terça-feira, 29 de maio de 2012

O Exame e o Ensino Superior

Escrito por Afonso Botelho








«...Por vezes, em consequência da execução da pena de morte, há uma cabeça que se separa do corpo e um corpo que se separa da alma. Na execução da pena de exame, há certamente muitas cabeças que deixarão de pensar, o que é o mesmo que dizer que se separaram para sempre das benemerências do Espírito.

Quem poderá esquecer-se da agressividade mortífera do estudo preparatório para exame?! Uma preparação assim - quem não a sentiu? - transforma-se na técnica mais decisiva de nos cindir por dentro, até atingirmos a perfeição de haver um outro que pensa por nós. Esse outro coincidirá com a imagem do juiz que espera a hora final do exame para nos devolver à Natureza, donde viemos, classificando-nos com os mesmos critérios com que se classificam insectos espetados por alfinetes».

Afonso Botelho («A Pena de Exame», in «Escola Formal», n.º 4).


«O ensino oral da literatura e da filosofia, como também o da história, só tem valor educativo quando transmitido por artistas inspirados e eloquentes. O professor sedentário, que se senta e preside aos trabalhos escolares, que murmura correctamente a lição de apontamentos colhidos em livros alheios e que verifica se os alunos são capazes de fixar, de repetir, ou pelo menos de resumir o que ouviram durante o ano lectivo, está muito longe do ideal do magistério. Quanto mais impessoal quiser ser, em sua didáctica, o professor que desligue o seu espírito e a sua alma da relação afirmativa com o objecto do ensino, tanto mais degradará a sua função de ministro da cultura.

Só o crente pode ser mestre, só o homem esperançado é capaz de conceber os argumentos, as provas e as demonstrações que iluminam e aquecem as almas dos seus conviventes. O didacta que se limite a expor a ordem de um programa, para habilitar o aluno a responder a um interrogatório ou exame; o didacta que não exerça a crítica, que não formule juízos de valor, que não relacione as ideias com os sentimentos; enfim, o didacta que não se entusiasme - realizará um ensino frio, baço e infecundo. O verdadeiro ensino da filosofia é incompatível com a neutralidade restrita de obediência aos estatutos, com a imparcialidade e a impessoalidade.

(...) O que magister dixit quanto a bibliografia é quase sempre respeitado pelos alunos, pelo que os professores não deixam de recorrer a este processo eficaz de unificação cultural. Assim desviam a atenção dos alunos, assim evitam perturbações no ensino, sem que por isso estejam livres de que um escritor leigo consiga com um opúsculo modesto esclarecer o que o clérigo não explicou bem nas suas lições magistrais. O aluno extremamente dócil aceita do "magister" o aviso contra os escritores que não seguiram a carreira universitária, mas o estudante de espírito livre, aquele que prefere julgar por si a julgar por outrem, não deixará de completar a informação bibliográfica, descobrirá bons livros que o professor não citou por julgar maus, e acabará, muitas vezes, por encontrar uma tradição cultural que contradiz o dogmatismo da escola».

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).






O EXAME E O ENSINO SUPERIOR


Mais do que fixar o que o aluno deve aprender, importa a um sistema de ensino superior valorizar a interrogação, ou a possibilidade prévia, do que aprende, de rejeitar a matéria fixada, e nos termos em que se fixou. Tal condição, que é própria do grau superior do ensino universitário, consente e promove o exercício da inteligência do adolescente na sua função de discriminar e dinamizar o saber.

Interrogar é, assim, o verbo que proporciona ao espírito a manifestação da inteligência, do intelecto activo, antecedente da enunciação da «matéria», que aquele, primeiro, identifica e, depois, escolhe.

Digamos que da precedência da interrogação depende a liberdade do ensino e não, como é usual dizer-se na linguagem de economia política, do acesso de todos, a todos os graus do saber.

O fluxo das gerações de aprendizes, crescendo em progressão geométrica e correndo em avalanche para as fontes disponíveis de licenças de trabalho, gera-se na ideia de igualdade e não na de liberdade, como a propaganda democrática se empenha em fazer crer.

Será o organismo social naturalmente obrigado a reagir perante as consequências práticas de tão abstracta e inviável ideia. Todavia, os responsáveis políticos pela educação supõem que a eles cabe a livre iniciativa das medidas para conter tal avatar. Deste modo se amanham as reformas do ensino com o remédio da doença que previamente se inoculou e sempre com a assinatura dos ministros respectivos. As vítimas reais são estudantes, a quem se vão criando os obstáculos para os impedir de serem estudantes.

Assim como a divisão constitui a operação imediatamente inversa da multiplicação, o «numerus clausus» constitui a consequência imediata deste absurdo.

O exame é, contudo, o obstáculo mais grave exactamente porque inverte o sentido da interrogação, dando toda a iniciativa ao examinador e afastando a «matéria» da individuação intelectual do estudante, da sua capacidade de identificação e de escolha.

Sem interrogação não há pensamento. E pensadores deverão ser, por definição, os estudantes do ensino superior.

Se durante os primeiros graus do ensino é indispensável criar virtudes intelectuais para se poder pensar, no grau superior, trata-se de exercer o pensamento na matéria que mais enigmática e interrogável se apresentou a cada estudante. Retirando ao aluno a possibilidade de escolher o enigma, ou a propriedade do interrogável, retiramos-lhe o estímulo para continuar a reassumir a interrogação. Ora, «a interrogação que não se reassume a cada instante do pensamento é, dizemos, tão-somente pergunta ou procura, infecundo interrogar ou já estéril no qual se torna vã toda a resposta» (1).



Afonso Botelho




Pela perda da liberdade de encontrar o enigma próprio, o aluno, sujeito a exame, sente-se como o expropriado, vazio de conteúdo, sem estima pelos conhecimentos que não lhe pertencem; pela perda das formas de pensamento, emergentes da interrogação que perdura, o examinado deseja ansiosamente esquecer tudo que aprendeu, logo a seguir ao exame. Invertido o sentido da interrogação, o único, portanto, que continuará cumprindo o seu dever de interrogar, mais correctamente, é aquele a quem compete apenas ensinar.

Nestes termos, o ensino superior, afectado pelo exame, no acesso e na saída, dirige-se às faculdades menos criadoras e mais inferiores da mente humana. Sem atender às leis da memória que iluminam um vastíssimo campo, de limites ainda desconhecidos, desde a consciência de si próprio às fronteiras supra-sensíveis com o «outro», o exame sujeita o candidato ou a profissional, no ingresso para a universidade e no egresso para a «vida», a um interrogatório que contraria todas aquelas regras, incluindo as de identificação do examinando consigo mesmo.

Este desacerto da subjectividade do discente com a objectividade do ensino tem a sua confirmação plena nas formalidades do exame que se iniciam com a exigência de apresentação do bilhete de identidade. A partir dessa primeira exigência, todo o ritual se desenvolve no sentido de anular a individualidade do estudante e também a do professor. Disfarçada com o sentimento moral da imparcialidade, que o comum das pessoas intervenientes no exame (examinador, examinando, família do examinando) aceita e até reclama, volta a ideia de igualdade a ser causa de uma distorção social irreparável: a transformação do professor num juiz, a quem se retira, como progressivamente se tem feito à Magistratura, o «sagrado» dever de aplicar a lei universal ao caso singular.

Efectivamente, tanto o legislador como o que governa, pautando os defeitos pessoais ou as imperfeições humanas pela ficção socializante da igualdade dos homens (e das mulheres), elaboram leis, já não universais, mas apenas gerais, em que tentam prevenir todos os casos particulares, ou emitem ordens e portarias baseadas na mesma desconfiança dos outros e na estulta presunção de evitar os seus erros. Conhecida a causa ideológica do exame, não podemos esperar que o ensino superior se aproxime do que deve ser. Pelo contrário, a perspectiva socialista aumentará o poder do exame, o seu carácter judicial, a unidade nacional de seus quesitos por forma a que o estudante universitário não interrogue mas seja interrogado, até desistir de ser estudante. Plenamente integrado, será mais útil à «Sociedade» (in revista «Escola Formal», n.º 2).


(1) José Marinho, Teoria do Ser e da Verdade, Guimarães Editora.




