, o que imperava era o afecto e lá aguenta aquela morte como pode.

Camões mostra esse Povo heróico na Terra e heróico no Mar, capaz de heroísmo no Céu.

Nesta situação, costumo lembrar-me do monumento aos Descobrimentos que está virado para o Tejo, junto ao Mosteiro dos Jerónimos, no qual podemos ver aquela gente a elevar-se da Terra como se elevou Portugal. Eles vêm do solo, vão subindo por aquelas duas rampas, vão a caminho já do Mar e, subitamente, param.

Não há mais nada porque falta construir o resto da rampa.

Falta continuar o resto dessa rampa que iria chegar, espero que vá chegar, ao que nós chamamos Céu e que seria o verdadeiro destino de Portugal.

Mas chegar ao Céu não é ir, como os americanos e os russos, instalar fábricas no espaço.

V.M. – Haverá possibilidade de continuar a rampa?

A.S. – Espero que sim, pois fizemos coisas mais difíceis do que Ser. O que existe de mais fácil à pessoa é Ser, só que o terrível são as circunstâncias que, à volta dela, a impedem de Ser.

V.M. – Essas circunstâncias poderão ser afastadas?

A.S. – Havia uma tribo no Amazonas que gostava das crianças com a cabeça cúbica e, quando elas eram pequenas, punham-lhes umas talas na cabeça para obrigá-las a crescerem cúbicas.

Afinal de contas, é o que sucede a todos nós, pois no fundo, a nossa cabeça é cúbica visto as circunstâncias externas obrigarem a isso. Mas quando a Sociedade não nos colocar as suas talas, para nos impedir o crescimento normal, será possível que cheguemos ao mais pleno de nós próprios.

Então aí, como cada homem nasce diferente mesmo em cinco biliões de homens, teremos possivelmente uma pluralidade extraordinária no Mundo e faremos algo quase impossível de fazer hoje, que é amarmos a diferença.

Ainda gostamos muito de amar as semelhanças, damo-nos muito bem com aqueles que se parecem connosco, quando o nosso gosto também devia ser por aquilo que é diferente.

Quando se diz ter sido Camões um platónico, e isso mostra-se bem quando ele afirma atingir-se a beleza geral através da particular beleza, digo sempre existir aí um defeito por ele não nos referir o que acontecia à fealdade particular a conduzir-nos, tanta vez, à fealdade geral.

É necessário, igualmente, pôr esse ponto: ver no diferente o que existe de fundamental e dirigirmo-nos a esse fundamental.

Só quando o homem se dirigir ao seu fundamental é que se cumpre.» 

Victor Mendanha («Conversas com Agostinho da Silva»).




«A República teve o condão de mover o Povo contra o Povo, é imoral negar este facto. Havia um regime, mas, na ideia de Sérgio, o problema do Regime era no fundo o problema do bem e do mal da comunidade portuguesa, sendo necessário actuar a nível suprapartidário, em liberdade, na pesquisa de novos caminhos, com recusa das forças políticas históricas, com ordem e trabalho. A Guerra e a Pneumónica contribuíram para a geral degradação do tecido social e das fracas economias de um povo já de si pobre, explorado por gente de baixo coturno, elevada a donatária do Reino. Muitos segmentos sociais procuravam caminhos: católicos, monárquicos, republicanos sérios, independentes e necessitados. Até se colhia a percepção de que na verdade se procurava a mãe, a Mátria, como se infere dos títulos de algumas publicações que, diferentes nos modos, eram convergentes na causa final: Alma Portuguesa (1913), Nação Portuguesa (1914), Pela Grei (1918), Seara Nova (1921). Pela Ley e Pola Grey, lema do Príncipe Perfeito, não era o lema do Integralismo Lusitano? A própria beatificação de Fr. Nuno de Santa Maria (Beato Nuno) em 1918, não foi um modo de animar o povo, cujos segmentos mais populares se moviam desde 1917 em busca das maravilhas de Fátima? O mesmo primeiro Modernismo, o de Orpheu, não consegue ocultar uma forte apetência nacional-messiânica, conforme escritos de Augusto Ferreira Gomes, Raul Leal e, sem dúvida, Fernando Pessoa. A perda do Ultramar não se consentia...».

Pinharanda Gomes («A “Escola Portuense”»).


«(...) os portugueses conservadores no século XVIII são aqueles que receberam todo o país modificado pelas ideias europeias, mas as dos séculos XV ou XVI. Simplesmente, no resto da Europa essas ideias tinham proliferado, tinham avançado, tinham conseguido adiantar-se até, curiosamente, servindo-se do que fora trazido pelos portugueses e pelos espanhóis. A Europa adianta-se exactamente com os Descobrimentos. Eles haviam parado em Aristóteles e estavam bem contentes com isso. Simplesmente, o nosso amigo Aristóteles tem pelo menos duas coisas na sua filosofia: a metafísica e a física. A metafísica poder-se-ia discutir sempre e as grandes discussões nas universidades eram sempre à volta dela. Mas a física é de difícil discussão, porque há a experiência, o visível, o observável e ele está certo ou não, ou está de acordo ou não com o que diz Aristóteles. E o que aconteceu com os Descobrimentos é que o mais analfabeto, o mais inculto dos marinheiros portugueses era capaz de encontrar nas viagens, testemunhos, factos reais que liquidavam completamente o que Aristóteles havia afirmado. Porque ele raríssimas vezes havia feito uma experiência pessoal. É muito frequente encontrar na obra de Aristóteles uma expressão que de uma forma ou de outra quer dizer que alguém viu mas não ele, “dizem”, “sabe-se”, etc. Não “eu vi”, “eu afirmei”. E coisa curiosa, quando lemos, por exemplo, Camões, os seus marinheiros dizem “eu vi”, “vi claramente visto!”, diz um deles. E o que é que eles viram claramente visto? Uma porção de coisas que Aristóteles declarava que não existiam. Assim, o que primeiro se desmanchou foi a física de Aristóteles. E se há uma metafísica que se baseia numa física, o que acontece é que a metafísica começa a ser abalada.»

Agostinho da Silva («Vida Conversável»).


«Aristóteles foi, também, durante séculos, a primeira autoridade em física. Os livros aristotélicos não são, porém, livros de mera exposição e demonstração de doutrinas, mas, pelo contrário, exemplos e exercícios do orgão lógico para a indagação da verdade. Do uso que durante a Idade Média foi feito dos livros aristotélicos, muitas vezes discutidos sem prévio recurso à observação e à experimentação, não há que inculpar o pensamento de Aristóteles.»

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).


«(...) assim como o ser humano nasce para o espírito, também as sensações, por génese natural podem não ter sido em nós predestinadas ao conhecimento da matéria, pois nunca nos disseram se a matéria é “isto ou aquilo”. O que nos falam e dizem, isso sim, e desde logo radicalmente, é sobre as substâncias com as suas qualidades e atributos, pelas quais a matéria se torna por elas cognoscível. Esta noção é fundamental, porque aponta para a revisão da dogmática do “a priori” e insinua a confiança na conscientização gradual das nossas potencialidades empíricas. As sensações não são pois de genitura feitas para a matéria, cujo sentido desde os Gregos, vem a sofrer muitos ajustamentos de conveniência apenas científica, mas sim para a ordem das substâncias, em inerência às qualidades dos movimentos e atributos naturais. Mesmo numa abstracção pura, o empirismo deveria enfim revelar-se para a metafísica, como uma verdadeira teologia da experiência.»

Luís Furtado («Do Conceber para o Lugar do Conceber. Ensaio de Hipotipose»).


«Graças a um homem superior, que não tinha os olhos voltados para a Europa Central, os Portugueses distinguiram-se na aventura do descobrimento, na arte de tornar visível o ainda não visto mas previsível, o Novo Mundo. Contrariando a lei dos três estados, o saber dos Portugueses era menos positivo do que metafísico, e menos metafísico do que teológico, porque foi principalmente haurido na tradição representada pela cruz da Ordem de Cristo. Cruz que, pelo simbolismo da cor e da forma, representa na vela, e na caravela, um problema humano, um segredo natural e um mistério divino.»

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).


