quinta-feira, 26 de março de 2015

O Caso de Timor (ii)

Escrito por Oliveira Salazar








«São (...) mesmo historicamente relevantes o esforço de Salazar para criar um centro político e a sua recusa das práticas tumultuosas do fascismo. Achava Mussolini um cesarista pagão e um oportunista da acção, e quis impor em Portugal um sistema original, afastando os riscos do totalitarismo. Via no III Reich um tampão ao comunismo, mas reprimiu os seguidores de Hitler, como o Nacional-Sindicalismo, de Francisco Rolão Preto. Negociou o poder com lojas anticomunistas do Grande Oriente Lusitano, a Maçonaria de obediência francesa, que tinha sido a espinha dorsal da I República. Óscar Fragoso Carmona, Presidente da República, José Caeiro da Matta, ministro dos Negócios Estrangeiros, José Alberto dos Reis e Albino dos Reis Júnior, presidentes da Assembleia Nacional, e Fernando Bissaia Barreto, íntimo de Salazar, foram alguns "pedreiros-livres" em destaque no Estado Novo.

(...) Salazar combatia o ascenso dos Estados Unidos como a emergente superpotência do Ocidente, temia as ambições de supremacia mundial implícitas no elefantismo económico e militar e abominava o que achava ser, com razão, a ligeireza arrogante da cosmovisão americana. Em Outubro de 1943, George Kennan, observou a Roosevelt e a Hull que Salazar receava tanto aliar-se aos Estados Unidos como aliar-se à Rússia. Em Lisboa, o maior activismo antiamericano era originário dos pró-fascistas em lugares de destaque no aparelho de produção cultural, sobretudo o Secretariado da Propaganda Nacional, e nas organizações paramilitares do regime, a Legião Portuguesa e a Mocidade Portuguesa.

O antiamericanismo era também actuante no Integralismo Lusitano, um grupo doutrinal de direita, a que Marcello Caetano e Pedro Teotónio Pereira, embaixador junto de Franco, pertenceram na sua juventude. Muitos membros do Integralismo Lusitano tinham sido, antes do início da guerra, "entusiasticamente favoráveis à Itália, à Alemanha e à Espanha de Franco". Os defensores dos conceitos de "hispanidade" e do "bloco latino" eram outros ardentes antiamericanos. Guiavam-se eles pela noção de que, em pleno declínio do Eixo, importava privilegiar as relações esparsas que implicavam um conflito com a influência anglo-saxónica no Hemisfério Ocidental. O OSS dava como exemplos mais importantes da sensibilidade antiamericana, pró-ibérica e pró-latina os jornalistas Manuel Múrias, director do Diário da Manhã, e Augusto de Castro, director do Diário de Notícias. Augusto de Castro foi nomeado representante de Portugal junto do governo provisório francês.





















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O posto do OSS em Lisboa dedicava uma atenção especial a António Ferro, escritor futurista e jornalista, que se distinguira por entrevistar Mussolini e outros ditadores europeus. Tornou-se depois o principal difusor da imagem pública de Salazar em Portugal e no estrangeiro como um político providencial e assumiu a direcção do Secretariado da Propaganda Nacional. Os americanos sabiam que António Ferro tinha amizades íntimas com espanhóis da Falange e dedicava bastante energia à concepção do bloco ibérico. A equipa do OSS descrevia-o, em Março de 1945, como "o indivíduo mais profundamente envolvido nas actividades do bloco latino, e um dos mais entusiásticos e enérgicos protagonistas do sistema político português". O que se impunha fazer, segundo esses doutrinadores do regime e líderes de opinião, como Manuel Múrias, Augusto de Castro e António Ferro, era um combate sistemático à penetração cultural americana em Portugal.

No auge da campanha antiamericana em Portugal, o Diário de Notícias, onde Augusto de Castro era o editorialista acerado de que Salazar se servia para atacar Roosevelt, insistia que as universidades dos Estados Unidos estavam a treinar intensamente quadros para tomarem conta das principais instituições culturais e políticas da Europa. Ao longo do Verão e do Outono de 1943, quando Salazar se mostrou hostil aos pedidos de Roosevelt para a utilização dos Açores, registou-se uma "intensa agitação antiamericana em Lisboa e no Porto". As ideias do "bloco latino" ganharam mais força em Portugal ao longo de 1944, devido às actividades lisboetas de Plínio Salgado, chefe exilado do Partido Integralista do Brasil, que deu conferências a atacar as ideias liberais do Século XIX como heresias e a defender a unidade dos povos lusófonos contra a "perigosa agressão cultural americana". Fez também um manifesto à população dos Açores, apelando à unidade cristã dos povos de língua portuguesa, e em que estava subjacente o receio dos sentimentos pró-americanos nas ilhas.