José Marinho



sábado, 26 de maio de 2012

Franco-Atirador (ii)

Escrito por António Quadros 





Winston Churchill e o General De Gaulle




«Duro, pouco preocupado com a vida humana, pelo menos na aparência, está longe de ser indiferente ao progresso da sua carreira militar, como o atesta a sua correspondência, mas é respeitado, pois expõe-se ao perigo. (...)  impõe-se pelo seu sangue-frio, pelos riscos que corre. Não se contenta em obrigar os seus homens a usarem gravata e a fazerem a continência. Diante do seu amigo Étienne Repessé, que se tornará seu editor na Berger-Levrault, inspecciona um dia a linha da frente com dois lugares-tenentes. Um obus explode. De Gaulle permanece direito, enquanto os companheiros se deitam no chão: "Têm medo, senhores?"».

Éric Roussel («De Gaulle»).


«Se está comprovado que a divertida fórmula emprestada a Churchill - «De todas as cruzes que tenho de carregar, a mais pesada é a cruz de Lorena» - foi inventada devido às necessidades da causa, não deixa de ser verdade que o Primeiro-Ministro teve de consagrar tanto tempo quanto energia ao seu embaraçante e desconfiado aliado, o General De Gaulle. Entre os dois chefes de guerra, relações acidentadas e tensões recorrentes em breve assumiram uma tendência passional.

(...) Um episódio, ainda em parte inédito, ilustra bem estas relações tumultuosas. No ponto de partida, um assunto em si bastante insignificante:  a união de Saint-Pierre-et-Miquelon à França livre, a 24 de Dezembro de 1941, apesar das advertências insistentes de Londres e Washington. É justamente Washington, onde é convidado de Roosevelt, que Churchill toma conhecimento, furibundo, da notícia - uma notícia que, a seu ver, não pode senão agravar inutilmente as contendas com os americanos a propósito de De Gaulle (efectivamente, o secretário de Estado Cordell Hull aproveita a ocasião para exalar o seu antigaullismo obsessivo, falando dos "chamados franceses livres"). No seu regresso a Londres, Churchill convoca De Gaulle a Downing Street, em 20 de Janeiro, e despeja a sua raiva sobre o general impassível. À medida que fala, vai-se exaltando, o tom não pára de subir, a ponto de o intérprete, Frank Roberts, um alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, se sentir obrigado a atenuar as afirmações ofensivas e agressivas do Primeiro-Ministro, dando-lhes um aspecto mais diplomático. O que tem como resultado aumentar o furor de Churchill, que segue a tradução em francês e exclama para o intérprete: "Mas traduza o que eu disse, em vez de o deformar!". Por fim, acalmando-se a tempestade, o general De Gaulle, totalmente silencioso até ali, pergunta calmamente: "É tudo?", e perante a resposta afirmativa do Primeiro-Ministro, pega nas suas luvas com uma mão, põe o seu quépi na cabeça com a outra, faz a continência e abandona a divisão. Tendo o chefe da França livre partido, Churchill, impressionado, volta-se para o intérprete e diz-lhe: "Mas que homem! Fez o que havia a fazer. Tiro-lhe o meu chapéu".

(...) Mais segura e significativa parece ser uma exclamação do próprio Churchill: após uma entrevista com De Gaulle em Marrakech, em Janeiro de 1944, ele exclama, de admiração e em francês, perante um dos seus generais: "Não há dúvida! É um grande animal!"».

François Bédarida («Winston Churchill»).


«Aquele sentimento ainda persistente, mas vago, indefinido e no entanto sequioso de definição (que só pode ser intelectual); aquele sentimento de patriotismo que ainda encontramos nas populações do "interior", sobretudo as rurais; esse sentimento logo o vemos apagado, evanescido, até ridicularizado nas populações das grandes cidades, em especial Lisboa, cidade de classe média social, de meia-tigela intelectual, de doutores e bacharéis semi-sapientes, cuja suficiência satisfeita de si é alimentada, em cada dia da semana, por um "semanário de opiniões" - coisas como o "Expresso", o "Semanário", o "Jornal", o "Diabo"... - e, naturalmente, pelas discursatas dos políticos de serviço.

É neste ambiente citadino que nos ficam a olhar como a um fantasma de outro mundo quando lhes dizemos que portugal é uma Pátria e que uma Pátria é uma entidade espiritual. Claro que os poderíamos "esclarecer", ou captar-lhes o crédito de "provincianos" mentais, lembrando-lhes que também De Gaulle dizia que a França é uma ideia, "uma certa ideia". Mas De Gaulle terá sido, para alívio desta gente de meia-tigela, o último verdadeiro homem de Estado...».

Orlando Vitorino («O processo das Presidenciais 86»).






«A II Guerra Mundial, tentativa sangrenta de resolver o problema da Europa e do Mediterrâneo, terminou na condenação dos nacionalismos políticos, culturais e filosóficos. Mais uma vez observou Portugal a maré alta do internacionalismo, ou do universalismo, que persevera na ambição ideal de reger a História. A Organização das Nações Unidas mandava impor ao Mundo, por meios pacíficos e suasórios, uma cultura unificada, para o que foi em 1945 assinada em Londres a carta orgânica da UNESCO, e em 1946 distribuído o opúsculo de Julião sobre A Unesco, suas finalidades e sua filosofia.

Em tempos tão adversos ao princípio das nacionalidades, proclamava quase toda a imprensa o próximo advento de um universalismo redentor configurado na gradual federação de Estados, unidos em torno de um governo comum. Tentavam os publicistas demonstrar que tal política, sem fronteiras socio-culturais, seria indispensável para a felicidade económica dos povos e para o estabelecimento da paz mundial.

Protestando contra essas tendências ideológicas, explicaram os nossos escritores humanistas que o nacionalismo só poderia subordinar-se a um universalismo de ordem transhumana, como é o da Igreja Católica, já que qualquer doutrina com origem determinada no mundo, isto é, em certo instante do tempo e em certo ponto do espaço, não ostenta validade tal que aconselhe alguém a propô-la ou a impô-la a todos os indivíduos e a todos os povos. Nenhuma nação simples, nem nenhuma nação composta, como a união dos organismos nacionais, pode arrogar-se o imperativo categórico na ordem do dever, ou elaborar um direito público internacional contra o qual protestem as consciências esclarecidas. Cumpre ao escol nacional ver e fazer ver como é que o imperialismo se disfarça ao propor por prestígios económicos e financeiros a tese de que é conveniente uniformizar e comunicar as técnicas instrumentais e os processos mecânicos, entre os quais a contagem automática das votações majoritárias que decidem a seu talante, sem que as minorias vencidas possam alegar restrições das suas liberdades e das suas independências.

Esta sofismação é de há muito conhecida pelos povos europeus que formaram a sua cultura filosófica ao abrigo da Escolástica, e que desinteressadamente meditaram sobre os resultados do exame feito ao problema dos universais. A eliminação de entidades intermediárias, transitórias e transitivas, cujo conceptualismo e cujo realismo ficam suspensos da crítica, permite simplificar todos os problemas jurídicos pela formação de dialéctica entre o indivíduo e a sociedade. Entre o indivíduo, ou um corpo humano, e a última ficção jurídica que será a Humanidade, a Sociedade, o Estado, com qualquer designação conferida pela última doutrina da moda, não se intercalam realidades objectivas ou categorias mentais que mereçam ser consideradas na formulação dos fins do direito, e assim um dado de concreção mental e material como a Pátria estará sempre excluído do enunciado internacional dos eternos princípios.

Pensadores habituados pelo ensino aristotélico ao exercício lógico das categorias e sequentes garantias objectivas nunca poderiam admitir que no mundo condicionado pelo espaço e pelo tempo deixem alguma vez de existir as entidades sociais que ainda denominamos nações. A pluralidade indefinida jamais será unificada pela força de um Império. Não está demonstrado que por unificar, ou unicar, os meios de comunicação a Humanidade anule a diversificação militante e incessante».

Álvaro Ribeiro («Espelho do Pensamento»).




QUE EUROPA?

FILOSOFIA E POLÍTICA






Jean Monnet


Nesta época e neste mundo, em que grandes mutações parecem desenhar-se no horizonte, é certamente oportuno repensar com serenidade e com a lucidez possível a situação histórica de Portugal dentro do continente europeu. Quem é, aliás, absolutamente lúcido, quem possui a luz total da razão clara sobre a verdade e o futuro?

