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quinta-feira, 7 de abril de 2011

Sebastião José (iii)

Escrito por J. Lúcio de Azevedo





As extravagâncias de uma corte perdulária concorriam de certo para tornar inevitáveis estes atrasos; mas é licito afirmar, por outra parte, que em geral não presidiu à administração pombalina o critério, nem a justa economia, de que dependem as boas finanças. Podia supor-se que o dinheiro, regateado às dívidas do príncipe, zelosamente se aplicava aos serviços da nação, de sua natureza mais importantes. Longe disso: o tesouro esvaía-se por mil canais em despesas inúteis. Só o custeio das cavalariças reais importava em quantia enorme. Bastará saber-se que, por morte de D. José, os cavalos e muares vendidos foram em número de 2 mil, e ainda restavam 800 para o serviço. O teatro lírico era outro sorvedouro nunca extinto. O célebre castrado Gizielo ganhava 30 mil escudos por ano, e mais 22 mil francos para prato, além de casa e carruagem. O rei, doido por música, não passava sem o seu preferido divertimento quando ia a Salvaterra. Wraxall ouviu que a despesa com a ópera, no paço, importava em 40 000 libras esterlinas cada ano. O embaixador francês Baschi diz que só a sala e o vestuário custavam 250 mil francos por mês. Do que não resta dúvida é que as exibições eram sumptuosas, e nada se poupava para que o espectáculo não fosse somenos ao melhor que no género havia então na Europa. As touradas, outra distracção favorita do soberano, faziam também a carga assaz pesada do orçamento da coroa. O ministro que, para tranquilamente exercer o poder despótico, precisava lisonjear os gostos do amo, assentia em tudo isto. O resto seria pouco para remunerar a clientela de Pombal, para o socorro às indústrias, introduzidas com sacrifício do erário, para a reedificação de Lisboa, ficando sem se lhes acudir outras verbas, das mais urgentes, da pública administração.

O Exército já sabemos em que estado se encontrava por ocasião da guerra com a Espanha. A competência especial do conde de Lippe como organizador; a colaboração de oficiais estrangeiros, alguns deles distintos; a complacência do Governo em os atender, enquanto o perigo durou; a nova disciplina então introduzida, tudo isso contribuiu para elevar material e moralmente o valor da força armada, em um período curto, seguinte à campanha. Mas logo depois, com a ausência de Lippe, que era a vontade motriz, a decadência antiga reapareceu. Dalrymple, que tinha para o informar oficiais seus compatriotas, com isso e o que viu, faz da organização militar portuguesa a mais desvaforável ideia. Em Valença, primeiro lugar onde esteve, havia um regimento de artilharia e outro de infantaria. «Julgo que nunca vi tropas assim», diz ele, no sentido deprimente. Os oficiais viviam descontentes, os soldos eram mesquinhos; não se faziam promoções, de modo que, por exemplo, em um regimento de Viana todos os postos acima de tenente, excluindo o coronel, estavam vagos. Em tais condições a disciplina era frouxa. Os soldados andavam rotos, traziam as armas enferrujadas, o correame sujo e dilacerado. A guarnição do Porto ainda pior. Soldados de sentinela pediam esmola (33). Logo que Lippe se foi embora começaram a faltar os fardamentos e também os recrutas, relata o enviado francês, conde Saint-Priest (34). Em 1773, foi necessário reduzir o efectivo do Exército. A este respeito comunica Lebzeltern: «Esta providência tornou-se indispensável, porquanto o erário não poderá por mais tempo comportar tão avultado gasto com as forças armadas» (35).

Não era mais florescente a situação da Marinha. A administração naval continuava a ser encargo do Provedor dos armazéns de Guiné e Índia e Arsenal de marinha, funcionário vitalício, a quem incumbia a construção, aparelho e armamento de esquadras. Pombal, na sua faina reformadora, não se lembra de eliminar esta entidade anacrónica e inerte. Em 1765, consistia o efectivo em dezoito navios, e esses, dizia Saint-Priest, mal providos de tripulações. No tempo de Dalrymple, segundo colheu, dezassete navios, sendo seis fragatas. Cada ano, refere Saint-Priest, saíam dos estaleiros duas fragatas, mas o desleixo era tal que em pouco tempo apodreciam, de maneira que o total jamais passava de vinte (36). No fim do reinado deviam-se aos operários do arsenal muitos meses de paga. Então compunha-se a armada de doze navios, «a apodrecerem no porto de Lisboa», dizia o marquês de Clermont d'Ambroise, ministro de França. «É lástima», continua o diplomata, «ver em tamanha decadência esta nação, que em um século de ignorância se coibiu de glória, abrindo aos outros povos da Europa caminhos até aí desconhecidos» (37). Tudo isto desenha a situação do País em traços bem diversos daqueles com que a orgulhosa apologia do ministro a representava (38).






No ramo da instrução pública, tão encarecido na forma que Pombal lhe imprimiu, igualmente se manifesta a insuficiência da sua obra, que em uma boa parte falhou. Nem tudo se deve atribuir ao espírito retrógrado da seguinte administração. A reforma obedecera, como sabemos, ao intuito de proclamar a nocividade dos jesuítas, e comprovar que eles, em dois séculos, tinham arruinado a literatura em Portugal. A questão não foi iniciada pelo ministro; já vinha de trás. Promanava da rivalidade entre as confrarias do Oratório e de Loiola, por causa dos discípulos. Verney abrira o tiroteio em 1747, com a publicação do Verdadeiro Método de Estudar. Os jesuítas replicaram, e o prélio veio a disputar-se principalmente em torno da sintaxe latina: de um lado, a nova gramática de António Pereira de Figueiredo, oratoriano; do outro, a velha Arte do padre Manuel Álvares. Daqui se partiu para generalizar que os jesuítas tinham derruído a mentalidade portuguesa, como se outras causas evidentes não houvesse para explicar a decadência material e intelectual da nação. A disparidade entre a causa e o efeito salta aos olhos menos sagazes.

Pombal não podia desprezar a indicação. O primeiro acto, após o atentado de Setembro contra o rei, e fechadas as aulas dos jesuítas, foi proibir o compêndio de Álvares, e mandá-lo substituir pelo de Figueiredo (39). Suprimidas as escolas da Companhia, ficaram em muitas partes as classes menos abastadas sem ensino. Em 1761, havia professores régios somente em Lisboa, Coimbra, Porto e Évora, e no Brasil em Pernambuco. Nas outras povoações, a reorganização do ensino gratuito efectuava-se lentamente. Os mestres particulares estipendiados, a custo viviam. O que se fazia activamente era extirpar tudo quanto provinha dos jesuítas. São típicos os seguintes trechos de um relatório do principal Almeida, director-geral dos estudos, em 1765: «Em Pernes mandei a justiça a casa de um mestre, em mãos de cujos discípulos se achavam os livros de que usavam os denominados jesuítas. Suspendi o mestre e o privei para sempre de ensinar, mandando-lhe queimar à porta todos os ditos livros. Da mesma forma procedi nesta corte na Rua Formosa... Mandei fazer buscas por casa dos livreiros. No Porto, Coimbra e Santarém foram achados muitos dos sobreditos livros, que foram queimados publicamente e os livreiros presos...» (40). Trinta dias de cadeia e multa pecuniária, a estes mercadores culpados de empeçonharem a mocidade com as regras do padre Álvares e a Prosódia de Bento Pereira, outro autor condenado.