O volume dos interesses americanos em Portugal não justificou até 1945 a execução por Washington de operações com a mesma dimensão das que eram levadas a cabo pela Alemanha e pela Inglaterra. Por outro lado, ao efeito da propaganda antiamericana das nações do Eixo em Portugal juntava-se o desconhecimento da opinião pública sobre a organização social dos Estados Unidos. As facetas espectaculares da vida americana - do materialismo da Wall Street à "imoralidade" sexual dos filmes de Hollywood - despertavam em Portugal mais repulsa do que fascínio. O OSS notou em 1942: "Em Portugal há uma ignorância quase completa acerca da América e dos americanos. A maioria das pessoas só conhece os americanos pelo que vê nos filmes e pelas notícias sensacionalistas dos jornais sobre milionários, gangsters, escândalos pessoais das estrelas de cinema, etc. Nem esses filmes, chocantes para a moral conservadora dos portugueses, nem os contactos com empresas americanas, têm favorecido a imagem dos Estados Unidos". Quer o antiamericanismo intelectual combatente quer o nascido da ignorância não foram debelados durante a guerra e a imprensa portuguesa traduziu sistematicamente, ao longo de 1941-1945, o receio das ambições imperiais dos Estados Unidos.




James Cagney






Edward G. Robinson e Humphrey Bogart



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Edgar Hoover











Marilyn Monroe












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Audrey Hepburn



Ava Gardner. Ver aqui



Elizabeth Taylor



Grace Kelly, Ver aqui



Sophia Loren




Leslie CaronVer aqui



Daddy Long Legs (1955) 



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An American in Paris (1951)







Gene Kelly


Antes mesmo da participação americana na guerra, já a propaganda nazi em Portugal acusava os Estados Unidos de quererem ocupar os Açores. As declarações públicas de Roosevelt sobre os Açores e Cabo Verde (Maio de 1941) e a ocupação aliada de Timor (Dezembro de 1941) exacerbaram a desconfiança e o receio de que os Estados Unidos se preparassem para subtrair aquelas possessões a Portugal. Quando em Outubro de 1943, Salazar foi obrigado a ceder os Açores à Inglaterra, e a imprensa americana pôs a hipótese de Portugal ter de autorizar também o seu uso pelos Estados Unidos, levantou-se uma onda de exaltação cujo objectivo era "tornar muito difícil para Portugal qualquer concessão aos americanos nos Açores". Até ao anúncio do acordo luso-britânico, a propaganda nazi em Portugal considerava a ameaça americana tão grande como a do "bolchevismo". O acordo de 17 de Agosto de 1943 foi depois descrito pelos alemães como um grande sucesso americano. Era, segundo os nazis, uma forma de os Estados Unidos virem a apoderar-se dos Açores, enquanto herdeiros não só de algumas possessões coloniais portuguesas como também de todo o império britânico, do qual Portugal dependia. Salazar comprava totalmente esta ideia.

A propósito da Conferência Aérea de Chicago, em Novembro de 1944, houve uma campanha de imprensa contra os ambiciosos planos, na área da aviação internacional, do "colosso americano". O bombardeamento acidental de Macau por um avião americano, em 15 de Janeiro de 1945, pelo qual Roosevelt mandou pedir desculpa a Salazar, provocou na imprensa, na rádio e na Assembleia Nacional, uma campanha de "recriminações quase histéricas". Em síntese, as duas grandes linhas de propaganda e da reacção antiamericanas em Portugal eram: 1) O imperialismo dos Estados Unidos e as suas ameaças aos territórios ultramarinos de Portugal; 2) O sistema político americano, olhado com intensa desconfiança, sobretudo o Governo representativo e aquilo a que a imprensa portuguesa depreciativamente chamava, referindo-se ao presidente Woodrow Wilson, "a democracia de Wilson". A própria presença dos americanos enquanto usufrutários dos Açores, a partir do acordo bilateral de 28 de Novembro de 1944, foi durante algum tempo mantida em segredo por imposição governamental. O medo de uma retaliação militar de Hitler era já então muito menor, no espírito de Salazar, do que o seu receio do expansionismo absorvente de Roosevelt.