Os filósofos, os pensadores, distinguem-se dos políticos, entre outros motivos, porque os primeiros nunca são tão afirmativos e dogmáticos como os segundos. É da natureza de todos os políticos, é talvez da própria natureza da própria política, que se declarem certezas. A atitude dubitativa ou mesmo interrogativa aparece - do ponto de vista político - como uma atitude de fraqueza, de divisão interior, de fragilidade. O político - esteja ele no poder ou aspire a conquistar o poder - é eternamente obrigado a ocultar as suas próprias dúvidas, a reprimir as suas próprias incertezas, porque a imagem mítica de uma realeza de pai-pedagogo infalível é-lhe necessária, neste velho tempo que ainda é o nosso, para se impor aos seus partidários, aos seus adversários e à massa mais ou menos neutra que segue as correntes majoritárias.

Uma política científica será por muito tempo ainda utopia. A vinculação a imagens míticas do poder, a imagens míticas do Estado, a imagens míticas do espaço habitado ou da ecúmena, a imagens míticas do futuro, é de regra no xadrez político contemporâneo. As opções, os empenhamentos, os «partidos tomados», segundo a expressão francesa, são decisões existenciais que, regra geral, «alistam» todo o ser do «homo politicus», segundo uma duração temporal que evita as contradições. É mal visto, em política, mudar de opinião. Para verberar evoluções ou alterações de rumo descobrem-se os motivos mais amesquinhantes e as corrupções mais degradantes. O «homo politicus» torna-se prisioneiro, até ao fim da vida, da sua própria escolha, muitas vezes adolescente. Nada concede aos adversários - o que seria prova de incerteza - ou, mesmo que o conceda no seu foro íntimo, nada pode aparentar que concede. Nas lutas intrapartidárias pela escolha política são quase sempre os mais intransigentes e duros que triunfam. A razão que assiste aos políticos pode ser elevada, sublimada e depurada pelo exercício filosófico, mas, ao contrário, na maioria das vezes é transformada em emblema ou insígnia e é fixada dentro de um rígido sistema de mitos e de crenças. Paradoxalmente, onde a razão é mais proclamada, mais afirmada, mais declarada, é onde está mais sujeita a tal tipo de sistema, porque a recusa política do mito e da crença é uma entrega total a mitos e crenças que o próprio político ignora. Há sempre mito e há sempre crença. Mais vale reconhecê-lo francamente, e tratar estas formas de para-razão segundo as exigências da razão e da antropologia filosófica, num conúbio existencial entre o sonho e a lógica. Oscilamos entre os absolutismos imperiais que desconhecem ostensivamente as regras do jogo e pretendem impor a própria semi-verdade ou o próprio semi-erro a todo o mundo - e os absolutismos partidários, que aceitam regras de convivência, que escolhem respeitar os adversários e coexistir com eles, mas que, no futuro, são igualmente absolutistas; oscilamos entre o absolutismo intransigente e o absolutismo de compromisso. Este é evidentemente o preferível. Mas ultrapassar a dialéctica dos absolutismos é, cada vez mais, a grande tarefa para amanhã. (...)



O IDEAL EUROPEU








(...) a primeira verificação que faço é esta: a unidade europeia marca passo, estagna, se é que não recua. É um facto, é uma realidade. Nascida depois do termo da II Guerra Mundial,  a ideia da Europa Unida, ou da Federação Europeia, igualmente desejada pelo neocapitalismo e pela social-democracia, trazia em si muito da humilhação sentida pelos povos centro-europeus, perante a ascensão das potências verdadeiramente vitoriosas do conflito: os Estados-Unidos e a URSS. Os povos centro-europeus (estes, principalmente) reconheceram que, na sua divisão e no seu isolamento, não poderiam competir com aquelas superpotências; mas unidos, tal seria porventura possível. Somaram-se os índices de produção, compararam-se estatísticas, estabeleceram-se as primeiras comunidades europeias (económicas), e assim o ideal europeu - herdeiro cultural da tradição greco-latina e romano-imperial - julgou ter uma base realista, uma base terrestre e sólida.

Algumas influências menos «ideais» vieram no entanto perturbar a questão. Em primeiro lugar, o interesse norte-americano em apoiar a unificação europeia depressa revelou um certo travo amargo; não seria a «Europa» para os Estados-Unidos senão um tampão na sua luta estratégica com a URSS? Estaríamos nós, europeus, destinados ao papel de defesa avançada dos Estados-Unidos? Por outro lado, a crescente preponderância dos interesses financeiros americanos na Europa a breve trecho pareceu que imporia um domínio económico-ideológico: a Europa não seria uma potência neutra e perseguindo os seus fins próprios, mas sim um aliado (mais forte do que as cindidas nações europeias) contra o comunismo ou a Rússia. A Europa estava, neste contexto, transmutada num englobante maior - o Ocidente -, englobante capitalista, tecnocrático, industrial, seguindo o modelo democrático e federativo norte-americano.

O general De Gaulle opôs-se a esta concepção de uma Europa federada inclinada para o modelo e a influência norte-americanos, e que na realidade não era a Europa, uma vez que excluía todos os países socialistas de Leste. A sua «Europa das pátrias», que irritou muitos idealistas do federalismo europeu, foi afinal de contas uma fórmula realista que procurou alargar a Europa às suas maiores dimensões - do Atlântico aos Urais -, evitar a sua absoluta inclinação para um dos campos, manter abertas as possibilidades de diálogo com o Leste, afastar o espectro do domínio económico americano e ao mesmo tempo preservar a ideia do estabelecimento de laços de cada vez maior solidariedade entre os povos do nosso continente.

Creio que se enganaram os que pensam estar esta fórmula inteiramente ligada à pessoa de De Gaulle.
É uma fórmula mais realista do que ideológica e o seu conteúdo é mais lógico do que utópico. Para mais, o ideal de uma superpotência europeia foge a responder a um sem-número de problemas de inequívoca gravidade.






AS TRÊS EUROPAS


E o primeiro problema é este: se uma França, uma Itália ou uma Alemanha se sentem coarctadas na sua expansão, na sua liberdade, no seu desenvolvimento, pela presença financeira norte-americana no mesmo seio das suas economias, que sucederia - agora dentro do domínio estritamente europeu - aos pequenos países de fraco desenvolvimento económico? Os economistas-sociólogos que respondam. Mas é preciso não esquecer que há pelo menos três Europas (de um ponto de vista económico, evidentemente): uma Europa onde o socialismo de Estado criou um mundo à parte, com as suas leis e as suas regras; uma Europa desenvolvida do centro e do norte; e uma Europa muito mais pobre, constituída pelos povos do Sul, desde a Península Ibérica ao longo das costas do Mediterrâneo até à Turquia. Países como a Espanha e a Itália encontram-se cindidos entre estas duas Europas, com um norte mais industrializado e desenvolvido, e um sul mais agrícola e pobre.

Podem temer-se as seguintes consequências: em primeiro lugar, a criação de uma superpotência europeia ocidental viria agravar as relações com o que mais depressa se tornaria uma superpotência europeia oriental. A Europa irremediavelmente dividida entre dois blocos unitários e adversários, não matizados já na sua acção pela pluralidade e pelo confronto de vários pontos de vista, e sujeita a decisões de supergovernos separados dos povos e afastados das periferias... Em segundo lugar, a crescente provincialização das periferias. Numa superpotência europeia, a Alemanha, a França, a Inglaterra, a Itália, o Benelux, seriam inevitavelmente condutores, dominadores, não já tanto como potências nacionais, mas como potentados económicos e culturais. As periferias - Portugal ou Espanha, Itália do Sul ou Grécia, Irlanda ou Noruega, Jugoslávia ou Turquia - sofreriam o equivalente ao processo de provincialização, passivismo económico e cultural, arregimentação estratégica, dirigismo ideológico, que, na realidade sofrem já hoje em parte, e que noutros pontos, sofrem, por exemplo, os países sul-americanos dentro de um pan-americanismo dominado pelos Estados Unidos e os países aliados da URSS dentro de uma espécie de pan-eslavismo ou, antes, pan-sovietismo implícito, onde a URSS detém as rédeas do comando.