A reforma da Universidade fora encarregada à Junta da Providência Literária, para esse fim instituída. Eram nela figuras proeminentes o reitor D. Francisco de Lemos, o bispo de Beja, Cenáculo, e o ajudante de Pombal, José de Seabra. A capacidade deste último, pelo que mostrou no reinado seguinte, devia ser medíocre. Presidia umas vezes o cardeal da Cunha, outras o marquês de Pombal, mas é evidente que o primeiro, mesquinho de inteligência, o segundo sem preparação especial, escasso concurso podiam levar aos trabalhos. A parte técnica pertence aos profissionais; de Seabra e Pombal partiria a inspiração do Compêndio Histórico da Universidade, relatório da comissão, que dilui e amplifica os postulados da Dedução Cronológica, e na crítica não desdiz deste e dos mais escritos antijesuíticos da mesma origem.


Transcorridos alguns anos da queda do ministro, lamentava-se já a decadência da Universidade, atribuindo-se à falta dele a situação. O académico António Ribeiro dos Santos - na frase de Camilo, o mais douto homem do século -, dizia sobre a espécie, em carta a um amigo: «Que havia ele fazer agora, se fez pouco no princípio, se edificou um edifício ruinoso, como havia agora ter-se em pé?... Este ministro apesar de tudo quanto disseram dele os seus panegiristas, não talhou um plano útil, que honrasse a sua nação e o seu século» (41). O mesmo censor mostrava que Pombal, «profundo em algumas partes da administração política, não tinha nem plano, nem sistema no todo; tudo fazia por pedaços e a retalhos, de que depois senão uniam as partes, nem se ajustavam entre si» (42). O juízo evidentemente é exacto, e bem se ajusta, como ao mais, à reforma dos estudos.

Meses passados da queda do ministro, em Setembro de 1777, o reitor da Universidade, D. Francisco de Lemos, fazia ver ao Governo a necessidade de se restaurarem os estudos das humanidades, que se achavam na última decadência (43). O Colégio dos Nobres, tão falado, entrara em caducidade antes da morte de D. José. Com um rendimento de 40 000 cruzados, e os professores pagos pelo Subsídio literário, imposto estabelecido pelo marquês, não tinha meios para sustentar ao menos 50 alunos. «Nos primeiros 10 anos», arguia um dos pedagogos do estabelecimento, «nele se criaram uns 30 fidalgos, dos quais aí estão e fazem vulto os que nele vingaram, e se aproveitaram, mas depois que deu esta primeira camada nunca mais medrou nem luziu» (44). Defeito certamente da organização. A falta de unidade no plano meditado pelo ministro para transformar o ensino, permitiu que no reinado seguinte o espírito de reacção contrariasse com vantagem a maior parte do que ele ultimamente dispunha. Vimos o que diziam da Universidade. Menos de um ano depois que o novo Governo principiara, a Mesa Censória, criação de Pombal, composta de apaniguados seus, propunha que os estudos menores se confiassem ao santo zelo e ciência das corporações religiosas, e assim se fez, em consequência do que muitos professores seculares foram dispensados (45).

Não se compadecia com o espírito de progresso, que o estadista pretendera inculcar à Universidade, a existência de peias, que tinham por objecto conservar a nação um viveiro de eunucos intelectuais. O sistema de reformas de retalhos, que Ribeiro dos Santos reprovara, vinha a dar nisso. Pombal só fizera a menção de libertar as inteligências por agravo dos jesuítas. O seu espírito estava longe, muito longe das ideias que naquele tempo agitavam a Europa. Com aprazimento seu, a Mesa Censória proscrevia os filósofos, Spinoza, Hobbes, La Mettrie, Voltaire, Diderot e quantos outros! simultaneamente com as produções de fantasia literária, a Nova Heloisa, de Rousseau, os Contos, de Lafontaine, e o licencioso Sophá, de Crébillon; tudo em fim que na vida mental do século XVIII representava o arrojo, o saber, o requinte e a graça. Locke podiam-no ler somente aqueles a quem a Mesa facultasse especial licença, e cujo espírito, reconhecidamente calmo, não corresse o risco de se perder na trama das concepções ousadas do escocês. Como estes muitos mais (46).



Voltaire



Define a situação o dizer-se que, em 1776, não foi permitido divulgar-se a tradução de um Elogio de Descartes, porque - diziam os censores - não estava o povo português ainda acostumado a ver na sua língua escritos que afervoravam «o espírito da dúvida, do exame, da independência e da liberdade». Aos vendedores de livros defesos, as leis impunham, além do confisco, seis meses de cadeia, e em caso de reincidência dez anos de degredo para Angola (47). Mas até nesta parte o propósito que se tinha em vista falhou. Condenar os livros era apontá-los à curiosidade ardente dos espíritos, sequiosos de ideias novas, aculeados pelo atractivo do risco e da proibição. Todavia, só quando o ciclone das guerras napoleónicas, varrendo a Europa, chegou até nós, as inteligências puderam cabalmente emancipar-se da tutela dos censores e da Inquisição.

Entretanto, aproximava-se a hora em que o ministro, saciado dos gozos da ambição e do poder, ia conhecer os travos do infortúnio, menos ásperos todavia do que ele os fizera sentir a outros, que repelira como incómodos ou suplantara como rivais. A apoplexia espreitava a D. José e, após vários assaltos, a 12 de Novembro de 1776, prostou-o de vez. (...)

Com a desaparição do monarca, e a certeza do desfavor em que o potentado da véspera, agora sem amparo caía, o rancor, por tantos anos contido, o apetite de vingança, rompia em clamores de ameaça, em vozes de desprezo, em chufas cruéis. As prisões abriam-se para trazerem à vida comum centenas de pessoas, cuja lembrança no decurso dos anos se apagara, e que, para muitos como ressuscitados, vinham contar as tristezas do seu encerro, a brutalidade dos carcereiros e a lenta agonia dos que, sem conforto, quase à míngua, nas lôbregas enxovias, a morte havia libertado. No paço bradavam os fidalgos da facção de D. Pedro, os amigos e próximos daqueles que, por desejarem o casamento dele tinham pago com duros encarceramentos a audácia de tais votos. Nas ruas o povo, pela primeira vez em tantos anos, podia vociferar as suas queixas sem temor da repressão. Carvalho de escuta aos ecos, que de fora lhe levavam os rumores das maldições em cada hora sentia no peito um golpe, semelhável ao que em Belém rompera as arcas do duque de Aveiro. No primeiro de Março renovou o pedido de exoneração dos empregos, e manifestou o propósito de se ausentar de Lisboa. Comparava-se a Sully na desgraça, e dava a entender, na fingida modéstia, igualá-lo nos méritos. A narrativa que fazia da situação do ministro de Henrique IV no desfavor era alegoria da sua própria. Desta vez foi-lhe a suplica deferida. Houvera o pensamento de despedir o velho ministro sem formalidades, como um servo incapaz ou infiel, mas prevaleceu o parecer, mais decoroso, de se lhe aceitar a demissão como pedida. O decreto é de 4 de Março. Conserva-lhe os honorários de secretário de Estado, e faz-lhe mercê de uma comenda com seus rendimentos. Mas nem uma palavra de apreço ou reconhecimento de tantos serviços! A minuta que Pombal oferecera, e que certamente havia de os rememorar enfaticamente, fora rejeitada. A estima do soberano falecido, pelo ministro, era a só recomendação alegada.






Para o público, que esperava algum áspero procedimento foi uma decepção. Entretanto, ninguém se iludiu com o significado. Se, à primeira vista, a dispensa dos cargos a pedido, com a mercê pecuniária, podia tornar-se por tácita aprovação do passado, soube-se logo também que o marquês fora posto de sobreaviso para responder por seus actos qualquer dia, logo que as acusações, vagamente formuladas, tomassem fundamento jurídico. (...)