A preocupação de Salazar e dos seus discípulos intelectuais tinha, como adiante se verá, um relativo fundamento. Nela mesclavam-se o instinto de um líder do Estado Novo acossado e desprotegido, os planos secretos de Washington e as campanhas de opinião impulsionadas pelos alemães e italianos. Até Novembro de 1944, já quando o declínio militar da Alemanha e do Japão era flagrante, Salazar resistiu tanto quanto lhe foi possível a qualquer compromisso directo com os Estados Unidos. Fez isso formalmente em defesa da neutralidade de Portugal, refugiou-se nos limites político-jurídicos da aliança com a Inglaterra, e explorou as contradições entre Londres e Washington; isto é, entre a superpotência crepuscular e a superpotência emergente. Mas os motivos fundos dessa indisponibilidade foram a sua preconcepção antiamericana e o receio de que os Estados Unidos anexassem os Açores como um troféu de guerra».

José Freire Antunes («Roosevelt, Churchill e Salazar. A Luta pelos Açores - 1941-1945»).






«Nos escaninhos superiores da política anglo-americana, no entanto, cruzam-se novas ideias quanto aos Açores. Roosevelt, com efeito, sente-se obcecado pelos Açores, e é encorajado pelo seu Estado-Maior. Fora sustado o seu golpe-de-força pela negociação luso-britânica, que tornara politicamente impossível aos Estados Unidos precipitarem-se sobre o arquipélago, e pelo acordo entre Londres e Lisboa, que privara Washington de qualquer pretexto ou fundamento. Mas o presidente americano exprime a Churchill o desejo de enviar aos Açores uma força naval dos Estados Unidos oito ou dez dias após a entrada em vigor do acordo anglo-português; Roosevelt sugere que de nada seja o governo-português avisado; as forças navais americanas, e aéreas, entram simplesmente nos Açores; e aos portugueses seria depois dito que ingleses e americanos "estavam imensamente penalizados" pelo que acontecera mas que, perante o facto consumado, "muito pouco poderiam os portugueses fazer". Churchill concorda, e entende que se deve reafirmar a disposição de declarar guerra à Espanha, se esta atacar Portugal em razão do acordo dos Açores; e salienta que o compromisso com os portugueses não especifica as forças a serem usadas para defender Portugal. Ainda em Setembro, o Estado-Maior americano apresenta ao Estado-Maior britânico "um plano para uso dos Açores". Segundo esse plano, os Estados Unidos pretendem os Açores como base de patrulhas e de luta anti-submarina, de protecção de comboios, e de apoio para transporte de tropas e abastecimentos destinados ao Reino Unido, Mediterrâneo, Índia e China. Para este efeito, os chefes militares americanos querem uma base naval em Ponta Delgada e outra na Horta; uma base militar nas Lajes, na Terceira; e uma base militar nas Flores. E propõem-se enviar para os Açores um efectivo de cerca de 10 000 homens. No pensamento do Foreign Office, este plano equivale à ocupação americana do arquipélago.

(...) Do mesmo passo, o Estado-Maior britânico responde ao ambicioso plano dos chefes militares americanos. Dizem aqueles: "atendendo à história das negociações com os portugueses e sendo extremamente indesejável envolver Portugal na guerra nas condições presentes, confiamos em que o Estado-Maior americano não espere obter concordância imediata ao seu programa que excede largamente o conjunto das facilidades que solicitámos aos portugueses". Sustentam a necessidade de uma expansão gradual, para evitar uma reacção alemã e não apavorar os portugueses. Parece, afirmam os ingleses, que Washington não se dá conta das dificuldades do arquipélago; devem as facilidades ser progressivamente ampliadas até que, avaliadas as circunstâncias, se possa apresentar o assunto a Salazar; e não pode esquecer-se que tudo quanto afecte Portugal se repercutirá na Península, no Mediterrâneo e na África do Norte. Ao mesmo tempo, para travar Churchill, Eden escreve a este último: "Temos diante de nós um ambicioso plano americano, elaborado em completa ignorância das negociações de Lisboa e dos termos do acordo final"; "até novos comentários dos americanos, não devemos praticar qualquer diligência junto dos portugueses em nome daqueles"; e de outro modo, se se precipitar tudo, o caso "teria um péssimo efeito sobre o Dr. Salazar e, vista a sua profunda desconfiança dos americanos, poderia alterar a presente atitude portuguesa de cooperação para uma atitude, que, na melhor das hipóteses, seria de relutante consentimento"; "é fundamental que os americanos compreendam que o Portugal moderno, que para todos os efeitos práticos é o Dr. Salazar, não é uma segunda Guatemala, de que os americanos podem obter tudo o que desejam simplesmente com ameaças e suborno"; além disso, os ingleses haviam assegurado que os americanos dariam garantias de respeito pela soberania portuguesa; o peso das forças portuguesas está nos Açores, e resistiria a um acto de força; e o "Dr. Salazar não é homem para concordar no que teria se ser considerado a dissolução do Império Português"».

