segunda-feira, 16 de março de 2015

Agostinho da Silva: biografia falhada

Escrito por António Araújo
























O texto que se segue, da lavra de António Araújo, já é do conhecimento público (ver aqui). Trata-se, no âmbito do que passa por ser uma biografia sobre Agostinho da Silva, de uma crítica dirigida ao autor da mesma, professor, aliás, da Universidade de Évora, além de anarco-comunista e membro fundador do Projecto António Telmo. No mais, a resposta do visado já veio igualmente a público (ver aqui), para assim alegar "que uma biografia não é um género linear, como de resto nenhum género poético o é". Ora, sobre isso, não levantamos nenhuma objecção, sem prejuízo para as eventuais fontes documentais. Mas, no que respeita a Agostinho da Silva, já é caso para perguntar que valor literário ou poético revelam expressões do tipo: "Matava com a mão o apetite do bicho mas o que ele queria mesmo era o corpo meio nu da prima nas mãos"? Enfim, não há dúvida de que estamos perante um sinistro e estranhíssimo "biógrafo" de Agostinho da Silva. 




Agostinho da Silva: biografia falhada


O biógrafo compara-o a Moisés, Francisco de Assis, Tolstoi, Gandhi e Luther King. Estará a gozar connosco? Infelizmente, nem isso.


O Estranhíssimo Colosso, título desta biografia de Agostinho da Silva, é nome que bem se poderia aplicar ao volume de 735 páginas que António Cândido Franco, professor na Universidade de Évora, acabou de dar à estampa.

Goste-se ou não da personagem, na riquíssima trajectória biográfica de Agostinho havia matéria-prima mais do que suficiente para produzir um livro apaixonante. O autor trabalhou, não há dúvida. Todavia, concentrou o seu esforço na tarefa de escrever um livro colossal, em detrimento daquilo que é exigível em qualquer obra que se pretenda “biográfica”. A ausência de pesquisa fica patente logo nas primeiras páginas, onde a genealogia do biografado se resume ao que este quis dizer sobre os seus antepassados. Todo o volume, de resto, é atravessado por constantes e longuíssimos trechos de Agostinho, opção que, num balanço final, acaba por não nos trazer nada de novo, excepto a admiração ilimitada do biógrafo pelo seu objecto de estudo (“Este meu biografado era um monstro de duas cabeças! Duas? Duzentas! Não é de admirar que eu lhe chame anormal!”, grita o autor, na p. 271).




Quando se depara com lacunas ou falhas de informação, o autor entrega-se à dedução e ao palpite – o que, convenhamos, não é um método credível de escrever história, para mais a história de uma outra vida. Com cândida franqueza, António Cândido Franco confessa que, quando não sabe, inventa: “Às vezes deixo-me embalar e o resultado é este, dou por mim a inventar. Deixe o leitor passar, que a imaginação sabe muito. E se não sabe, tem ao menos sabor. Sem tais pontos imaginosos, uma biografia é estéril e sensaborona” (p. 623).

Este trecho resume, em poucas linhas, a orientação de todo o livro, em que os lapsos de investigação e de informação fiável são colmatados por um investimento, para mais excessivo, na imaginação fantasiosa e no verbo torrencial. “A suposição vai muito melhor do que a certidão”, diz o autor, como se uma biografia séria e credível pudesse dispensar o rigor dos factos, atestado por documentos ou testemunhos fiáveis.

Além da bibliografia activa e passiva de Agostinho, de um escasso levantamento da imprensa e da consulta de apenas um documento de arquivo – o processo de Agostinho na PIDE/DGS –, o autor manteve apenas algumas conversas com duas ou três pessoas, quando bem poderia ter entrevistado dezenas de personalidades relevantes. E, apesar de o seu biografado ter permanecido décadas no Brasil, nada indicia que o autor se tenha sequer deslocado até lá, na busca de testemunhos inéditos e novos dados.

