domingo, 15 de maio de 2016

Português sem Portugal (i)

Escrito por Artur Agostinho








«Reportando-nos (...) à cronologia dos factos mais salientes do 25 de Abril da traição, não deixa de ser curioso referir que o PC evitava hostilizar, na fase quente de Julho-Agosto de 1974, os agrupamentos políticos de centro e de centro direita, já por essa altura com certa implantação a nível nacional, como era o caso dos Partidos da Democracia Cristã, Centro Democrático Social, Liberal e do Progresso. No entanto, não deixava de afirmar posições de reserva relativamente a tais organizações partidárias e uma atitude crítica em relação ao PPD, apontando-o como cúmplice da iniciativa contra-revolucionária que teria sido assumida pelo Prof. Adelino da Palma Carlos.

A popularidade e o prestígio do general Spínola (interna e externamente), e bem assim o seu "peso político", obstavam à conveniência de uma confrontação prematura. Por isso, o PC, continuando a aparentar propósitos francamente cooperantes com o presidente da República e com as demais forças políticas, passou a empenhar-se num processo subterrâneo de actuação que visava a criação de condições propícias ao desencadeamento de uma nova crise que pudesse provocar a ruptura entre o presidente Spínola e o "sector progressista" do MFA já por então directamente controlado pelos comunistas. Nessa acção solapada, desempenharia papel proeminente o CDE, que se achava afastado da coligação governamental por exigência expressa do general, embora constituído como "organização satélite" do PC, visto ter sido entretanto abandonada pelos socialistas e outras facções de esquerda e do centro.

A aceleração do processo de descolonização, acentuada especialmente a partir da "comunicação" do presidente Spínola, no final de Julho, reforçaria, naturalmente, as tensões potencialmente existentes e cristalizadas à volta da crise Palma Carlos. O mês de Agosto, viria assim a ser para o Partido Comunista um período de angústia e de receios - já que o facto de o presidente da República ser o efectivo detentor da força política e militar, lhe impossibilitaria, a todo o tempo, o uso da iniciativa num campo e noutro. E esta só não veio a produzir efeitos, a despeito de sinais que a chegaram a dar como próxima em diversas oportunidades, pela acção retardadora exercida pelo controverso general Costa Gomes, que logrou, sempre, fazer adiar a eclosão de confrontos no meio militar, como única forma de clarificar a situação e de repor a autoridade do Estado. Por outro lado, a confrangedora inexperiência política dos mais próximos colaboradores do presidente Spínola e as hesitações deste, favoreciam os desígnios da chamada "facção progressista" que, desse modo, conseguiu ganhar o tempo necessário à montagem da sua própria conspiração de caserna - reservando-se a altura oportuna para actuar.

Enquanto isto, e na sequência de visitas a unidades militares de certa importância operacional, onde improvisava discursos dramáticos e patéticos, chamando os portugueses à razão, no meio da desordem institucional que ia pouco a pouco subvertendo a Nação portuguesa - o presidente Spínola teve ocasião de tomar posições muito firmes no Regimento de Pára-Quedistas, em Tancos, em 2 de Agosto, na comunicação ao País no dia da independência da Guiné, em 11 de Setembro (do mais alto significado ao seu "estado de espírito"); no improviso proferido no Quartel do Carmo, no dia seguinte, e, ainda, antes da sua mensagem de renúncia, em 30 desse mesmo mês, nas palavras proferidas no acto de posse do Governador de Cabo Verde, em 21 e no discurso proferido na abertura da reunião de trabalho com as Forças Vivas de Angola, em 27, a que se seguiria a "montagem" do 28 de Setembro e o acto de renúncia, e, com este, o fim do consulado Spinolista, de pouco mais de cinco meses, e o início da "galopada" para o desfazer da Pátria...

(...) A "maioria silenciosa" e a eventual conspiração de um "golpe" reaccionário, para um regresso ao passado - mais não foram que uma trapaça idiota, habilmente "montada" pelo Partido Comunista...».

João M. da Costa Figueira («25 de Abril: A Revolução da Vergonha»).












'Pintura' mural de 1975


«(...) Foi preso pelo “crime” de grau de parentesco? Alguma vez lhe disseram que foi esse o motivo?

Esse foi o motivo. Telefonaram para o COPCON a dizer que “estava ali um sobrinho do Marcello” [Caetano] e a resposta foi “tragam-no” (a mim e aos outros). Depois o MDP/CDE emitiu um comunicado a dizer que tinham sido presos 12 notórios fascistas que tinham desempenhado altos cargos no antigo regime e um desses 12, era eu! Isto tudo com 17 anos, repito.

Foi com a “legalidade” de um dos famosos mandados em branco?

Nem isso! No nosso caso não existiu qualquer mandado, sequer. Foi apenas a legitimidade revolucionária.

Como foi tratado na prisão? 

Na prisão, estive duas vezes no isolamento (antes de ser interrogado) e à parte umas ameaças durante os interrogatórios, fui bem tratado. Contudo, no momento da minha detenção, simularam o meu fuzilamento (e dos meus companheiros) no isolamento.

Essas práticas de tortura eram comuns?

Hoje sei que houve vários tipos de sevícias, tanto físicas como morais, sobretudo morais, mas não posso afirmar que fossem comuns. Agora que aconteceram, aconteceram...».

Entrevista a Nuno Alves Caetano


«Na noite de 27/28 de Setembro de 1974 e dias seguintes, foram presas centenas de pessoas, civis e militares, a maior parte das quais surpreendidas a dormir em suas casas. Entre os presos militares, encontrava-me eu. O pretexto foi a "Manifestação da Maioria Silenciosa" que se preparava para o dia 28, em apoio ingénuo ao Presidente da República, General António Spínola. Inventou-se ter a Manifestação propósitos sediciosos contra Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho, o que, embora muitos o desejassem, não correspondia em absoluto a qualquer realidade.

Os mandatos de captura, bastantes dos quais assinados em branco, referiam o crime de "associação de malfeitores", parece que criação notável do Dr. Salgado Zenha. A maioria dos detidos foi conduzida para o Forte de Caxias, tendo quase todos os militares sido, após alguns dias, transferidos para a Prisão Militar da Trafaria. Na generalidade dos casos, não houve culpa formada, nem interrogatórios formais e válidos.

(...) O documento [ESTADO PORTUGUÊS RÉU CONDENADO PELA PRISÃO DE KAÚLZA DE ARRIAGA] (....), resume o facto da minha prisão, alguns acontecimentos com ela relacionados, nos quais se distingue a acção judicial, em consequência por mim movida contra o Estado Português, e, muito especialmente, a Sentença do Tribunal da Auditoria Administrativa de Lisboa e o Acordão do Supremo Tribunal Administrativo, dando-me razão plena e condenando o Estado Português.






Alguns têm estranhado o valor reduzido da indemnização - 100.001$00 - em que o Estado foi condenado. Devo esclarecer que fui eu próprio que não quis maior indemnização, dado entender tratar-se de uma reparação essencialmente moral e não de um processo de auferir lucros materiais. Lucros que, de resto e em última análise, apenas sobrecarregariam os contribuintes. Por outro lado, eu não me podia sentir atingido ou sequer tocado, no meu foro íntimo, com a miserabilidade dos agentes do Estado responsáveis pela prisão de que fui objecto, pela sua duração e pelo que durante ela ocorreu. Os grandes atingidos, os violados maiores, foram, sim, não só a Legitimidade e a Legalidade como a Moral, a Verdade, a Liberdade, a Justiça e os Direitos Basilares do Homem. Cem mil e um escudos era, na época, a indemnização mínima que podia exigir-se, sem prejuízo de eventuais recursos para instâncias superiores.

(...) Ainda hoje é, para mim, evidente que, se após o "25 de Abril" me mantivesse General do activo e até se na situação de reserva não tivesse sido preso, me sentiria na obrigação nacional de procurar evitar, a todo o custo, a descolonização e a marxização do País. E, ou conseguiria o sucesso tudo salvando, ou, admito, em face do logro em que viviam os portugueses, mais provavelmente teria perdido e seria pessoalmente destruído.

Assim e com a mesma probabilidade, os então novos dominadores de Portugal, sem o desejarem, bem pelo contrário, acabaram por me prestar, no plano pessoal, "saneando-me" e prendendo-me, grande serviço.

Por outro lado, também involuntariamente, acabaram do mesmo modo por me conferir, mantendo-me preso até se consumarem aquelas descolonização e marxização, o privilégio de, com verdade, poder proclamar ser eu uma das poucas pessoas e dos pouquíssimos militares que, nem por acção, nem por passividade ou omissão, tiveram quaisquer responsabilidades, directas ou indirectas, na execução do desastre nacional.

Tudo isto sem prejuízo, não só da iniquidade, arbitrariedade e prepotência praticadas, como da ilegitimidade, ilegalidade e dolo havidos, como ainda da violação verificada dos mais basilares Direitos do Homem».

Kaúlza de Arriaga («Guerra e Política. Em Nome da Verdade. Os Anos Decisivos»).


«28 de Setembro de 1975


Faz hoje precisamente um ano que fui detido pelo COPCON, como suspeito de "pertencer a uma associação de malfeitores" (!). Assim rezava a ordem de captura exibida (e lida em voz alta e nervosíssima) pelo oficial que comandava a pequena escolta que me foi buscar ao Banzão, onde me encontrava com a família em fim de férias.

"Celebrei" o 1.º aniversário desse triste e lamentável episódio recordando aqui, no Rio de Janeiro, o que foi "o dia mais longo" da minha vida. Assim lhe chamei no manuscrito roubado em Caxias pelos civis que pouco antes da minha libertação, passaram uma "busca selvagem" à cela n.º 6 - a segunda que ocupei durante a minha prisão.

Ainda hoje tenho bem vivos na memória todos os pormenores desse dia. E creio que vale a pena reproduzi-los para que o leitor possa ter uma noção, ainda que superficial, das arbitrariedades cometidas em nome de uma Revolução que já não era a mesma que se iniciara em 25 de Abril de 1974.






Tudo começou pouco depois das cinco da manhã.

Eu e minha mulher fomos acordados por insistentes toques da campainha da porta de minha casa. Ficámos, naturalmente surpreendidos pois dei uma olhadela ao relógio que tinha sobre a mesa de cabeceira, verificando que eram apenas cinco e dez. Saltei da cama, enquanto a campainha continuava a tocar com insistência. Um visitante àquela hora não era coisa normal. A verdade é que estava longe de imaginar o que iria passar-se a seguir.

Perguntei quem tocava. A resposta foi apenas: "Abra!". Repeti a pergunta e a resposta foi a mesma.

Insisti na identificação do visitante. Do outro lado voltei a ouvir a mesma ordem, seguida da frase: "É o COPCON".