Estes países periféricos, remetidos a produzir o que convém à super-comunidade, onde a sua voz só muito tenuamente se faria sentir, alienados cada vez mais da sua originalidade criadora, desautonomizados e desvinculados de outros interesses e relações extra-europeus, na realidade passariam a servir os interesses dos potentados dominantes e arriscar-se-iam a ser carne para canhão em conflitos futuros, sem possibilidade de neutralismo. Por outro lado, o fortalecimento da superpotência europeia (que não é necessariamente o enriquecimento e valorização das regiões periféricas, sempre sujeitas ao regime climático mediterrâneo, aos seus solos agrestes, ao atraso dos seus níveis de produção e com menos possibilidade competitiva), o fortalecimento da superpotência europeia, dizia, tão sedutor para um certo orgulho europeu, rácico e cultural, agravaria muito mais ainda o fosso que nos separa dos países subdesenvolvidos da África, da Ásia, da América do Sul, da Indonésia. Em vez de estabelecer pontes destruiria as que ainda existem, desenvolvendo-se no horizonte presumivelmente ódios raciais e continentais muito maiores do que no actual contexto pluralista.

Torre de Belém




A nós, portugueses, afastar-nos-ia cada vez mais de nossas projecções ou relações atlânticas e ecuménicas, reduzindo-nos a província limítrofe do «IV Império». E de um modo geral, pergunta-se se o declínio das línguas e das culturas que caracterizam na sua diversidade e criatividade a riqueza espiritual europeia seria efectivamente um benefício.

Em suma: laços mais estreitos, diálogo mais aberto e franco, maior interpenetração de influências, maior atenção às lições fecundas vindas de fora de fronteiras, esbatimento da rigidez fronteiriça e alfandegária? Sem dúvida. Mas escolha de nova provincialização periférica, em troca das potencialidades económicas e estratégicas de uma «Europa Unida» sob o imperativo de um industrialismo capitalista e tecnocrático - eis do que duvido francamente...


(...) MAS ONDE ESTÁ A MINHA PÁTRIA?


O verdadeiro problema não é pois quanto a mim o de saber se ainda há pátria. Parece-me cada vez mais evidente - contra a opinião, bem o sei, de certas formas de ideologismo superficiais e mal fundamentadas -, que onde haja uma língua própria, uma estrutura cultural, uma actividade filosófica, um complexo social específico, um sistema de educação, a pátria é uma realidade a tonalizar necessariamente as ideias, os valores, os movimentos, as instituições. O que sucede muitas vezes é haver pessoas, frequentemente as que se formaram culturalmente na Universidade, que rejeitam consciente ou inconscientemente a sua pátria, julgando-se afastadas de tal ideia anacrónica, quando na realidade se tornaram cidadãos de outras pátrias. São os que desprezando e ignorando por exemplo a literatura portuguesa, a filosofia portuguesa, a cultura portuguesa e a língua portuguesa, se integraram por completo nos sistemas de outras culturas nacionais. A sua posição é a de um snobismo provinciano estéril, irremediavelmente distanciado da cultura emulada e ao mesmo tempo desenraízado da cultura circundante. Alienação cultural completa, incapacidade de abordar os problemas reais do seu povo, uma vez que constantemente se lhes querem vestir soluções ou figurinos concebidos para outros sistemas e formas psico-sociológicas da vida.

Os supostos apátridas deveriam perguntar a si próprios «onde está a minha pátria?». Serão a França ou a Alemanha? (opções universitárias). Será a América? (opção capitalista-tecnocrática). Será a Rússia? (opção ideológica). Será a China ou Cuba»? (opções políticas-nova vaga).






Estes olham com desgosto tudo quanto vêem em sua volta. Em vez de tentar compreender para dinamizar pelo amor, desprezam e ironizam, sublinhando a cada passo que «neste país, etc...». Enquanto os autores portugueses se não vendem, enquanto as revistas de cultura portuguesa estiolam ao cabo de poucos números, enquanto as iniciativas culturais portuguesas sucumbem por falta de apoio e estímulo de todos os sectores, sejam eles quais forem, as temporadas de medíocre teatro francês são um êxito clamoroso, as revistas estrangeiras vendem-se entre nós muito mais que as portuguesas, as más traduções de livros por vezes maus proliferam, os criadores de cultura, pensadores, escritores, artistas, são ignorados pela opinião pública e pelas instituições ditas culturais, voltadas para os narizes de cera do passado ou para os brilhantes centros estrangeiros, que têm ao seu serviço poderosas máquinas de propaganda e instituições de difusão cultural excelentes - o que aliás só abona em seu favor.


(...) UTOPISMO E REALISMO


(...) Depois dos nacionalismos militaristas, de que foram expressões o nazismo ou o fascismo (nacionalismos telúricos e racistas, não corrigidos por um universalismo espiritual), a inteligentzia europeia desvalorizou os conceitos de nação ou de pátria. Viu numa próxima humanidade sem fronteiras a solução para as guerras. Foi um período de utopismo emocional, que, mal fundamentado todavia, depressa foi ultrapassado pela própria realidade.

Efectivamente, todas as tentativas de realização de supranacionalidades por alguma razão conheceram o fracasso, desde a expansão russa para os países socialistas de Leste até ao pan-americanismo, desde o projecto dos Estados Unidos da Europa cujo núcleo inicial seriam os países-membros do Mercado Comum até à União Árabe ou à unidade da península industânica. Aliás, uma supranacionalidade (federativa ou imperial) seria ainda uma nação, embora uma nação maior. A super-nação humana, que a ONU até certo ponto deseja prefigurar, pertence a um futuro tanto mais longínquo quanto continuem a incompreender-se ou a subestimar-se as razões que levaram à criação civilizacional das comunidades orgânicas.


CONDIÇÕES DE PROCESSO UNIVERSALIZANTE


É sem dúvida desejável e até exequível a ideia de uma fraternidade universal-humana - mas a sua via não pode ser a da absorção ou da redução das culturas diferenciadas. Neste sentido, quanto mais depressa se quiser andar, mais se atrasa o processo universalizante. No pós-guerra pensou-se que a ideologia política poderia ser o critério unificador supranacional. Ora a ideologia política é uma zona superficial da cultura humana. Nem a ideologia nazista da Ordem Nova, nem a ideologia democrático-capitalista americana lograram os seus objectivos. Antes se viu que, uniformizadoras muito mais do que universalizadoras, as ideologias político-internacionalistas ofendiam os sentimentos nacionais dos povos, engendrando reacções mais ou menos violentas. E assim, a época contemporânea está muito mais próxima do parcelamento plurinacional do que jamais o esteve a História. Nem sequer conseguimos reunificar as nações artificialmente divididas pelas guerras (como a Alemanha, a Coreia, a China, o Vietname), quanto mais criar supernações. Perante um abalo, um traumatismo, uma agressão, uma eleição, uma guerra, é que vem à tona, com toda a sua potência, mais do que a ideia de pátria, o valor de pátria (in ob. cit., pp. 170-171; 174-177; 181-182; 184-185).




















quarta-feira, 23 de maio de 2012

Franco-Atirador (i)

Escrito por António Quadros








«INTERNACIONAIS», INTERNACIONALISMO, NACIONALISMO E IDEAL UNITIVO


ABATER AS FRONTEIRAS:








Abater fronteiras! Riscá-las dos mapas! Apagá-las das almas.

Eis um ideal que se renova em cada geração: um ideal romântico, que aspira à imediata realização do homem universal, do homem transcendente às nações e aos nacionalismos, às pátrias e aos patriotismos. Ideal que mergulha as suas raízes no «passado» cultural da humanidade. Podemos detectar as antigas pegadas deste ideal na civilização helenística supranacional, visionada por Alexandre; no romano-centrismo imperial de César e de Augusto; na afirmação cristã de que os homens pertencem a uma pátria que não é deste mundo, e de que portanto só tem sentido a cidade universal dos homens enquanto potencial cidade de Deus; consequentemente, nas tentativas e nas teorizações de uma República Christiana, dos Impérios sonhados por Frederico, ou por Carlos V, ou até mesmo do V Império lusocêntrico, Império do Espírito Santo, conciliador de todas as desavenças e todas as cisões através do Espírito da Verdade, ou ainda do Império Napoleónico, agora galocêntrico...

Com a crise do conceito de Império - pois que a supranacionalização era conquistada e imposta afinal de contas por uma pátria centralizadora e absolutista -, deu-se a canalização do mesmo ideal para um princípio a que podemos chamar o internacionalismo.