Fora não acalmava a tormenta, pelo que Lebzeltern comunicava: «De dia para dia crescem os meus receios pela sorte do marquês de Pombal. A nação cada vez mais se regozija da sua queda. Excitada pela narrativas dos que saem dos cárceres, referindo os cruéis tratamentos recebidos, incessantemente trazem aos pés queixas e acusações contra ele, de modo que a constância dos novos ministros em o defenderem, e a piedade e doçura da rainha dificilmente lograrão poupá-lo a um destino trágico» (54). Contaram-se os presos políticos: excediam de 800, e faltavam muitos, dizia-se que três vezes esse número, falecidos nos longos cativeiros. Com os que saíam dos calabouços da Junqueira e de São Julião apareciam também outros das presigangas no Tejo, junto ao Barreiro. Era, dizia o ministro de Espanha, marquês de Almodôvar, una especie de ressucción de muertos. A voz pública, consoante à regra, exagerava ainda. Dizia-se existirem cárceres subterrâneos, nas arcadas da Praça do Comércio, nas ruínas da Patriarcal. Notícias de boca, pasquins e sátiras escritas propagavam verdades e mentiras, alimentavam nos ânimos a indignação e o desejo de vindicta.

Em Abril arrancou-se do pedestal da estátua de D. José o busto do ministro. A sindicância nas secretarias de Estado ia-se realizando. Logo se deu por falta de quantidade de documentos públicos, muitos dos quais se dizia estarem entre os papéis particulares do ministro. Senhor absoluto da administração, fazia em sua casa o verdadeiro arquivo do reino. Faltavam os processos do Conselho de Estado relativos aos infantes de Palhavã e a tantos fidalgos encarcerados - talvez nunca se escrevessem -; o dos Távoras e duque de Aveiro, guardados por ele em lugar secreto, alegava, com medo que dele se apossassem os jesuítas. Outros importantes documentos, reservados de publicação por conveniências do Estado, confessava guardar enquanto vivo, como sendo «as últimas armas puramente defensivas para reparar os golpes de seus gratuitos e já perdoados inimigos» (55).

O exame à fazenda pública demonstrou achar-se ela em condições deploráveis. Os que ainda defendiam a administração de Pombal - Jacome Ratton registou a asserção (56) - diziam ter ele deixado em cofre 78 milhões de cruzados em moeda, além de muitos milhões em diamantes. Verificou-se existirem 1740 contos, pouco mais de 4 milhões, e uns 5 a 6 milhões em diamantes (57).

O rei falecera devedor insolvente. Dos seis artigos que formam as recomendações finais à filha, que vai ser rainha, um refere-se a esse molesto assunto que o pungia. Dolorosa cena! O senhor absoluto de uma opulenta monarquia, dono das riquezas do Brasil, experimenta, na hora extrema, as angústias do remisso pagador, a quem chega da antecâmara o murmúrio dos credores importunos. Pagar a todos: mas como? Com esse problema se achou logo a braços o novo Governo. No paço, a certos criados deviam-se 14 anos de salários. Determinou a rainha que se lhes desse tudo imediatamente. Fizeram-se economias. Lebzeltern dá notícias destes esforços: «Para solver os débitos tem-se vendido enorme quantidade de cavalos e muares, e também carruagens. Suprimiram-se as touradas, passando-se a vender as rezes, que todos os anos se reservavam para este espectáculo, tão querido do rei. Cuida-se igualmente de acabar com as touradas e representações teatrais. Tudo isto produzirá uma economia anual de dois milhões de cruzados» (58). De 3 mil operários, que trabalhavam no arsenal, despediram-se 4 quintas partes, ficando apenas 600. Esta gente nada recebera nos últimos 2 anos. O Governo resolveu pagar-lhes logo a dívida de 6 meses, e o restante em prestações trimestrais de igual soma.




D. Maria I



Tudo isto, vindo a público, aumentava as iras contra o regime anterior. A viradeira, como se apelidou a reacção contra Pombal, chegou então ao auge. Todos os que no tempo do poderio adulavam o déspota, cobriram-no agora de baldões. Poetastros da ínfima classe, trovadores das alfurjas, bufarinhavam versos satíricos. O número destes é imenso; chega para volumes.

Os vates que, na inauguração da estátua, em loas de asquerosas bajulações, erguiam às nuvens o ministro omnipotente, herói do dia, babujavam agora:


Patrícios meus, clamai sobre o tirano,
Saiba o mundo que foi o tal marquês
Ladrão, traidor, cruel e desumano.


Ou então:

Morreu el-rei é certo
Vos hão-de pregar a peça;
O povo todo começa
A queixar-se do passado
E não fica sossegado
Senão com a vossa cabeça.

O ódio popular, destilado nas cantigas afrontosas, estendia-se à família, aos adictos de Pombal:


Do baboso da Redinha
De um mau pai filho infiel.
..............................................
Libera nos, domine!

Do reverendo Mendonça.
Bernardo em procedimento
...............................................
Libera nos, domine!

Do reverendo Mansilha,
Que foi grande provador
Do livor que tudo é
Libera nos, domine!


Sobre alguns destes já tinham recaído sanções: o abade de Alcobaça, parente do ministro, Madalena de Mendonça, irmã dele, prioreza de um mosteiro, depostos das suas dignidades; frei João de Mansilha, procurador da Companhia dos Vinhos, amigo muito do peito, encarcerado no Convento de São Domingos, por determinação do núncio.

Certos de que já não havia represálias a temer, nem tergiversações da justiça, apareciam os que contra o ditador tinham direitos a reivindicar. Começavam as demandas. «O marquês», refere o medianamente informado Lebzeltern, «de nenhum modo quer pleitos, e conciliatoriamente vai restituindo aos antigos donos as propriedades, que abaixo do justo preço havia comprado» (59). A principiar pelo fisco. No mês de Julho pediam-lhe as décimas atrasadas. Pina Manique, o futuro intendente de polícia, que acumulava o cargo de juiz, com os de superintendente dos contrabandos e contador da fazenda, intervinha para que o dízimo do peixe de Paço de Arcos, uma das melhores prebendas do marquês, lhe fosse tirada, revertendo à casa de Bragança, que em outro tempo a fruíra. Os particulares vinham juntamente. Um reclamava-lhe o preço do Pinhal da Queimada que, segundo a escritura de compra, não fora pago no acto; outro o de um casal, trocado por um padrão de juros, que o ministro se esquecera de entregar (60). De toda a parte apareciam credores, que no tempo das grandezas jamais ousariam declarar-se, e até por mercê tomariam a negligência do devedor.

À saída de Belém deixara Carvalho ao Conde de Oeiras uma relação de dívidas, que devia ir satisfazendo à proporção dos recursos; dívidas por obras nas propriedades de Lisboa e dinheiro emprestado por diversos, algumas quantias sem juros, cerca de 45 contos ao todo (60). Mas depois apareceram muitos mais. Ainda em 1781 um tal João Collings, negociante inglês, lhe reclamava o pagamento de duas pipas de vinho do Porto, fornecidas para Londres, em 1740, no tempo da sua embaixada (61).

Palácio do Conde Oeiras


Ao mesmo tempo, os devedores, perdido o temor antigo das sumárias execuções, ou pior, que o capricho do credor poderia impor-lhes, cobravam ânimo, para, sob todos os pretextos, esquivarem o pagamento. Do decrépito leão todos agora zombavam. O desterrado lamentava-se: «Tenho visto com sobeja clareza que os mesmos que me foram mais obrigados, e me deveram tudo o que hoje possuem, tanto em bens como em honras, procuram depenicar na minha fazenda, desde que viram que lhes não podia frutificar a minha protecção» (63). A viúva de Hermano Braamcamp, cônsul da Holanda, muito protegido de Pombal, que o favorecera com o contrato dos diamantes, exigia-lhe certo pagamento, de pouca monta, a que o ministro por conta de outrem se obrigara. Este glosava o caso assim: «Se fosse capaz de me arrepender do bem que fiz aos ingratos, acharia mais um grande estímulo para me pesar de haver posto a família dos Braamcamp no estado de nobreza e de estimação em que os pus, com os meus bons ofícios» (64). E assim uns e outros acudiam a lembrar-lhe que, para com os grandes, na desgraça, perde a gratidão humana os seus direitos (ob. cit., pp. 272-276; 278-279; 282-285).