Não quis acreditar no que ouvia e passou-me pela cabeça a ideia de que se tratava de assaltantes dando uma falsa identificação para que eu, de boa fé, abrisse a porta. Por isso, respondi: "Um momento, que vou verificar, à janela, se é realmente o COPCON".

Do outro lado, a voz gritou ameaçadora: "Ou abre imediatamente ou disparo!"

Entretanto, minha mulher que se levantara logo a seguir a mim, tinha ido espreitar à pequena janela da casa de banho e chegara junto de mim: "São realmente militares..."


Abri a porta. Na minha frente estava um alferes empunhando uma pistola-metralhadora que avançou pelo pequeno "hall". Logo atrás dele, um aspirante de pistola apontada para mim. Dei alguns passos à retaguarda, surpreendido com aquela insólita invasão. Tentava compreender o que se passava mas as ideias baralhavam-se-me no cérebro. Tentava raciocinar, encontrar uma explicação para o que estava a passar-se mas não conseguia. Cheguei a pensar que tudo aquilo não era mais do que um sonho. A verdade, porém, é que estava acordado - bem acordado.

Sem saber como, vi-me, de novo, no meu quarto. O alferes e o aspirante desfizeram a cama e revistaram-me o pijama. Deu-me a impressão que desejavam certificar-se de que eu não estava armado, que não tinha uma pistola ou mesmo uma metralhadora dentro da cama.

Tentei afastar essa suposição, por demasiado ridícula. Mas era isso mesmo que eles pretendiam saber pois o alferes perguntou-me se tinha armas em casa. A resposta foi negativa o que não impediu que um deles fizesse uma busca sumária a todas as divisões, enquanto o outro me vigiava de pistola sempre apontada. Este - o aspirante - revelava grande nervosismo e ordenou-me que me vestisse pois teria que os acompanhar. Mas esclareceu, excitadíssimo, "que me vestisse depressa". Quase não me deixou lavar a cara, tal era a pressa que revelava.

Enquanto fazia uma "toillete" sumária, minha mulher metia-me umas peças de roupa num pequeno saco de viagem. Ela estava serena mas tão surpreendida como eu. Disse-lhe que não se preocupasse pois tudo aquilo não devia passar de uma extraordinária confusão. Lembro-me perfeitamente de lhe dizer: "Fica tranquila. Tudo se esclarecerá. Daqui a algumas horas estarei, com certeza, de volta".

Sinceramente era o que eu realmente supunha pois tinha a consciência tranquila. Pensei numa denúncia que rapidamente demonstraria ser falsa. E dispus-me acompanhar os nervosos mandatários do COPCON. A uma pergunta minha, sempre de G-3 apontada e pronta a disparar, o alferes acedeu a informar que me iriam levar para o RAL 1.



Cá fora esperava-me um carro civil embora com um condutor militar. Tive ainda tempo de ver, dentro da área da minha casa, um civil com uma braçadeira que não identifiquei.

Minha mulher acompanhou-me até à porta e pedi-lhe que fizesse um ou dois telefonemas. O alferes interveio: "Só pode telefonar daqui a vinte minutos!". Subitamente, porém, deu ordem ao aspirante para que me levasse para o automóvel e voltou a entrar em casa.

(Soube mais tarde que resolvera ir cortar os fios do telefone).

Quando a minha viagem para o RAL 1 principiou, poucos minutos faltavam para as 6 horas. Começava a clarear. Não havia ninguém nas proximidades. A calma era absoluta. Um dia que parecia igual a todos os outros que seria para mim, de facto, "o dia mais longo" de quantos vivera até então.

Mandaram-me sentar no banco da retaguarda. À minha esquerda sentou-se o nervoso e excitado aspirante que não deixava de manter a sua pistola apontada à minha cabeça. À frente, ao lado do soldado-condutor, o alferes com a sua inseparável G-3.

Fui eu que lhes ensinei o caminho mais curto para Lisboa. Talvez por que tivesse pressa de chegar e de esclarecer aquela história que para mim não passava de uma ridícula história.

Como era ingénua a minha convicção. Mal eu sonhava que a minha viagem de regresso só aconteceria cerca de três meses mais tarde.

No percurso até Lisboa nada vi que me sugerisse uma situação anormal. O ambiente era de aparente tranquilidade. Só à entrada do quartel de Sacavém comecei a ter a noção de que algo de especial se passava. Entretanto, embora sabendo que eu estava completamente desarmado, o aspirante não deixara um só instante de manter a sua pistola apontada à minha cabeça. E tão despropositada era a sua atitude que, a certa altura, foi o próprio alferes que lhe disse: "Eh pá! Vira isso para o outro lado!"

No RAL 1 o movimento era desusado. Viam-se carros de combate em pontos estratégicos da parada prontos a entrar em acção. A guarda estava reforçada. O estado de alerta era evidente.


Percebi, rapidamente, que a situação era tensa. Vi magotes de soldados, entre curiosos e excitados. E havia carros celulares e muitos carros civis. Não me foi difícil concluir que outras pessoas tinham já entrado em situação semelhante à minha. E que outros eram aguardados, a todo o momento.






Quando saí do automóvel, muitos soldados reconheceram-me e aproximaram-se. E logo outros mais vieram juntar-se aos primeiros. Em muitos deles percebi uma certa surpresa. Alguns "vomitaram" "graças" de mau gosto.

Finalmente, entrei no edifício do Quartel entre alas formadas por aquela soldadesca que gozava, à sua maneira, o "show" que lhes oferecia gratuitamente a chegada de um preso inocente e ainda ingenuamente convencido de que estava apenas a ser vítima de um lamentável equívoco.

Hoje, penso como foi possível tamanha ingenuidade da minha parte. Sobretudo, depois de tanta coisa a que assistira desde o 25 de Abril de 1974. Depois do que me haviam feito na Radiotelevisão Portuguesa. Depois das calúnias que haviam inventado a meu respeito e que, maldosamente, foram postas a circular por alguns "bem intencionados".

Foi dentro do edifício que me apercebi da desorientação que ali reinava. Do nervosismo de toda aquela gente - fardada e à paisana. Havia um oficial sentado atrás de uma pequena mesa, cheia de papéis desarrumados. A seu lado, de pé, outro oficial e um civil vestido de negro e de semblante carregado. Tinha uns olhos pequenos e papudos e que me fixaram longamente quando me aproximei. O homem era baixo e atarracado. Os seus lábios finos e descorados, fechavam-se num rictus, misto de frieza e de crueldade. A sua figura trouxe-me à mente uma daquelas sinistras personagens muito comuns nos filmes de espionagem, a quem pagam para torturar ou matar - se for caso disso - aqueles a quem é indispensável arrancar uma confissão.

Quando cheguei mais perto da mesa a inquietante figura mediu-me de alto a baixo e voltou a cravar nos meus os seus olhos pequenos e papudos que pareciam lançar chispas de ódio como se quisesse ler os meus pensamentos mais íntimos. Tive, por momentos, a impressão de que iria dizer-me alguma coisa, fazer qualquer pergunta. Mas não. Enquanto o oficial que estava sentado analisava a cópia do mandato de captura (o original ficara em minha casa) que um dos oficiais que me prenderam lhe apresentou, os seus lábios permaneceram fechados e o rictus de frieza e crueldade manteve-se inalterável. Dir-se-ia que o homem vestido de preto era apenas uma figura de cera do Museu Grevin.

O oficial pediu-me o bilhete de identidade que eu tivera o cuidado de levar, tomou meia dúzia de notas e fez um sinal a dois soldados armados que me disseram para os acompanhar. Foi apenas uma dúzia de metros até uma porta guardada por outro militar armado de metralhadora. Quando essa porta se abriu e entrei fiquei alguns segundos imobilizado.

Estava numa enfermaria do RAL 1 (depois RALIS) que fora transformada, na emergência em prisão. Lá dentro, havia muita gente - talvez umas cinquenta ou sessenta pessoas. Mas o que me surpreendeu, e me imobilizou por alguns segundos foi a identidade de muitas dessas pessoas. Melhor: a identidade de muitos dos detidos que haviam já entrado antes de mim fez, subitamente, despertar em mim a consciência perfeita da gravidade da situação, que, até aí, não me passara pela cabeça, mas em que na realidade me encontrava.




Não sei quanto tempo fiquei especado à entrada da enfermaria-prisão. Lembro-me, apenas, que fui despertado por uma voz que me disse: "Você também? Venha para aqui e sente-se!". Olhei e vi o general Kaúlza de Arriaga, sorridente e tranquilo, como se estivesse numa simples e vulgaríssima reunião de amigos. Estava sentado num dos vários colchões espalhados pelo chão da enfermaria já que as camas (embora em número considerável) não eram suficientes para todos os "internados".

Como não havia cadeiras nem bancos, calculo que os "carcereiros" do Regimento devem ter recorrido, na emergência, ao material das camaratas.

O general Kaúlza - recordo-me como se fosse hoje - estava sem gravata e com a barba por fazer, sinal evidente de que também tinha sido "visitado" muito cedo e, com certeza, por gente muito "apressada" no cumprimento das ordens recebidas.

Aproximei-me e sentei-me também, enquanto me fixava melhor nos meus companheiros de... "enfermaria". Havia ali muitas altas patentes das Forças Armadas e também algumas outras pessoas que eu conhecia, pelo menos de vista. Mas havia muita gente, para mim desconhecida. Recordo-me, porém, do comodoro Valente de Araújo, do general Raul de Castro e de outros cujo nome não vale a pena citar. Depois, quando mais tarde me levaram num carro celular para Caxias, veria muita gente conhecida como Moreira Baptista, Silva Cunha, Elmano Alves, o Conde de Caria, Brás Monteiro, o pai do cavaleiro tauromáquico João Zoio e, até o pai do Ministro Melo Antunes que seria libertado já em Caxias, mas antes de dar entrada na cela que lhe estava reservada.

Alguém quando o facto ocorreu, comentou a propósito: "Fala-se muito em acabar com os privilégios de alguns mas, afinal de contas, continua a valer a pena ter um Ministro na família..."

Não quero insinuar que o pai do Ministro Melo Antunes merecesse ficar preso em Caxias ou noutra prisão qualquer. Apenas cito o episódio por ser mais do que esclarecedor, quanto aos propósitos, tão apregoados por certos "revolucionários", de acabar com os tais privilégios de alguns...

Estivemos muitas horas naquela enfermaria-prisão. Tentando imaginar o que iria acontecer. Fazendo cogitações sobre qual seria o nosso destino. Aventando hipóteses acerca das razões que iriam ser invocadas para tão insólito procedimento.






(Nesta altura ainda havia quem estivesse ingenuamente convencido de que a chamada "revolução dos cravos" era incompatível com prisões arbitrárias...).

Entretanto, era evidente que algo de extraordinário se passara e talvez se passasse ainda. Disso ninguém duvidava. E, naturalmente, faziam-se alusões à projectada (e tão contrariada) manifestação da chamada "maioria silenciosa".