«(...) coisa curiosa, se eu falo n’Os Lusíadas, é exactadamente como parece: que Camões achou que a construção de Portugal, e depois a navegação, até se chegar a Oriente, até esse primeiro ponto do Oriente que foi Calecute, que não se poderia ter feito nada disso sem o culto da virtude. Quase se diria o seguinte: Camões seria confucionista, se eu aceitasse que era por causa da sua estada para os lados do Oriente que ele tinha conhecimento da doutrina e tinha dito, ele próprio, coisa curiosa, como os portugueses do lado de lá, sentiam a mesma coisa que sentiu Confúcio do lado de cá, que não se pode atingir o empreendimento que se tem em vista senão pelo culto da virtude em todos os seus aspectos: pela lealdade ao compromisso, pela obediência a quem manda, etc. Mas logo que essa empresa está concluída, logo que os marinheiros voltam com a consciência de que fizeram tudo o que havia a fazer pelo tal culto da virtude para se poder alcançar a Índia, Camões os põe numa outra colectividade, em que eles não têm que ser mais nada senão o que são, e que n’Os Lusíadas aparece com a designação dada pelos seus leitores de “A Ilha dos Amores”. Ali, os marinheiros que desembarcam deixam de ser marinheiros, são apenas as pessoas que nasceram com toda a sua plenitude humana, e se revelam apaixonados por tudo o que é fenómeno. Mas, curiosamente, Camões avança com alguma coisa que os gregos não descobriram: os gregos sentiram também, que eles pelo amor que tinham à vida eram gente presa do fenómeno. Mas Camões disse sem o dizer, os gregos não descobriram como é que isso pode ser ultrapassado, e na Ilha dos Amores os portugueses ultrapassam, livram-se dessa prisão, sabemos todos muito bem que os portugueses aprendem na Ilha dos Amores que podem saber o futuro e que podem estar também livres do espaço. Podem saber o futuro quando uma deusa lhes vem dizer como vai ser Portugal, sentem-se livres do espaço quando a mesma deusa lhes mostra ao longe toda a máquina do mundo fora da qual não existe nenhuma espécie de espaço. Então, o que é que ele diz como remédio aos gregos? Diz o seguinte: os gregos pensaram, parece, que todas as ideias que têm são fabricadas pela própria cabeça, nunca lhes surgiu a ideia, talvez, de que as ideias talvez pairem no mundo e entram na cabeça das pessoas quando elas deixam de ter tanta credibilidade em si próprias, quando elas põem em dúvida que seus cérebros sejam tão poderosos que podem fabricar essas ideias, e aceita que elas pairam, e, como às vezes eu digo, até cheguem à ideia de que é bom não pensar muito pela própria cabeça, estar disponível para que entrem nelas as ideias que andam à volta, que podem ser muito mais interessantes, muito mais plenas, muito mais amplas, do que aquelas que podemos fabricar com o nosso próprio conteúdo dos crânios.


Tétis mostra a Vasco da Gama a Máquina do Mundo.

Então, talvez pudéssemos ter a ideia de que nesta gente portuguesa existam as duas maneiras de ser nítidas, disciplina absoluta, obediências completas, culto total da virtude, enquanto se tem que atingir um determinado fim de empresa que, no nosso tempo, é fazermos que o capitalismo em que vivemos de tal maneira se desenvolva que nos dê a possibilidade de depois descobrirmos esse Calecute novo, de ser a vida gratuita, como pensaram os portugueses e acreditaram os portugueses no século XIII, para que nós possamos abandonar-nos à ideia de ser nosso único dever, sermos na vida aquilo que realmente somos quando nascemos. Por outro lado, é extremamente interessante, quanto ao presente, vermos se estamos mais perto ou não desse ideal dos homens do século XIII, se os 600 anos que nos separam deles já nos dão garantias, que com uma multiplicação maior ou menor desses 600 anos para diante de nós, possamos atingir aquele fim que eles tiveram como ideal. Que nos libertemos da ideia de que o divino é para mandar em nós, é para nos limitar, e tem que ser assim, enquanto estamos na guerra, e exactamente como o oficial comandante tem de limitar com a disciplina aquilo que os soldados normalmente faziam e fariam se ele os deixasse em plena vontade própria.

Por outro lado, é importante que se tenha também a ideia de que o ideal não é ficar continuamente nisso. Não é ir para diante no mesmo tipo de economia, mas que o ideal de todo o homem economista verdadeiramente de dentro deve ser o de que essa economia acabe por desaparecer do mundo.

Então, o que me parece interessante fazer é pegar em cada um dos actos da festa e examinar se nesse sector estamos mais adiantados que os homens do século XIII ou não, e se estamos, portanto, com possibilidade de ter maior animação para que cheguemos no futuro, senão na totalidade, pelo menos muito perto daquilo que foi o ideal deles.»

António Escudeiro («Agostinho da Silva – Ele Próprio»).





O humanismo científico português da época dos Descobrimentos


Enorme, incalculável, foi o concurso dos Descobrimentos para o surto do espírito europeu moderno, para o desenvolvimento do humanismo, para a criação do senso crítico, para a queda do princípio da autoridade na ciência e na filosofia, para os lentos progressos do Homo sapiens em frente da tirania do Homo credulus. Levar-nos-ia muito longe o apresentar o problema no aspecto europeu: limitemo-nos a Portugal. Os descobridores recorriam constantemente, nos seus trabalhos, aos cosmógrafos e naturalistas da Antiguidade, que eles conheciam minuciosamente; ora, a visão assídua dos espectáculos novos, da realidade exótica, mostrava-lhes a cada instante os erros enormes desses autores, a cujas afirmações se prestara fé como a revelações do próprio Deus. Ao tratar-se de coisas dos nossos climas (coisas familiares, por isso, ao espírito dos seus autores) eram os textos da Antiguidade suficientemente verdadeiros; ao descreverem, porém, os produtos ultramarinos, os erros dos textos acumulavam-se, imediatamente verificáveis para quem pudesse conhecer as coisas por sua directa observação. Essa visão da realidade exótica tinham-na os Portugueses nas navegações: notaram os enganos das autoridades, e perderam portanto perante os textos a atitude da superstição. Discutindo ideias dos autores antigos que a experiência da navegação mostrava falsas, diz Duarte Pacheco no seu Esmeraldo: «a experiência é madre das coisas, e por ela soubemos radicalmente a verdade». «A experiência nos tem ensinado» (acrescenta ele); «a experiência nos faz viver sem engano das alusões e fábulas que alguns dos antigos cosmógrafos escreveram acerca da descrição da terra e do mar; ... que a maior parte do saber de tantas regiões e províncias ficou para nós, e nós lhe levámos a virgindade... e nestas coisas a nossa nação dos Portugueses precedeu  todos os antigos e modernos em tanta quantidade, que sem repreensão podemos dizer que eles, em nosso respeito, não souberam nada.» A verdade, para a elite Portuguesa daquela época, já se não busca radicalmente pelo estudo e comentário dos autores antigos: vai procurar-se na indagação do real. Garcia da Orta, o naturalista, foi ao Oriente, e pôde comparar as drogas indianas, que seus olhos viram, com as descrições das autoridades; e então a experiência, «madre das cousas», mostra-lhe que os textos também erravam: e cai o critério da Autoridade, base incontestada da sabedoria medieval. As principais personagens dos seus Colóquios são o doutor Ruano e o doutor Orta. O doutor Ruano é o homem dos textos, medieval e comentarista, que sabe de cor as autoridades: o seu Dioscórides, o seu Plínio; o doutor Orta, por outro lado, é o navegante e quinhentista, que opõe às autoridades um simples vi: «vi, claramente visto;», como diz Camões. [passou da autoridade para a visão clara o critério do verdadeiro.]

No «Colóquio do benjoim», por exemplo, Ruano opõe uma objecção, derivada das autoridades; e Orta responde: «Não me ponhais medo com Dioscórides nem Galeno: porque não hei-de dizer senão a verdade, e o que sei.» No «Colóquio da pimenta» o doutor Ruano, assustado, pretende salvar a intangibilidade dos textos, observando: «Parece-me que destruís todos os escritores, antigos e modernos!», – e passa a comentar os dizeres de Plínio, de Dioscórides, e de muitos mais. O doutor Orta, obtido esse efeito, não diz que sim, nem diz que não: limita-se a seguir como se nada fosse, e a contar o que viu no Malabar – coisa que divergindo do texto das Autoridades, ele sabia (palavras suas) «muito bem sabidas, como testemunha de vista». Repetindo, sem o saber, Duarte Pacheco, a certa altura exclama ele: «sabe-se mais em um dia agora pelos Portugueses do que se sabia em cem anos pelos Romanos,» – quer dizer: mais em um dia de observação directa que em cem anos de leitura e comentários das autoridades; e quando Ruano, no «Colóquio da maçã», adverte que Serápio citava os Gregos a propósito de noz-moscada, vemos o doutor Orta responder-lhe: «Fez isso porque havia medo de dizer cousa contra os Gregos; e não vos maravilheis disto: porque eu, estando em Espanha, não ousaria de dizer, cousa alguma contra Galeno e contra os Gregos.» [Havia, como se vê, nesses homens, a consciência da revolução que operaram neles as navegações: «que eu, estando em Espanha, não ousaria dizer coisa alguma contra Galeno e contra os Gregos.»] Garcia da Orta, se não tem saído do ambiente europeu (ele o confessa) não teria ousado desenvencilhar-se da superstição das autoridades, e passar da atitude do Homo credulus para a atitude do espírito crítico. Os seus Colóquios são o índice, portanto, de uma nova orientação [do génio europeu]; são um livro de «inquiridor de verdades» segundo a frase do mesmo Orta; um livro feito (empregando ainda palavras dele) «para desencovar a verdade não sabida de todos». A revelação do mesmo espírito se encontra nos Lusíadas de Camões. Se não interviesse depois a Contra-Reforma; se este germe fecundo de humanismo [científico] se tivesse podido desenvolver, sem compressões teocrático-políticas, – a meta natural do pensar português seria o experimentalismo que caracterizou os Ingleses, pelo que toca propriamente ao método; e, na metafísica, alguma coisa semelhante ao espiritualismo científico de Spinoza.

Comprimido pela Contra-Reforma, porém, o pensar crítico morreu sufocado, em Portugal, para só ressuscitar com Luís Verney.