Daí que muita informação fornecida neste livro seja esparsa, fragmentária, além de formulada em termos hipotéticos e conjecturais. Quanto à ida para o Brasil, “pouco se sabe da viagem de Agostinho e até das datas exactas dela”. Dos antepassados remotos nada se diz, pois nada se procurou. O pai de Agostinho “alguma escola há-de ter feito” e a mãe, por seu turno, “alguma educação há-de ter tido em casa” (pp. 22-23). O pai “deve ter sido em Barca de Alva um funcionário laborioso e exemplar” (p. 42), mas acabou sendo demitido pois “também devia haver gente que não gostava muito dele” (p. 65). No Riley Institute, no Porto, aprofundou a aprendizagem de línguas talvez “em 1922, ou antes”, o que “é ponto a esclarecer” – mas não neste livro. A irmã, entretanto, estaria “a estudar decerto em escola comercial”, não havendo certezas na matéria. Na universidade, Agostinho terá exercido cargos associativos mas quanto às datas em que o fez “os elementos que hoje correm desdizem-se” – e o autor não procurou deslindar a verdade.

Mais certezas possui quanto à vida sexual do jovem prodígio. Fornece-as porque “uma biografia sem sexualidade é como uma tela sem tinta; não existe”. Ou, como dirá noutro passo, “não há biografia que se aguente sem tratar tal questão. Biografia quer dizer escrita da vida e só há vida porque há sexo”. Assim, abordando o sexo em Agostinho, e como “o instinto nele era rijo”, “houve nas soalheiras tardes da Comércio do Porto, como nas noites álgidas de Inverno, entre lençóis, muito onanismo para aliviar a pressão séria do instinto, como aliás sucede hoje com qualquer mocinho de idêntico adolescer”. Além dessa actividade solitária, terá havido, porventura, “visita a bordel nocturno”, pela simples razão de que um tio seu era libertário e, logo, “mais solto de costumes”. É assim, desta forma impressionista e especulativa, que toda a presente biografia se encontra construída, pelo que não admira a falta de rigor factual e as constantes imprecisões, que levam o autor, por ex., a colocar Agostinho a aprender francês, inglês, esperanto, latim, grego, alemão e holandês, na p. 127, quando pouco antes dissera que o seu biografado recebera também rudimentos de língua japonesa (p. 69). Não é um pormenor de somenos, tendo em conta que, graças a uma bolsa da UNESCO, em 1963, Agostinho se desloca ao Japão, de onde trouxe “uma japonesa de carne e osso”. Mas, de novo, avulta a ignorância: “sobre esta madame do Sol Nascente pouco sei e o que sei foi pescado de outiva”. Afirmando, para mais, que dessa mulher teve um ou até dois ou três filhos, não competia indagar a fundo este episódio?




No Verão de 1929, Agostinho abandona o Porto, fixando-se em Lisboa. Uma vez mais, o palpite: “não sei onde se instalou, mas calculo que procurou uma pensão barata, com refeições incluídas, na zona velha da cidade”. Sobre a docência no Gil Vicente o autor nada esclarece, preferindo divagar sobre as deambulações do seu ídolo na capital do país, entre “a cal branca da cidade” e “a safira sem fim do rio”. Apresentou-se a concurso para professor em Belas-Artes, sendo o exame descrito como um triunfo absoluto do candidato sobre o júri (“um bailinho!”), enquanto, na assistência, “o público partia a moca de riso”. Em Lisboa, Agostinho frequentaria ainda a Escola Normal Superior para se efectivar como professor de liceu. O seu biógrafo, porém, diz-nos: “não tenho qualquer certeza sobre o lugar onde funcionaria a Escola Normal mas ponho como possível uma antiga dependência da antiga Faculdade de Letras de Lisboa” (nem uma informação tão simples foi o autor capaz de recolher?).