Mas as horas iam passando sem que, em relação aos que ali estavam, algo de concreto acontecesse. A porta mantinha-se fechada e bem guardada e quando se abria era apenas para... entrar mais um. Ou, então, para permitir "generosamente" que este ou aquele detido pudesse sair por instantes, a fim de satisfazer inevitáveis necessidades fisiológicas. Entretanto, apenas podia sair um de cada vez e sempre com guarda à vista, empunhando uma G-3.

Quanto a comer ou beber, nada ! Nem um simples copo de água. E assim foi até às três horas da tarde, quando decidiram a nossa transferência. Como assim seria até cerca das 8 da noite, quando em Caxias nos serviam finalmente uma refeição, após longa e complicada "cerimónia" de distribuição de celas.

Pela parte que me toca, poderei dizer que estive apenas 24 horas consecutivas sem comer, pois jantara na véspera às 8 da noite e, depois disso, só voltei a jantar (?) em Caxias. Mas isso ainda foi o menos importante. O pior, viria depois...

Quando nos vieram dizer "que estivéssemos preparados pois íamos ser transferidos" perdi todas as esperanças de que aquela situação se resolvesse depressa.

Mantivera-me, até aí agarrado à ilusão de que tudo acabaria por ser esclarecido rapidamente. Que regressaria, nesse mesmo dia, a casa. Que fora apenas protagonista de uma simples "aventura sem consequências".

Como estava longe da realidade, à mesma hora em que o meu nome aparecia, com grande destaque, em listas afixadas por toda a parte e era manchete nos jornais que davam notícia de uma "tentativa de golpe contra-revolucionário-fascista, reaccionário" e não sei que mais.

A "parada" do RAL 1 parecia uma feira. Uma feira de fardas e de carros de assalto. A soldadesca, cujo número engrossara sensivelmente, em relação ao que me fora dado observar quando ali cheguei, por volta das seis e meia da manhã, mostrava-se agora mais agressiva. Os sucessivos "comunicados" transmitidos pela rádio, desde as primeiras horas daquele dia 28 de Setembro estavam a dar os resultados desejados pelos seus autores. Os homens presos naquela "operação", decidida por determinados Partidos e executada pelos militares que lhes obedeciam cegamente, tinham sido já catalogados como "perigosos fascistas". E o Povo não tardou a concentrar-se junto do quartel para manifestar "espontaneamente" a sua revolta pela "miserável tentativa de golpe contra-revolucionário".

Claro, que a grande maioria dos soldados não hesitou em se associar aos gritos furiosos que vinham do exterior e não nos poupou com os seus insultos. Enquanto esperávamos que nos fizessem entrar nos carros celulares, destinados ao nosso transporte, fomos brindados com os mais reles e obscenos adjectivos. Não faltaram sequer as ameaças em que as palavras "enforcamento" e "fuzilamento" eram frequentemente citadas.


Chegada de um carro celular do RAL 1 à prisão de Caxias aquando do 28 de Setembro de 1974. Ver aqui


Finalmente, o grupo de "criminosos", foi repartido pelos dois carros celulares. Por mim, tive uma sensação de alívio quando as portas se fecharam. Os gritos e os insultos perderam intensidade e, filtrados pela couraça metálica dos carros, tornaram-se menos incomodativos.

No carro em que me fizeram entrar, vi pessoas que não vira antes naquela enfermaria transformada em prisão. Alguns dos companheiros da viagem que íamos iniciar encontravam-se também no RAL 1 mas haviam sido agrupados noutra sala. Agora estavam ali, na mesma viatura além de alguns que já citei, os ex-ministros Franco Nogueira, Silva Cunha e Moreira Baptista.

Passou muito tempo antes que os carros iniciassem a sua marcha. Era notória a desorganização que reinava no Regimento. Embora pouco perceptíveis, ouviam-se ordens e contra-ordens. Até que os carros começaram a deslocar-se em direcção aos portões do quartel. Pela pequena rede de arame, perto do tecto do veículo, podíamos observar algo do que se passava lá fora. Junto aos portões, havia já uma multidão de civis, "convocados" pelas emissoras de rádio para as indispensáveis "palavras de ordem". Palavras de ordem, acompanhadas de socos violentos nas chapas metálicas dos carros. "Morte aos fascistas", "justiça popular" e outros "slogans" do género, chegaram aos meus ouvidos, distintamente, quando o carro em que era transportado cruzou os portões do Regimento de Artilharia Ligeira N.º 1.

Qual seria o nosso destino?

Não faltava quem aventasse hipóteses. Sinceramente, para mim, o destino era o que menos interessava. No meu cérebro, as ideias misturavam-se em turbilhão. Tentava compreender por que motivo estava eu ali e não encontrava resposta para as interrogações que fazia a mim próprio. Tudo aquilo era confuso. Tudo aquilo escapava ao meu entendimento. Por mais esforços que fizesse, não conseguia encontrar uma explicação razoável, uma justificação - mesmo débil que fosse - para a minha prisão.

À minha volta, havia muita gente que falava mas eu já não ouvia o que diziam. Apossara-se de mim uma espécie de torpor, de alheamento estranho e inexplicável que me impedia de raciocinar. Os meus companheiros que falavam, pareciam estar a muitos quilómetros de distância. As suas palavras chegavam até mim, ininteligíveis, como simples sussurros.

Fiz um esforço para regressar àquele pequeno espaço onde mal se respirava e tentar ouvir o que se dizia à minha volta.

"Estamos em Monsanto. Talvez nos levem para o Forte!" - disse alguém.

"Antes lá do que na Penitenciária" - acrescentou outro passageiro que, pelos vistos, já conhecia o "hotel" da Rua Marquês da Fronteira.

Subitamente, o nosso carro deu três solavancos e parou, espreitei pela rede e vi muita gente na berma de uma estrada estreita que reconheci. Compreendi que tinha havido uma avaria mecânica. A populaça rodeou o carro e começou a gritar insultos e ameaças. Ouvi pedras bater violentamente na carroçaria.









"Vamos acabar com eles" - gritou uma voz roufenha e impregnada de ódio. "justiça popular" - gritou outra voz, logo corroborada por muitas outras. Pensei, por momentos, que a "panne" iria ser resolvida com a entrega dos prisioneiros àquela turba em fúria. Já considerava todas as hipóteses possíveis. Felizmente, o condutor conseguiu solucionar o problema e lá seguimos viagem, deixando os gritos e as ameaças para trás.

"Vamos para Caxias" - ouvi dizer pouco depois, a um jovem que, até então permanecera calado. "Tenho a certeza" - acrescentou, depois de duas ou três manobras do condutor. Caxias era, de facto, o nosso destino. Ali chegámos cerca das quatro horas da tarde.

Presumo que o problema da distribuição de celas foi extremamente complicado a avaliar pelo tempo que permanecemos num dos recintos destinados às visitas dos presos. Estivemos naquele "parlatório" mais de três horas, aguardando que nos fosse dado destino definitivo.

A longa espera a que fomos obrigados ainda despertou em alguns - não muitos - a esperança de que talvez acabassem por nos mandar em paz. Mas essa esperança desmoronou-se como um castelo de cartas quando, por uma daquelas janelas gradeadas do "parlatório", pudemos observar o transporte de numerosos presos nos mesmos carros celulares em que havíamos viajado desde o RAL 1. Era evidente que se tratava de uma transferência de número avultado de detidos para qualquer outra prisão. Ninguém é posto em liberdade com... carro celular à disposição.

Era evidente, portanto, que o Forte de Caxias estava completamente lotado e havia que criar vagas para os "hóspedes" que chegavam. Não havia mais dúvidas possíveis: íamos mesmo ficar presos! Por quanto tempo, só Deus o poderia saber.

Cerca das oito da noite - já os carros celulares tinham partido há muito com os seus passageiros - começaram a chamar-nos para a "operação final" daquele longo e enervante dia. A fome e a fadiga estavam bem retratadas nos rostos que via à minha volta. Alguns dos homens que ali estavam e que eu nunca havia visto antes, pareciam-me conhecidos de longa data. Cheguei a ter a sensação de que falara com eles muitas vezes, ao longo de anos sem conta. Porque os minutos passavam com uma lentidão impressionante - como se fossem dias. E as horas pareciam anos que deixavam em todos eles as suas marcas inexoráveis. Todos me pareciam muito mais velhos do que no momento em que os vira, pela manhã, no Quartel de Sacavém.

As emoções daquela insólita jornada, a incerteza do que acontecera e do que estava para acontecer, a fadiga e a fome haviam transformado o aspecto de todos eles. Também eu estava, certamente, mais velho um bom par de anos. Mas isso era o que menos me interessava.

A minha preocupação dominante - ou talvez curiosidade - era saber qual a razão (ou razões) que seriam invocadas para a minha detenção. Não me saía da cabeça aquela expressão que o excitado alferes que me prendera em Colares, havia lido tão nervosamente, em voz alta: "... forte suspeita de pertencer a uma associação de malfeitores". Que diabo, queriam "eles" dizer com aquilo? A verdade é que todos os que ali estavam tinham sido presos com o mesmo pretexto. Tratava-se, pois, de uma alegação generalizada que fora criada legalmente (!) para permitir a prisão arbitrária de qualquer cidadão ainda que ele não fosse um... malfeitor. Prisão arbitrária e violação de domicílio a qualquer hora, com buscas mais menos minuciosas, sem necessidade de qualquer mandato judicial. Sim, era evidente que se tratava de um processo legal de praticar as mais insólitas... ilegalidades.


Aliás, aquilo seria apenas o começo de uma série de outras ilegalidades de que eu viria a ser vítima e que deixarei para referência posterior.

Como disse, só perto das oito da noite, começou a "operação" final daquele dia que nunca mais poderei esquecer. Um guarda abria, a espaços mais ou menos regulares, a porta do "parlatório" e ia fazendo a chamada dos presos. Umas vezes chamava três ou quatro de seguida; outras, apenas um. Compreendi que alguns ficariam juntos na mesma cela, enquanto outros seriam mantidos em isolamento. Como foi o meu caso.

Antes, porém, de chegar a minha vez (e fui dos últimos a ser chamado) aconteceu a libertação de um dos detidos - o pai do Ministro Melo Antunes - a que já me referi e que provocou o também já citado comentário, muito a propósito, acerca de privilégios. De qualquer modo, devo dizer que a excepção me causou um sentimento de alegria, embora se tratasse de pessoa que não conhecia - com quem nunca tinha falado. Mas, fundamentalmente, era um homem que reconquistava a sua liberdade e isso é, do meu ponto de vista, extraordinariamente importante. Para mais, e embora apenas em meia dúzia de horas, ele dera-me uma impressão de dignidade e de integridade moral pouco comuns. Não me apercebi, sinceramente, de qualquer indício que permitisse admitir a sua ligação com uma... "associação de malfeitores".