O humanismo moral português culmina no discurso do «Velho do Restelo» (Lusíadas). Camões, quando descreve a partida de Vasco da Gama, faz condenar pela boca de um velho (a quem confere a máxima venerabilidade, pelo carácter, pela ancianidade e pela experiência) a própria façanha que se propôs celebrar. É que, para o poeta, há dois planos no mundo moral: o moral ou ordem das capacidades humanas de energia, de valor, de saber, de faculdades de realização, que permitem acometer as grandes empresas, como o descobrimento da Terra pelos Portugueses; e, acima desse plano, o dos mais altos fins da consciência (paz interior, bondade, [liberdade], fraternidade perfeita), bens a cujo atingimento, sob um ponto de vista absoluto, aquelas mesmas capacidades se deveriam aplicar.

Um dos fenómenos mais característicos da revolução intelectual determinada pelas Navegações é o sentimento de que a Natureza entranha um poder divino, sentimento que Duarte Pacheco manifesta com insistência nas suas reiteradas frases sobre «a majestade da grande Natureza», a qual (acrescenta ele) «usa de grande variedade em sua ordem e no criar e gerar as coisas». Tal ideia não é ainda no espírito dos homens das Navegações, aquilo que virá a ser para os racionalistas posteriores; mas a maneira como falam dela um Duarte Pacheco e um Camões manifesta a tendência a ver na Natureza uma «Majestade» imanente e autónoma, que irá suceder à Providência e ao transcendente na função de «criar» e «ordenar» as coisas. A nova concepção desponta e robustece-se ao lado da concepção teológica cristã sem ainda a empanar: essa justaposição pacífica das duas ideias caracteriza aquela época.

À luz destas considerações se deve ver, em nosso juízo, um problema muito debatido pelos críticos literários: o da coexistência do maravilhoso pagão e do maravilhoso cristão nos Lusíadas de Camões. A questão é mais funda que um mero problema de retórica. O sentimento da «majestade da grande Natureza», do seu poder autónomo, obriga o poeta a tratar a Natureza como reino independente, circunstância que se traduz, no campo artístico, pela adopção dos deuses pagãos, os quais vêm a ser, ao cabo de contas, essa mesma Natureza personificada[; isto porém, sem prejuízo da teologia cristã]. O puro naturalismo e o puro cristianismo, considerados separadamente, representariam [pois] com falsidade a [complexa] atitude mental produzida nos Portugueses pelas empresas de Navegação. Estes, sem deixarem de acatar ainda os «sábios da Escritura», antepõem-lhes os problemas novos:

 

«Digam agora os sábios da Escritura

Que segredos são estes da Natura...»

 

[Porém, se o sentimento do valor da experiência levava os homens como Garcia da Orta, como Duarte Pacheco, ou como Camões, a uma certa atitude de empirismo, não devemos esquecer que o trabalho das navegações lhes revelava do mesmo passo – pelo êxito prático da navegação astronómica – o da interpretação matemática das aparências. Pensa Camões que o recurso à experiência é necessário: mas faz-nos notar, ao mesmo tempo, que a simples comprovação das aparências, sem as construções inteligíveis do «puro engenho», só nos dá fantasmas «mal entendidos»:

 

Os casos vi que os rudos marinheiros,

que têm por mestra a longa experiência,

contam por certos sempre e verdadeiros,

julgando as cousas só pela aparência:

e que os que têm juízos mais inteiros,

que só por puro engenho e por ciência

vêem do mundo os segredos escondidos,

julgam por falsos, ou mal entendidos.

 

(Lusíadas, V, 17.)]


Camões lendo Os Lusíadas aos Frades de São Domingos, por António Carneiro.

São as navegações, outrossim, que conferem às letras nacionais o que têm de característico e de maior sabor. Já aludimos à grande epopeia, os Lusíadas, que tem por herói um ser colectivo: a própria nação que descobriu o mundo, ou, antes, a Ideia dessa Nação, tal como Camões a concebeu. Os efeitos sociais dos Descobrimentos inspiraram as páginas mais interessantes do poeta Sá de Miranda (1495-1558) que introduziu no País a escola clássica. Ele, Camões, António Ferreira (1528-1569), autor da tragédia Castro e dos Poemas Lusitanos, são exemplares dessa corrente de poesia, como o historiador [clássico] dos Descobrimentos, João de Barros (1496-1570) o é da prosa; o comediógrafo Gil Vicente (m. 1540) prende-se ainda à tradição medieval pelo que respeita à forma da sua arte. Entre os escritores de viagens, cumpre salientar Fernão Mendes Pinto, o da Peregrinação, de quem já falámos; na história, além de Barros, Frei Luís de Sousa (1555-1632), e, já menor que esses como estilista, Damião de Góis (1502-1574); os restantes historiógrafos têm menos mérito literário, e bem que valham mais, por vezes, como fonte de informação (Azurara, Pina, Resende, Castanheda, Couto, Gaspar Correia, [António Galvão,] etc.). Dos moralistas, todos místicos, mencionaremos Amador Arrais (1530-1600), Tomé de Jesus (1529-1582), [Heitor Pinto (?-1584),] Paiva de Andrada (1528-1575). Entre os poetas cumpre citar, além dos referidos, Bernardim Ribeiro (1500?-?), Cristovão Falcão (c. 1495- ?), Diogo Bernardes.

Na literatura popular, a obra-prima portuguesa é também criação dos Descobrimentos: a série de narrativas de naufrágios, que foram reunidas mais tarde com este título que as caracteriza: História Trágico-Marítima. A alma da Nação também naufragou, e andou separada desde então do seu ambiente natural, que é aquele espírito humanista – espírito revolucionário, de livre investigação e de livre crítica, – a que levavam as Navegações.

A ciência matemática [portuguesa], criada e desenvolvida pelas navegações, chegou ao seu zénite com Pedro Nunes (1492?-1577?), de quem foi discípulo D. João de Castro. A ciência característica dos Portugueses é a cosmografia, suscitada pelas Navegações. Há pouco, escreveu o francês L. Gallois, a propósito da obra l’Astronomie nautique au Portugal à l’époque des grandes découvertes, do português Joaquim Bensaúde: «Revela-se-nos com evidência que foi em Portugal que se praticaram pela primeira vez no Ocidente os processos de navegação pela observação dos astros, sem os quais teriam sido impossíveis tão aventuradas expedições.»

O infante D. Henrique, que se consagrava aos estudos cosmográficos, criou uma cátedra desta ciência na Universidade de Lisboa em 1431[, e fez estudar pelos seus navegantes os ventos e correntes do oceano Atlântico (1425).] Deve-se a um deles a primeira determinação de latitude de que há notícia certa: a de Diogo Gomes, o qual, na sua viagem à Guiné em 1462, tomou, com o quadrante, a altura da Estrela Polar (a altura do pólo, como se sabe, é igual à latitude). À medida que se avançava para o equador, abaixava-se aquela estrela para o horizonte, amarando totalmente ao sul da linha, quando se entrava no hemisfério austral. De aí a necessidade de recorrer a outro processo: o da altura meridiana do Sol, a qual, conhecida a declinação do astro, permite achar a latitude. Tornou-se pois necessário construir tábuas de declinação do Sol. Isso se fez em Portugal; não, porém, com auxílio da ciência alemã de Regiomontanus, como por tanto tempo se afirmou, e sim por um judeu peninsular, chamado Abraão Zacuto. D. João II fez compor o Regimento do Astrolábio, manual de astronomia náutica para uso dos pilotos, o qual contém: instruções minuciosas para determinar a latitude pela altura meridiana, com 17 exemplos, correspondentes a diversos casos; um almanaque com as declinações do Sol durante o ano; um «regimento da Estrela Polar», com instruções para achar a latitude pela altura desta estrela; e um «regimento» para marcar na carta o caminho percorrido.

Promontório de Sagres. Ver aqui e aqui




O achado, feito recentemente em Munique, de um exemplar desta obra, revolucionou as ideias existentes sobre as origens da ciência náutica.

Por este livro estudaram, directa ou indirectamente, todos os navegantes daquela época. O já citado Gallois conclui por estas palavras o trabalho a que nos referimos: «De Portugal passaram a Espanha» (os métodos de navegação astronómica). «Na sua Suma de Geografia (1519), Fernández de Enciso copia trechos inteiros do Regimento de Munique. Um piloto português, Francisco Faleiro, escreveu para uso dos Espanhóis a mais importante obra de navegação que até então aparecera, o Tratado de la esfera y del arte de marear (1535). Ambos os livros contêm, como é natural, tábuas de declinação do Sol. Podemos acrescentar que os métodos portugueses haviam passado também a França, já que a Cosmografia de Alphonse de Saintonge (1544), pura e simples adaptação da obra de Enciso, reproduz as tábuas, calculadas para o ciclo de quatro anos, do Regimento de Évora» (outra edição do Regimento português).