Entretanto, Agostinho começara namoro e anunciara noivado. Formara-se assim “um casal disposto a curtir a vida”, pelo que “iam talvez a Sintra e Cascais passear na serra”; depois de casados, o biógrafo presume que terão feito “muitos passeios às praias da Outra Banda para meter os pés na água rasa da vazante e correrem abraçados por entre as redes que os pescadores alavam no areal”. Note-se que este quadro romântico não tem por base a mínima informação factual. Quanto ao que interessa, “não sei onde ficava o casulo que alugaram mas calculo que seria para Campo de Ourique”. A única pista que o autor apresenta é o facto de ser um “bairro populoso” e “com oferta copiosa e acessível”, ademais não muito longe do local onde Agostinho leccionava. Teria o jovem casal uma empregada doméstica, “virago beiroa de buço grosso, barbada até”, mas confessa o biógrafo: “é suposição minha, que as fontes sobre o casamento são sequinhas; sobre o enlace com Berta David nunca o meu bardino, que eu saiba, se pronunciou”. E, como o seu bardino não se pronunciou, o biógrafo segue-lhe as pisadas, candidamente.

São meros exemplos, entre as dezenas ou mesmo centenas que este livro contém, em que a ficção se sobrepõe à realidade, esmagando-a, prescindindo dela. Diz-se que, quando jovem docente, Agostinho proferiu inúmeras conferências na Universidade Popular Portuguesa; mas logo acrescenta o autor: “não conheço registo das palestras que fez no salão da instituição”. Refere-se que terá realizado uma pós-graduação na Sorbonne, com tese sobre Montaigne; mas, adverte o biógrafo, trata-se de “informação impossível para já de confirmar”. Num livro de 700 páginas, dedicado a Agostinho da Silva, saber se este fez, ou não, uma pós-graduação na Sorbonne não é uma irrelevância ou um detalhe acessório. Tempos depois, leccionará no Colégio Infante de Sagres. Como lá chegou? “Não é fácil dar resposta certa”, responde-se. Em contrapartida, parece o autor ter mais certezas de que Agostinho da Silva, na companhia do colega Orlando Ribeiro, “tomou banho de pila ao léu” no Algarve (ou, se preferirmos, “na terra de Teixeira Gomes”).


No período final da vida, Agostinho apareceria na televisão, em treze programas de Conversas Vadias. Segundo o seu biógrafo, terá esmagado Miguel Esteves Cardoso, que “foi despido, esfregado, amarfanhado e deixado cair sem a mais leve complacência como papel do lixo”. Em suma, o mestre deu uma “ensaboadela gigantesca” ao “garoto”. Teria sido importante recolher o testemunho de Esteves Cardoso, além daqueles que, segundo o autor, levaram de Agostinho um “bailarico televisivo”, como Joaquim Vieira (“Que baile!”), Maria Elisa, Adelino Gomes ou Baptista-Bastos.