Chegou, finalmente, a minha vez.

O guarda conduziu-me para fora do "parlatório", até junto de uma pequena mesa onde um colega seu reuniu todos os meus objectos pessoais que foram a seguir guardados num grande sobrescrito. Também o dinheiro que levava ficou à guarda dos serviços prisionais, com excepção de 100 escudos que permitiram ficassem em meu poder.

(Soube, depois, que é essa a importância máxima que qualquer preso pode ter, em seu poder, para comprar cigarros e selos. Depois, quando essa reserva se esgota, requisita mais 100 escudos e, assim, sucessivamente).

Deixaram-me também o bilhete de identidade, o que restava de um maço de cigarros e o isqueiro. Antes de começar a subir a escadaria que me levaria ao 2.º piso, o guarda fez a "verificação" do meu sexo, cumprindo uma daquelas regras ridículas que devem vir da Idade Média e ninguém se lembrou ainda de revogar.

Finalmente, começou a minha última viagem desse dia. Um guarda dos serviços prisionais e dois fuzileiros empunhando G-3, conduziram-me à cela n.º 28, situada na ala esquerda do reduto norte do Forte de Caxias.

Quando senti aquela porta pesada fechar-se e a chave a rodar duas vezes, ruidosamente, senti um estranho arrepio percorrer-me o corpo. Dentro de mim cresceu subitamente uma onda de revolta que não consegui dominar. Apeteceu-me gritar com toda a força dos pulmões a injustiça de que estava a ser vítima, mas havia qualquer coisa que me impedia de o fazer. Percebi que se quisesse falar - apenas falar - não conseguiria. Era como se me tivessem dado um nó na garganta. Que me dificultava a respiração.



"Passei horas sem conta a espreitar por esta janela, na esperança de perceber o que estaria a passar-se lá fora mas, cada vez era maior a minha preocupação e mais confusas as minhas ideias" (Artur Agostinho).



Fui até à janela fortemente gradeada, daquela cela mas parecia que o ar tinha acabado lá fora. Uma sensação de enjoo e um desejo súbito de vomitar, obrigaram-me a fechar os olhos. Tive a impressão de que vogava no espaço, mas um espaço limitado por grades, muitas grades.

Procurei dominar aquela sensação de mal-estar. Consegui, finalmente, respirar melhor e já não me apetecia gritar. Voltei a abrir os olhos. Continuava encostado às grades a que me agarrara com as duas mãos, como se quisesse quebrá-las. Um turbilhão de pensamentos desconexos chocavam-se no meu cérebro. Quis coordenar as ideias mas não consegui.

Lá fora, a noite descera sobre mais um dia. Para muitos, um dia como os outros. Para mim, o dia mais longo que vivera até então.

Não sei quanto tempo fiquei ali, com as mãos crispadas naquelas grades pintadas de branco, olhando sem nada ver.

A certa altura, ouvi de novo a chave rodar na fechadura da porta. O guarda chamou-me para me entregar um prato com comida, uma colher e um púcaro de alumínio. Voltaria mais tarde, para me entregar dois lençóis, uma fronha e uma manta.

Embora nada tivesse comido, desde o jantar da véspera, apenas consegui mastigar um pedaço de carne guisada e uma batata. No pão, nem sequer toquei.

Preparei uma das camas (havia duas na cela) e dispus-me a dormir. Estava extenuado mas a excitação nervosa dominava-me de tal forma que não consegui fazê-lo. Às dez horas, o guarda veio apagar a luz da cela mas continuei acordado por muito tempo - por muitas horas. Não sei quantas, porque o relógio também ficara no meu espólio de prisioneiro. Sei, apenas, que já principiara a nascer um novo dia quando o sono e a fadiga conseguiram vencer-me...

(...) 9 de Outubro de 1975

Apesar de estar ainda na situação de "incomunicável" contaram-me um dia - não vou dizer quem, por motivos óbvios - que corria em Lisboa uma "pitoresca versão" das condições em que eu havia sido preso.

Não resisto à tentação de a referir embora muitos dos meus leitores dela tenham tido conhecimento, na altura própria.

Para os "inventores" dessa fantástica história - e depois, para os seus propaladores - eu estaria implicado num movimento contra-revolucionário que fora preparado para o dia 28 de Setembro de 1974. Porém, a minha participação nesse pretenso "golpe" revestia-se de características muito especiais e muito... activas.

Alguém me havia encarregado de fazer um transporte de armas que, pelo seu volume, teria de ser rodeado de extremos cuidados. Foi, por isso, que imaginei - dizia-se - a macabra encenação de fazer esse transporte num carro funerário. No caixão, em vez de um defunto, seguiam espingardas, metralhadoras e algumas granadas de mão. Dentro do carro (sentado junto do caixão) ia eu, vestido de padre, não para a cerimónia da encomendação da alma do inexistente defunto mas para vigiar a preciosa carga e fazer a sua entrega aos revolucionários a que se destinava.

Apesar de impecavelmente disfarçado e das barbas postiças que tivera o cuidado de colocar, fui descoberto numa "barreira", à entrada da ponte sobre o Tejo. Foi, então, que os diligentes "vigilantes" chamaram o COPCON que me transportou a Caxias.















Esta a "maravilhosa" versão posta a circular, no dia seguinte à minha prisão.

Quando me contaram o episódio, fiquei espantado com a fértil imaginação dos criadores de tão fantástica história. Eu, vestido de padre, junto de um caixão cheio de armas, era coisa que não lembraria ao Diabo. Mas que lembrou a alguém, de espírito mais diabólico do que o próprio Satanás.

E pensar eu que se dizia a cada passo que aos portugueses estava faltando imaginação - uma certa dose de espírito criador. Quando havia por lá, tantos talentos ignorados que poderiam dar - e não davam! - preciosa contribuição ao romance, à literatura de ficção, ao teatro, ao cinema e até à televisão...

Sim, a propalada falta de imaginação e de poder criador dos portugueses não passava, afinal, de uma mentira. O que não davam era oportunidade aos verdadeiros valores, capazes de construir as grandes obras-primas e que só puderam ser revelados quando chegou a "liberdade" de... prender inocentes e de caluniar gente de bem.

Não quero deixar de esclarecer, a propósito, que a figura de um padre foi papel que nunca me distribuíram na minha curta carreira cinematográfica, nem nas duas ou três intervenções que tive no teatro da TV. Ao menos, podiam ter-se lembrado de dizer que eu tentara passar pelo... Morgado de Fafe.

Sempre era personagem que eu, de facto, havia interpretado na televisão e a "reprise" sempre dava direito a receber 20% do "cachet" da estreia...

Outras versões mais ou menos fantásticas seriam posteriormente postas a circular.

Uma delas, era apenas "variante" grosseira da primeira, pois limitava-se a uma mudança de guarda-roupa: em vez de padre eu era... uma freira. A história caiu pela base porque se esqueceram que eu usava bigode e francamente, uma religiosa com aquele "ornamento" seria pouco... convincente.

Também se disse que eu tinha, lá para as bandas de Colares, um verdadeiro arsenal de armas e munições, além de uma emissora clandestina.

Finalmente, chegou-me aos ouvidos uma outra história segundo a qual fora detido nos estúdios da Radiotelevisão, quando me preparava para ler uma proclamação ao País. Mas também à volta desta havia algumas variantes: enquanto para uns eu estava na RTP, para outros encontrava-me na Emissora Nacional. Para outros ainda, a minha prisão tivera lugar à entrada do Rádio Clube Português onde, pelos vistos, também me dispunha a... proclamar!"



1945: Artur Agostinho no dia da estreia como locutor da Emissora Nacional.



Concluindo: fui preso numa quantidade de lugares, ao mesmo tempo, graças a um dom de ubiquidade que não sabia possuir.

Afinal, a minha prisão fora simplesmente efectuada quando estava a dormir tranquilamente na minha cama, "disfarçado" com um pijama de riscas azuis que não é sequer, dos que mais gosto de usar...».

Artur Agostinho («Até na prisão fui roubado!»).


«Os factos apurados pela Comissão indicam seguramente que militares, incluindo grande número de milicianos, assim como civis, entre os quais elementos afectos a organizações políticas, praticaram actos que são autênticos ultrajes aos direitos do Homem. Centenas de portugueses foram sujeitos a prisões arbitrárias, viram-se privados de garantias judiciárias, sofreram torturas físicas e morais e tornaram-se ainda vítimas de outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

Os abusos e prepotências praticados devem levar os portugueses a reflectir sobre o perigo das condutas totalitárias».

(Do Comunicado da Presidência da República quando da publicação do relatório da Comissão de Averiguação de Violências sobre Presos Sujeitos às Autoridades Militares).


«A cela que me destinaram, em Caxias, era das que estavam voltadas para o exterior.

Nesse aspecto, eu podia considerar-me dos menos infelizes. Outros presos, como, por exemplo, o antigo ministro Franco Nogueira, que ocupava uma cela quase defronte da minha, tinham como único cenário, um muro triste e sombrio, de pedra e cimento, que a "patine" tornara ainda mais cinzento e mais sombrio.

O acaso proporcionara-me a possibilidade de desfrutar de uma certa "liberdade" visual que aproveitei, o melhor que pude, para "queimar" diariamente algumas horas dos longos dias que ali passei.

É certo que acabei por cansar-me daquele cenário sempre igual, mas o meu horizonte - ainda que gradeado - foi muitas vezes lenitivo para a "escuridão" a que os meus pensamentos invariavelmente me conduziam.

Todos os dias deixava que o meu olhar passasse para lá daquelas grades pintadas de branco e "viajasse" pelo denso e verdejante arvoredo do Jamor ou pela nesga do Tejo que conseguia descortinar, para lá do casario que subia da Marginal até ali a curta distância do presídio. Depois, fixava-me invariavelmente na silhueta metálica da ponte ou na torre da Gibalta. O meu exercício visual repetia-se, várias vezes ao dia. Quase sempre, principiava de manhã muito cedo com o espectáculo único do nascer do Sol mas, a essa hora, era frequente não haver ponte. Em seu lugar, apenas um espesso manto de neblina. Depois, timidamente, a ponte começava a mostrar os seus contornos, até surgir, de novo, com toda a sua imponente grandiosidade.

Quando, à noite, o céu se apresentava limpo e pintalgado de estrelas, a ponte oferecia-me um espectáculo curioso, a lembrar as iluminações dos grandes arraiais minhotos e a fazer-me regressar aos anos da minha meninice, quando ia passar as "férias grandes" a Viana do Castelo ou Ponte de Lima.


Quantas vezes, encostado àquelas grades brancas e frias, regressei, em pensamento, aos anos felizes e despreocupados, quando ainda não sabia o que era a maldade, a injustiça e a intolerância dos homens.