Franco Nogueira («Salazar. III, As grandes crises - 1936-1945»).



FDR e Winston Churchill


«Roosevelt, ao longo de 1941-1942, esteve condicionado pelo apriorismo antiamericano de Salazar e pelo instinto tutelar com que Londres mediava a difícil aproximação Washington-Lisboa. Tentou agregar o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, ao seu esforço para ultrapassar a indisponibilidade de Salazar e aceitou ficar na sombra de Churchill. Do seu lado, Salazar constatou com um profundo desagrado o fortalecimento gradual dos Estados Unidos em relação à Inglaterra, e procurou estimular os brios imperiais de Londres para sustar os americanos numa posição de distância. Um dos seus trunfos negociais residia no terminal aéreo em Lisboa da Pan American Airways, que em 1939 iniciara voos regulares com paragem nos Açores. A Pan American estava sujeita a represálias portuguesas, cujos reflexos não podiam ser descurados por Roosevelt. Lisboa era mais do que nunca vital para as comunicações aéreas e navais entre a América e a Europa.

(...) Augusto de Castro, em sintonia com Salazar, tinha atacado Roosevelt no Diário de Notícias a propósito do seu discurso de 27 de Maio. Atribui-lhe desrespeito pela soberania dos outros Estados e inferiu que, a partir dele, os Estados Unidos poderiam ser encarados como "um novo imperialismo". Salazar usou os mesmos argumentos em algumas da suas comunicações diplomáticas. Considerava os Estados Unidos um novo e impetuoso imperialismo que enfraqueceria a influência europeia nas Américas e em África: "Vemos com a maior preocupação a situação em que a guerra vai colocando o Império Britânico em face da América do Norte". Espantava-se com a permissividade inglesa e impunha-se a si próprio o dever de defender, até aos limites do possível, a "cavalgada" americana em direcção à Europa. Os Açores eram para ele a fronteira que importava bloquear.

(...) Ronald Campbell, o embaixador inglês, notara em 24 de Julho a Anthony Eden: "[Salazar] vê os americanos como um povo bárbaro iluminado não por Deus mas pela luz eléctrica. Perguntou-me se não tínhamos medo que o mundo do após-guerra seja dominado pelos Estados Unidos, e pelo comunismo. Esta é, disse, uma perspectiva horrível para a Europa". A extrema desconfiança bloqueava qualquer hipótese de concertação triangular. Alguns ministros e generais de Churchill partilhavam os profundos receios e a visão catastrófica de Salazar.





















(...) Quanto às garantias a dar a Portugal, porém, Roosevelt exprimia uma opinião heterodoxa. Bem reveladora também da sua dessintonia em relação à mentalidade e à política de Salazar: "Veio-me ao pensamento que, caso se levante alguma questão sobre Timor, a Austrália poderá estar interessada em comprar o território, no interesse da defesa do sudoeste do Pacífico. Penso que Timor nunca foi um investimento lucrativo para o Governo português. Por outro lado, não há, repito, não há qualquer razão para que tais questões não devam ser adiadas até à guerra acabar. O mesmo se aplica a Macau". Na verdade, uma tal especulação sobre a disponibilidade de Lisboa para vender parcelas do sacrossanto império só poderia atribuir-se à fraca compreensão dos decisores políticos de Washington sobre Portugal.