O estilo da escrita é kitsch, com abuso de lugares-comuns, linguajar vadio e frases do género: “A República de Afonso Costa, gaiata de quatro anos, caiu de cama, diagnóstico reservado, quase a dar o badagaio”. Quando jovem, tinha Agostinho vorazes apetites literários, que o autor resume na seguinte frase: “Que larica, para gaiato de 15 anos!” Apreciava também ir à praia de Matosinhos, “mostrar o pêlo da perna”. Em todo o caso, e numa avaliação geral, era “um doce e pacato Zé dos Anzóis”, que vivia no “cu de Judas” enquanto cursava Letras no Porto, sendo já nesse tempo “homem que nunca hesitou entre goraz e linguado”. Deambulava o estudante pela Invicta, “onde de mistura com muito trote teimoso de muar se faziam agora ouvir com frequência as buzinas tolas dos automóveis”. Por certo às escondidas, exercitava “o toque de Onan”, acalmando as paixões da carne em “banho de água gelada, com certeza em tina de semicúpio, para baixar a fervura e pôr os penates em movimento”. Cansado dos atropelos da República, “encarou com simpatia a marcha militar de 1926”, ainda que desconheçamos onde se baseia o autor para proferir esta afirmação. Enquanto docente, “não era um professor baldas”; seria, isso sim, “um betinho, de rosto imberbe”. Vindo para Lisboa, foi alvo de perseguição por parte de um colega docente, e nessa “não havia pedaço de sala em que Agostinho pudesse poisar o cu sem que o zangão lho viesse picar”. Foi, apesar disso, “um professor das Arábias”, a ponto de o seu biógrafo proclamar: “Enquanto houver escola, ou coisa que o valha, não há-de passar a memória do professor Agostinho da Silva!” No Pedro Nunes, por ex., o seu ensino em nada se assemelhava ao dos seus pares ou, se preferirmos, dos “coninhas que lá se encolhiam”. Um homem superlativo, que “em cada vírgula punha uma competência admirável” e que fundou dezenas de centros de investigação, “alguns bué ilustres”. Foi para Paris, como bolseiro. “Ai, a Torre Eiffel! Ai, o Arco do Triunfo! Ai, o Bairro Latino! Ai, os Campos Elísios! Ai, a Sorbona!” (os suspiros são do biógrafo). Continuou, porém, a ser um espírito inconformado e rebelde; ou, nas palavras do seu biógrafo, “que anarca, vida minha!” Daí os riscos do encontro que, na capital francesa, teve com António Sérgio (um homem que, observe-se, “nunca perdera o tesão” por Antero). Tratava-se de uma operação arriscada, que “podia dar bernarda, com os dois à berlaitada, como derriço de casa e pucarinho”. Isto porque Agostinho tinha “o coração do leão feroz de Trás-os-Montes” e Sérgio, de seu lado, “não era menino para se calar; tinha cagança pedagógica para um país, quanto mais para um bolseiro vinhateiro”.


Cândido Franco não esconde o deslumbramento pela personagem que estudou, tratando Agostinho, com insuportável frequência, por “meu biografado”, “meu garoto”, “meu pequeno rústico”, “o meu Silva”, “meu celtibero”, “meu ibero”, “o meu homem”, “meu bolseiro”, “meu plantígrado”, “meu duriense”, “meu macróbio”, “meu peixe”, “meu íncola”, “meu bisonho”, “meu vivaço”, “meu vagabundo”, “meu berbere”, “meu nómada”, “meu meileca”, “o meu mangas” ou “o meu velho”. Diz que Agostinho é autor de “uma das mais vistosas enciclopédias do mundo, feita por um só homem”. E qualifica-o ainda como “o mais importante biógrafo português de sempre”.

Porém, a ideia de que Agostinho era um intelectual puro, dominado inteiramente pelas coisas do espírito, não tem correspondência com a realidade. Ou, se quisermos, “o filólogo, o professor engravatado, o renomado intelectual é tanga, meu! Nunca existiu”. O que existiu, isso sim, foi um “titã meio aciganado”, devorado pelos mais primevos instintos. “Matava com a mão o apetite do bicho mas o que ele queria mesmo era o corpo meio nu da prima nas mãos.” Compreenda-se a atitude do mestre, que “não era nenhum destesticulado, que tivesse por horizonte roer só papel; tinha força na verga e o bicho, sempre a levantar, desinquietava-o”. 