Notas:

(33) Voyage, cit., 165. 175.

(34) Quand. Elem., VII, 205.

(35) Duhr, Pombal, 46.

(36) Quand. Elm., VII, 185.

(37) Idem, id. 45..

(38) Latino Coelho, que não é suspeito da desafeição a Pombal, escreve: «Todos os testemunhos são conformes em atestar que nos últimos anos do reinado de D. José o Exército havia quase retrocedido ao estado em que jazera em tempos do seu predecessor» (Hist. Política e Militar, III, 85). E em outra parte: «O Marquês de Pombal era por índole e sistema pouco propenso aos assuntos militares. Não admira pois que, apesar da sua inflexível hombridade em zelar a honra nacional, não elevasse a Marinha portuguesa ao grau de força e perfeição, que poderia esperar-se do seu longo e ousado ministério» (Idem, II, 352).

(39) Decreto de 28 de Junho de 1759.

(40) Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, III, 359.

(41) Teófilo Braga, História da Universidade, III, 571.

(42) Idem, 570.

(43) Idem, 591.

(44) Repres. do professor Sousa Farinha ao príncipe regente, História da Universidade, III, 353.

(45) Mem. do pofessor Santos Marrocos, História da Universidade, III, 592.

(46) Veja-se na História da Universidade, III, 60 e seg.., a relação das obras proibidas pelo edital de 24 de Setembro de 1770.

(47) Teófilo Braga, História da Universidade, III, 49, São dignos de ler-se os pareceres da censura, transcritos na p. 65 e seguintes do mesmo volume.



Teófilo Braga, por Columbano Bordalo Pinheiro




(48) Rel. de 24 de Novembro a 13 de Dezembro de 1776, Duhr, 170.

(49) Relação compendiosa do que se tem passado e vai passando na enfermidade de el-rei meu senhor, Colecção Pombalina, Cod 695.

(50) Declaração entregue por Martinho de Melo ao marquês de Pombal, 4 de Março de 1777.

(51) 4 de Março de 1777, Duhr, Pombal, 174.

(52) Carta ao morgado de Oliveira, 5 de Maio de 1777, Zeferino Brandão, O Marquês de Pombal, p. 63.

(53) 19 de Março de 1777. Esta e outras cartas de que se fazem extractos sem menção de procedência, na Colecção Pombalina, Cod. 713 e 714.

(54) 8 de Abril de 1777, Dhr, Pombal, 176.

(55) Segunda apologia, «Introdução ad perpetuam rei memoriam», Colecção Pombalina, cod. 695.

(56) Recordações, p. 186.

(57) Deixando o poder, Pombal entregou à rainha vários relatórios justificando a sua administração. O que respeita à fazenda tem o título seguinte: Terceiro Compêndio que tive a honra de levar aos pés da Rainha Minha Senhora, com o fim de aliviar o cuidado, que entendi lhe devia estar causando a consideração de haver ficado inteiramente exausto de meios do seu real erário. [segue-se o inventário que pela sua extensão não reproduzimos aqui].

(58) 17 de Maio de 1777 Duhr, 48.

(59) 7 de Setembro de 1777, Duhr, 177.

(60) Carta de 15 de Julho de 1777.

(61) Cartas e outras obras selectas do marquês de Pombal, V, 65.

(62) Carta na Colecção Pombalina, Cod. 706.

(63) Idem ao conde de Oeiras de 31 de Julho de 1777.

(64) Idem ao mesmo, de 6 de Outubro de 1777.


terça-feira, 5 de abril de 2011

Sebastião José (ii)

Escrito por J. Lúcio de Azevedo









Ia terminar o reinado, e a situação do País divergia muito do que a jactância do valido apregoava. A opulência geral, provada nas baixelas, nos opíparos banquetes, nas custosas carruagens, nos gastos particulares, por acasião das festas da estátua; a riqueza do comércio e das manufacturas, o progresso da lavoura, o florescer das colónias, a satisfação do povo pela prosperidade, que um Governo benéfico sobre ele derramava, fazendo, no dizer de Pombal, admiração aos estrangeiros «que nunca haviam entendido que Portugal em tão poucos anos houvesse acumulado riquezas tão superiores à sua compreensão» (11); essa opulência, esse contentamento, esse pasmo, eram ilusões do amor próprio, argumentos mais ou menos sinceros contra os émulos, direitos que o ministro invocava à gratidão pública e ao favor do rei; tal qual nos Estados modernos a remuneração de serviços, com que um chefe de partido avança à conquista, ou um Governo abalado pretende a conservação do poder. É certo que, na progressiva decadência em que vinha o País, já desde quando os tesouros da Índia nele se despejavam, decadência que nem o afluir de ouro e diamantes do Brasil logrou interromper, o terceiro quartel do século XVIII, olhado a distância, parece oferecer uma pausa. O contraste com o desalentador período seguinte, faz ver um renascimento na relativa animação do comércio, sobretudo o marítimo, e no desabrochar de indústrias novas, dando impulso ao trabalho nacional. Não há que negar que, no consulado pombalino, o poder absoluto, ao serviço de uma indómita vontade, estimulou, por instantes, o organismo derrancado da nação. Mas, consumidas na violenta excitação das derradeiras energias desse corpo enfraquecido, o abatimento tinha de ser em seguida, e realmente foi, mais intenso e prolongado.

Entretanto, o reviver fictício da actividade portuguesa, em paralelo com o letargo de tantos anos, ilude o observador desprevenido e, quando no reinado seguinte a inevitável queda se lhe depara, mais desastrosa e fatal, a figura do ministro aparece aureolada de grandeza, à qual presta maior brilho a insuficiência ou a má estrela dos sucessores.

A verdade é que, só à custa de enormes sacrifícios, e por meio de providências, com o correr do tempo insustentáveis, o despertar da nação para a vida económica transitoriamente se realizou. No próprio momento em que as criações de Pombal parecem inaugurar uma nova era de riqueza e bem-estar, situação muito outra se nos revela, nos brados do povo clamando sua miséria, nas angústias do tesouro sob o constante assédio dos credores.

Sem embargo da fama em contrário, a gestão económica de Carvalho foi quase sempre infeliz. Providências, em que fundava seguras esperanças, davam afinal precário resultado, depois de haverem introduzido graves perturbações na vida económica, generalizando o descontentamento, arruinado não poucas fortunas. Logo em seguida à Companhia do Grão-Pará, Pombal, tomando gosto, fundara a do Alto Douro. Em 1759, a de Pernambuco e Paraíba; em 1773, a Companhia Geral das Reais Pescas do Algarve. Fontes de opulência para alguns, poucos, favorecidos, todas elas foram para o povo maldição. Do clamor a que as duas primeiras deram motivo, quando se instituíram, falou-se atrás. Imagine-se agora o exaspero dos lavradores da Estremadura, das regiões do Mondego e do Vouga, quando os esbirros do corregedor lhes iam intimar que arrancassem as vinhas (12), para muitos a sua única riqueza. Das suas, de Oeiras, Pombal vendia o produto, a bom preço, à privilegiada Companhia. Por efeito desta violência, da perturbação geral dos negócios, proveniente do monopólio, muitas casas se despenharam na ruína. O tráfico com o Brasil diminuíra consideravelmente, e as próprias companhias, apesar dos seus privilégios e das restrições em que se amparavam, arrastavam difícil existência. A do Grão-Pará, de 1776 em diante, nunca mais dividiu dividendos. Na colónia queixavam-se negociantes e agricultores. Por incúria da companhia escasseavam as fazendas que só ela podia levar da metrópole; os produtos da terra pagava-os a mesquinho preço; os escravos da África, que tinha por obrigação de levar, e cuja introdução era o motivo da sua existência, umas vezes não chegavam para as necessidades, outras, se vinham em maior número, não podiam ser vendidos em condições de lucro para a companhia, pela pobreza dos moradores. Na colónia e no reino era igual o descontentamento. Quando, em 1778, a concessão terminou, o júbilo foi tamanho em Lisboa que o comércio mandou celebrar um Te-Deum em acção de graças.