[A Arte de Navegar de Medina (1545), tirada principalmente da obra de Faleiro, foi um dos livros pelos quais a ciência náutica portuguesa se difundiu na Europa. As investigações de Jaime Cortesão permitiram-lhe afirmar que o manuscrito chamado de Rouen (1545-1548), contém a maioria dos regimentos portugueses, literalmente traduzidos. Em Inglaterra, a difusão da ciência náutica portuguesa realizou-se por intermédio do Breve compendio da Sphera y de la arte de navegar, do espanhol Martin Cortes (1551), que copiou também os nossos regimentos. Traduzido em 1561 por Ricardo Eden, este compêndio teve em Inglaterra, segundo aquele historiador constatou, dez edições até 1609. O livro de Bourne, A regiment for the sea, reproduz largamente, por intermédio do de Cortes, a ciência dos pilotos de Portugal. O veículo mais importante da difusão dos conhecimentos contidos nos nossos roteiros foi o Grand Routier de la mer, de Jan Huygen van Linschoten (1596), o qual reproduz não menos de doze roteiros e descrições de viagens portuguesas entre a China e o Japão, segundo Jaime Cortesão verificou. A obra de Linschoten só apareceu publicada em 1595-1596, mas foi utilizada em manuscrito pela Companhia Van Verre para a instrução dos pilotos da primeira expedição holandesa até à Índia (1595).

Durante um século, o livro de Linschoten, compilação de roteiros portugueses, foi a única obra que guiou os navegantes nos mares do Oriente.]


Janela do Capítulo no Convento de Cristo em Tomar.

Nas artes plásticas, nota-se sobretudo a influência das Navegações nos motivos decorativos da arte «manuelina», manifestando-se particularmente na obra de João de Castilho, arquitecto do tempo de D. João III, e autor dos mais típicos exemplares da mesma influência. No Convento de Cristo em Tomar (diz um crítico dos nossos dias, o Snr. Reinaldo dos Santos), João de Castilho «exaltou a obsessão portuguesa do mar com um simbolismo exuberante». Cumpre sobretudo considerar, sob esse especial ponto de vista, a famosa janela daquele Convento. Dela disse o crítico francês Bertaux que, «semelhante às construções madrepóricas, dá a impressão de decorar um palácio submarino»; e Ramalho Ortigão: «As colunas da janela da sala do capítulo são pólipos de cristal, dos mais profundos recifes oceânicos... Os outros elementos decorativos são as ondas do mar, tal como se representam na heráldica... Sólidas cadeias e potentes cabos, donde pendem as bóias de cortiça, enlaçam a decoração, amarrando-a vigorosamente à parede por fortes argolas, como se amarra um navio ao cais de um porto.»

As cordagens, as algas, a esfera armilar, a cruz de Cristo que levaram as naus em suas velas, são motivos constantes da decoração manuelina, que recordam as Navegações.


Mosteiro de Santa Maria de Belém.


A influência dos Portugueses no Oriente foi dilatada e duradoura. Heyligers, na sua obra Traces du Portugais dans les principales langues des Indes Orientales Neerlandaises, diz que «poucas nações se podem gloriar do seu passado como Portugal... O influxo do elemento português no arquipélago malaio foi de excepcional poderio, como o demonstra o facto de ainda hoje se encontrarem os seus vestígios na população indígena de ilhas que pertencem de há muito aos Holandeses». O português foi a «língua franca» do Oriente, e falava-se na Índia, na Malásia, no Pegu, em Bramá, em Sião, no Tonquim, na Cochinchina, na China, em Cormoram da Pérsia, em Meca da Arábia, em Bassorá da Turquia. Utilizavam-no os hindus e maometanos, judeus e malaios, e até os próprios europeus não portugueses para as relações entre si e com os indígenas. Serviam-se dele os missionários holandeses nos seus domínios e ainda hoje o empregam em Ceilão os pastores protestantes ingleses. «A história dos Descobrimentos e das conquistas portuguesas», escreve o doutor Schuchardt, «é também em geral a história da propagação da língua portuguesa». Esta fraccionou-se depois em numerosos «crioulos», que se perpetuaram até hoje fora dos domínios portugueses, facto que se não deu, pelo menos na mesma amplitude, com nenhum dos idiomas dos povos que dominaram mais tarde nas regiões orientais.

A flora oriental estudou-a, como dissemos, Garcia da Orta[, e os animais e plantas mais interessantes da África e da América foram descritos por cronistas, viajantes e missionários. Assim, por exemplo, Azurara descreveu o embondeiro em 1448, isto é, mais de trezentos anos antes de Adanson, de quem tirou a árvore o nome científico; frei João dos Santos, o autor da Etiópia Oriental (1609), dá descrições minuciosas do desdentado africano orycteropus (que Buffon, já no século XVIII, considerava ainda como animal fabuloso), do peixe eléctrico tremedor, do hipopótamo, etc. A flora e a fauna brasileiras foram especialmente tratadas pelo Padre Anchieta, por Pêro de Magalhães Gandavo, por Fernão Cardim, por Gabriel Soares de Sousa e pelo Padre Gaspar Afonso. Os Portugueses levaram o milho da América para a África, onde se adaptou de tal maneira que em fins do século XVI se dava ao milho americano o nome de «milho da Guiné». A laranjeira-doce (Citrus aurantium, L.) foi trazida para o País depois da viagem de Vasco da Gama, e no século XVI generalizou-se a sua cultura na metrópole e nas colónias. A laranja-da-china (Citrus aurantium sinensis, Gall) entrou em Portugal em 1635, e foi de aí difundida pelo Velho e Novo Mundo. Os Portugueses encontraram o tabaco na América, e espalharam-no pela África e pela Ásia no final do século XVI ou nos princípios do seguinte. Os exemplares desta planta que Nicot introduziu na sua pátria (França) descendiam dos do jardim do rei português. Do Brasil levaram os Portugueses a batata-doce para a África, e o ananás para a África e para a Ásia; para a América levaram da África a bananeira. A flora asiática, e, em particular, a indiana, deve aos Portugueses a introdução de muitas plantas, que hoje crescem espontaneamente, cobrindo vastas áreas. Há quem afirme, por outro lado, que deles tomaram os Japoneses o conhecimento da planta do chá].

Sir Richard Burton, nos seus comentários aos Lusíadas, reconhece a exactidão com que fala Camões nas coisas orientais, inclusas as matérias de religião. Dos sistemas religiosos da Índia disserta Diogo de Couto na quinta das suas Décadas da Ásia, com minúcia e precisão. Yule reconhece que foi Couto o primeiro que identificou a lenda cristã de Barlaam e Josaphat com a de Buda, identificação cuja prioridade atribui Müller a Laboulaye; e Robert Caldwell confirma o que diz o historiador português sobre os 1330 aforismos político-religiosos que compôs o «venerável» Valumar, e sobre os assuntos que neles tratou.

A literatura portuguesa de viagens e explorações é muito rica, e subministra uma massa valiosíssima de informações. Como escritor, Mendes Pinto é o maior dos autores portugueses de livros de viagens; mas outros há de grande mérito literário: assim, por exemplo, o Padre Manuel Godinho, a quem os críticos até hoje não prestaram a atenção que merece pelos seus dons de estilista.        

(In António Sérgio, Breve Interpretação da História de Portugal, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 14.ª Edição, 1998, pp. 84-93).


Navio-Escola Sagres




domingo, 30 de julho de 2023

Os Portugueses nos mares do Oriente

Escrito por António Sérgio





«Naquela noite de sexta-feira, 26 de Abril de 1521, em que Magalhães embarca com sessenta homens para atravessar o pequeno estreito que separa as duas ilhas, os nativos afirmam ter visto, poisado sobre a cobertura de uma cabana, um estranho pássaro preto, desconhecido, semelhante a uma gralha. E na verdade, de repente, sem ninguém saber porquê, todos os cães começaram a uivar; assustados, os espanhóis, que não eram menos supersticiosos do que os nativos, fazem o sinal da cruz. Mas aquele homem, que ousara aventurar-se na maior viagem marítima do mundo, por que razão havia ele de recuar agora perante uma escaramuça com um chefe e com a sua desprezível escumalha, só por um corvo qualquer ter crocitado?

Por fatalidade, contudo, aquele chefe insignificante encontra um aliado de peso na estrutura peculiar da costa. Dado que os recifes de coral avançam pelo mar dentro e os batéis não podem chegar suficientemente perto da praia, os espanhóis vêem-se, desde logo, impossibilitados de recorrer ao meio de combate que mais efeito faz: ao mortífero fogo à distância, disparado por mosquetes e por arcabuzes, e cujo simples ribombar já é, regra geral, suficiente para pôr os indígenas em debandada. É com despreocupação que os sessenta homens fortemente armados – os restantes ficam nos batéis – prescindem desse apoio de retaguarda e saltam para dentro de água, tendo à cabeça Magalhães que, segundo escreve Pigafetta, “como bom pastor, não queria abandonar o seu rebanho”. Com a água a dar-lhes pela cintura, passam a vau o longo percurso até à costa, onde os espera uma enorme horda de indígenas ululantes, girando e agitando os escudos. O embate entre os dois adversários não tarda.