A questão, entendamo-nos, não é de bom-gosto ou decoro, de pudor escusado ou de falsos moralismos. O problema reside na circunstância de o autor se permitir estas divagações pseudo-eróticas sem que, do mesmo passo, consiga esclarecer-nos sobre factos objectivos tão elementares como o lugar de nascimento da mãe do seu biografado; as palestras que este proferiu na Universidade Popular; se concluiu ou não pós-graduação na Sorbonne; se foi para Madrid sozinho ou na companhia da mulher; onde morava quando veio do Porto para Lisboa; como e porquê começou a leccionar no Infante de Sagres; se viajou ou não até Lisboa, em 1954, como representante do governo brasileiro, buscar a carta de Vaz de Caminha; quem o convidou para leccionar em Harvard; se a filha foi esperá-lo ao aeroporto quando regressou definitivamente a Portugal; que meios tinha para subsistir, etc., etc. E à fatal pergunta sobre onde estava no dia 25 de Abril, responde o biógrafo: “para o gosto que teria em falar deste assunto, faltam-me porém dados. (…) Sei pouco”. E sobre o 1º de Maio, o de 1974? “Nada encontro, para tristeza minha, sobre o caso”. Logo após a revolução, Agostinho escreveu uma carta aos exilados políticos que regressaram – só Cunhal lhe respondeu – mas o seu biógrafo desconhece o teor dessa missiva, documento fundamental que poderia talvez ser procurado com sucesso em arquivos públicos ou privados (por ex., em contacto com Soares e a sua fundação). Em vez destas questões, o autor prefere comparações grandiosas, cotejando Agostinho da Silva e Miguel Ângelo para concluir que “os dois criadores são labaredas gémeas!” 



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António Cândido Franco, diz-nos o próprio, dedicou dez anos da sua vida a investigar a existência de Agostinho Baptista da Silva, “um dos gigantes universais da História humana”. O biógrafo compara-o a Moisés, na idade antiga, e, em tempos mais recentes, a Francisco de Assis, Tolstoi, Gandhi e Luther King. Mais adiante, não hesita em tratá-lo por “o Adamastor da Palhavã”. Estará a gozar connosco? Infelizmente, nem isso.


5 comentários:

  1. Veio agora à baila uma tal de Risoleta C. Pinto Pedro que, sobre a mesa da cozinha e «depois da louça lavada e tudo em ordem», deu-se ao trabalho de escrevinhar uma série de 'considerações' sobre a BIOGRAFIA FALHADA de Agostinho da Silva (ver aqui: http://antonio-telmo-vida-e-obra.webnode.pt/news/universo-telmico-23/).

    Claro que só podia sair parvoeira, desde o presumível «estilo pessoalíssimo, um "dolce stil novo"» do anarco-comunista, até delírios do tipo:

    «Não consigo imaginar alguém lendo este livro a espernear. Embora já tenha havido quem o fizesse. Deve ser um enorme sofrimento. Como se nos pusessem à frente a melhor e mais divina das iguarias, mas por razões obscuras não pudéssemos mostrar o nosso prazer e fôssemos obrigados a deliciar-nos, mas ao mesmo tempo fazendo caretas e contorcendo-nos obscenamente de agonia a fingir que não gostamos. Deve ser doloroso. Mas é possível, porque já aconteceu. Mistérios. Ou talvez não».

    Bem: se isto fosse traduzido em termos eróticos, ou, melhor dito, em termos metafóricos, é realmente de espernear até ao cúmulo do hedonismo. Mas não: a Risoleta diz que não quer estragar a festa, logo não se atreve a considerações sobre amor e sexo, entre outras.

    Ó querida, não sejas desmancha-prazeres. Se te deste à faina de, em variadíssimos aspectos, depenares a BIOGRAFIA FALHADA de Agostinho da Silva, como é que não tiveste a coragem, ou, vá lá, o atrevimento para especulares sobre expressões cândidas do tipo:

    «Matava com a mão o apetite do bicho mas o que ele queria mesmo era o corpo meio nu da prima nas mãos».

    Ora, como tanto falas de Poética, Sabedoria e Beleza, confessa lá se tão magnânima quão rigorosa expressão não é igualmente digna de ser considerada à laia de uma colossal, monumental e dulcíssima delícia!...