Sem embargo dos privilégios e favores do Estado, os títulos desta e das outras companhias corriam depreciados. Acudiu Pombal determinando que nas execuções e partilhas os juízes as considerassem não como dívidas contingentes mas por dinheiro líquido (13), depois impondo pesadas multas a quem os comprasse abaixo do valor nominal (14). Tudo, porém, debalde.

A companhia de Pernambuco e Paraíba fundara-se com grande capital. Promoveu adiantamentos na colónia com prejuízo dos accionistas, que por fim não tinham frete para o número excessivo de barcos empregados no tráfico. É de notar que a cultura do algodão foi introduzida em Pernambuco depois de extinta a companhia. Desta e da outra acabou nas mãos dos liquidadores (15).



Fortaleza no promontório sagrado da Ponta de Sagres.
























A protecção às pescarias do Algarve veio a dar na ruína de uma indústria que desde o tempo do infante de Sagres fora o viveiro tão fértil de onde os arrojados navegantes saíam. A Companhia Geral obteve o privilégio da pesca e dos peixes chamados reais, atum e corvina, com várias isenções fiscais, e o direito de expropriar armazéns, casas, embarcações, redes, cordoalhas, e mais utensílios que os particulares tivessem no mesmo tráfico (16). Depois disso, com o fito de expulsar os pescadores espanhóis, que vinham numerosos à costa portuguesa, Pombal incumbiu a indústria da sardinha a um sindicato Cartell - assim diríamos hoje - composto de oito sociedades, com certas vantagens e obrigações, entre estas a de manterem no tráfego cada uma seis barcos, além do de transporte, e os aparelhos necessários. Criou para sede deste ramo da indústria a Vila Real de Santo António e, querendo promover o desenvolvimento da nova povoação, mandou destruir pelo fogo a de Monte Gordo, ali próxima, onde residiam os pescadores e barqueiros, obstinados em não se transferirem à vila. Ensaio do assalto à Trafaria, três anos depois. Tão producentes foram estas providências que, ao findar do reinado, as sociedades, faltando-lhes a coação do Governo, quase todas se dissolveram; dos 48 barcos do encargo ficaram 10 no mar; os pescadores emigraram para Espanha, de Aiamonte até Cadiz; e a decadência acentuou-se nos anos seguintes, ferindo a indústria algarvia de modo fatal (17).

Despojados em proveito dos monopólios os pequenos capitalistas, violentados os trabalhadores, empobrecido o comércio, por toda a parte no País, metrópole ou colónias, reboavam as queixas. A este respeito são impressivas as informações que à corte de Viena transmitiam os seus representantes: Kail em 1763: «A pobreza e a miséria são gerais e cada dia aumentam a ponto difícil de se imaginar. O comércio está completamente desbaratado, e recebeu agora o último golpe com a chegada da frota, que não trouxe um décimo do que se esperava para contentar os credores estrangeiros, que fiaram as fazendas, e ir entretendo o crédito da praça muito abalado» (18). Dois anos depois, o conde Welsperg considera o comércio do Brasil em desastrosa situação, agravada por notícias dos preparativos que então faziam contra Espanha. Nem se aguentavam as companhias, cujas extorsões levavam os habitantes do Brasil a sumirem-se no interior, deixando-lhes muitas vezes grandes dívidas por solver (19). Em 1769, Lebzeltern: «O comércio em geral acha-se em extrema decadência por causa de tantas companhias que se criaram». Em 1774: «Nunca o comércio se viu no estado de abatimento em que se encontra agora» E em 1776, já no fim do reinado: «O povo miserável e carregado de tributos suportaria ainda assim tudo com paciência, se visse que tentavam dar algum lenitivo a seus males, e o meio único, pelo qual todos suspiram, seria a extinção das companhias e a restituição do comércio livre» (20). O mesmo diplomata faz em breves palavras a síntese da obra de Pombal: «Este povo que D. João V, apesar de seus gastos desmedidos, da sua liberalidade excessiva, deixou, ao morrer, abastado, contente e feliz, oferece à primeira vista a imagem da indigência e da escravidão» (21). E não se diga ser isto maledicência de estrangeiros, que a emulação e interesse político tornavam hostis. Entre as cortes de Viena e Lisboa questões a debater não havia. As relações pessoais do primeiro-ministro, com aqueles que tão desfavorável juízo da sua administração formulavam, foram sempre cordiais; com Lebzeltern de relativa intimidade. Nada leva a infirmar os testemunhos com suspeição. Exagerados podiam ser no pessimismo, se a derrocada, seguinte à queda de Pombal, não desvendasse a fraqueza da sua obra. Em todo o caso, reflectiam a opinião corrente, o mal-estar, traduzido nas queixas gerais.

Sobre as indústrias, que o ministro com tanto desvelo buscava radicar em Portugal, ouçamos o mesmo julgador: «As circunstâncias, em que as fábricas, sem excepção alguma, se encontram, são tais, que os produtos não têm saída, já pela ruim qualidade, já pelo preço excessivo, de modo que só com extraordinários auxílios do tesouro se podem manter» (22). Em outra ocasião dizia ainda: «Quanto às indústrias, cuida-se mais de lhes dar uma aparente florescência, que de as estabelecer em bases sólidas. Para esse fim se exaure o tesouro público, se oprime o comércio estranho, e se acha a nação privada de cópia de objectos necessários e comodidades» (23). E a sorte dessas criações, quando o bafo carinhoso do fundador lhes faltou, confirmou estes assertos. Pouco escapou à derrocada geral.






(...) o homem era evidentemente inferior à tarefa da reformação geral que se impusera. Muitas das suas determinações são apenas devaneios de um espírito autoritário, que não vacila ante o atropelo improfícuo de direitos e costumes, ante as mesquinhas tiranias, para impor ideias que a persuasão, melhor que o constrangimento das leis, faria vingar. Tal foi a pragmática sobre os casamentos de pessoas da nobreza, que proíbe concorrerem à cerimónia, por convite ou sem ele, outras pessoas além dos padrinhos e parentes do primeiro grau, bem assim passarem os noivos na corte a noite de núpcias, devendo ir para fora da cidade, mais de duas léguas, e não voltar antes de passados dez dias (24). Outro decreto exclui, na fidalguia, as filhas da herança paterna quando haja varões, ficando a estes o encargo de as sustentar; proíbe os dotes e disfarçados donativos por ocasião do casamento; limita o enxoval e o presente do esposo, designado àquele o valor de 4000 cruzados, a este os objectos de que se há-de compor: um vestido de gala para o noivado, dois outros para os dias imediatos e algumas jóias modestas. «O fim desta lei», dizia Pombal, «é sustentar o património das casas e facilitar o matrimónio dos filhos delas» (25).

A seguinte disposição, que o ministro considera entre as suas mais beneméritas, descobre uma usança que vinha das idades longínquas da raça. Por efeito dela não devem ser as viúvas encerradas em quartos escuros, nem dormir em camas rasas no chão, nem ficar por largo tempo reclusas, após a morte dos maridos; abrir-se-ão as janelas ao fim de oito dias; não passará o lutuoso retiro de um mês (26). É isto sob pena de 2000 mil cruzados, em que os parentes, responsáveis das práticas vedadas, participavam.

Voltemos à gestão económica e financeira.