A descrição mais fiável, das várias existentes sobre esta luta, deve ser a de Pigafetta que, tendo ele próprio sido atingido gravemente por uma seta, se manteve até ao último momento ao lado do seu amado capitão. “Saltámos para dentro de água, que nos dava pela cintura, e tivemos de passar a vau uma distância equivalente a dois bons tiros de besta, pois os nossos batéis não puderam seguir-nos devido aos recifes. Chegados à margem, encontrámos mil e quinhentos insulanos divididos em três bandos que arremeteram contra nós em terrível gritaria. Dois bandos atacaram-nos pelos flancos, o terceiro pela frente. O nosso capitão dividiu os tripulantes em dois grupos. Os nossos mosqueteiros e arcabuzeiros abriram fogo durante meia hora a partir dos barcos, mas nada conseguiram alcançar, porque as suas balas, flechas e lanças não conseguiam perfurar os escudos de madeira a uma tão grande distância ou, quando muito, feriam apenas os braços dos inimigos. Por isso, o capitão ordenou em alta voz que não se disparasse mais (manifestamente para poupar munições para o combate final), mas não lhe obedeciam. Quando os insulanos viram que os nossos tiros pouco ou nenhum dano causavam, não voltaram a recuar. Gritando cada vez mais alto, saltando de um lado para o outro para escapar aos nossos tiros, foram simultaneamente chegando mais perto, protegidos pelos seus escudos, arremessando setas, chuços, lanças de madeira endurecidas no fogo, pedras e também dejectos, de forma que mal conseguíamos defender-nos. Alguns arremessaram mesmo lanças com pontas de bronze contra o nosso capitão.

“Para os assustar, o capitão mandou alguns dos nossos homens incendiar as casas dos ilhéus, o que ainda os enfureceu mais. Alguns correram em direcção ao fogo que consumia vinte ou trinta habitações, e ali mataram dois dos nossos. Os outros atiraram-se a nós ainda com maior sanha. Quando repararam que os nossos corpos estavam realmente protegidos, mas que as pernas não tinham cobertura, fizeram delas o seu alvo principal. O pé direito do capitão foi perfurado por uma seta envenenada, pelo que ele deu ordem de se ir recuando aos poucos. Mas quase todos os nossos homens começaram a bater em retirada, precipitadamente, de forma que quase não ficaram mais de seis ou oito com ele (ele que, há muitos anos era coxo, estava manifestamente a atrasar a retirada). Então ficámos expostos, de todos os lados, às lanças e às pedras, arremessadas contra nós pelo inimigo, e já não conseguíamos opor resistência. As bombardas que tínhamos nos batéis não podiam vir em nosso auxílio, porque a água pouco funda as mantinha demasiado longe. Assim, esforçámo-nos por nos afastar cada vez mais da praia, ao mesmo tempo que, combatendo sempre, íamos recuando passo a passo, e já nos encontrávamos afastados da costa à distância de um tiro de besta e já tínhamos a água pelos joelhos. Mas as gentes da ilha perseguiam-nos sem dar tréguas e voltavam a apanhar as setas que anteriormente tinham atirado contra nós, de forma que podiam disparar cinco ou seis vezes a mesma seta. Ao reconhecerem o capitão, tomaram-no como alvo principal; duas vezes lhe derribaram o capacete, mas ele, juntamente com alguns de nós, manteve-se no seu posto, como indómito cavaleiro, sem tentar recuar mais, e assim combatemos durante mais de uma hora, até que um dos índios conseguiu lançar um projéctil por um cano ao rosto do capitão. Na sua ira, o capitão trespassou imediatamente o peito do agressor com a sua própria lança, mas esta ficou presa no corpo do morto, e quando o capitão tentou puxar da espada, só conseguiu desembainhá-la por metade, porque um ferimento causado por um chuço lhe tinha paralisado o braço. Ao verem isto, todos os inimigos se lançaram contra ele e um deles causou-lhe tal ferimento na perna esquerda com um golpe de sabre que o capitão tombou e caiu de borco. De imediato todos os índios se precipitaram sobre ele, trespassando-o com lanças e com todas as outras armas que possuíam. E assim nos levaram a vida daquele que era o nosso espelho, a nossa luz, a nossa consolação, o nosso devotado chefe”.

[...] Ninguém sabe o que aqueles miseráveis selvagens fizeram com o corpo de Magalhães, a que elemento devolveram os seus restos mortais, se ao fogo, à água, à terra ou ao efeito desgastante do ar. Não nos ficou nenhum testemunho, perdeu-se a sua sepultura; desapareceu misteriosamente no desconhecido o rasto do homem que arrancou o último segredo ao oceano sem fim que envolve a nossa Terra».

Stefan Zweig («MAGALHÃES. O Homem e o seu Feito»).


Estreito de Magalhães (imagem de satélite).


«Fechou-se para Portugal, no último quartel do século XX, um ciclo da sua história. Com a revolução de 25 de Abril de 1974, praticou-se com o passado um corte cerce. Muitas forças tentaram conseguir que, além de drástico, fosse absoluto esse corte: uma ruptura com todo o passado, não apenas com um certo ou algum passado. Foi posto em causa o facto nacional, e portanto o homem português na sua dimensão sociológica, cultural, psicológica, histórica em suma, e como homem diferenciado e com alicerces autónomos. Das paixões desencadeadas na ruptura crepuscular, dos sofrimentos impostos, das tibiezas e das arbitrariedades, ocupar-se-á o curso do tempo, e a História fará o seu juízo, acaso com prémio, possivelmente com desfavor para alguns. Entretanto, o corpo moral da Nação padeceu o seu maior traumatismo de todos os tempos: e esta ficou resumida nos seus limites territoriais e cingida a uma dimensão política mínima entre as Nações. Mercê do peso que era o seu, dos recursos de que dispunha, dos interesses que representava, da força que possuía, a Nação não sucumbiu aos transes históricos sofridos. Mas não se afigura que o homem português, neste ciclo de que não tem experiência e sob pena de entrar num ocaso definitivo, se possa permitir mais desvios: a sua vulnerabilidade é hoje absoluta: e novo passo em falso poderá ser o último. Decerto: importa não desconhecer que esta perspectiva deixa frios e indiferentes quantos desejaram a ruptura absoluta, e julgam que a vida começa com eles. Aliás, o marxismo-leninismo fez já uma confissão histórica: admitiu a sua falência em criar o homem novo, sem raízes nem compromissos com o passado. Esses não se sentiam partes de uma herança a defender e a transmitir, e por ignorância ou atitude negavam ou desprezavam o passado, sem capacidade para sentir que por este facto ficavam mais pobres. Esses não se apercebiam das consequências das suas atitudes, das suas palavras, das suas decisões; também não viam o que estava oculto nos gestos dos outros, nem pressentiam sequer o seu significado e intenções; e perante tudo eram cegos, e sobretudo embevecidos e deslumbrados. E assim Portugal caminhou de crise em crise, como se esperasse e até desejasse o seu fim. E com efeito, e por doloroso que seja, não é lícito esquecer um facto: perante mutações menos profundas do que as sofridas por Portugal, desapareceram pátrias; não existe lei providencial ou positiva que consagre a perenidade de Portugal e do homem português; e, a existir, nada garante o respeito de terceiros por essa norma, se o não impuserem os Portugueses. Estar a caminho de nove séculos de história, ter na história uma intervenção que ao menos tornou o mundo diferente do que teria sido sem ela, haver sempre assumido um destino ou uma missão específica – são realidades que impõem, ou deveriam ser aceites como impondo responsabilidades morais, cívicas, e até políticas. Mas não são realidades que, por si e em si, garantam a sobrevivência de Portugal. É de repetir: as pátrias desaparecem: e na crónica da humanidade grandes pátrias, quando carcomidas no seu cerne e perdidas na sua alma, foram destruídas, ou esvaíram-se exangues, ou foram absorvidas e anexadas por outra ou outras, quase sempre as vizinhas mais fortes. Parece assim haver vantagem em identificar o enquadramento de uma independência nacional, e inventariar as vulnerabilidades internas, e as ameaças externas de Portugal. Pelo menos não se vê que a tentativa possa acusar mal ou prejuízo a alguém.

Sistema de certezas íntimas, agregado de segredos conhecidos colectivamente, conjunto de emoções vividas em comum, rede de interesses partilhados por todos: uma pátria. E os cidadãos de uma pátria, se ainda a sentem, têm de partir do pressuposto da sua viabilidade. Deste modo, e no que respeita aos Portugueses, há que basear tudo nesta premissa simples: Portugal é uma nação independente e soberana, tem a viabilidade de continuar a ser independente e soberana, possui os meios de se fazer respeitar. Parece vedado a qualquer português deixar-se permear por ideias suicidas em relação a Portugal: não se afiguram lícitas dúvidas quanto às raízes nacionais; e não se julga curial que qualquer português, que sinta Portugal, possa negar ou não viver a solidariedade nacional. Além de tudo, aquelas premissas alicerçam-se em factos irrefutáveis: Portugal possui uma língua, uma cultura, uma religião, e uma história apenas sua. Está-se perante uma quantidade política e sociológica que, por isso mesmo, desencadeou os meios de se afirmar no tempo e no espaço, e de garantir a sua sobrevivência.

Portugal tem uma língua própria. Desde o século XIII, certamente desde o século XIV, a língua portuguesa aparece diferenciada dos demais idiomas de matriz latina. De há séculos está perfeitamente caracterizada e autónoma. Enquanto a versão latino-galaica ficou estacionária, e sofreu a penetração e o quase esmagamento por Castela, a versão portuguesa acompanhou o caminho para o sul e, ao mesmo tempo que se enriquecia com os falares moçárabes, dominou-os; e de toda essa evolução surgiu um idioma claramente distinto dos outros falares latinos, e não só da Península como da Europa. Pela expansão ultramarina, foi a língua portuguesa ainda tornada mais opulenta; e mostrou a sua flexibilidade e plasticidade com o seu afeiçoamento a novas realidades, a novos modos de dizer, e criou novas palavras para referir novos objectos e instrumentos, e que incorporou na sua raiz vernácula. Pode afirmar-se que a língua portuguesa, com toda a sua tipicidade e autonomia sem embargo dos modismos locais, é hoje falada por quase duzentos milhões de pessoas e compreendida por outras tantas. Na transição do século XX para o século XXI, a língua portuguesa é a quarta ou quinta língua de âmbito mundial, em número dos que a praticam.