    MBD

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    1. No semanário “O Diabo”, há um colunista que, na edição de 2 de Junho de 2015, veio dar um recadinho paternalista sobre o que já algumas pessoas, incluindo eu próprio, consideram ser a biografia falhada de Agostinho da Silva. E, no ínterim, adianta: «Ao contrário do que é hábito – sobretudo, arriscamos dizê-lo, em Portugal -, António Cândido Franco lida bem com o diferente, ou seja, consegue dialogar com quem tem posições muito diversas das suas, conseguindo até, nalguns casos, admirar essas pessoas, sem que isso implique qualquer abdicação da sua posição de partida». Depois o tal colunista dá ainda um exemplo tirado de uma revista universitária para tentar reforçar aquela imagem.

      Nisto, é óbvio que se trata de um artifício dirigido à inteligência de algum leitor mais desprevenido. E assim é porque A. Cândido Franco, anarco-comunista e professor da Universidade de Évora, é, muito pelo contrário, o inverso da imagem que ora se quer passar, pelo que, com base em experiência própria, contraponho o seguinte: após ter o autor destas linhas dado a lume um artigo numa revista que se veio igualmente a revelar de teor universitário, intitulada Teoremas de Filosofia (Porto, 2000, n.º 1, pp. 59-67), apareceu no número seguinte da mesma um texto do tal Cândido Franco, onde, no segundo parágrafo, se pode ler:

      «O vinco hermético que marca o rosto da Filosofia Portuguesa pode escondê-lo de olhos ávidos, mas assegura também o seu contacto com as valências eternas do mistério. É de longe preferível um analfabeto capaz de compor mentalmente um romance em verso a um leitor distraído de magazines mundanos e coloridos, dominado por imagens fugazes do caos e sem qualquer vigilância mental de distanciamento» («Oliveira Salazar e a Filosofia Portuguesa», in Teoremas de Filosofia, Porto, 2000, n.º 2, pp. 21-23).

      Ora, perante esta pesporrência surrealista, tornou-se óbvio, no sequente parágrafo, que o que estava verdadeiramente em causa era o facto de eu próprio ter escrito, em «Álvaro Ribeiro e o 'Organon' de Aristóteles», que Oliveira Salazar «foi a figura ímpar de Estadista que procurou empreender entre nós uma política de feição portuguesa».

      Nisto, era também óbvio de que não estávamos perante alguém capaz de dialogar com quem manifestava posições inteiramente diferentes da sua, até porque, quase a terminar o seu libelo, verberara nos seguintes termos:

      «O diálogo entre as várias famílias culturais portuguesas é um sinal saudável de reconhecimento da sua situação distinta e um cometimento bravo que pode salvar o pensamento português de perecer à míngua de irrigação, num estrangulamento muito característico das situações de asfixia.

      Mas o diálogo aberto é franqueza de discórdia e não promiscuidade de condições. Interpele-se o diferente, mas não se faça dele aquilo que não é, nem por aproximação» (idem, p. 23).

      Por outras palavras, o que isto quer dizer é que o diálogo supostamente franco e aberto é para ser travado nas condições estabelecidas por quem se acha no direito de ditar e julgar o que ninguém, no seu perfeito juízo, concordará em conceder-lhe, e, muito menos, admiti-lo. Logo, eis um caso perfeitamente evidente de quem, na sua dita «franqueza de discórdia», aparece a querer desqualificar quem lhe despertara alguma antipatia de proveniência ideológica. Em suma: no fundo, não há nenhuma perspectiva de diálogo, mas antes a atitude insolente e pretensiosa de quem apenas procura repudiar a diferença emergente do pensamento alheio.

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    2. Demais, com base em procedimentos menos correctos por parte de um dos directores da revista em causa, fora-me negado o direito de resposta a um texto que, segundo me havia sido previamente dito, poderia contribuir para uma ‘polémica saudável’ em torno de Oliveira Salazar e a filosofia portuguesa. Ou seja: no fundo, aquele texto era susceptível de ser dado à estampa, se bem que o mesmo já não se aplicasse ao direito de resposta do ‘interpelado’ porque então já poderia dar azo a polémicas indesejáveis. Ora, se assim era, a questão de princípio passava por não propiciar um eventual debate para assim não se chegar, como se chegou, à situação injusta de se tirar o direito de resposta ao ‘interpelado’.