Agravando o mal-estar geral, a penúria constante do erário reflectia-se no comércio e na vida particular. A falta de pontualidade nos pagamentos foi um dos característicos desta administração famosa. Devia-se o pré às tropas; deviam-se os salários nas oficinas do Estado, as soldadas aos serviçais do paço. Em 1763, dizia Kail que ninguém recebia os soldos, ordenados, pensões ou juros (27). O viajante inglês Wraxall, que veio a Lisboa em 1772, dá a informação seguinte: «A casa real andava tão mal administrada que a maior parte dos oficiais e criados não eram pagos, havia uns poucos de anos, e se achavam por isso nas mais penosas circunstâncias... Os lacaios, que acompanhavam as carruagens reais, estavam quase sem meios de subsistência» (28). Estes factos deviam ser notórios, e recolheu-os Wraxall evidentemente nas conversas durante a sua visita. Segundo Dalrymple, oficial da guarnição de Gibraltar, que percorreu o País em 1774, os rendimentos públicos, entre os quais avultava o ouro do Brasil, eram desbaratados sem critério, em toda a casta de despesas alheias aos compromissos correntes. «O rei», dizia ele, «está a dever a todo o pessoal da sua casa» (29). Não menos positivo é o depoimento que se encontra na apócrifa Viagem do Duque de Chatelet, obra de um admirador de Pombal. O escritor teve ocasião de verificar, segundo diz, quão pouco cuidadoso era D. José em pagar as suas dívidas, même les plus criardes. Por ocasião da sua morte todos os criados reclamavam quatro ou cinco anos de soldadas. A propósito disso mais de uma vez lhes ouviu murmurações nada respeitosas (30). Em 1764, referia Kail que ao fornecedor das reais ucharias a dívida era de um e meio milhão de cruzados, conseguindo ao cabo de muitas e sérias representações que lhe pagassem um terço (31). Em 1769, o cônsul da Áustria, Stockler, negociante, a pique da falência, dava-se a insanos esforços para cobrar quatro mil cruzados, dívida do paço. Ainda sobre os criados escrevia, em 1773, Lebzeltern: «Há dez anos não recebem um real dos seus ordenados, de modo que a maior parte vive de esmolas» (32).






Notas:

(11) Observações secretíssimas, IV.

(12) Lei de 26 de Outubro de 1765.

(13) Alvará de 21 de Junho de 1766.

(14) Alvará de 30 de Agosto de 1768.

(15) Ratton, Recordações, 242.

(16) Alvará de 15 de Janeiro, de 1773.

(17) Cf. a «Memória Sobre a Decadência da Pescaria do Monto Gordo», por Constantino Botelho de Lacerda Lobo, nas Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, III, 351 e seg.

(18) 18 de Outubro de 1763, Duhr, Pombal, 31.

(19) 20 de Agosto de 1763, Duhr, Pombal, 32.

(20) Idem, 34, 43, 40.

(21) Relatório de Dezembro de 1776, Idem, 31.

(22) 18 de Março de 1773, Duhr, Pombal, 41.

(23) 18 de Outubro de 1774, em cifra, Idem, 41.

(24) Lei de 19 de Agosto de 1761.

(25) Contrariedade ao libelo oferecido por Francisco José Caldeira Soares Galhardo de Mendanha contra o Marquês de Pombal, apêndice, Epítome Cronológico.

(26) Lei de 17 de Agosto de 1761. Veja-se a Contrariedade ao libelo etc.

(27) 17 de Outubro de 1763, Pombal, Duhr, 32.

(28) Wraxall, Mémoires historiques de mon temps, trad., Paris, 1817, I, 21.

(29) Dalrymple, Voyage en Espagne et en Portugal, trad., Paris, 1783, p. 197.

(30) Voyage du ci-devant duc de Chatelet, II, 63.

(31) Duhr, Pombal, 46.

(32) Idem, id., 46.

Continua


domingo, 3 de abril de 2011

Sebastião José (i)

Escrito por J. Lúcio de Azevedo





Desembaraçado desde a extinção dos jesuítas da sua preocupação suprema, Pombal pôde consagrar-se mais livremente à administração interna, e nesta parte não foram os últimos anos do seu Governo os menos operosos de todo ele. Infatigável, aos 77 anos, conservava a energia da juventude, a actividade do período culminante da existência. Ao terminar o reinado, o embaixador francês, marquês de Blosset, acha que ele, «são de corpo e de espírito, se julga imortal, e fala de vastos projectos que nem seus filhos poderiam em vida realizar» (1).

No longo estádio de mais de um quarto de século deixara pelo caminho, desaparecidos para sempre, alguns dos companheiros: seu irmão Francisco Xavier de Mendonça, D. Luís da Cunha, arrebatados pela morte; Tomé Corte Real que a doença impossibilitara; Diogo de Mendonça e José Seabra arrojados aos distantes exílios. Da primeira hora restava ele só. Os ministros, seus actuais colaboradores, Martinho de Melo, da Marinha; Aires de Sá, dos Negócios Estrangeiros; o cardeal da Cunha, ministro assistente, seriam os epígonos da regeneração nacional.

Esta fora realizada por ele, assim entendia, de modo eficaz. A tensão do poder régio atingira o máximo. A Santa Sé, finalmente, humilhara-se; a Inquisição obedecia-lhe; os jesuítas eram uma tribo dispersa na Europa Oriental, a mendigar a protecção de Frederico II, protestante, ou da imperatriz Catarina, sismática. Com a repressão de 1756 no Porto para com o povo, com a de 1758 para a nobreza, excluíra-se o risco de qualquer reacção violenta contra a autoridade. À vontade real, no âmbito que lhe era lícito pretender, nenhuma força estranha se contrapunha; e, para definitivamente assentar o direito, fizera declarar informe, absurdo, ignorante, mais ainda, apócrifo, o livro célebre em que o doutor Velasco, lente da Universidade, um blasfemo, vindicando a aclamação de D. João IV, pronunciara, respondendo aos castelhanos, que o poder dos reis lhes vem dos povos, que a estes é lícito destituir os monarcas intrusos ou tiranos (2).

Conseguido isto, para o serviço dessa vontade, cumpria tornar o País independente e próspero. Para esse fim o tinha, até hoje lhe foi possível, emancipado dos estrangeiros, dando impulso ao comércio, à navegação, à agricultura, e suscitando indústrias novas. Desde a Companhia do Grão-Pará, que tantos protestos levantara, outras havia criado, com intuito de impelir as classes abastadas às empresas mercantis e despertar as iniciativas. Dessas fundações a mais notável fora certamente a Companhia do Alto Douro, sustentada por 20 anos contra os ataques veementes da Inglaterra, e cujo privilégio, terminado o primeiro período, renovara em 1776 por prazo igual.






Não encontrando na população os capitais disponíveis, as aptidões técnicas, o impulso nativo para as indústrias fabris, cuidou de as estabelecer ele próprio e, com os capitais do Estado, criara as fábricas de sedas e louças em Lisboa, as de lanifícios na Covilhã, Fundão e Portalegre, de tecidos de algodão em Alcobaça, de chapéus em Pombal, e várias outras; a Guilherme Stephens, inglês, adiantara 80 000 mil cruzados dos cofres públicos para montar a florescente fábrica de vidros da Marinha Grande. Por este meio, e com as isenções fiscais, os privilégios, alentara as manufacturas e as aclimara no País. Nesse fito, além de outras providências, proibira a introdução de chapéus do estrangeiro e a de louça que não fosse do Oriente. Para educar o trabalho nacional, fizera que viessem de fora do reino mestres de relojoaria, fundições, cutelaria, estuques, cerâmica, tinturaria e outras artes; e colmara obra de fomento material instituindo a Aula de Comércio, a primeira que houve na Europa, e de onde em pouco tempo saíram auxiliares hábeis de escrita, na arrumação das contas e na aritmética, preciosos colaboradores que até aí faltavam nas casas de negócio e nas estações públicas.