AS «INTERNACIONAIS»


O facho do antinacionalismo teórico e revolucionário foi levantado pelos partidos socialistas e comunistas. Mas as Internacionais não conheceram melhor fortuna do que os Impérios. A I Associação dos Trabalhadores durou dez anos. A sua existência não resistiu à cisão entre os comunistas, dirigidos por Marx e Engels, e os anarquistas, encabeçados por Bakunine. Não resistiu sobretudo à guerra europeia de 1870, que despertou o espírito nacional na França e na Alemanha. A segunda guerra europeia - de 1914-18 -, marcou o fim da II Internacional, cujos adeptos, na sua maioria, fraquejaram perante o apelo patriótico. A III Internacional, inspirada por Lenine, foi russo-cêntrica, o famoso Comintern. O seu fim foi apressado pela luta entre Trostky e Estaline e, é bem evidente, pela terceira guerra europeia. O domínio soviético, a reaparição do velho nacionalismo russo foram postos em relevo pela cisão da Jugoslávia de Tito e pela satelização da Europa de Leste; mais recentemente, pela revolta da Hungria e pela invasão da Checoslováquia. Em vez do Internacionalismo, a ressurreição do antigo conceito de Império, com a Rússia a exercer a função desempenhada nos tempos passados por Roma, pela Alemanha, pela Espanha, com homens de confiança do tipo sátrapas a dirigir os países satélites, com Partidos transformados em grupos de pressão, trabalhando a favor da «pátria-mãe do socialismo mundial».

Situação que não podia deixar de explodir: todos estes países e partidos lutam hoje por «vias nacionais» para o socialismo, insatisfeitos perante a ideia de uma vassalagem contrariante da sua liberdade. Fala-se de uma IV Internacional, que seria a Internacional dos estudantes, inspirada por Mao-Tsé Tung, por Che Guevara, por Trostky, Internacional simultaneamente anticapitalista e anti-soviética, mas a sua realização seria por certo ainda mais frágil do que as tentativas anteriores.




Em escala um pouco mais reduzida, outras Internacionais agitam as almas e atraem muitos espíritos: por exemplo a chamada Tricontinental - Organização de solidariedade dos povos da África, da Ásia e da América Latina -, concebida para lutar contra o capitalismo e a aliança euro-norte-americana; por exemplo a OEA, a Organização dos Estados Africanos; num pólo oposto, as Internacionais dos países capitalistas, cujas dificuldades de realização não são menores: a Europa-nação, a Europa do Mercado Comum, a Europa das democracias liberais; o pan-africanismo e o pan-europeísmo foram precedidos pelo pan-americanismo mas também este está em regressão, tão ténues são as afinidades sociais, económicas, culturais e políticas entre as três Américas: a da língua inglesa, a da língua espanhola e a da língua portuguesa.

Em suma, em qualquer das suas interpretações - a imperialista ou a internacionalista, a capitalista ou a socialista, a democrática ou a absolutista -, o ideal de um mundo sem fronteiras desfaz-se constantemente contra o rochedo forte da realidade.

Ideal defendido retoricamente, ardorosamente, teimosamente, em vez de progredir, no entanto retrocede. Continuam as utopias de ficção científica a figurar uma era futura em que já não há guerras porque já não há nações. Mas, entretanto, a tendência do real é para a pulverização em número cada vez maior de países: tal acontece na África e na Ásia, por exemplo; e são inúmeras as reivindicações separatistas de províncias que querem voltar a ser pátrias, como por exemplo o país Basco, na Espanha; a Bretanha, na França; a Escócia e o País de Gales na Grã-Bretanha; o Quebec, no Canadá; a Ucrânia, na União Soviética; o Biafra, na Nigéria - para citar apenas alguns casos de agitação muito recente e para não mencionar os países divididos em dois pela estratégia internacional das grandes potências: a Alemanha, a Coreia, o Vietname. Há quem demonstre, por outro lado, que a única forma de resolver o problema do totalitarismo russo ou chinês - países que, pelas suas dimensões excessivas não poderiam ser governados senão em regimes de ditadura - é a sua divisão em várias nações, de acordo com os vários grupos étnicos.

O último desenvolvimento teórico do ideal supranacional - ideia inteligente, sem dúvida - é o que, inspirado no pensamento federalista de Denis de Rougemont, preconiza a substituição das nações por regiões. É uma tese que mergulha as suas raízes no microcosmos sui generis da Suiça. Mas podemos transformar o mundo inteiro numa Suíça? Talvez.


O FENÓMENO NACIONAL


Talvez. Mas o certo é que - e é o objectivo deste comentário - não se avançará jamais um passo no sentido do ideal supranacional, enquanto não se meditar apropriadamente nas causas de tantas dificuldades. É costume atribuírem-se as resistências a maquiavelismos e a interesses económicos ou políticos de toda a sorte. Termos de ir bem mais fundo, para apreender na sua complexidade o fenómeno nacional.



Aristóteles



Aristóteles compreende-o, quando mostrou que o homem, ser da natureza, está submetido às categorias: categorias de tempo e espaço, categoria de modo, entre outras. Cada comunidade humana vive na sua hora e no seu tempo: não é possível unificar este horário das evoluções civilizacionais por um acto político; cada comunidade habita no seu ponto do espaço, frio ou tropical, continental ou insular, montanhoso ou desértico: não é possível atribuir a todas, indistintamente, o mesmo clima; cada comunidade tem o o seu modo de ser, isto é, a sua maneira de se colocar perante os problemas do nascer, do viver, do morrer, perante a natureza ou Deus, perante a sociedade ou o Homem, e manifesta-o não só na sua religião, na sua filosofia, na sua arte e na sua cultura erudita, mas também na sua língua, nos seus costumes, no seu folclore: uma pátria é uma estrutura e parece ainda muito cedo para resolver o mundo pluralista das estruturas diferentes, numa só estrutura uniforme, ainda quando a técnica pareça acelerar o processo de aculturação. (A técnica não tem ao seu alcance criar comunidades concretas e vivas).

Unificar a Europa, unificar o mundo? Eis o que só será possível quando todos nos pusermos de acordo sobre o sistema político ideal, sobre o sistema educativo ideal, sobre o sistema de moral ideal, sobre o sistema religioso, ou místico, ou ideológico que efectivamente coincide ou mais se aproxima da Verdade última. Grande tem sido a tentação de cortar o nó górdio e fazer como Alexandre: impor um sistema, criar um Império. Mas seria apenas a aparência artificial de um sistema, seria um Império condenado ao ciclo sem fim das rebeliões e das contestações, como as dos países helenizados ou romanizados ontem, como os das nações sovietizadas hoje.


A UNIDADE VIÁVEL


Teremos então de aceitar a realidade multinacional como definitiva, com o seu risco permanente de guerras catastróficas? Sejamos sensatos. Se a pátria é uma comunidade estrutural, todavia a aliança e a fraternização supranacional e sobretudo supranacionalista é uma possibilidade que podemos e devemos desenvolver. Simplesmente: tem-se mandado o carro à frente dos bois, o que não é maneira de andar para a frente. Por outras palavras, tem-se querido realizar por intermédio da dialéctica política e, portanto, sem respeito ao outro o que deveria principiar pelo diálogo intelectual e filosófico, não contaminado pelo espírito da intolerância e da paixão.

Cada pátria tem em primeiro lugar que ser ela própria, desenvolvendo ao máximo todas as suas virtualidades e potencialidades peculiares e irredutíveis a uma generalidade vaga, pois só assim poderá dialogar activamente com as restantes. E tem em segundo lugar que aprender a ouvir as outras, sem juízos preconcebidos, sem complexos de inferioridade ou de superioridade, sem teimosias. Enquanto tal não suceder - e estamos muito longe desse escopo -, é prematuro pensar em unidade. Pois que a unidade terá um dia que se fazer, mas sem diminuições, sem abandonos, sem perdas, sem a destruição, em suma, da variada riqueza cultural do mundo. O sistema aprenderá de todos os sistemas, em vez de os desprezar ou ignorar. Será tão maleável quanto o é a múltipla insatisfação do homem de todos os meios e todos os espaços. Será tão exigente quanto o são os valores e os movimentos de ideias mais profundos e elevados do grande leque multicultural. Mas só assim será. Ou então o mesmo ideal unitivo não cessará de causar tiranias, totalitarismos, absolutismos e a sua contrapartida, contestações, revoltas e revoluções, quando não guerras por uma imagem do internacionalismo (a democrática, a comunista...), mais do que por um conceito de nação... (in Franco-Atirador, Espiral, 1970, pp. 165-169).