      Mas águas passadas não movem moinhos. De resto, o escrito que, por fim, havia reservado à revista supracitada, acabou por ser incluído no livro que dei à estampa no Brasil e em Portugal, intitulado Noemas de Filosofia Portuguesa. E, no mais, aquele escrito, que tem por título «Oliveira Salazar e a Universidade Pombalina», nem sequer era polémico, pelo que deitava por terra as alegadas razões para a sua não-publicação.

      Nunca, mas nunca cheguei a confundir a filosofia portuguesa com Oliveira Salazar, o que, para o leitor inteligente, não oferece dúvidas. Mas se assim foi, também é verdade que sempre tive a mais alta estima e consideração pela pessoa e pelo insigne estadista que foi Oliveira Salazar. Isso despertou-me antipatias de proveniência ideológica, eventualmente outras? Sem dúvida.

      Por conseguinte, essa coisa de se vir pregar que aquele universitário de Évora tem grandeza de carácter e é um dialogante nato depois do sobredito, ou prima pela inocência ou traz água no bico. E, no lance, talvez não seja por acaso que me cheguem notícias de alunos da Universidade de Évora que dizem estar a mesma infiltrada de comunistas, um fenómeno que, como sabemos, não é certamente exclusivo daquela universidade. Aliás, ser-se comunista não se restringe apenas a uma questão ideológica. Para bom entendedor, é bem mais do que isso.

      Depois, n'O Diabo (9 de Junho de 2015), o colunista, mergulhado no seu obcecado paternalismo quanto ao calhamaço de mais de 700 páginas, refere-se aos “comentadores apressados” que usam o artigo definido 'a' em vez do artigo indefinido 'uma' para desse modo designar a biografia falhada de Agostinho da Silva. Não, necessariamente. Se, da nossa parte, assim acontece, é porque com isso queremos realçar que de um falhanço colossal se trata. Daí o emprego, não genérico, mas determinante de 'a' e não 'uma', para, de facto, não restarem dúvidas quanto ao teor pífio e esquipático da coisa.

      Por fim, o dito colunista assevera ainda naquele semanário (16 de Junho de 2015) que o Estado Novo não dera, ainda nos anos sessenta, ouvidos a Agostinho da Silva no que toca ao avançar para uma verdadeira Comunidade Lusófona, até porque aquele previra, melhor do que ninguém, a consequente e previsível catástrofe. E nisto apresenta um trecho de Agostinho em que o próprio, perante Franco Nogueira, aventara as suas razões para a não-aceitação, por parte do Brasil, da ideia de uma comunidade luso-brasileira. Ora, sobre isto temos a dizer o seguinte:

      1. Não é verdade que Agostinho da Silva tivesse previsto, melhor do que ninguém, a referida catástrofe, pois Oliveira Salazar, Franco Nogueira e outras ilustres personalidades estavam bem conscientes (em muitíssimos aspectos até bem mais conscientes do que Agostinho da Silva) das forças hostis e adversas (ONU, EUA, URSS, OUA, etc.) à presença portuguesa no mundo em geral, e na África em particular. De resto, não fora por acaso que Oliveira Salazar houvesse predito que quando desaparesse iria ser uma grande confusão.