Portugal tem uma cultura sua. Da língua e de mil factores partiu Portugal para uma cultura diferente de outras, e que lhe é inerente. Há uma expressão portuguesa em prosa como a há em poesia. Não é somente uma expressão em língua própria; é uma expressão em linguagem própria. Decerto: nos seus primórdios sofreu influências, embates, interpenetrações, como acontece em todas as formas culturais vivas. Mas desde muito cedo se afirmaram características suas apenas. Isto é, há uma maneira portuguesa de exprimir ideias, comunicar sentimentos, descrever factos, reconstituir ambientes. Há um matiz ou um estilo português de recriar realidades. Fernão Lopes já é claramente português na sua expressão, e não é como outro. Fixam os grandes cronistas posteriores uma língua e a matriz própria de a utilizar culturalmente. Camões assenta firmemente não só a língua como a poética portuguesas e, muito mais do que isso, talha um modo português de ver, de sentir, de comunicar, de interpretar; e a tal ponto que, sem embargo de haver absorvido a grande cultura do seu tempo, ficou medularmente português, e por essa via soube reflectir ressonâncias universais. Deu à cultura portuguesa uma actualidade permanente e um valor planetário; e os símbolos camonianos são assim válidos para as literaturas cultas. E depois é todo um vasto friso de escritores que, reafirmando-a ou renovando-a, tem assegurado a vivência da cultura portuguesa. Produziu o século XIX um homem, Eça de Queirós, que é hoje património do mundo culto, e textos seus são rotina em manuais de literatura ou antologias inglesas, francesas, americanas, latino-americanas, outras ainda; e o mesmo há que dizer de um homem do século XX, Fernando Pessoa, havido hoje por poeta da humanidade em mais de uma literatura. Há assim, para além de qualquer dúvida, uma forma cultural portuguesa, que apresenta continuidade ainda que intercalada de longos silêncios.

Portugal tem uma religião. Da esmagadora maioria dos Portugueses o culto é o católico, de obediência à Santa Sé e de fidelidade ao Bispo de Roma. Neste particular, Portugal segue a linha de muitos outros países católicos. Mas há também um estilo português de ser cristão, de ser católico, de ser religioso. Não são os Portugueses religiosos como os Britânicos, ou os Franceses, ou os Espanhóis, ou ainda outros povos, salvo talvez, por razões óbvias, os Brasileiros. Não cabe aqui investigar os motivos históricos, culturais e sociológicos que explicam ou impuseram essa diferença: basta verificar e sublinhar a realidade. No catolicismo português podem descobrir-se traços únicos: moderação e tolerância; anticlericalismo cíclico; culto mariano fervoroso; providencialismo (que no plano sociológico e político acabaria por se confundir com o sebastianismo); pompa exterior combinada com o populismo da religiosidade (romarias, procissões, peregrinações, ornamentação festiva e quase pagã a rodear actos de culto, etc,); unidade com a Sé Apostólica; crença e confiança no milagre; uma quase confusão entre fé e superstição; esperança permanente num amanhã melhor, tanto no plano divino como no terreno; sentido missionário; e o serviço de Deus como um dever nacional. Por fim, catolicismo coincide para os Portugueses com a afirmação da grei e constitui base de coesão moral.

Portugal tem uma história – muito sua e exclusiva. Quero dizer: não é a história ligada à de alguns ou subordinada à de terceiros, ou conduzida tendo outros por companhia ou apoio. Não: assenta na iniciativa portuguesa: e é vincada a autonomia de decisão e independência de execução. Portugal sempre teve um projecto português, ainda que obnubilado e em surdina nos períodos de crise mais funda. Desde os primeiros reis, a evolução portuguesa aparece diferente da de outros e mesmo oposta. Afonso Henriques compreendeu que tinha de criar uma nação: era a forma de corresponder a uma consciência colectiva nacional que se havia gerado e queria afirmar-se. Nas cortes convocadas pelos imperadores das Espanhas, jamais o primeiro rei compareceu; sempre ficou devoluto o lugar reservado a Portugal; e nunca foi sequer hasteado o pendão português. De Oviedo ou de Leão, das Astúrias ou de Castela, deslocaram-se sempre os seus monarcas às cortes; e assim prestavam a sua vassalagem e exprimiam a sua solidariedade com a ideia da Hespanha ou das Hespanhas. E como Afonso Henriques procederam os seus sucessores. Desde a fundação, há assim uma consciência de autonomia e destino separado. Desde D. Dinis há a vontade colectiva de executar essa missão e cumprir esse destino. E assumiram deste modo características especiais as navegações, os descobrimentos, e o apostolado português: além de um conceito geoestratégico mundial (a visão de D. João II e de Albuquerque), os objectivos económicos e militares, presentes sem dúvida, seguiam a par de propósitos morais e espirituais (recordem-se as bulas pontifícias) e humanos (lembrem-se a noção de igualdade racial, os casamentos mistos encorajados pela Coroa, entre outros traços). Foi um acto de audácia a empresa no seu conjunto; e também revolucionária, no plano político e até no terreno científico. São muitos os que hoje sustentam, pelo mundo, que o método usado por russos e americanos para conquista do espaço é o mesmo, exactamente o mesmo que foi criado e prosseguido pelos Portugueses: sucessivas missões demarcadas com rigor; executadas somente até ao limite definido; estudo, análise e crítica de cada missão; consoante as conclusões apuradas, assim se ordenava a missão ulterior; e deste modo se ia progredindo até ao objectivo último. Segundo os estudiosos destas matérias, não é ocasional nem resulta de simples coincidências a analogia do método português e o de americanos e russos: é consequência de estudo aturado feito por estes. Não se resumiu a esse período, todavia, a capacidade criadora portuguesa. Toda a obra missionária e apostólica, e toda a actividade civilizadora, são válidas até aos nossos dias; e ainda nesse espírito se filiam as campanhas de África dos séculos XIX e XX. Em verdade, pode afirmar-se que sem a aventura portuguesa teria sido diferente a história do Mundo; e parece lícito concluir que se Portugal fosse destruído, não seria de somenos a alteração do rosto da Europa, e até de algumas paragens para além daquela.




População e território: se no cômputo anotarmos apenas a gente de aquém-fronteiras, poderá dizer-se que são pouco mais de dez milhões os Portugueses. Deste ponto de vista, há base mais do que suficiente para sustentar uma comunidade à parte. São de população inferior numerosas nações; algumas não excedem as centenas, mesmo as dezenas de milhar de habitantes; mas a sociedade internacional reconhece-lhes a soberania, defende-lhes a independência. Seria grotesco e humilhante que dez milhões de pessoas, unidas pela mesma língua, cerzidas pela mesma cultura, crentes na mesma religião, forjadas pela mesma aventura, herdeiras do mesmo passado, detentoras dos mesmos interesses essenciais, duvidassem de que possuíam a estrutura que basta para constituir uma comunidade independente e soberana. Nas comunidades portuguesas dispersas pelo mundo – entre três a quatro milhões – poderá e deverá encontrar e desenvolver pontos de apoio político e de expansão cultural que não serão indiferentes. Decerto: Portugal, como os demais Estados, haverá de ter uma política demográfica; esta jamais deverá procurar reduzir o número de habitantes; porque importa não só evitar o envelhecimento como estimular uma sadia percentagem de população nova. É ainda o homem, e acaso será sempre, o maior bem de um país, a sua maior riqueza, a sua força mais eficaz. E o seu território? Este confina-se hoje àquele que tem sido o de Portugal quase desde os primórdios da nacionalidade e dos primeiros passos oceânicos: Continente, Açores, Madeira. Constitui o conjunto uma expressão territorial mínima: abaixo desta, à nacionalidade portuguesa seriam retirados os elementos indispensáveis à soberania independente. E há que insistir num traço já atrás esboçado: o território geoestratégico é hoje formado pelo vasto triângulo que tem como vértices o Continente, a Madeira e os Açores. Que quer isto dizer? Dispõem as Forças Armadas Portuguesas – terrestres, aéreas e navais – de um largo campo de manobra, para defesa em profundidade, que excede muito o território que se encontra entre o Caia e Lisboa, porque abrange o espaço dentre o Caia, a ilha da Madeira e a ilha do Corvo; e as suas estruturas técnico-militares haverão de se adaptar a esta realidade. Do mesmo passo, a posição internacional portuguesa, observada a esta luz, ganha relevo novo; e, se suscita ambições de terceiros, também permite a defesa perante estes e negociar concessões contra vantagens e garantias. [Estou consciente de que abordei muitos destes problemas de forma rápida e simplista. Não era meu propósito tentar um ensaio sobre a língua, a cultura, a história de Portugal, mas somente enunciar os traços fundamentais como pressupostos de uma nacionalidade; e chamar a atenção para aspectos que muitos por vezes esquecem]».

Franco Nogueira («Juízo Final»).