Continua


quarta-feira, 16 de maio de 2012

«Iluminismo cristão» (iii)

Escrito por Papus (Gérard Encausse)








«Agora, com a minha máquina, eu cortarei a sua cabeça num piscar de olhos, e você nunca sentirá isso!».

Discurso pronunciado pelo mação Joseph-Ignace Guillotin na Assembleia Constituinte de Paris a 1 de Dezembro de 1789.


«Para Gaston Martin, a doutrina revolucionária não nasceu nas lojas, mas partilhava com elas um fundo deísta, um anti-clericalismo, uma crença no progresso e na indefinida perfectibilidade humana por meio da ilustração; e além do mais, a maçonaria não só formava parte dum panorama intelectual mais amplo, como também contribuiu para que a revolução passasse "da teoria à prática", fixando "os métodos próprios para assegurar a realização das suas doutrinas".

Os matizes que Martin assinala podem parecer irrelevantes, mas a sua descrição reflecte a forma de actuação da maçonaria em quase todas as agitações políticas, desde o século XVIII até, pelo menos, à primeira metade do século XX:  a irmandade mostra-se solidária com as doutrinas "progressistas" e colabora para o seu triunfo.

(...) A maçonaria, em linhas gerais, não escondeu a sua participação activa e até "preponderante", mas não existem indícios de que aquele "grande e salutar movimento" tivesse sido planeado atrás das colunas do pórtico maçónico, e ainda que fossem excepções, até houve maçons que se opuseram ao avanço da Revolução. Aquele movimento teve muitos ingredientes. De facto, por assombroso que possa parecer, as tendências galicanas da coroa francesa, que escavavam as suas raízes mais de três séculos antes, uma coroa cada vez mais centralizadora e com uma concepção laicista do poder político, tinham feito mais para preparar a chegada da Revolução do que os remetentes conventículos maçónicos. Os juristas revolucionários sentiam-se plenamente herdeiros dos seus antecessores, os juristas galicanos, que tinham sustentado as teorias absolutistas do poder em prejuízo da filosofia social da Igreja: a Revolução foi a consequência natural do desenvolvimento dos princípios absolutistas. Outro princípio que também nasceu à sombra da coroa gaulesa foi o do nacionalismo, sobretudo a partir da política do Cardeal Richelieu e da sua obra póstuma, o Pacto de Vestefália.

Como diria Richard M. Weaver, "as ideias têm consequências"».

José Antonio Ullate Fabo («O Segredo da Maçonaria Desvendado»).


«O Grande Oriente de França esteve sempre nas mãos dos três "I": Ignorantes, Imbecis e Intrigantes».

Albert Pike (Carta ao Visconde de Jonquière).







«Pelo seu ambiente familiar, pelos amigos, pela época e a terra em que viveu, se alguma fé religiosa poderia ele ter abraçado, ela seria, sem dúvida alguma, a maçonaria. E poderíamos acrescentar a essas circunstâncias a de existirem afinidades esotéricas entre o pensamento de Bruno e os fundamentos e aspirações da maçonaria. Apesar de tudo isso, o pensador portuense nunca esteve filiado em qualquer loja. É ele quem o diz: "filho de maçon, com altos graus na Ordem, eu nunca pertenci à Maçonaria. Respeito a sua tradição histórica; e sei que os serviços que ela prestou à causa da liberdade na Europa e na América a tornam digna de veneração a todos os espíritos progressivos [...]. Todavia - quero ter a coragem de dizê-lo, consoante ainda mui rapaz me atrevi a dizê-lo a meu próprio pai - em regra, e como princípio geral superior -, não simpatizo com associações secretas; e não simpatizo com associações secretas porque é força da sua essência que elas façam prevalecer sobre a ideia de justiça para todos a ideia da protecção para alguns; e assim, sacrifiquem o direito do profano à iniquidade do iniciado, com cuja causa o laço da  misteriosa solidariedade se aperta" ["A Voz Pública" de 26 de Janeiro de 1902].

(...) quem "esotericamente definiu o ternário sagrado" foi o abade de Saint-Martin ["O Brasil Mental"], e Saint-Martin teria bebido em fontes misteriosas - o ensino de Martínez de Pascualis, judeu português ou espanhol, autor do tratado da Reintegração dos Seres, que "instituíra um rito cabalístico, o qual introduzira nalgumas lojas maçónicas de França, em Marselha, Tolosa e Bordéus"  ["O Encoberto"]. Quer isto dizer, por conseguinte, que o "ternário sagrado" teria origens simultaneamente mística e judaica. O messianismo judaico teria sido aqui o veículo dessa revelação, obra, em última análise, do verbo divino...».

Joel Serrão («Sampaio Bruno»).


«O abandono da Maçonaria vulgar correspondeu à descoberta do "martinismo", em cujos "mistérios", teóricos e práticos Joseph de Maistre foi iniciado pelo citado Willermoz, discípulo, como Saint-Martin e, por morte deste, seu continuador da chefia da Ordem.

(...) [No] capítulo sobre a Tradição Portuguesa, diz-nos Álvaro Ribeiro ter sido "Sampaio Bruno o pensador que mais inteligentemente no-la revelou". Com efeito, em O Encoberto, depois de ter estudado a influência de Saint-Martin, na Revolução Francesa, ao expor a doutrina esotérica pela tríade de Liberdade, Igualdade, Fraternidade, escreve assim:

"O ternário sagrado! Saint-Martin, seu inventor e promotor!" 

Mas, sem embargo da sua peculiar originalidade, cumpre não esquecer que Saint-Martin começara por ser discípulo d'outrem, d'um desses homens extraordinários que grava a sua personalidade na sua época; e esse homem era português, "misterioso português", consoante (realista, romanescamente) se compraz em lhe chamar o biógrafo crítico do philosophe inconnu, o sr. Matter. Português-judeu, cristão-novo, "de raça oriental e de origem insólita, mas tornado cristão à laia como assim se tornavam os gnósticos dos primeiros séculos". Quem?




"Quanto mais se estuda Saint-Martin, com o tratado de seu mestre, Da Reintegração, à vista, tanto mais se sente, em toda a sua profundidade, a influência do teurgista de Portugal sobre o mais célebre dos seus discípulos de Bordéus".

O tratado de Pascoal Martins, Da Reintegração, é, de seu título completo, Tratado da Reintegração de Todos os Seres nos Seus Princípios Primitivos.

(...) Não se deduz de tudo isto que haja um exclusivo de identidade entre a tradição portuguesa e o martinismo. Este terá sido durante o século XVIII e para a Europa Central a expressão oportuna dessa tradição. Mas a relação pode constituir o fio que nos conduza à cabala pelo judaísmo, à gnose pelo cristianismo, à sabedoria sufi pelo islamismo. "Três tradições concorrem na formação do pensamento português: a judaica, a cristã e a islâmica". A filosofia portuguesa terá por fim realizar a sua síntese católica.

(...) "Heterodoxia" e "ortodoxia" são relativos entre si. Se houvesse incompatibilidade da doutrina, do dogma e dos sacramentos da Igreja de Christo com a kabbalah, como teria sido possível a obra catolicíssima de Joseph de Maistre, guia oculto da Ordem maçónica martinista? Joseph de Maistre não se afasta um yod da ortodoxia e, no entanto, outra coisa está por debaixo. Não será uma relação análoga que o próprio Filho do Homem estabelece entre o Novo e o Velho Testamentos?».

António Telmo («Filosofia e Kabbalah»).





Os adversários do Martinismo e as suas objecções

Apesar dos fracos recursos materiais, os progressos da Ordem Martinista foram rápidos e consideráveis. Mas o seu sucesso originou três tipos de adversários: 1.º os materialistas ateus, representantes do Grande Oriente de França; 2.º os clérigos; 3.º as sociedades e indivíduos que combatem Cristo e procuram diminuir a sua obra, aberta ou ocultamente.