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    3. 2. É um facto de que os brasileiros nunca se conseguiram libertar do complexo colonial, não obstante haver no fundo um lastro de amizade dos portugueses pelo Brasil. E que, além do mais, certas atitudes advindas do Brasil foram menos correctas para com Portugal, a avaliar pelo que nos diz Franco Nogueira: «Lisboa, 16 de Outubro [de 1967] – No Brasil, que barafunda! 'Correio da Manhã' insulta-nos, reafirma que há acordos secretos [nomeadamente o alegado acordo que o Brasil assumira de enviar tropas suas para Angola, se Portugal lhas pedisse]. 'Jornal do Brasil', da Condessa Pereira Carneiro e que reflecte o ponto de vista do Itamaraty, escreve que temos de suportar sozinhos a “cruz do colonialismo”. 'O Globo', dos Marinhos, esse está irado e espuma de indignação: desmente que haja acordos secretos. Aborrecido, parece estar o ministro do Exército; e irritado se confessa o ministro da Justiça, Gama e Filho, que se propõe levantar o problema das relações com Portugal junto do Presidente da República. Ao que sabemos, dentro do Itamaraty dividem-se as opiniões: intrigam uns contra nós, outros em nosso favor, e uns e outros entre si. Uma rica confusão. Mas acordos secretos entre nós e o Brasil – não há. Dizia-me no Rio um meu amigo brasileiro, ilustre e esclarecido: “Sabe? Não se admire, nós não temos carácter. Você julga que somos como os portugueses. Não somos. Não temos carácter. Isto explica tudo”. Também – não é tanto assim. E em matéria de falta de carácter – também por cá haveria alguma coisa a dizer» (in Um político confessa-se – Diário: 1960-1968. Livraria Civilização Editora, 1986, pp. 261-262).

      3. Portugal, no dramático e preciso momento em que se defrontava com ataques terroristas em África, tudo fez para criar uma comunidade luso-brasileira, no intuito de conciliar os interesses de Portugal e do Brasil, mesmo quando este apoiava um movimento que tornara possível a agressão a Goa, ou que favorecia «na ONU aqueles que visavam transformar Angola e Moçambique em estados de exclusiva supremacia negra», e, por isso, «em retirar ao Brasil todas as possibilidades de exercer influência em África e proteger ali os seus interesses» (in Franco Nogueira, Diálogos Interditos. A Política Externa Portuguesa e a Guerra de África, Intervenção, 1979, vol. I, pp. 93-94).

      4. Nisto, é mais que certo que a catástrofe não adveio por virtude da defesa patriótica do Estado Novo perante os ataques irresponsáveis e criminosos por parte da URSS, do terceiro mundo e até do plano anglo-americano para dividir a África em duas fatias (a oriental, para os ingleses; a ocidental, para os americanos), mas do facto de se ter realizado nos princípios de 1973, em Paris, «uma conferência convocada pelo Partido Comunista onde, elementos heterogéneos da esquerda portuguesa, se comprometeram a levar a cabo uma revolta em Portugal, o mais tardar até 1975. Estiveram presentes, além do PCP convocante, a Acção Socialista Portuguesa, uma dezena de militares, católicos progressistas e representantes da maçonaria» (cf. José Dias de Almeida da Fonseca, Livro Negro do 25 de Abril, Edições FP, pp. 17-18). Quer dizer: a revolução comunista de 1974, ao contrário do que as universidades, as escolas e a comunicação social andam para aí a vender, foi o resultado de uma convergência de interesses premeditados e prontamente concretizados por forças, poderes e organizações internacionais que assim lograram perpetrar o genocídio de milhares de pessoas no Ultramar Português.

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    4. 5. Logo, cabe então perguntar se fora neste preciso sentido que Agostinho da Silva antecipara a catástrofe, onde, inclusivamente, o seu pupilo Mário Soares desempenharia um dos principais papéis na tão badalada «descolonização exemplar», e que – aí, sim – levaria à Fatal Derrocada e ao Fim Histórico de Portugal? E se, consequentemente, haverá algum sentido para que se diga que a Revolução em curso - instigada e promovida por forças revolucionárias ao serviço do internacionalismo invasor – não tivesse, por sua vez, dado ouvidos a Agostinho da Silva? Ora, é óbvio que não.

      Miguel Bruno Duarte

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