Mas os meus olhos não viam, apenas o arvoredo do Jamor, a nesga azulada do rio, a Gibalta, Miraflores (lá mais ao longe) e a ponte sobre o Tejo. Viam também, ali a meia dúzia de metros, o pátio da prisão, com o seu vai-vem de veículos de todos os tipos: carros celulares, "jeeps" e automóveis das marcas de modelos mais variados. Não faltavam, sequer, alguns automóveis de "sport", pouco condizentes com as teorias, então muito em voga. Mas ali, no feio pátio de Caxias, ninguém se atrevia a insultar os seus proprietários (quase todos fardados), atirando-lhes os "mimos" que outros possuidores de "máquinas" semelhantes tinham que suportar sempre que ousavam exibi-los.

21 de Outubro de 1975

Só algumas semanas depois da minha prisão, tomei conhecimento da atitude assumida pelos trabalhadores do trissemanário desportivo de que era director.

Confesso que foi um dos choques mais violentos, dentre os vários que sofri, durante todo o tempo que permaneci em Caxias. Quando tive ensejo de ler os "comunicados" vindos a público - um da Comissão de Trabalhadores e o outro da Administração - confesso que senti náuseas perante toda aquela prosa eivada de veneno e de maldade.

Se não tivesse lido e relido toda aquela sucessão de calúnias e mentiras, confesso que não acreditaria. Isto, embora já me tivesse apercebido, há algum tempo, da luta surda travada por alguns, com o objectivo de tomarem de assalto a direcção e, até, a administração do jornal. Sobretudo, por aqueles que mais poderiam vir a beneficiar com o meu afastamento.

Mas, apesar de já esperar uma ofensiva formal à minha posição de director, nunca imaginei que ela se concretizasse por tanta baixeza e tanta indignidade.

Ainda hoje lamento - não a desvergonha de dois ou três oportunistas - mas, sobretudo, a falta de coragem de alguns outros que tinham a obrigação moral de ter evitado (ou pelo menos contrariado) tão asquerosos documentos. E, entre estes, incluo os administradores que subscreveram a nota de apoio e concordância à vergonhosa e injusta decisão de tal Comissão de Trabalhadores.

Através do "comunicado" dessa Comissão, concluía-se que eu, afinal de contas, não passava de um... "traidor". Foi esse o veredicto dos auto-proclamados juízes que, despudoradamente, me julgaram e condenaram sem cuidarem de saber se eu praticara, de facto, algum acto susceptível de justificar o vergonhoso epíteto.






Felizmente para eles - vivia-se, então, um "clima" muito especial em que a Justiça era... "letra morta" - em que não era possível que qualquer cidadão pudesse apelar para os tribunais, exigindo responsabilidades àqueles que utilizavam a traiçoeira arma da difamação para destruir reputações.

Esses - os que se entregavam afanosamente à tarefa de exigir despedimentos em massa, sem justa causa (e sem indemnizações de qualquer espécie), arvorando-se em juízes de autênticos "tribunais-fantasmas" - eram, afinal de contas, os que mais falavam nas injustiças cometidas noutros tempos, nos monstruosos atropelos aos sagrados Direitos do Homem. Pretendiam apenas - diziam eles - construir uma sociedade mais justa em que não houvesse privilegiados nem desprotegidos. Declaravam-se revoltados contra as arbitrariedades e contra as prisões sem culpa formada. Era por isso - ouvia-os declarar a cada passo - que tinham recebido festivamente a "revolução dos cravos".

Afinal, eram eles os que mais injustiças praticavam e exigiam que fossem praticadas; eram os que mais atropelos cometiam aos tais sagrados Direitos do Homem. Eram os que haviam chamado a si o privilégio de julgar os outros; os que colaboravam entusiasticamente com todas as arbitrariedades praticadas. Eram, enfim, os que aplaudiam, sem reservas, as prisões mantidas, indefinidamente, sem culpa formada.

Foi esta a estranha "lei" de que se serviram para me condenar "à revelia" - sem elementos, sem provas, sem testemunhos idóneos. Sim, porque testemunhos houve - pelo menos um - mas esse estava muito longe de ser idóneo. Um testemunho que partiu do mais oportunista dos oportunistas que conheci até hoje. Capaz - como o provou - de cravar um punhal no amigo a quem acabara de mimosear com algumas palmadinhas nas costas.

Chega a parecer impossível como tão activo "revolucionário" fora capaz de mendigar a participação em viagens presidenciais e outras do género. Como não hesitara em recorrer a "cunhas" de uma alta patente do Exército, quando imaginou que o seu lugar no jornal corria perigo, pois sentia-se perseguido (!) pelo chefe de redacção do jornal que depois, ele próprio ajudaria a ascender à sub-directoria e mais tarde à direcção do jornal - vaga por força da minha... "traição".

Causa espanto como ele se mostrara tão interessado em ser nomeado para uma reportagem em Fátima, apesar de já ser há muito... secretamente um "revolucionário"!

De tal maneira que tinha até decidido passar à clandestinidade.

Se o 25 de Abril tem demorado mais uns meses a chegar - confidenciara ele a alguns colegas - tinha mesmo tomado essa "histórica" decisão. Isto, depois, claro de ter descrito aos portugueses, com lágrimas na voz, as cerimónias do funeral de Salazar.

Calculo que ele, apesar de "revolucionário", não perdoará aos homens do 25 de Abril não terem adiado a revolução por mais uns tempos, para que pudesse tomar a tal "histórica decisão" da clandestinidade.






Pois ele, com o seu testemunho "idóneo" na reunião de trabalhadores do jornal que eu "atraiçoei", foi elemento decisivo na "judiciosa sentença" lavrada contra mim. Bem informado, como sempre estava, revelou (possivelmente muito constrangido e angustiado), que eu fora apanhado pelo COPCON, com um verdadeiro arsenal de metralhadoras e não sei que mais.

Quem ousaria duvidar de um indivíduo que estava tão "por dentro" dos acontecimentos?

O meu sucessor delirou com a informação e, com o equilíbrio e bom senso que tanto o caracterizavam conseguiu, facilmente, os objectivos em vista.

Foi assim que se decidiu a sorte de um homem que a essa hora, não sabia, sequer, do que o poderiam acusar.

Mas ele - o tal - sabia de tudo, com os mais ínfimos pormenores. Como deve continuar a saber as coisas que mais ninguém conhece, enquanto os outros apenas sabem (ou pelo menos, devem saber) que, afinal, ele não sabia de coisa nenhuma.

Mesmo assim, ele lá continua no jornal a destilar a sua prosa. Apesar dos factos terem mostrado à sociedade que o seu testemunho não era idóneo mas apenas um rosário de mentiras que ficaram impunes como tantas outras de certos "revolucionários de ocasião".

E daí, talvez o mantenham no quadro redactorial, com medo que ele recorra a outra "cunha" de qualquer outra alta patente do Exército, porque aquela que utilizou, pouco antes do 25 de Abril, não deve ser agora das mais convenientes.

Quanto à atitude assumida pela Administração da Sociedade Industrial de Imprensa, na qualidade de gerente da Sociedade Record, valerá a pena tecer algumas considerações. Sobretudo para denunciar a pusilanimidade e o revoltante (uma vez mais) oportunismo de certos responsáveis (?) que, pelo facto de possuírem cursos superiores, conseguem disfarçar a sua lamentável inferioridade, na ânsia de... "salvarem a pele".

Foi o que fizeram os "senhores administradores" que subscreveram o "comunicado", ratificando e apoiando a decisão da Comissão de Trabalhadores pela qual, poucos dias antes diziam ter um desprezo total.

Sinceramente, não sei se esse "comunicado" foi realmente subscrito pelos dois administradores que nele figuravam dado que o nome de um deles não era sequer o que vinha estampado em letra de forma. O que me leva a concluir que "o outro" foi o único autor da prosa. Nem a sua formação jurídica impediu (o que é lamentável) a publicação de um documento de que ele terá de envergonhar-se enquanto viver. Se é que tem a consciência do que fez. O que tenho que pôr em dúvida, alicerçado no conhecimento que possuo da exígua dimensão da sua inteligência. Realmente, nem sempre a estatura de um indivíduo está de harmonia com a sua capacidade intelectual e com o seu carácter. Como é o caso.






Recordo (como se tivesse sido ontem) as lutas que travei com esse "senhor administrador", após o 25 de Abril, quando surgiram as primeiras reivindicações dos redactores. Ele queria pura e simplesmente, acabar com o jornal e despedir toda a gente. Chamei a sua atenção para o facto da Empresa já ter um problema grave com o "Jornal do Comércio" e não ser conveniente agravar, ainda mais, a situação. Verdade seja que as primeiras reivindicações eram insignificantes e, na generalidade, justas.

Mais tarde voltou à carga, alegando que o "déficit" que se registava constituía, por si só, justa causa para um despedimento em massa. Lembrei-lhe que as razões fundamentais desse "déficit" tinham origem em factores a que a redacção era alheia. A maior responsabilidade do prejuízo pertencia exactamente à própria administração como eu já demonstrara em diversos relatórios. Uma distribuição deficiente e a inexistência de uma secção de publicidade estavam na base dos maus resultados financeiros. Portanto, o despedimento em massa seria injusto e nunca por... justa causa, como ele pretendia.

Um dia - poucas semanas antes da minha prisão - começou por recusar a receber o Conselho da Redacção que comigo pretendia apresentar sugestões para obviar ao encerramento do jornal, de que já se falava por toda a parte. Só muito instado acabou por aceder.

No decurso da reunião, aceitou a generalidade das sugestões apresentadas e as bases propostas para uma remodelação urgente. O Conselho de Administração saiu encantado da vida mas, no dia seguinte, o sr. administrador chamou-me, dizendo que "não se faria nada daquilo que eles queriam" e encarregou-me de comunicar ao Conselho da Redacção que o que iria fazer era passar o jornal a bissemanário com uma consequente redução de pessoal.

Recusei, indignado, desempenhar semelhante papel e afirmei-lhe que, posta a questão naqueles termos não tinha outro caminho a seguir que não fosse o de ser solidário com a Redacção na atitude que esta viria a tomar perante a concretização eventual de tal decisão.

A minha posição, como director, era difícil e incómoda. Vivia-se um período, dia-a-dia mais confuso. O conceito de "liberdade" de imprensa fora, em muitos casos, completamente distorcido. Para alguns, essa "liberdade" consistia em não haver directrizes a respeitar nem orientação, de qualquer espécie, a seguir. A antiga "Lei de Imprensa" não fora revogada mas invocá-la era impossível. Tratava-se de uma "lei fascista" e quem a respeitasse, fascista seria também.

Um director de jornal que pretendesse dirigir de facto era pelo menos, reaccionário, ditador e contra-revolucionário.