Uma dessas razões era a natural falta de sensibilidade de Roosevelt, um líder anticolonislista de uma nação sem ambições de expansão territorial, perante a ideologia imperial de Salazar e a inductilidade da elite político-militar portuguesa na defesa do espaço transcontinental. O atraso económico-social do mundo colonial português suscitava mesmo drásticas considerações e em 1942, no Departamento de Estado, pensava-se que os portugueses eram "moralmente debochados" na administração do seu império, e que deveriam ser "desapossados das suas colónias, embora com uma adequada compensação monetária". Esta linha de pensamento e a fluidez da guerra no Pacífico justificavam a sugestão de Roosevelt a Churchill, seguramente ignorada de Salazar, e fundamentavam os receios deste quanto aos Estados Unidos.

Salazar respondeu afirmativamente, em 23 de Junho, ao pedido inglês. Registava a promessa formal da retirada dos Açores, logo no fim das hostilidades, das tropas britânicas, agradecia a reiteração feita das garantias relativas à integridade territorial sob a soberania portuguesa de todas as colónias de Portugal, garantias a que se juntavam a União da África do Sul e a Austrália, quanto às possessões no Oriente. Pedia conversações detalhadas, e o estudo bilateral da defesa de Portugal contra uma eventual retaliação alemã. A garantia formal sobre a continuidade da soberania portuguesa nos territórios ocupados era um valioso instrumento político-jurídico - e a melhor das compensações possíveis para a cedência dos Açores. Salazar tinha em mente Timor e Macau. Quanto a Timor, manifestara já à Inglaterra, em 23 de Junho, o desejo de que Portugal participasse militarmente ao lado dos aliados na expulsão dos japoneses. Receava, por outro lado, uma anexação do território pela Austrália.



Brasão de Armas do Timor Português (1935-1975).



Em face da ocupação nipónica, Salazar vinha adoptando uma conduta branda, o que lhe valia acesas críticas da oposição. Essa passividade oficial de Lisboa, tendo em conta as violências das tropas do Japão no território, era condenável num prisma ideológico e humanista. Na lógica de Salazar, contudo, declarar guerra ao Japão comportaria o risco de uma alienação definitiva de Timor, e também de Macau, além de quebrar a neutralidade. A reacção à ocupação japonesa de Timor em 1942, como notou o OSS, tinha sido aliás muito mais branda do que aquando da ocupação aliada, ocorrida semanas antes. Em Agosto de 1942 começaram a chegar a Lisboa muitos diplomatas japoneses e a legação nipónica foi largamente ampliada. Em Outubro de 1942, Portugal e o Japão celebraram mesmo quatro séculos de relações bilaterais.

Simultaneamente, a gestão política de Salazar decorria do seu sempre presente temor de que, subjacente ao interesse dos Estados Unidos pelos Açores, estivesse o intento usurpatório. Se quanto ao arquipélago do Atlântico os medos íntimos de Salazar não tinham fundamento, pois Washington não alimentava desígnios de aquisição territorial, já em relação aos domínios do Oriente a sua intuição era consusbtanciada por causas concretas. Churchill, mais familiarizado do que Roosevelt com a filosofia política de Salazar, embora menos tolerante do que Anthony Eden em relação a ela, replicara em 27 de Junho:

"Concordo que as questões de Timor e de Macau podem muito bem ser adiadas até depois da guerra. Entretanto, nós dissemos aos portugueses que, se eles nos ajudassem agora, estávamos dispostos a dar-lhes garantias quanto à manutenção da soberania portuguesa em todas as colónias de Portugal. Em resposta a perguntas deles, dissemos que essa garantia cobria Timor e Macau. Os portugueses provavelmente ofender-se-iam, por isso, com quaisquer sugestões antecipadas sobre a disposição de Timor, e teremos de ser cautelosos. Eles são particularmente sensíveis acerca de Timor, devido à ocupação militar aliada, sem prévio acordo, em Dezembro de 1941, a qual afectou severamente as nossas relações com Portugal"».

José Freire Antunes («Roosevelt, Churchill e Salazar. A Luta pelos Açores - 1941-1945»).