Os Clérigos

Os ataques dos clérigos são mais desleais e mais directos. (...) Apesar de todas as afirmações e evidências contrárias, é-lhes impossível admitir que os ocultistas (e nós em particular) não consagrem ao diabo algum culto secreto. Por conseguinte, os Martinistas devem ocultar o seu objecto; todos aqueles que ousam defender Cristo mantendo o clero no seu devido lugar, que vende Cristo todos os dias ao mercador do templo, escapam, segundo esses bons clérigos, às mais terríveis evocações de Satã e dos mais ilustres demónios.

É muito difícil convencer escritores clericais que o clero e Deus possam agir independentemente um do outro; que podemos perfeitamente admitir a bondade de Deus e a cobiça material do clero (que age dizendo ser em seu nome), sem as confundir um instante que seja. Segundo eles, atacar um inquisidor é atacar Deus.






Os Martinistas querem ser cristãos, livres de toda a dependência clerical; as acusações de satanismo farão balançar-lhes os ombros, pedindo perdão ao Céu para aqueles que os caluniam injustamente.

A esse respeito, ouviremos novamente a grande farsa de Léo Taxil sobre o tema dos ocultistas diabólicos? Veremos sob o seu verdadeiro aspecto essa bizarra sociedade secreta do Labarum, cujos dignitários são nossos conhecidos? Ouviremos como Taxil deve estar disposto a organizar uma nova mistificação baseada na Maçonaria Feminina? Não seria melhor tolerar o insulto, a calúnia, o descrédito, sem responder de outra maneira a não ser pelo perdão e pelo esquecimento?

Cada novo ataque, sendo injusto e vil jamais fica sem recompensa e vale ao Martinismo um novo sucesso. Eis a verdadeira manipulação das leis ocultas e o verdadeiro uso das faculdades espirituais do homem. Quando acusamos os escritores clericais de enganar o público ingénuo, que aceita as suas afrontas, e de empregar processos polémicos, indignos do autor de respeito, poder-se-ia acreditar que existe da nossa parte certa animosidade e tendência para o exagero. Para evitar essa dúvida, iremos submeter alguns desses processos ao próprio leitor, para o seu julgamento. Escolheremos a última deslealdade cometida. O autor ficará certamente muito feliz por ser apresentado ao público. Chama-se Antonini, professor do Instituto Católico de Paris, e o seu livro intitula-se A Doutrina do Mal.

Nessa obra, fala-se muito de Satã, de Lúcifer, do Diabo e do seu culto secreto. Entretanto, falta a esse autor a veia do excelente Taxil; ele é, ademais insonso e sem imaginação. Não temos mais esse bom Bitru, de quem Taxil extraiu parte do apêndice para oferecê-lo aos Jesuítas, que o aceitaram com reconhecimento. Fica bem entendido que os ocultistas (benzei-vos), e em particular o vosso servidor, passam uma boa parte do seu tempo na companhia do Diabo, fazendo anagramas, para os quais o Sr. Antonini tem imensa dificuldade em encontrar a chave. (...)


Os adversários de Cristo

Os Clérigos acusam, pois, os Martinistas de evocar Satã ou algum outro demónio nas suas reuniões secretas, que jamais existiram a não ser na sua imaginação. Outras sociedades que pretendem estudar o Ocultismo e «desenvolver as faculdades latentes no homem», sem crer, de resto, na existência do diabo, hipocritamente fazem circular cartas acusando os Martinistas de praticar "Magia Negra".






Ora, a prática da Magia Negra consiste em fazer o mal consciente e covardemente; nada é mais distanciado do objectivo e dos processos essencialmente cristãos do Martinismo de todos os tempos. Os Martinistas não praticam magia, nem a branca, e muito menos a negra. Estudam, oram e perdoam as injúrias da melhor maneira possível.

Os Rosa-Cruzes sempre combateram os feiticeiros, aproveitadores da ignorância e do cepticismo popular, para exercerem os seus poderes sobre vítimas inocentes, prevenindo abertamente todos aqueles a quem tinham dado o baptismo da luz. Esse trabalho foi sempre oculto, realizado através da prece.

Os Martinistas, como os Rosa-Cruzes, sempre defenderam a verdade, agindo sem subterfúgios, publicando os seus actos e as suas decisões. Pelo contrário, aqueles que difamam na sombra, ocultando-se quando se vêem descobertos, escrevendo circulares hipócritas e caluniando sorrateiramente os Martinistas, temendo a sua lealdade, não merecem senão piedade e o perdão. Vendo as faculdades latentes manifestadas através desses processos, somos levados a mostrar a esses homens que a Magia Nagra começa pela difamação anónima, tão geradora de larvas no plano mental quanto a baixa feitiçaria do camponês iletrado no plano astral.


Martinismo e Franco-Maçonaria

Os escritores que se ocuparam do Martinismo, sobre tudo os clérigos, confundiram muitas vezes com uma má fé voluntária o Martinismo com a Franco-Maçonaria. O Martinismo, não exigindo nenhum juramento de obediência passiva dos seus membros e não lhes impondo nenhum dogma (muito menos o dogma materialista ou clerical) deixa-os inteiramente livres nas suas acções; ele é independente da Franco-Maçonaria como ordem, tal como é praticada actualmente em França.

Como toda a ordem de iluminados, o Martinismo dá acesso, nalgumas reuniões, a Franco-Maçons instruídos (sobretudo a membros do Rito Escocês) quando possuem pelo menos o grau 18 (Rosa-Cruz); mas essas relações limitam-se a uma simples questão de delicadeza. Os Martinistas contemporâneos não agem de maneira diversa nas mesmas circunstâncias, como agiram os seus antepassados dos Conventos de Gaules e de Wilhemsbad.






Portanto o nome cabalístico de Cristo e o reconhecimento do Verbo Criador na mente, em todos os seus actos, o Martinismo só pode manter relações com potências maçónicas que trabalhem segundo a constituição dos Rosa-Cruzes Iluminados, que fundaram a Franco-Maçonaria. Todo o rito que subtrai Deus das suas pranchas e transforma, sem referências tradicionais, o simbolismo que lhe confiaram, não existe mais para os Martinistas, assim como também para todos os iniciados de um centro real e sério.

Eis porque o Grande Oriente de França, que está distanciado da verdadeira e universal Franco-Maçonaria, não deve ser confundido com o Martinismo, como os clérigos procuram fazer.


O Grande Oriente e as suas Origens

O Grande Oriente de França nasceu de uma insurreição de alguns dos seus membros contra as constituições e a hierarquia tradicionais da Franco-Maçonaria. Algumas linhas de explicação são aqui necessárias.

A Franco-Maçonaria foi fundada na Inglaterra por homens que faziam parte de uma das potentes fraternidades secretas do Ocidente: a Confraria dos Rosa-Cruzes. Esses homens, sobretudo Ashmole, tiveram a ideia de criar um centro de propaganda onde pudessem formar, sem que se soubesse abertamente, membros instruídos para a Rosa-Cruz. Assim, as primeiras lojas maçónicas foram mistas e compostas por obreiros reais e por obreiros da inteligência (livres maçons). Os primeiros trabalhos de Ashmole datam de 1646; mas  foi somente em 1717 que a Grande Loja de Londres foi constituída. Foi essa Loja quem forneceu as cartas regulares às Lojas francesas de Dunkerque (1721), Paris (1725), Bordeaux (1732), etc.

As lojas de Paris multiplicaram-se rapidamente, nomearam um Grão-Mestre para França, o Duque D'Antin (1738 a 1743), sob a influência do qual foi idealizada e publicada a Enciclopédia, como veremos adiante. Eis a origem real da revolução realizada inicialmente no plano intelectual, passando após ao plano formal.

Em 1743, o Conde de Clermont sucedeu ao Duque D'Antin como Grão-Mestre e tomou a direcção da Grande Loja Inglesa da França. Esse Conde de Clermont, muito negligente para se ocupar seriamente dessa sociedade, nomeou como substituto um mestre de dança, Lacorne, indivíduo intrigante e de costumes deploráveis. Esse Lacorne fez entrar nas lojas uma grande quantidade de indivíduos da sua espécie, o que originou a cisão entre a loja constituída por Lacorne (Grande Loja Lacorne) e os antigos membros que formavam a Grande Loja de França (1756).

Após uma tentativa de reconciliação entre as duas facções rivais (1758), o escândalo tornou-se tão grande que a polícia interveio e fechou as lojas de Paris.