Por isso, quando o "sr. administrador" me chamou a atenção, já muito próximo dos acontecimentos de 28 de Setembro, para os lamentos de que foram intérpretes os elementos do Conselho de Redacção, a propósito de certo alheamento da minha parte, quanto à elaboração do jornal, tive que lhe explicar a situação. Não sei se ele a compreendeu. É possível que não, mas o assunto morreu ali, quando lhe disse que aguardava a publicação da nova lei, prometida para breve, e só então actuaria de acordo com o que essa lei determinasse.




Eu sabia, perfeitamente, que havia dois ou três elementos da Redacção que desejavam, ardentemente, que eu lhes fornecesse um argumento para exigirem o meu afastamento. Especialmente, o que viria a ser meu sucessor, denunciava uma ansiedade notória por qualquer discordância minha quanto aos esquemas por ele, nessa altura, elaborados. E porque ele sabia perfeitamente, que havia razões mais do que suficientes para que eu discordasse, não se conformava com a passividade temporária, que a mim próprio impus. Daí a "provocação" arquitectada, à custa das "queixas" ou "lamentos" apresentados ao corpulento "sr. administrador".

Porém, a minha prisão foi uma autêntica dádiva dos céus. Finalmente, ele iria poder realizar a sua ambição - concretizar o seu sonho. Seria director do jornal. E foi.

O seu "reinado" teve, porém, curta duração. Como geralmente acontece com todos os usurpadores. Aparece sempre quem se disponha a utilizar as mesmas armas, a recorrer aos mesmos processos.

Não sei, nem me interessa saber, se foi isso que aconteceu com o meu esquizofrénico sucessor. A verdade é que o seu nome desapareceu do cabeçalho do jornal.

Paz à sua alma...

(...) 28 de Outubro de 1975 

Muitos portugueses dos que encontro por aqui [no Brasil], diariamente, me fazem perguntas acerca da minha prisão. E todos acabam por manifestar interesse em conhecer quais foram as razões invocadas para me manterem todo aquele tempo em Caxias.

Muitos dos que me interrogam confessam-se surpreendidos e até decepcionados quando lhes digo que não me foi feita qualquer acusação formal. Nalguns casos, pressinto, mesmo haver uma certa relutância em acreditarem no teor das perguntas que me fizeram quando, finalmente, após dois meses de isolamento me levaram até ao reduto sul de Caxias afim de prestar declarações.

Compreendo, perfeitamente, a estranheza de muitos dos meus interlocutores porque, na verdade, o meu interrogatório só pode compreender-se pela simples razão de ser indispensável (ou pelo menos conveniente) dar a impressão de que eu fora preso por um motivo qualquer. Mandarem-me, pura e simplesmente, para a rua sem me perguntarem coisa alguma, depois de tanto tempo passado, seria a confissão tácita da inqualificável arbitrariedade cometida.

Por isso, me fizeram um interrogatório que considero sem pés nem cabeça e durante o qual não foi feita qualquer alusão nem a um só dos muitos factos que os meus detractores e os boateiros ao seu serviço, haviam posto a circular. Não houve a mais leve referência a posse ilegal de armas, a participação em qualquer conjura revolucionária ou à tão falada ligação ou comprometimento com a PIDE/DGS. Também não fui acusado de "sabotagem económica" nem, tão pouco, de "exportação ilegal de divisas". Ninguém me perguntou se eu pertencera à Legião Portuguesa ou se fizera parte da União Nacional ou da Acção Nacional Popular. Creio que os meus interrogadores sabiam muito bem que, em nenhum destes aspectos, havia qualquer pergunta a formular.

Bandeira da Legião Portuguesa















Ao centro e em primeiro plano: Oliveira Salazar. Em segundo plano, do lado esquerdo: Humberto Delgado.




Ver aqui


Fizeram, é certo, algumas alusões ao general Kaúlza de Arriaga com quem tivera, a seu pedido, um ou dois contactos muito antes da recambolesca "história" do 28 de Setembro. Felizmente, eu podia demonstrar que esses contactos, cada um deles com uma duração que não excedeu quinze minutos, haviam tido um carácter meramente comercial, com vista a um possível acordo publicitário que visava a promoção de dois ou três novos jornais que iriam ser editados em breve.

Percebi, nessa altura, que os meus interrogadores procuravam agarrar pelos cabelos qualquer possibilidade, ainda que remota, de "explicar" os motivos da minha prisão. Um deles, chegou mesmo a insinuar que o general Kaúlza de Arriaga havia declarado coisas muito diferentes a propósito desses dois breves contactos e que, por esse facto, teria de haver uma acareação. Que nunca se fez, como é óbvio.

Na altura, surpreendeu-me a ingenuidade desse interrogador improvisado pois - soube-o depois - ele decidira "misturar-se" com os que, de facto, haviam sido nomeados para o efeito. Porém, o jovem oficial da Marinha que acumulava essas funções com a de locutor da Emissora Nacional, tinha, pelos vistos, um fraco muito especial pelas actividades policiais. Perguntou-me, até, "se eu não sabia que o general Kaúlza era um dos maiores traficantes de armas do País".

Claro que eu não sabia nem estava disposto a acreditar em tal coisa como não acreditava que aquele oficial general fosse capaz de ter qualquer versão menos correcta e verdadeira dos contactos havidos entre nós.

A verdade é que o "interrogador de ocasião" parecia, sobretudo, muito interessado em denegrir pessoas de bem e não hesitava em utilizar os processos mais baixos para o conseguir. Chegou, mesmo, ao ponto de tentar conseguir a minha colaboração como delator de alguns funcionários da Emissora Nacional que ele desejava, à viva força, incriminar como tendo pertencido à ex-PIDE/DGS. Mais tarde, pedir-me-ia na sala do Comando onde me haviam chamado "que esquecesse aquela conversa". Quanto ao resto do interrogatório, ele limitou-se a uma série de banalidades a despropósito, como por exemplo, "se eu tinha sido locutor da Emissora, se conhecia o dr. Moreira Baptista, se havia recebido uma condecoração do antigo Governo, o que tinha ido fazer ao Aeroporto em determinado dia, se depois do meu afastamento da televisão tinha voltado alguma vez, ao Lumiar, etc., etc". Também me falaram de pessoas que eu não conhecia ou com quem nunca falara na vida.

Respondi, claramente a todas as perguntas, fez-se um auto de declarações que assinei e pronto. Nunca mais me chamaram a depor e lá fiquei mais um mês, aguardando a decisão sobre tão complicado problema.

Se não tivesse havido a intenção de me manterem ali o máximo de tempo possível, teria sido extremamente fácil comprovar a total veracidade das minhas declarações. Havia fornecido os elementos indispensáveis a essa comprovação, com pormenores de todos os meus passos e de todas as minhas actividades, nas últimas semanas de liberdade. Acabei, depois, por chegar à conclusão que "eles" já sabiam muito bem que não havia nada susceptível de me incriminar. Tudo aquilo não passara de uma autêntica farsa da qual eu fora a figura central, sem nada ter contribuído para isso.



Repórter dos grandes acontecimentos, numa transmissão em directo do desfile das Marchas Populares de Lisboa.




De qualquer modo, as marcas desse papel que desempenhei à força, não desapareceram nem desaparecerão tão cedo porque os responsáveis pela destruição de toda uma vida que ergui à custa de muito trabalho e sacrifícios, não tiveram o mínimo de dignidade para virem publicamente desfazer a imagem que deram de mim ao País inteiro, chegando ao ponto de gerar dúvidas até no espírito de algumas pessoas que me conheciam intimamente.

Aliás, outra coisa não era de esperar porque o meu caso não fora apenas um simples equívoco mas sim uma trama urdida propositadamente com determinado fim.

Não alimento quaisquer sentimentos de ódio nem desejos de vingança porque o tempo se tem encarregado de desmascarar, pouco a pouco, algumas das sinistras figuras que se entregaram à volúpia de destruir vidas e reputações. Nem todos, é certo, sofreram ainda o merecido castigo pelo muito mal que fizeram a tantos, mas a sua hora chegará como aliás, já chegou para alguns.

Acredito numa Justiça Superior, acima daquela que os homens interpretam à sua maneira, consoante as suas conveniências de momento. Uma Justiça liberta de coacções - sem a intervenção de julgadores corruptos ou pusilânimes. Uma Justiça alicerçada apenas na Verdade - portanto uma Justiça verdadeiramente... justa».

Artur Agostinho («Até na prisão fui roubado!»).





PORTUGUÊS SEM PORTUGAL


(...) «LEGALIDADE REVOLUCIONÁRIA»


No dia 8 de Outubro (terça-feira), completei onze dias de prisão.

Continuava a aguardar, ansiosamente, que me chamassem para ser ouvido mas a esperança de que isso acontecesse nesse dia, esvaiu-se quando começou a anoitecer.

Entretanto, foi exactamente à noite, já depois de ter comido metade de uma sarda cozida com batatas, que me serviram ao jantar, que o pequeno postigo da porta se abriu e um funcionário dos serviços prisionais me entregou um papel em branco.

A seguir ditou-me duas perguntas às quais teria que responder por escrito.

Ei-las:

1.ª - Onde, como e por quem foi preso?
2.º - Com ou sem mandato de captura?

As respostas deviam ser dadas logo de seguida e, enquanto o guarda foi entregar outras folhas de papel em branco a mais meia dúzia de presos, escrevi as respostas que ele me disse deveriam ser sucintas e objectivas.

Depois de lhe devolver o papel, fiquei a pensar como tudo aquilo me parecia estranho e incompreensível.

Mas, então, seria possível que eles não soubessem «onde, como e  por quem fui preso?». E que não soubessem «se tinha ou não tinha sido passado um mandato de captura?».

Foi quando comecei a aperceber-me da realidade daquela «inventona». Das circunstâncias em que tinham sido feitas as prisões da madrugada de 28 de Setembro.

Foi quando compreendi, verdadeiramente, que se estava a viver um período trágico. Que aquilo a que se convencionou chamar «legalidade revolucionária» - estava, afinal, alicerçada na mais lamentável e inquietante das... ilegalidades!






(...) CHEGA A TV INGLESA


Autorizaram que um repórter do Visnews me entrevistasse na cela. Seu eu estivesse de acordo, claro.

Não me recusei, sobretudo por se tratar de uma televisão estrangeira. De um país onde há liberdade. De um país que pode ter muitos defeitos, mas onde realmente há liberdade de expressão de pensamento. Onde existe democracia «a sério». Que não agrada a certos... «democratas» da minha terra. Por motivos óbvios.

Era um inglês, ainda jovem e simpático, que se apresentou acompanhado por um português que desempenhava as funções de motorista e de assistente, segurando o microfone entre o entrevistado e a câmara de filmar. Também ele se mostrou simpático por me dizer que «esperava que o meu caso se esclarecesse rapidamente».