 Os Portugueses nos mares do Oriente


O império, nos últimos dias de Albuquerque, conheceu horas triunfais. De toda parte lhe pediam «cartazes» (passaportes do mar) para navios que navegavam, comerciando, desde Ormuz até Malaca. Os soberanos orientais enviavam embaixadores e pagavam páreas. Veio a Goa o do rei da Pérsia; a Lisboa foram os do soberano de Calicute e da rainha da Etiópia; em Malaca, onde governava Rui de Brito, apresentaram-se embaixadores do rei de Sião, do de Pão, do de Andraguiri, do de Menancabo, do de Ciai, do de Campar.

Os Portugueses espalharam-se pelo Oriente, – navegando, comerciando, combatendo, – numa vida espantosa de aventureiros, cheia de lances dos mais romanescos, toda imprevisto e variedade, toda pitoresco e energia heróica, de que ficou um relato surpreendente no livro Peregrinação de Mendes Pinto. Ao mesmo tempo, pelas viagens das armadas do reino e pelos cruzeiros das de guarda-costa ia-se completando o conhecimento de todas as regiões orientais.

D. Lourenço de Almeida, filho de D. Francisco, aportara em 1505 a Ceilão, e chegara em 1507 às Maldivas; em 1506, Tristão da Cunha descobrira as ilhas que têm o seu nome; em 1507 percorre Albuquerque, descobrindo e avassalando ao mesmo tempo, a costa meridional da Península Arábica, desde o golfo de Aden até Ormuz; em 1513, Pedro de Mascarenhas descobre as ilhas Mascarenhas, entre as quais avultam as conhecidas hoje pelos nomes de Maurícia e Reunião. [Foi nesse mesmo ano de 1513 que Jorge Álvares aportou à China, levantando um padrão cerca do porto de Ta-mang, a 18 km de Cantão.] Diogo Lopes de Sequeira chegara a Malaca em 1509, e estivera antes em alguns portos de Samatra. Conquistada Malaca em 1511, sai de ali uma expedição destinada ao descobrimento das Molucas, ou «ilhas das especiarias». António de Abreu, que a comandava, esteve primeiro num porto de Java, depois em Amboína, e visitou em seguida as ilhas de Banda, donde regressou para Malaca. O seu companheiro Francisco Serrão foi mandado prosseguir na mesma empresa; naugragou numa das ilhas do arquipélago de Banda; tendo salvo, porém, as armas, conseguiu intimidar os naturais, e, fazendo-se à vela numa embarcação indígena, chegou finalmente a Ternati e a Tidor, das Molucas propriamente ditas, onde pouco depois os Portugueses se estabeleceram. Desta ocupação, e das viagens contínuas entre Malaca e as Molucas, resultou o conhecimento de numerosas ilhas, entre as quais as da especiaria. Foram assim conhecidas Bornéu, Celebes, (Gomes de Sequeira, 1518), e Papuásia (D. Jorge de Meneses, 1527). Em 1518 mandou o governador da Índia a D. João da Silveira que visitasse a costa do Coromandel; seguindo para o norte, chegou às bocas do rio Ganges; de aí desceu pela contracosta, tocando em vários dos seus portos.

Em 1517, Fernão Peres de Andrade partiu de Malaca para uma expedição às costas da China, indo fundear no porto de Cantão; um dos seus subordinados visitou as ilhas de Ciu-Quiu, que se estendem para o sul do arquipélago japonês. Com as notícias da expedição, e os navios carregados de produtos chineses, voltou Andrade até Malaca, e de aí até à Índia, aonde chegou em 1519, partindo depois para Lisboa, a dar conta ao rei de mais esse avanço. Ao Japão chegaram em 1542 António da Mota, Francisco Zeimoto e António Peixoto, e pouco depois Fernão Mendes Pinto, o autor da Peregrinação. Ali se desenvolveu o cristianismo, levado pelos missionários, ao passo que os negociantes portugueses chegaram a ter em Nagasáqui uma feitoria fortificada, muitíssimo importante.

Já dissemos que os Portugueses procuraram desde princípio chegar à Índia por ocidente, projecto em que mais tarde insistiu Colombo. A existência dessas ideias de navegação por oeste é testemunhada [por uma viagem com os dinamarqueses à Gronelândia, ainda no tempo do infante D. Henrique, e] por uma carta dirigida pelo astrónomo florentino Toscanelli ao português Fernão Martins, com data de 25 de Junho de 1474. Diz Toscanelli: «Soube com satisfação do teu valimento e intimidade junto do vosso generosíssimo e magnificentíssimo soberano (Afonso V). Falei já contigo sobre um caminho marítimo para o país das especiarias, mais breve do que o que buscais pela Guiné. Por isso o teu sereníssimo rei me pede agora explicações suficientemente claras para que até os de medíocre saber possam compreender a existência de tal caminho» (texto copiado por Colombo).




Localização da Gronelândia

Existe prova, além disso, de que os governantes portugueses consultavam já Toscanelli em 1459. Já se não pode duvidar hoje de que estas ideias passaram de projecto, e de que houve quem tratasse de lhes dar realização. Em 1452, isto é, ainda em vida de D. Henrique, Diogo de Teive, seu escudeiro, partiu dos Açores em direcção dos quadrantes de oeste, segundo testemunho do próprio Colombo, e viu terras. Sem insistir nas viagens prováveis que deram origem a concessões a ocidente a Fernão Teles (1475) e a Fernão Dulmo (1486), nos casos de Gonçalo Fernandes (1460-1461) e João Vogado (1462), aquelas viagens de combinação com o soberano da Dinamarca, estudadas por Sofos Larsen, nem em indicações cartográficas da primeira metade do século XV, podem considerar-se como certas as expedições de Pedro de Barcelos e de João Fernandes Labrador (o qual deu o nome à «Terra do Labrador») de 1492 a 1495, viagens «para a parte do Norte», para as quais zarparam anteriormente a Colombo. Estas tentativas para oeste (assim como também outros factos e projectos da política dos Descobrimentos) eram mantidas secretas na medida do possível, a fim de evitar a competência estrangeira.

Por 1500, Gaspar Corte Real, homem de família nobre e de cerca de 50 anos de idade, cujos irmãos (Miguel e Vasqueanes) desempenhavam cargos importantes na corte de D. Manuel, solicitou privilégio deste rei para novas empresas de descobrimentos. Outorgou-lhe o monarca as cartas-patentes necessárias, com a doação das terras e ilhas que descobrisse (carta de doação de 11 de Maio de 1500). Aparelhou Gaspar um ou dois navios, com os quais partiu (de Lisboa? da ilha Terceira?) no Verão de 1500. Regressou no Outono seguinte, depois de haver visitado ao ocidente uma terra «mui fresca e de grandes arvoredos», como diz Damião de Góis.

Animados por este êxito, trataram Gaspar e seus irmãos de preparar nova viagem, com três navios que largaram de Lisboa em Janeiro de 1501, para aportarem às regiões que aquele descobrira pouco antes.

Segundo uma carta do italiano Cantino, domiciliado em Lisboa, ao duque Hércules de Ferrara, os descobridores navegaram na direcção do norte uns cinco meses, ao cabo dos quais encontraram grandes massas flutuantes de gelo que iam impelidas pelas águas. Pouco depois, viram o mar completamente gelado. Isto os induziu a mudar de rumo para noroeste e para oeste. Ao fim de três meses de feliz viagem foram dar com uma terra muito extensa, sulcada de grandes e pitorescos rios, com frutos excelentes e variados, com árvores elevadíssimas. Os indígenas viviam da caça e da pesca. Apoderaram-se os expedicionários de uns quarenta, para os levar ao rei. Decidiu Gaspar Corte Real ficar por ali algum tempo, para explorar as costas com a sua nau, e mandou regressar as outras duas. Uma delas chegou ao Tejo a 9 de Outubro, e a outra a 10.

Um mês passou; passaram-se dois, três e quatro meses, e a nau de Gaspar não apareceu. Miguel, aflito, equipou então três caravelas, e foi-se em busca de Gaspar. Mas também ele não regressou, nunca mais. Por fim, o mais velho dos três irmãos, apesar de sexagenário e de pai de família com oito filhos, resolveu cruzar também os mares, e ir à busca de Miguel e de Gaspar. Porém o rei não o consentiu, decidindo enviar caravelas às paragens onde haviam navegado os desaparecidos. Estas regressaram sem notícias deles, nem dos seus companheiros, nem dos seus navios.

Agora, transcorridos quatro séculos, afirma o professor Edmundo Delabarre que uma das inscrições gravadas no rochedo da praia de Dighton se refere a Miguel Corte Real. Essa rocha, que só é inteiramente visível na baixa-mar, apresenta petróglifos na face que diz para o oceano, petróglifos que ocasionaram controvérsias entre os cientistas da América do Norte. Segundo Delabarre, uma parte deles contém, não só o nome de Miguel Corte Real, mas também a indicação de que este veio a ser ali, chefe de uma tribo indígena.


A Pedra de Dighton no estuário do rio Taunton, em Berkley, Massachusetts, antes de ser removida em 1963 como objecto protegido pelo Estado de Massachusetts.


Museu da Marinha (Lisboa).



Estátua de Gaspar Corte-Real, na cidade de St. John's, Newfoundland.

Ter-se-iam os Corte-Reais traçado por objectivo o caminho da Índia pelo noroeste? O certo é que os únicos caminhos práticos, pelo menos, foram descobertos pelos Portugueses: o do sueste, como vimos, por Bartolomeu Dias; o do sudoeste, por Fernão de Magalhães.