Lacorne e os seus adeptos aproveitando-se desse acontecimento, obtiveram o apoio do Duque de Luxemburgo (15 de Junho de 1761) (9). Fortes por esse apoio, conseguiram entrar na Grande Loja de onde tinham sido banidos. Fizeram nomear uma comissão de controle, cujos membros foram previamente comprados. Ao mesmo tempo, os irmãos do Rito Templário (Conselho dos Imperadores) associaram-se em segredo às intrigas dos comissários e, em 24 de Dezembro de 1772, um verdadeiro golpe de estado maçónico foi dado pela supressão da inamovibilidade dos presidentes das Lojas e pelo estabelecimento do regime representativo. Revoltados vitoriosos fundaram, desse modo, o Grande Oriente da França. Um maçon contemporâneo pôde escrever: «Não é demais dizer que a revolução maçónica de 1773 foi a precursora e o estopim da Revolução de 1789» (10).

O que é necessário enfatizar é a acção secreta dos irmãos do Rito Templário. Foram eles os verdadeiros fomentadores das revoluções; os demais não passaram de dóceis agentes. Assim, o leitor poderá compreender a nossa afirmação: O Grande Oriente nasceu de uma insurreição. Retornemos sobre dois pontos: a) A Enciclopédia (Revolução Intelectual); b) A História do Grande Oriente de 1773 a 1789.


A Enciclopédia

Dissemos que os factos sobre os quais os historiadores se baseiam foram, na maioria dos casos, consequência de acções ocultas. Ora, pensemos que a revolução não seria possível se esforços consideráveis não tivessem sido feitos precedentemente para orientar num novo caminho a intelectualidade de França. É agindo sobre os espíritos cultivados, criadores da opinião, que se prepara a revolução social. Iremos encontrar, agora, uma prova decisiva sobre esse facto.

Em 25 de Junho de 1740, o Duque D'Antin, Grão-Mestre da Franco-Maçonaria de França, pronunciou um importante discurso onde veio a anunciar o grande projecto em curso, como demonstra a seguinte citação:

«Todos os Grão-Mestres da Alemanha, Inglaterra, Itália e de outros países, exortam todos os sábios e artesãos da Fraternidade a se unirem para fornecer os materiais de um dicionário universal das artes liberais e das ciências úteis, excepto teologia e política. Já se começou a obra em Londres; e pela reunião dos nossos irmãos, poder-se-á conduzi-la à perfeição em poucos anos».

Amiable e Colfavru, nos seus estudos sobre a Franco-Maçonaria no séc. XVIII, compreenderam perfeitamente a importância desse projecto, pois, após terem falado da Enciclopédia Inglesa de Chambers (Londres 1728), acrescentaram:

«Bem mais prodigiosa foi a obra publicada em França, contendo 28 volumes in-fólio, sendo 17 com texto de 11 com gravuras, aos quais foram acrescentados, em seguida, cinco volumes complementares, obra cujo autor principal foi Diderot, secundado por uma plêiade de escritores de elite. Mas não lhe bastava ter colaboradores para a boa execução da sua obra; foi-lhe necessário potentes protectores. Como poderia ter sido protegido sem a Franco-Maçonaria?».

«Além disso, as datas aqui são demonstrativas: o Duque D'Antin pronunciou o seu discurso em 1740; sabe-se que, desde 1741 Diderot preparava a sua grande empresa. O privilégio indispensável à publicação foi obtido em 1745. O primeiro volume da Enciclopédia apareceu em 1751».





Assim a revolução já se manifestava em duas etapas: a) Revolução Intelectual, originada da Enciclopédia, com apoio da Franco-Maçonaria Francesa, sob a alta impulsão do Duque D'Antin (1740); b) Revolução Oculta nas lojas, promovida em grande parte pelos membros do Rito Templário executado por um grupo de Franco-Maçons expulsos, depois amnistiados pelo Duque de Luxemburgo (1773) e pela presidência do Duque de Chartres.

A revolução patente na sociedade, isto é, a aplicação à sociedade das constituições das lojas não tardou. Retomemos a história do Grande Oriente no ponto onde a deixámos. Uma vez constituída, a nova potência maçónica apelou a toda as lojas para ratificar a nomeação do Duque de Chartres como Grão-Mestre.

Ao mesmo tempo (1774), o Grande Oriente instalava-se no antigo noviciado dos Jesuítas, à rua do Pot-de-Fer, procedendo à expulsão das ovelhas sarnentas. Cento e quatro lojas aderiram ao novo estado de coisas; mais tarde, 195 (1776); finalmente, em 1789 havia 629 lojas em actividade.

Mas um facto, em nossa opinião considerável, produziu-se em 1789. Os capítulos do Rito Templário tornaram-se oficialmente aliados ao Grande Oriente, chegando a fundir-se com ele. Vimos como os Irmãos desse rito ajudaram à revolta de onde nasceu o Grande Oriente. (...)


O Rito Templário e o Escocismo

A Franco-Maçonaria, como vimos, foi estabelecida na Inglaterra por membros da Fraternidade dos Rosa-Cruzes, desejosos de constituir um centro de propaganda e recrutamento para a sua ordem. A Franco-Maçonaria inglesa possuía somente três graus: Aprendiz, Companheiro e Mestre. Como consequência, a Franco-Maçonaria Francesa e o Grande Oriente, o seu ramo principal, eram formados por membros possuidores apenas dos três primeiros graus. Mas, logo homens determinados desejaram ter recebido uma iniciação superior, de acordo com os mistérios da Fraternidade dos Rosa-Cruzes. Os ritos criaram-se concedendo graus superiores ao grau de Mestre, chamados altos graus.

O espírito dos ritos dos graus superiores, assim criados, era naturalmente diferente daquele da maçonaria propriamente dita. Foi assim que Ramsay instituiu o Sistema Escocês, cuja base era política e cujo ensinamento tendia a fazer de cada Irmão um vingador da Ordem do Templo (11). Eis porque demos o nome de Rito Templário a essa criação de Ramsay.

As reuniões dos irmãos detentores de altos graus passaram a denominar-se não mais lojas, mas capítulos. Os principais capítulos estabelecidos em França foram:

1.º - O Capítulo de Clermont (Paris 1752), de onde saiu o Barão de Hund, criador da alta maçonaria alemã ou iluminismo alemão;

2.º - Após o Capítulo de Clermont, nasceu o Conselho dos Imperadores do Oriente e do Ocidente (Paris, 1758), do qual certos membros, separando-se dos seus Irmãos, formaram;

3.º - Os Cavaleiros do Oriente (Paris, 1763), cada uma dessas potências expedia cartas de lojas e os principais Irmãos (Tshoudy, Boileau, etc.) criaram ritos especiais no interior da França.

Em 1782, o Conselho dos Imperadores e os Cavaleiros do Oriente uniram-se para formar o Grande Capítulo Geral da França, cujos principais membros tinham contribuído para a constituição do Grande Oriente pelas suas intrigas. Assim, também vemos em 1786, esses Irmãos realizarem a fusão do Grande Capítulo Geral da França. Qual foi o resultado dessa fusão? Os membros do Grande Capítulo, bem disciplinados, perseguindo um objectivo preciso e sendo inteligentes, puderam dispor do número fornecido pelo Grande Oriente.





Compreende-se agora a génese maçónica da Revolução Francesa. A maior parte dos historiadores confunde esses membros do Rito Templário, verdadeiros inspiradores da revolução (12), com os Martinistas (in ob. cit., pp. 44-48;54-58).


Notas:

(9) Veja Ragon. Ortodoxia Maçónica, p. 56.

(10) Amiable e Colfavru, Op. Cit.

(11) Em 19 de Março de 1314, Jacques de Molay, Grão-Mestre da Ordem do Templo, foi queimado numa pequena Ilha do Sena, em Paris, por ordem do rei de França, Philippe, o Belo, com o consentimento do Papa Clemente V. A Ordem do Templo foi exteriormente destruída e os seus bens confiscados pelo rei de França. A Ordem, no entanto, permaneceu oculta, sendo continuada na Escócia sob a direcção do Cavaleiro D'Aumout. Este, segundo S. de Guaita, teria constituído as bases da Franco-Maçonaria e continuado a iniciação oculta, que mais tarde tomou o nome de Fraternidade Rosa-Cruz (N.T.).

(12) Alguns autores pretendem que o internamento de Luís XVI, no Templo, foi decidido pelos Irmãos do Rito Templário.