«Abre-se o ano de 1943, e continua a pairar no país a sombra da ocupação de Timor. Não há contactos com o governador: mas as notícias que chegam a Lisboa dão conta do colapso da administração portuguesa e de atrocidades e prepotências dos japoneses sobre aborígenes e europeus. Consideram muitos que o território está efectivamente perdido para Portugal. São claras as ambições da Austrália e até da Nova Zelândia: e os governos dos dois domínios informam Churchill de que pretendem participar das decisões que sejam tomadas quanto ao Timor português. Oliveira Salazar, todavia, está firmemente decidido a recuperar a colónia, e pondera as alternativas possíveis e os seus riscos: negociar com Tóquio a retirada das forças nipónicas, mas as conversações havidas mostram que o gabinete japonês segue uma táctica dilatória; declarar guerra ao Japão, mas Macau será então sacrificado, com os 400 000 refugiados, além de ser provável que nessa hipótese Portugal perca a sua neutralidade na Europa e a guerra se estenda à Península Ibérica; aguardar a evolução das hostilidades, numa atitude passiva, com o perigo de esta ser havida por desinteresse e encorajar os desígnios de terceiros quanto ao território. Entretanto, desenvolvem-se com sucesso as operações aliadas no Norte de África, e melhora globalmente a situação estratégica dos Aliados; parece desenhar-se a vitória destes; mas a Alemanha, sem embargo do desgaste sofrido na frente russa, dispõe ainda de um forte poder militar. Salazar considera que se mantém a possibilidade de um ataque germânico à Península, ou de um desembarque em Portugal; continuam por isso as conversações de Estado-Maior com as autoridades militares britânicas; o chefe do governo dá finalmente a sua anuência ao plano, mais limitado do que o desejariam os ingleses, de demolição de instalações e vias de comunicação que pudessem aproveitar a um invasor; e para o efeito Salazar está a considerar a vinda, de Gibraltar, de técnicos em explosivos e peritos britânicos em destruições militares. Em almoço na Embaixada de Portugal, a 7 de Janeiro de 1943, Churchill declara a Monteiro, e perante os demais convidados, que considera Salazar grande homem de inteligência e sabedoria, e que se conseguir manter neutra a Espanha até ao fim terá prestado a todos um grande serviço. Entretanto, e embora persista em defender uma rigorosa neutralidade, Salazar não exclui que o jogo da aliança inglesa, ou um ataque alemão, ou a necessidade de recuperar Timor, possam levar Portugal a participar no conflito. Entre fins de Janeiro e princípios de Fevereiro de 1943, em sucessivas reuniões do governo e com as autoridades militares, Salazar estuda um plano geral a aplicar naquela hipótese. E em meados de Fevereiro é publicada legislação destinada a preparar o país para tempo de guerra, com mobilização de serviços e recursos nacionais.

(...) Não são infundados os receios de Salazar. Na mesma altura, com efeito, os militares ingleses e americanos retomam a ideia de utilizar os Açores como base aérea para aviões que dos Estados Unidos se dirijam à Europa e à Ásia, e como estação de reabastecimento de navios na luta anti-submarina; e entre Londres e Washington, no plano dos Estados-Maiores, reabrem-se conversações que não excluem o uso da força. Roosevelt e Churchill aprovam a ideia. Mas no Foreign Office Eden opõe-se com firmeza: considera que seria violada a neutralidade portuguesa: e que, estando os Aliados a fazer a guerra para defesa da soberania das nações, este fundamento moral seria destruído. Eden insiste em que nenhum passo se deve dar por fora da mais estrita legalidade. Prevalece a opinião do secretário de Estado, e em conformidade é decidido consultar Campbell em Lisboa. Este é convidado a expor o "seu parecer sobre a reacção do Dr. Salazar no caso de ser invocada a aliança luso-britânica", tanto mais que o uso dos Açores "presumivelmente conduziria a um corte de relações, se não a uma declaração de guerra, entre a Alemanha e Portugal". Campbell avista-se com Salazar em 20 de Fevereiro e 2 de Março: mas não levanta o problema suscitado por Londres: limita-se a insistir por uma decisão quanto à vinda dos técnicos de demolições: e encontra o chefe do governo ainda reticente neste particular.