Acentua o erudito Harrisse, em um dos seus trabalhos sobre as navegações, o facto de que na expedição de Fernão de Magalhães, português ao serviço de Castela, tomaram parte os pilotos portugueses Carvalho, Estêvão Gomes, Serrão, Vasco Galego, Álvaro e Martim de Mesquita, Francisco de Asseca, Duarte Barbosa, António Fernandes, Luís António de Beja, João da Silva. E, comentando este facto, diz o seguinte: «Assim, este memorável empreendimento, realizado sob a bandeira espanhola, não contou menos de catorze pilotos portugueses; e se a esses acrescentarmos o comandante em chefe, os cosmógrafos encarregados da parte técnica (Rui e Francisco Faleiro), assim como os três cartógrafos que forneceram os elementos (Pedro Reynel, Jorge Reynel e Francisco Faleiro) todos nascidos em Portugal, veremos aí um facto, honroso para este país, que não deve ser esquecido pelos historiadores das navegações».

A primeira viagem em torno do globo, com efeito, integra-se no conjunto dos trabalhos dos Portugueses, e tem cabimento, por isso, em uma história de Portugal.

Magalhães nasceu em 1480, e embarcou em 1505 na armada de D. Francisco de Almeida, quando este foi para a Índia como seu primeiro vice-rei. Era então um aventureiro obscuro. Três anos depois estava de volta a Portugal. Em 1508 alista-se outra vez na frota da Índia, achando-se em 1509 na viagem a Malaca, sob as ordens de Diogo Lopes de Sequeira. Regressado à metrópole, conquistou um lugar na corte, «andando no livro dos moradores da casa de El-Rei [D. Manuel] com bom foro». Em 1513 alistou-se na expedição de D. Jaime de Bragança a Marrocos. De volta, não conseguiu do rei uma melhoria de situação que pretendia. Isto levou-o a expatriar-se (1518). Uma vez em Castela, tratou de pôr em execução o seu projecto do descobrimento das Molucas pela via de oeste, pois se convencera de que essas ilhas pertenciam, conformemente à partilha de 1494, ao reino de Castela.

Conhece-se essa partilha. Pela sentença do Papa Alexandre VI, o mundo a descobrir fora dividido entre os reis de Portugal e de Castela, segundo o meridiano que passa a 370 léguas a oeste [da ilha mais ocidental do arquipélago] de Cabo Verde. As Molucas, de onde vinham a noz e o cravo, estariam no hemisfério castelhano? Estariam no português? Pelos cálculos de Magalhães, ficavam no de Castela. Rui Faleiro, «grande homem na cartografia e astrologia e outras ciências humanas», que vivia na Covilhã e era talvez mestre de Magalhães, pensava da mesma forma; Serrão, companheiro do navegador no Oriente, e que ficara em Ternate, carteava-se com ele e fornecia-lhe elementos sobre a posição geográfica das Molucas. O continente americano, ao que pensavam, devia adelgaçar-se para o sul, terminando em cabo, como a África, a Índia e a Indochina. Cumpria dobrar esse cabo, e de aí passar à Ásia. Reaparecia assim, sob nova forma, a antiga ideia [portuguesa] de atingir a Índia por ocidente, em que insistira Cristovão Colombo.

Tidore, vista de Ternate (uma ilha vulcânica do arquipélago das Molucas, na Indonésia).


Magalhães chegou a Sevilha em Outubro de 1517. Travou relações de amizade com a família dos Barbosas, também portugueses e homens do mar. O casamento com a filha de Diogo tornou-o cunhado de Duarte Barbosa, que andara na Índia (sobre a qual escreveu um livro muito interessante), e que veio a participar na viagem de circum-navegação.

Em fins de Fevereiro de 1518 achavam-se Magalhães e Faleiro na corte de Carlos V, protegidos pelo bispo de Burgos e por um burocrata que haviam comprado, prometendo-lhe a oitava parte dos lucros da sua empresa. Conseguiram, assim, assinar com a Coroa o ambicioso contrato.

Concedia-lhe esta a vintena de tudo o que descobrissem, e licença para levarem anualmente para as terras descobertas o valor de mil cruzados de fazenda, empregando-a na troca do que quisessem, sem pagarem mais do que a vintena; obrigava-se, outrossim, a armar cinco naus para a viagem, abastecendo-as e tripulando-as.

Soube-se disto em Portugal, onde se receava que os Castelhanos chegassem às Molucas, navegando no hemisfério que lhes pertencia. O rei português tentou convencer Magalhães a desistir de tal propósito, por intermédio do seu feitor em Sevilha. Magalhães resistiu, trabalhou no apercebimento da sua armada, e combateu contra as intrigas e embaraços em todo o resto do ano de 1518 e na primeira metade do ano seguinte.

Largara de San Lucar a 20 ou 21 de Setembro [1519]. Os navios eram cinco: Trindade, do comando de Magalhães; Santo António, de João de Cartagena; Conceição, de Gaspar Quesada; Vitória, de Luís de Mendonça, e Santiago, de João Serrano. Os Reynéis e Diogo Ribeiro fizeram as cartas, as agulhas, as esferas e os quadrantes.

A 13 de Dezembro estavam na baía de Guanabara, e a 10 de Janeiro de 1520 no rio da Prata, donde saíram, depois de visitar as costas, na primera quinzena de Fevereiro. Entraram a 31 de Março no porto de S. Julião (49º 30’ S.), e, por estar o tempo muito agreste, foi resolvido esperar aí.

Na noite de 1 de Abril os castelhanos descontentes conseguiram revoltar as naus Trindade, Santo António e Vitória. Era seu intento regressarem a Castela com o chefe preso, porque este, ao que alegavam, «os levava todos a perder». O capitão-mor, à frente dos portugueses, meteu-se num batel e foi-se às naus, onde subjugou os revoltosos. Então, a Conceição e a Santo António pretenderam fugir pela barra fora. Magalhães cruzou-se à entrada do porto com os navios que lhe obedeciam, abriu fogo sobre aqueles, e tomou-os de abordagem.

Subjugada a revolta, fez-se à vela. Perto do rio de Santa Cruz (59º S.) naufragou a Santiago. Foi-lhes necessário regressar ao porto, porque o tempo continuava áspero; o frio gelava as mãos. Zarparam a 24 de Agosto. Um temporal, porém, obrigou-os a meter de capa à sombra da terra de Santa Cruz. Impossível, pois, prosseguir por enquanto. Nova espera, até 18 de Outubro. Então levantaram ferro. Ao fim de três dias de navegação, chegavam à boca de um braço de água. Aí, consegue fugir a Santo António. Os restantes navios aproam à entrada, com os batéis à frente para fazer sondagens. Vêem-se engolfados num estreito lúgubre, de margens alterosas que se erguiam a prumo. Na bruma álgida, rugindo e negro, o mar reboa com rumor soturno. Avançando, – rompeu em salvas. No ar, de súbito, estouram os tiros de canhão das naus: voam, ecoam, reecoam, somem-se, – e perdem-se enfim nas vastidões do ermo, confundindo-se, – longínquos, – com o sussurrar das ondas... Dia após dia, gastaram no estreito para cima de um mês. Por fim, uma nau desembocou no oceano imenso, – um oceano calmo, lânguido, [rejubilante], e de águas pacíficas sob a luz claríssima, em que se espelhava o Sol. Era a Vitória.



Localização das Filipinas

Rumaram ao norte, para o paralelo das Molucas. Os mantimentos escasseavam; a aguada, agora, estava podre: roíam, por isso, o couro dos mastros, depois de mergulhados por alguns dias; tragavam serradura para iludirem a fome. As gengivas inchavam com o escorbuto; e a morte, ceifando constantemente nessa tripulação de moribundos, semeava de cadáveres as singraduras das três naus. Com corrente favorável e com vento largo, chegaram a 6 de Março às ilhas Marianas, ou dos Ladrões; aportaram depois a uma Filipina, e por fim a Mazaguá e a Zebu. Uma desavença com um régulo indígena levou Magalhães a desembarcar uma manhã em uma praia esparcelada de Mazaguá, onde teve de combater, mergulhado na água, contra uma multidão de gente selvagem que caiu sobre ele e o matou[, no parcel da praia], às setadas e às lançadas. «Assim morreu», diz Pigafeta, «o nosso guia, nosso amparo e nossa luz»...

Para a História, estava concluída a sua mensagem. Fora-se por oeste, enfim, às paragens onde já tinham chegado os compatriotas de Magalhães, navegando no sentido oposto. Em volta do globo, com esteiras de naus, fechava-se o anel das Navegações, e rematava-se assim um primeiro ciclo da função histórica dos Portugueses. A estes, resta-lhes abrir uma nova era, em que logrem transportar para a vida do espírito (para o campo das reformas da sociedade, para o da ciência e da filosofia) a missão descobridora que lhes coube em sorte, – para que se possa afirmar em futuros tempos que também nos domínios da investigação científica, da ética, da pura interioridade, do ideal humano,

 

«novos mundos ao mundo irão mostrando»...

 

(In António Sérgio, Breve Interpretação da História de Portugal, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 14.ª Edição, 1998, pp. 77-84).


Mosteiro de Santa Maria de Belém