O repórter britânico esclareceu-me que se tratava de uma brevíssima entrevista para a TV inglesa. Avisei-o que o meu inglês era muito «fraquinho» e só funcionava do ponto de vista... turístico. Disse-lhe ainda, que dado o melindre da situação poderia haver respostas que fossem mal interpretadas. (Farto de sarilhos estou eu!).

No entanto, depois desta primeira troca de palavras, o jovem repórter inglês, que fazia simultaneamente de operador e de entrevistador, disse-me que «o meu inglês» servia perfeitamente. Que todos o entenderiam, mesmo com alguns "pontapés na gramática" à mistura.

Convidei-o então, a entrar no meu «apartamento» e ele disse-me (talvez para me confortar) que também já passara por situação semelhante, durante uma viagem profissional que fizera a um país estrangeiro.

«Estive doze dias preso!" - esclareceu-me.

Respondi: "Estou a batê-lo aos pontos. Já passei essa conta!".

Ele riu e pediu-me para me sentar na borda da cama. Assentou a câmara portátil, acertou o foco e a entrevista começou. O português segurava o microfone entre nós dois. Tudo simples, fácil, sem complicações.

"Mister Agostino (nenhum estrangeiro é capaz de me respeitar a função do h), desde quando está aqui?

- Desde o 28 de Setembro. Há catorze dias...

- Por que razão?

- Não sei. Ainda não me disseram nada...

- Já foi interrogado?

- Não, a não ser por jornalistas portugueses e agora por você.

- Onde foi preso?

- Em Colares - "near" Sintra - mais ou menos a trinta quilómetros de Lisboa.








- O que estava a fazer quando o prenderam?

- A dormir, tranquilamente, na minha cama...

- Trabalha na Rádio e na TV?

- Na Rádio, já não tenho trabalho há cinco anos. Na TV, sim, trabalhei até há poucos dias.

- Fazia programas políticos?

- Não. Apenas desportivos, alguns "shows" e concursos.

- Quantos homens o prenderam?

- Três elementos das Forças Armadas, que levaram um mandato de captura em que se dizia que eu era suspeito de pertencer a uma «associação de malfeitores». (Nesta altura vi-me aflito para dar uma explicação clara em inglês e falei de gangsters para ele compreender a história dos malfeitores. Felizmente, ele percebeu).

- «Thank you, mister Agostino (outra vez sem ligar ao h), and good luck!».

A máquina deixou de funcionar. Depois, o jovem inglês quis fazer, ainda, uns planos da janela para o exterior.

Ficou mais uns minutos comigo a conversar. Disse-me chamar-se Tom Aspell e não se cansava de me afirmar que não compreendia como era possível terem-me prendido há tantos dias sem me interrogarem e formularem uma acusação concreta.

Agradeceu a minha colaboração e ofereceu-me um maço de «Marlboro». Disse-lhe que tinha cigarros, mas ele insistiu: «Nesta situação, os cigarros nunca são demais! Quando estive preso, fumava três maços por dia!».

Acabei por aceitar e foi a minha vez de lhe agradecer.

Trocámos um aperto de mão e o jovem inglês lá foi.

A entrevista não durara mais do que três minutos.

Fiquei a pensar na «barraca» que vai ser o meu inglês «de trazer por casa», apesar dele me ter reafirmado que percebera tudo muito bem.

O que ele não percebera, ainda, era a democracia que estava a viver-se em Portugal.

Sempre põem cada nome às coisas...

Pelos vistos, era o dia das entrevistas a nível internacional.

À tarde apareceu, na minha cela, um jornalista suíço. Alto, aloirado e de barba rala. Como aquela que eu decidira deixar crescer.

Apresentou-se, dizendo que estava autorizado a falar comigo, desde que eu não visse qualquer inconveniente.

Disse-lhe que não tinha objecções a pôr. Nada tinha a esconder a quem quer que fosse.

Fixei o seu nome: Niklaus Meienberg e trabalhava para o Tages Anzeiger Magazin, de Zurique.






A entrevista foi mais longa do que aquela que concedera ao homem do Visnews. Não admira, porque o filme é muito mais caro do que um bloco de apontamento, como aquele em que o suíço anotou as minhas respostas. Mas o tema da entrevista foi sensivelmente o mesmo. Apenas tive que contar a história da minha vida profissional.

Niklaus ficou um tanto surpreendido por eu me dispersar pela Rádio, pela TV, pelo jornalismo e pela publicidade. E com sorriso muito intencional, perguntou-me: «Como é que você ainda conseguiu arranjar tempo para se meter numa "intentona"?».

Tem graça que eu já fiz essa pergunta a mim próprio. E acho estranho que ninguém tenha pensado nesse insignificante pormenor...


(...) FALEMOS DE «DELITO COMUM»


Cinco horas da tarde.

Houve agora mesmo mais uma rendição de sentinelas. Acabara de me levantar da cama, sobre a qual me deitara vestido, depois de ingerir dois "Saridon".

Doía-me a cabeça. E as dores eram muito fortes. Talvez por ter hoje pensado demais. Nem sequer lera muito. Apenas dois pequenos contos da «Antologia Policial», de Dic Haskins. E uma vista de olhos pelos jornais da manhã.

Foram os jornais, aliás, que me estragaram o dia. Mais propriamente uma notícia, baseada em nota emanada do Gabinete do Ministro da Justiça, deixara-me um tanto ou quanto perturbado. Estupidamente - talvez. Mas um homem - por mais força moral que tenha, por mais coragem que consiga ter armazenada - nem sempre consegue furtar-se a certos estados de alma que o abatem. Que o desanimam profundamente. Que fazem dele um revoltado. Contra ninguém, em especial, mas contra os factos - contra as circunstâncias.

Hoje tem sido, realmente, um dia mau para mim. Em que tanto me faz que sejam oito da manhã, como três da tarde, como... onze da noite.

Um homem até chega a pensar que deixou de existir. Mas depois, sabe que nasceu e ainda não morreu. Porque se move. Porque pensa. Porque fala. Porque sofre. E só quem está vivo é que se move, pensa, fala e sofre.

Saltei, há momentos, da cama, depois de ter tido uma longa conversa (mais uma) comigo mesmo. E enquanto falava, olhava o tecto branco da minha cela. E o armário de madeira, onde tenho as minhas coisas. E a porta de madeira, com o postigo metálico, pintando de preto.

Aquela notícia deixara-me confuso - mais do que já estava.

Um título a três colunas - «Não há presos políticos depois de 26 de Abril». A seguir, o esclarecimento do Ministério da Justiça, rectificando, a expressão usada pelos jornais, em relação àqueles que, como eu, se encontram detidos. Lembro-me que, ainda há dias, ao escrever um dos capítulos deste livro, referi a expressão «preso político». Pelos vistos, impropriamente. Erro que cometi involuntariamente.

A nota é bem clara: «sobre os que foram detidos após o 25 de Abril - funcionários das organizações militarizadas e policiais que mantinham o aparelho de Estado fascista - recaem acusações de crimes comuns, assassínios, abuso do poder, maus tratos físicos, etc.».

Diz mais a nota que «simultaneamente encontram-se privados de liberdade, alguns suspeitos de participação na tentativa de sublevação da legalidade democrática, verificada em 28 de Setembro».





«A incriminação - acrescenta a nota - referente a estes casos também é de direito penal comum, dado que, como é do conhecimento geral, na base dos acontecimentos ocorridos na madrugada de 28 de Setembro, encontrava-se uma tentativa de alteração da ordem, através de meios violentos, entre os quais se pode citar, a título de exemplo, a preparação do assassínio do senhor primeiro-ministro».

Foi, por isso, que me encontrei a falar sozinho, a meia-voz, deitado sobre a cama da minha cela.

Sou, afinal, suspeito de ter participado (ou tentado participar) numa alteração da ordem, através de meios violentos, entre os quais um assassínio.

Suspeito de ser um fora-da-lei - eu que sempre tive a preocupação de a respeitar. Que sempre a respeitei.

Suspeito de ser um desordeiro, um agitador e - quem sabe? - um assassino em potência!

Repeti estas palavras, vezes sem conta. Indignado e - confesso - também estupefacto. Percebi que tinha os olhos dilatados e acabei por fixá-los, apenas, num ponto do tecto branco da cela.

Eu, suspeito de delito comum?

Eu, que nada fiz de condenável em toda a minha vida. Cujos «crimes» se resumem em ter sido, tantas vezes, iludido na minha boa-fé. Que tenho tido problemas - alguns bem graves - por ter sido enganado por certos senhores muito respeitáveis. Eu, que não roubei, que não matei - que sempre abominei actos de violência, prepotências e injustiças. Eu, que sempre procurei contribuir para o bem dos outros, na medida das minhas possibilidades. Eu, que me recusei, sempre, a tirar qualquer proveito de situações menos claras.

E, preso como suspeito de prática de delito comum!

Aqui, metido numa cela, privado de liberdade que tanto amo -  com a consciência de que estou inocente - enquanto lá fora se pavoneiam alguns dos que iludiram a minha boa-fé. Que me enganaram miseravelmente. Que, afirmando-se «senhores muito respeitáveis» me prejudicaram com a maior das sem-cerimónias.

Mas então como é isto possível?

E já não falo dos que roubaram e continuam roubando. Dos que assaltaram e continuam assaltando. Dos que exerceram prepotências e continuam a exercê-las - agora talvez mais cautelosamente. Dos que cometeram - e continuam a cometer - injustiças. Dos que se entregaram à violência e são capazes de voltar a fazê-lo.

Quantos desses andarão, tranquilamente, a passear pelas ruas de Lisboa, como pessoas de bem? A frequentar os bons restaurantes e alguns «tascos», onde certa «gente bem» gosta de exibir a sua... democracia?

Quantos continuarão a «assinar o ponto», regularmente, nos bares e boites, não dispensando o seu tão apreciado whisky velho - pago, muitas vezes, com o dinheiro com que não pagaram as suas dívidas?

Quantos desses andarão agora a apregoar os seus ideais que dizem que sempre tiveram, mas que não podiam revelar? Quantos se utilizarão dos meios de comunicação social para se tornarem arautos dos... «princípios pelos quais - dizem - sempre lutaram?






Os mesmos que não se eximiam a «conviver», intimamente, com figuras destacadas do antigo regime e que não tinham o menor pejo em lhes solicitar constantes ajudas ou subsídios. Que nunca se esqueciam de convidar essas figuras destacadas, para almoços e jantares, ou para um simples drink em qualquer recatado bar de primeira categoria. Isto sem falar dos cartõezinhos de cumprimentos, a propósito de mais um aniversário da sua posse, ou de bons presentes na quadra natalícia.

Mas esses continuavam a ser livres como as andorinhas na Primavera. A ser pessoas muito respeitáveis e, nalguns casos, muito... influentes.

E eu? Eu continuo aqui, enjaulado, a falar sozinho e a olhar o tecto branco que não tem nada para ver... Eu, continuo aqui como um incriminado de «direito penal comum».