(...) Por outro lado, ponderam entre si os Aliados as vantagens de uma declaração de guerra de Portugal ao Japão. Em sentido afirmativo inclinam-se os ingleses; mas consultam os americanos; e estes são de parecer que a "declaração de guerra portuguesa ao Japão não teria efeito apreciável na luta contra aquele país" e poderia "conduzir a uma extensão do conflito na Europa". No Foreign Office considera-se que Washington revela falta de visão: porque, se o Eixo retaliasse contra Portugal, estaria encontrada a "oportunidade ou o pretexto para obter facilidades nas ilhas do Atlântico que seriam de grande vantagem". Mas o Foreign Office reconhece, no entanto, ser mínima a probabilidade de Salazar assumir no momento aquela atitude, e receia que se seguisse uma declaração de guerra da Alemanha e da Itália a Portugal, dando a este direito a solicitar à Inglaterra um auxílio imediato que Londres teria dificuldade em prestar. E a todos parece preferível não prosseguir o assunto na altura. Mas Salazar, se teme as consequências da ocupação japonesa, e se se preocupa com o estado em que se encontra Timor, receia sobretudo, pelas implicações futuras, a atitude da Austrália, de cujos objectivos suspeita. Não ignora o Foreign Office os desígnios australianos, e por isso compreende a insistência portuguesa; mas deseja, se possível, manter-se fora do assunto. Não é esse o ponto de vista de Lisboa, e em 12 de Abril Armindo Monteiro dirige ao Alto-Comissário da Austrália em Londres uma nota, em que afirma: as decisões do governo português são ditadas pelo intuito de "restaurar a administração portuguesa em Timor tão cedo quanto possível" e de fazer regressar à colónia "os elementos representativos da soberania portuguesa". E não pode assim o governo australiano alegar desconhecimento da política de Lisboa perante o problema. Ao mesmo tempo, Salazar não corta as pontes com o governo nipónico, e mantém abertas todas as opções viáveis».

(...) Quando se examinam os documentos e confrontam as suas datas, tem-se a sensação de uma espécie de instinto divinatório em Salazar que o levava a agir no último minuto anterior a uma situação de ruptura ou desastre. Dir-se-ia que, para além das palavras das pessoas, escutava também o que estavam a pensar enquanto as pronunciavam».

Franco Nogueira («Salazar. III, As grandes crises - 1936-1945»).







O CASO DE TIMOR


6. As instruções enviadas no mesmo dia 12 para Timor indicavam ao governador que deveria dirigir-se ao governador holandês para concertarem o auxílio a receber por nosso lado das forças australianas e holandesas. O governador deveria obedecer estritamente nas negociações aos princípios seguintes:


a) O auxílio a prever é o que nos é devido pelo Governo Britânico por força dos tratados de aliança e que o mesmo Governo torna efectivo por meio de tropas australianas ou holandesas sob as ordens do Alto Comando Inglês;

b) A hipótese a prever é somente o ataque japonês a Timor, não podendo funcionar o acordo no caso de simples ameaças ou receios mais ou menos fundados;

c) A colaboração das tropas estranhas não tem carácter de reciprocidade, salvo se por ataque japonês contra o nosso território tivermos já perdido a nossa neutralidade;

d) Não se devia perder de vista que o ataque ao Timor português, a verificar-se, não podia provir de causas que directamente nos respeitassem e ao Japão, mas talvez do só do facto da nossa aliança com a Inglaterra e pela nossa situação em relação à Austrália;


f) Sendo princípio geral defender os nossos territórios quando atacados, devíamos ter presente no caso em questão a importância que a defesa revestia para segurança do Império Britânico.


7. Entretanto, nos dias 9, 11 e 12, aviões australianos sobrevoaram por várias vezes Timor, e especialmente Dili, violação injustificável do nosso território, com perigo evidente para a neutralidade portuguesa. Mandou-se fazer em Londres o devido protesto e manifestar a esperança de que cessassem os abusivos voos.

8. Em 15 de Dezembro, à noite, foi finalmente entregue ao Embaixador de Portugal em Londres a nota com a oferta do auxílio britânico: o Governo Inglês declarava-se preparado, em virtude das antigas alianças, a oferecer e organizar imediata assistência ao Timor português, por meio de forças australianas e de forças holandesas suas aliadas. Se o oferecimento fosse de aceitar pelo Governo Português, o Governo Inglês sugeriria que o Governo Português autorizasse imediatamente o governador de Timor a pedir assistência britânica na forma indicada. Entendia-se que apesar disso se devia manter o convite para as conversações de Singapura.