Nas artes liberais, a arquitectura e a escultura haviam medrado. O plano de reedificação da cidade, em seguida ao terramoto, devia-se ao arquitecto Eugénio dos Santos, que ele soubera escolher entre os da escola de Mafra, onde a monstruosa construção de João V fora um seminário de artistas notáveis. A disposição regular das novas casas e das ruas, o majestoso traçado da Praça do Comércio, o monumento soberbo do rei D. José, tornavam Lisboa rival das mais sumptuosas capitais, imunizada de outra catástrofe por um dúctil arcabouço de madeira nas edificações.

Ao mesmo passo, havia providências de outra ordem, que para a sua administração seriam eterna glória. Expelindo os jesuítas, sacudira do País, como julgava, a lepra que por 200 anos o tinha gafado. A reforma da Universidade, com o aplauso da Europa culta, era disso a brilhante consequência. Investindo com a superstição e o preconceito secular, restituíra aos cristãos-novos a consideração social, e derrogara as leis que os excluíam dos cargos públicos e das ordens militares. Em voos de mais alcance, emancipara os índios da América da tutela de missionários e colonos, e concedera-lhes direitos iguais aos dos outros portugueses; e, honrando a civilização da Europa, extinguira a escravidão do reino, declarando livres os negros que de futuro entrassem, e os indivíduos que nelem viesse, a nascer do ventre cativo, alguns pela mestiçagem de gerações sucessivas mais alvos do que seus pretendidos senhores.

Tudo isto representava uma enorme soma de trabalho, e um diuturno lutar contra a oposição do interior e as dificuldades, a que uma nação pequena e fraca está sujeita perante as ambições do exterior. Por essa razão, o seu nome de estadista genial ficaria na história. Assim conssiderava ele a sua obra, e assim lho repetiam em torno, não faltando a admiração do estrangeiro, surpreso das energias de um Governo tantos anos apagado e frouxo na sua acção diplomática e administrativa. O embaixador francês, por exemplo, encontrava conjuntas nele as qualidades que separadamente distinguiram Richilieu, Mazarin e Alberoni (3).

A inauguração da estátua equestre, a 6 de Junho de 1775, fora a apoteose do regime. Sob a figura do soberano era o ministro divinizado. O terramoto arrasara Lisboa para lhe dar a ele o ensejo deste triunfo. Através do rei, que era a sombra do poder, recebia ele, poder verdadeiro, as homenagens que para o outro decretara. O guerreiro, no corcel da batalha, com o seu olhar de bronze - Statua statuoe, como rezava o pasquim colado no sopé, e nada melhor que este dito caracteriza a comemoração -, o guerreiro, lá no alto, não era mais que um símbolo, o do absolutismo robustecido, e por ele Pombal confiscado, em proveito da sua obra de engrandecimento próprio e revivificação do País. As serpes, esmagadas aos pés do cavalo representam os inimigos que o ministro vencera, as intrigas que anulara; e, aos lados do pedestal, alegorias triunfais reportavam-se a ele, ali presente no medalhão, que não era, como a estátua superior, a imagem de uma abstracção, mas o homem real, de cabeleira e casaca, semblante carregado, ao peito a cruz de Cristo, tal qual usavam vê-los aqueles que nesta hora com fervor o aclamavam, ou despeitados a meia voz o maldiziam.

Estátua equestre de D. José I


Em tal momento, nenhuma satisfação faltava ao seu orgulho. Possuía o poder régio por direito de conquista, e à roda de si, dispensador supremo dos favores, via a malta famélica de clientes e lisonjeiros a mendigarem-lhe os sorrisos. Já três anos antes, lugar-tenente do rei, e com a pompa que só ao rei pertencia, fora a Coimbra dar solene consagração à reforma da Universidade. Marquês de Pombal desde 1770, emparelhava com a mais luzida nobreza do reino. Fora do País tinha um nome feito, e era a sua pessoa o alvo, nas discussões, dos ataques e dos louvores. Para a política internacional, D. José não existia. Era a entidade simbólica em nome de quem um homem de universal fama manifestava os seus intuitos e vontades. Nas cortes estrangeiras falava-se no rei somente a propósito da aventura dos Távoras.

Dentro do País tudo obediente se acurvava ao seu arbítrio. Não havia resistência que o seu jugo não dobrasse, nem excessos ou erros de mando que o aplauso não cobrisse. Da abjecção geral emergem, porém, sem mácula, duas graciosas figuras de mulher, duas crianças de forte coração, que ousam afrontar o potentado, e vindicam a dignidade humana, ultrajada pela cobardia de tantos que não tinham por desculpa a fraqueza do sexo.

Isabel de Sousa, filha do ministro de Portugal em Paris, D. Vicente de Sousa Coutinho, obrigada aos 15 anos a desposar o filho segundo de Pombal, futuro marquês, resiste às solicitações do marido, jovem como ela, às insinuações, às ameaças, ardis e provavelmente a toda a sorte de violências, e guarda coração e virginal pureza para aquele que já antes escolhera, forçando o ministro temido a requerer, três anos passados, a anulação do matrimónio e abrir mão da fortuna, com que ideara arredondar a sua já grande casa. O encerro em um convento, até à acessão de D. Maria I, foi o preço que à gentil heroína custou a resistência.

Leonor de Almeida, o culto espírito, a poetisa, depois marquesa de Alorna, prisioneira de Estado, com sua mãe, aos 8 anos de idade, como parenta dos Távoras, aos 18 anos lança um desafio a um grande, o arcebispo de Lacedemónia, que por uma fútil infracção à disciplina monástica lhe cominava a ira de Pombal, os dois versos de Corneille:


Le coeur d'Eléonnore est trop nobre et trop franc
Pour craindre ou respecter le bourreau de son sang!


O repente audacioso da donzela foi punido. Ao semideus injuriado bastava, por vingança, asfixiar-lhe a juventude no claustro, e apartá-la para sempre da liberdade e do amor.



Execução dos Távoras






Omnipotente, afeito às subserviências e lisonjas, Pombal, elevado ao coronal das ambições, conservava, contudo, entre o fausto da corte, a virtude austera da parcimónia, aprendida nos anos, forçadamente sóbrios, da mocidade. Em contraste com a grande representação política, o seu viver era modesto. Tirante a escolta de cavalo que, desde a execução dos Távoras, lhe seguia a carruagem, nada mais ostentava que exteriormente o exaltasse. Passado o terramoto, residiu sempre em uma barraca, contígua à que servia de paço ao rei. Não tinha fausto de mesa ou de equipagens. Os criados eram poucos. Em 1776 andava em Lisboa na mesma carruagem em que, 16 anos antes, fizera a jornada de Viena de Áustria (4). Não usava jóias mais que o hábito de Cristo de brilhantes. Baixela de prata tinha a que lhe servira em Londres e Viena, de sorte que, quando eram numerosos os convivas, nos jantares de cerimónia, mandava pedir por empréstimo as peças precisas aos colegas do ministério (5). A economia de quem quer juntar fortuna, para deixar aos filhos, era a regra da sua vida.

Em compensação, nenhuma hora achava em demasia para os seus actos de estadista. Foi assim que, ao inaugurar-se a estátua, no auge da grandeza e da satisfação própria, entendeu fazer o balanço do reinado, e pôr-lhe a rubrica daquele em cujo nome, no espaço de 25 anos, para bem ou para mal, sacudira um povo dócil, espavorido de seus ímpetos. Para esse fim levou ao rei um memorial, que era o compêndio da sua administração, e o altissonante panegírico dela (6). Não que se arrogasse méritos pessoais; tudo dizia feito por indicação do soberano, a quem a majestade do trono infundia tino e saber, Do mesmo modo com as ordens régias se havia de desculpar dos actos cruéis. Dele próprio havia somente «a fidelidade, o zelo, o amor ao real paço», e a fortuna de ser o escolhido executor das «iluminadas e prudentes resoluções», que um cérebro augusto elaborava. Mal amanhadas lisonjas, que só a boçalidade mais soez enganariam. Através da solene adulação, nunca a vaidade humana com mais soberbia se afirmou.