A «apodrecer» ou a tirocinar para... louco!

O mundo é, de facto, uma coisa maravilhosa...


FEITIOS


Sinceramente, nunca cheguei a perceber porquê. Nem por culpa de quem. Mas muitas vezes ouvi dizer, «à boca pequena», que havia alguns jornalistas, dos ditos e considerados profissionais, que não queriam, nem à mão de Deus Padre, deixar que a rapaziada que escrevia sobre desporto entrasse no seu Sindicato.

Talvez se tratasse apenas de "má língua". Porque me custa a acreditar que, sendo todos eles «democratas convictos», desde que vieram ao Mundo (como ficaríamos a saber depois do 25 de Abril) tivessem defendido, com unhas e dentes, o apartheid jornalístico em que tivemos de viver.

Enfim, seja como for, não deixa de ser muito estranho que nunca tenha havido uma ajuda firme e decidida, dos chamados profissionais do jornalismo, para arrancarem da ilegalidade os pobres marginalizados da "escrevinhação futeboleira" - como alguns classificavam desdenhosamente o jornalismo desportivo.

A não ser que muitos deles não fossem, realmente, tão democratas como depois diriam ter sido desde sempre. Não falta quem espreite, a todo o momento, a oportunidade de ser... oportunista. E não tenha vergonha de o ser. Feitios... como diria o saudoso Ricardo Ornellas.

Já agora - e isto vem a talhe de foice - será caso para perguntarmos quem eram, afinal de contas, os jornalistas que faziam os jornais, antes do 25 de Abril. Claro que eram os mesmos - e mais alguns (não muitos) que foram, depois, afastados.

Sabemos, sim senhor, que havia uma Censura, depois crismada de «Exame Prévio». Sabemos, também, que alguns jornalistas sofreram a amarga tirania do... "lápis azul". Sabemos, igualmente, que havia profissionais do jornalismo que tinham, de facto, ideias profundamente opostas às do regime que então vigorava. Mas sabemos, também, que havia muitos outros que «jogavam» consoante as conveniências. Porque, se é certo que havia a tal Censura, ou Exame Prévio (que não permitia que se escrevesse tudo aquilo que se pretendia), não me consta que houvesse pessoa ou entidade a forçar certos jornalistas a adjectivar discursos das altas personalidades com um caudal de «notáveis», «lúcidos», «clarividentes», «extraordinários», etc.



Como não havia, também, pessoa ou entidade que obrigasse esses mesmos jornalistas a referirem-se a certas manifestações ou recepções com os sacramentais adjectivos «espontâneo», «caloroso», «inolvidável», «apoteótica», etc.

Como não havia, igualmente, pessoa ou entidade que obrigasse os mesmos sobreditos cujos a fazer, muito regularmente, os seus «ganchos», escrevendo artigos «inofensivos» que a Secretaria de Estado da Informação e Turismo distribuía por alguns jornais da província ou utilizava em publicações especiais.

O que era preciso era arrecadar mais umas «coroas», nem que fosse atraiçoando os ideais democráticos que todos eles tinham lá muito no fundo - tão no fundo que só chegariam cá acima no dia 25 de Abril.

Repito que havia muitos jornalistas - e sabe-se quem eles eram - que não procediam desse modo. Que nunca esconderam o que eram, nem como pensavam. Que nunca aceitaram ou procuraram tais... «ganchos». Mas também não são assim tantos como muitos ingénuos possam imaginar. Não vou citar nomes para não cometer falhas, que seriam imperdoáveis.

Quanto aos outros - aos tais -, não me parece difícil conseguir uma boa e suculenta lista, nos Restauradores. A não ser que tudo tenha levado sumiço...

De qualquer modo, mesmo sem lista, ninguém duvidará que falo verdade. Nem os profissionais que sempre foram do «contra» (antes do 25 de Abril), nem mesmo os outros que não eram e, agora, resolveram dizer que... também foram sempre «indefectíveis oposicionistas!».


(...) «TRUTA» E... «PALHA»


O Diário de Notícias publica hoje (26 de Outubro), uma notícia muito interessante. Título: «Há muita palha na prisão de Caxias».

Li-a, de fio a pavio, mas um período houve que me chamou particularmente a atenção. Passo a transcrevê-lo:

«Entretanto, os investigadores continuam a ouvir os detidos presos na altura (referência ao 28 de Setembro), procurando desenvencilhar-se da "muita palha" que ali se encontra, pois, segundo a mesma fonte (referência ao informador da prisão) as grandes "trutas" da tentativa reaccionária de 28 de Setembro não estão em Caxias».

A notícia deu-me uma certa satisfação, mas também me provocou uma espécie de amargura.

Deu-me satisfação, porque me considerei, desde logo, como fazendo parte da «muita palha» que aqui está. Portanto, aliviou-me, de certo modo, da melancolia que sempre se apodera de mim nos fins-de-semana - período em que, segundo creio, não há interrogatórios.

Resta-me, pois, aguardar pacientemente que chegue a altura de ser... «enfardado» e atirado para lá destes muros abomináveis.

Depois, senti-me um tanto amargurado, por só agora se ter concluído que têm estado a deixar «apodrecer» aqui uma quantidade de «palha» que podia, lá fora, ter grande utilidade. Pelo menos para ela - «palha».

Além disso, apetece-me perguntar «onde estão, afinal, as grandes "trutas", da tentativa reaccionária (!) de 28 de Setembro? E quem são elas?».


Certamente, tudo isso não deixará, a seu tempo, de vir a público. De ser convenientemente esclarecido e divulgado. Para que os portugueses possam «separar o trigo do joio», que é, como quem diz, possam separar as... «trutas» da «palha»! Para que a opinião pública não olhe com desprezo para a... «palha». Para que não a procure espezinhar quando, afinal ela («palha») apenas pretende ter o direito a um lugar ao sol, depois de tanto ter sofrido à... «sombra»!

O pior (e o mais triste) é que uma parte dessa «palha» (na qual me tomo, desde já, a liberdade de me incluir), jamais poderá recuperar aquilo que perdeu. Jamais poderá reintegrar-se em alguns núcleos de que fazia parte. Porque não poderá suportar certas... presenças. Sobretudo, a daqueles que se permitiram julgar (como «trutas») e condenar (como «malfeitores») a pobre e indefesa partícula de... «palha».

O pior (e o mais triste) é que uma parte dessa «palha» em cujo fardo - repito - me incluo, terá sérias dificuldades de reconstruir o «edifício» que, à custa de tantos sacrifícios, conseguiu erguer. Nalguns casos, mesmo, jamais poderá fazê-lo. Nem recuperar os prejuízos que uma certa «confusão» entre... «trutas» e «palha» lhe causou.

Todos sabem - ou deveriam saber - que a primeira notícia tem sempre uma força muito maior do que qualquer desmentido que possa, posteriormente, ser feito.

A primeira notícia, sobretudo quando envolve o desprestígio de alguém, é sempre lida por toda a gente - até por quem a... não lê.

O desmentido chega ao conhecimento de apenas cinco por cento dos leitores. E desses, metade (pelo menos), no dia seguinte, já não se recorda de o ter lido. Ou faz por não se recordar.

A primeira notícia - mesmo que tenha apenas cinco ou dez linhas - tem sempre maior impacto e penetração do que um desmentido, mesmo com título a três ou quatro colunas. É dos livros!

De qualquer modo, deu-me uma certa satisfação a notícia.

A partir de agora, mesmo deixando de ser gente para ser apenas... «palha», o meu maior desejo é ser tirado desta cela, sentir-me integrado num fardo e ser atirado para lá dos portões de Caxias.

Depois, alguém há-de parecer para desatar esse «fardo» e fazer com que a «palha», finalmente em liberdade, vá à sua vida...

Só faço votos para que, antes de alcançada essa total liberdade, não apareça por aí algum burro esfomeado que, por não gostar de «trutas», prefira banquetear-se com a «palha» que é tanto do seu agrado.

Mas tenhamos esperança, até porque não tenho visto por aqui nenhuma dessas alimárias...


UM SONHO





O meu pai e a minha mãe, que já morreram, há anos, vieram visitar-me.

Ele, trouxe-me bolachas. Ela, chocolates...

E estiveram aqui, na minha cela.

A minha mãe disse-me que a cama estava mal feita e voltou a fazê-la.

O meu pai pediu-me um cigarro e eu dei-lho.

A minha mãe ralhou com ele e comigo, porque o médico tinha-o proibido de fumar. Mas ele riu-se e disse que, um só, não lhe fazia mal. E que estava a fumar apenas para festejar a minha saída. Depois, perguntou-me se eu tinha alguma coisa fresca no frigorífico.

Disse-lhe que não tinha frigorífico e a minha mãe riu muito. Por causa daquela pergunta despropositada. Mas também ela me fez perguntas despropositadas: «Se a minha mulher tinha saído e a que horas chegavam as netas do colégio».

Foi a vez do meu pai rir. E deu uma gargalhada que se deve ter ouvido lá fora.

«Como quer a tua mãe que as meninas venham da escola se ainda não começaram as aulas?».

Ela concordou e disse que ia ao cemitério pôr flores na campa do meu pai. Mas o meu pai estava ali e disse-lhe que não valia a pena. Que ele próprio faria isso, quando voltasse. E saiu, dizendo: «Vou andando e espero lá por ti...».

Não se despediu de mim. E lá foi.

A minha mãe ficou mais uns momentos. Perguntou-me se eu tinha gostado do chocolate e eu disse que sim. Segredou-me que gostaria de me trazer mais mas não podia. Acrescentou que o meu pai estava à espera dela e que o cemitério podia fechar.

Deu-me um beijo e saiu.

Quando ela ia no corredor, chamei-a, mas ela não me ouviu ou não quis responder.

Meti-me na cama que a minha mãe tinha feito de novo. Fechei os olhos mas abri-os logo de seguida. Ainda não amanhecera mas pouco faltava.

Agora estava, realmente, acordado.

Não havia bolachas, nem chocolates. Nem a cama tinha sido feita pela minha mãe.

Levantei-me e fui até à janela.

Havia nevoeiro - um nevoeiro denso que mal deixava adivinhar os contornos da guarita que estava ali defronte de mim, a menos de cinquenta metros.

Acendi um cigarro igual que tinha dado a meu pai e fiquei a olhar sem nada ver. Só ouvia, ao longe, o ruído dos pneus sobre o asfalto húmido. Eram os primeiros carros que circulavam na estrada.

Julguei ver distintamente as silhuetas de meu pai e de minha mãe. Que já morreram, há anos.

Atirei o resto do cigarro por entre as grades da janela e voltei para a cama. Mas não consegui adormecer (in Português sem Portugal, Edição da Agência Portuguesa de Revistas, 1.ª edição, 1977, pp. 23-24; 33-36; 59-65; 75-77; 89-90).






Continua


Nenhum comentário:

Postar um comentário