9. Ora no dia seguinte, 16, de tarde, o Embaixador de Inglaterra comunicava no Ministério dos Negócios Estrangeiros a informação do seu Governo de terem aparecido submarinos nas proximidades de Timor, pelo que havia sido marcada uma entrevista com o governador de Timor para a manhã seguinte. Uma força de tropas do lado neerlandês aproximava-se já de Dili para estar pronta a evitar um desembarque inimigo. A questão foi então mais uma vez posta com toda a nitidez e de modo que o Embaixador não pudesse ter dúvidas de que se estava fora do plano das aprazadas negociações, pois o Embaixador nunca se referira a outra hipótese que não fosse a agressão e o Governo Português nunca admitira, como fundamento do auxílio, alegados perigos ou receios, que os factos aliás não legitimavam. As instruções do governador eram expressas e não seriam modificadas; mas não nos recusaríamos à conferência pedida. E expediram-se nesse sentido ordens para Timor. Em virtude da posição do Governo Português, o Embaixador não chegou a apresentar um projecto de declaração conjunta dos dois Governos sobre o desembarque de tropas.



Império Holandês


10. O Encarregado de Negócios da Holanda fazia no mesmo dia diligência semelhante; e as duas são paralelas da conversa havida com o Embaixador de Portugal no F. O. Também lá se fez referência à rápida evolução dos acontecimentos, às tropas preparadas para intervir, ao projecto de nota a enviar para os jornais, que subentendia um acordo, impossível em tais termos, com o Governo Português. A argumentação do nosso Embaixador não foi destruída, mas o Subsecretário de Estado declarou «recear que a acção já tivesse sido realizada».

11. Em 17 de manhã o Embaixador de Inglaterra, em nova conferência nas Necessidades, insistiu na sua argumentação anterior, no sentido de defender a colaboração de forças australianas e holandesas, sob fundamento de simples ameaça, tal como estava sendo interpretada pelas autoridades do Timor holandês. Mas tal discussão não poderia ser prosseguida, pois pressupunha um estado de coisas inadmissível para o Governo Português - o desembarque de forças contra a vontade do Governo, com fundamento em perigos que não estavam demonstrados nem se afiguravam reais.

12. No mesmo momento em que o Embaixador de Inglaterra procurava ainda em Lisboa convencer o Governo Português a acordar na colaboração de forças estranhas, não só em caso de ataque, mas de simples ameaça à nossa soberania, já em Timor tinham desembarcado as anunciadas forças de protecção. Efectivamente a conferência que se pedira com o governador nessa manhã não fora para quaisquer negociações, fora para o intimar a autorizar o desembarque das tropas. O governador, dentro das instruções recebidas, recusou-se a autorizar o desembarque, ao qual, aliás, se não podiam opor as modestas forças locais.

13. As últimas notícias oficiais de Timor são estas. O governador cumpriu as instruções recebidas e protestou telegraficamente perante o Primeiro Ministro da Austrália e o governador geral da Índias Neerlandesas; a colónia está em perfeita tranquilidade; as forças desembarcadas, parece, tinham a convicção de operar com o acordo do Governo Português e no seu interesse.



14. O Governo procurou logo esclarecer os factos. As explicações e os sentimentos manifestados já ao Governo Português pelos Governos Britânico e Holandês não podem infelizmente por si sós modificar a situação.

O processo não está pois findo e deverá sê-lo. O Governo informará o País do seguimento que for necessário dar-lhe.

Entretanto continua o estudo que estava fazendo e a preparação dos reforços da guarnição de Timor, como a maneira que se lhe afigura mais fácil de estabelecer, no que de nós depende, alguma calma naquelas longínquas paragens, agora directamente sujeitas às convulsões da guerra e à sua natural excitação.

15. Pretendi apresentar a fria série dos factos sobre cuja nudez me abstive de lançar o véu do mais insignificante comentário. Mas não desejaria terminar esta exposição sem tocar duas notas, uma que nos respeita, a segunda que se refere a outrem.

O Governo tem a consciência de haver-se conduzido com lealdade, com seriedade, com zelo até pelos interesses alheios, com a noção exacta dos deveres da aliança e dos direitos soberanos da nação. Ele julga-se com o direito a ser tratado pela forma como trata todos os assuntos e designadamente as suas negociações com o Governo Britânico.

O que a nós, pequenos e fracos, não é permitido, não o é igualmente aos governos que dirigem os grandes impérios - não lhes é permitido perder a calma necessária para distinguir os serviços dos agravos. E pela confiança na própria valentia dos seus soldados hão-de igualmente não confundir a diligência e a precipitação: a primeira aconselharia porventura a negociar, com respeito pelo direito alheio; a segunda levou a invadir o território de um neutro, de um amigo, de um aliado.