Sem mais recato, e sem temer o desmentido, a que ninguém já se abalança, Carvalho proclama renascida a época brilhante de D. Manuel I e D. João III; opulento mais do que então o comércio, florescentes as indústrias, próspera a agricultura, as artes em progresso, as boas letras volvidas à perfeição, das melhores épocas. E, num arroubo de satisfação, exalta «o estado da filologia ou das belas letras, que servem de base a todas as ciências», comemora o afluxo das prosas e poesias - foram mais de600 autores - que apareceram na Mesa Censória a celebrar a inauguração, em português, latim, grego, hebraico e arábico «com a pureza de estilo e elegância dos séculos de Demóstenes, dos Homeros, dos Túlios, dos Virgílios, dos Horácios em Roma, e dos Teives, Andrades, Gouveias, Resendes, Barros, Camões e Bernardes em Portugal» (7). Como se vê, três anos do novo regime universitário tinham bastado, segundo o dizer seu, para sacudir do País a ignorância, e soerguer a literatura da abjecção, que os jesuítas tinham, em dois séculos, preparado. Com isto, baixando às coisas ínfimas, sem curar do ridículo, até à multidão das bandejas de prata, nos pantagruélicos festins da solenidade, o luxo dos trajes e carruagens, o adiantamento a que chegou neste reinado feliz a caligrafia, de modo que «quando até o ano de 1750 era rara a pessoa que escrevesse uma carta com boa letra, há hoje», afirmava, «a mesma raridade em encontrar quem escreva mal» (8); tudo é tema para enaltecer o seu governo benéfico e fecundo (9).

A este ímpar de vaidades, às louvaminhas dos turibulários, veio dar a final consagração a presumida tentativa contra a sua vida, mostrando que o ministro se considerava pessoa à parte entre os vassalos, afim na intangibilidade e prerrogativas à do rei. Foi um caso de anarquismo por antecipação de mais de 100 anos. Segundo uma versão saída a lume, o genovês João Baptista Pele, forasteiro mal conhecido em Lisboa, propusera-se assassiná-lo, por meio de um petardo, colocado sob o assento da carruagem, e preparado para rebentar durante o trajecto para o Terreiro do Paço no dia dos festejos. A coincidência do assassínio com a solenidade; a falta de testemunhas, a não ser o único denunciante; a superabundância de provas - bilhetes acusadores que o criminoso, em vez de destruir, parecia apostado a deixar por onde pudessem ser apanhados -, a persistente negativa através dos tormentos, tudo leva a crer que a protérvia de espiões inventou este atentado. Cúmplices ou mandantes, para a empresa de tal lote, só dois ou três embuçados, vagamente entrevistos, e o autor desconhecido dos bilhetes, cujo teor, exuberante em pormenores comprometedores, de longe insinua falsidade. É certo que do processo dirigido, como o dos regicidas, pelo primeiro-ministro, consta haverem-se encontrado no quarto de Pele os explosivos, moldes de fechaduras, que se verificou serem da cocheira de Pombal, e outros utensílios do crime. O infeliz, que tinha no bolso as chaves, emudecia, não atinando explicar como tinham vindo aqueles objectos a sua casa; e as façanhas dos que hoje chamamos agentes provocadores, autorizam a presumir que não seria a estupefacção simulada.







Detido Pele, em seguida a uma vã correria, com os esbirros no encalço, foi declarado réu de lesa-majestade. Como para com os Távoras puseram-se de banda as leis do reino; julgamento sumário, condenação inevitável. Pena, igualmente no arbítrio dos juízes, a que em França padecera Damiens o regicida. Tortura ordinária e extraordinária, mãos decepadas, o corpo esquartejado por cavalos, crueldade nunca vista em Portugal. A agonia do infeliz foi atroz, mas Carvalho tinha uma vingança de rei.

Não obstante o servilismo em que vivia sepultado o País, não faltavam murmurações. O horror da execução, a insuficiência da prova, como se viu da sentença publicada, a desproporção da pena a um delito frustrado, se é que algum houve, do que muitos duvidavam, tudo isso acirrava a pública aversão ao tirano, a qual por latente não era menos real. Já, sopitando o terror, corriam boatos de reacção. Dizia-se que, na inauguração da estátua, planeara ele proclamar herdeiro da coroa o princípe D. José, excluindo-se a mãe, natural sucessora, a princesa do Brasil; que muitos fidalgos tinham ido, com armas ocultas, à cerimónia para se oporem à declaração; que as tropas municiadas estavam de prevenção para abafar qualquer distúrbio, ou incoveniente manifestação; que finalmente o projecto havia gorado por se pronunciar contra ele a corte de Espanha, cujas tropas se moviam para a fronteira (10).

Se foi certo, mais havia de acerar isso em Pombal a tendência à repressão, e ao furor nos castigos. A última de suas explosões, de todas a mais cruel, foi o incêndio da Trafaria, com muitas mortes e prisões. Já o rei adoecera para morrer, e a fúria do ministro crescia, com prenúncios, que via desfavoráveis, da sua futura sorte. Com o pretexto de que lá se acoitavam, com os pescadores, muitos fugitivos à recruta, então activa pelos prospectos de guerra com a Espanha, o juiz Manique, esbirro pronto às violências, atravessou o Tejo, à frente de soldados, em uma sombria noite de Janeiro, para incendiar as pobres choupanas, de colmo e tábuas, onde dormiam os labutadores do mar com suas famílias. O intento, pelo modo da execução, tanto seria de colher no pânico os transfugas, como destruir, qual ninhada de feras, os habitantes. Ao crepitar das chamas, precipitavam-se os desditosos de encontro ao cerco, mulheres, crianças e velhos no torvelinho. Houve mortes; a compaixão dos soldados poupou a muitos, porventura iludindo as ordens. Conhecido o facto, o clamor sobre a barbaridade foi geral. Cavalho justificou-se mais tarde, dizendo que o lugar era um coiro de criminosos, os pescadores não pagavam os tributos, espancavam os fiscais, e que o rei para os punir ordenara que se arrasasse a povoação. Salvo o mandado do soberano, que agonizava, deve ter sido o caso assim. Sangue e ruína era o que Pombal, nos estos da sua ira insensata, proferira (in O Marquês de Pombal e a sua Época, Clássica Editora, 1990, pp. 260-266).



Notas:

(1) Memória, 2 de Janeiro de 1777, Quad. Elem., VIII, Introd., p. LXII.

(2) Justa aclamação de sereníssimo rei de Portugal D. João IV, Lisboa, 1646, por Francisco Velas de Gouveia, livro condenado por uma junta de lentes e desembargadores, a requerimento do Procurador da Coroa, em 30 de Abril de 1767.

(3) Memórias do marquês de Blosset, 2 de Janeiro de 1777, Quad. Elem., VIII, Introd., p. LXI.

(4) Ratton, Recordações, 187.

(5) Apologia primeira: «Representação que o marquês de Pombal, com carta de 2 de Abril de 1777, mandou a seu filho, para a pôr na presença da rainha, em defesa da calúnia de se haver enriquecido com prevaricação na administração da fazenda real», Colecção Pombalina, Cod. 695, e também impressa em Smith, Memoires, etc.

(6) Observações secretíssimas do marquês de Pombal na ocasião da inauguração da estátua equestre, no dia 6 de Junho de 1775, e entregue por ele mesmo, oito dias depois, ao senhor rei D. José I. Muitas vezes impresso.

(7) Observações secretíssimas, IV.

(8) Observações secretíssimas, III.

(9) Observações secretíssimas, III.

(10) Gramoza, Sucessos de Portugal, I, 73.





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