terça-feira, 5 de abril de 2011

Sebastião José (ii)

Escrito por J. Lúcio de Azevedo









Ia terminar o reinado, e a situação do País divergia muito do que a jactância do valido apregoava. A opulência geral, provada nas baixelas, nos opíparos banquetes, nas custosas carruagens, nos gastos particulares, por acasião das festas da estátua; a riqueza do comércio e das manufacturas, o progresso da lavoura, o florescer das colónias, a satisfação do povo pela prosperidade, que um Governo benéfico sobre ele derramava, fazendo, no dizer de Pombal, admiração aos estrangeiros «que nunca haviam entendido que Portugal em tão poucos anos houvesse acumulado riquezas tão superiores à sua compreensão» (11); essa opulência, esse contentamento, esse pasmo, eram ilusões do amor próprio, argumentos mais ou menos sinceros contra os émulos, direitos que o ministro invocava à gratidão pública e ao favor do rei; tal qual nos Estados modernos a remuneração de serviços, com que um chefe de partido avança à conquista, ou um Governo abalado pretende a conservação do poder. É certo que, na progressiva decadência em que vinha o País, já desde quando os tesouros da Índia nele se despejavam, decadência que nem o afluir de ouro e diamantes do Brasil logrou interromper, o terceiro quartel do século XVIII, olhado a distância, parece oferecer uma pausa. O contraste com o desalentador período seguinte, faz ver um renascimento na relativa animação do comércio, sobretudo o marítimo, e no desabrochar de indústrias novas, dando impulso ao trabalho nacional. Não há que negar que, no consulado pombalino, o poder absoluto, ao serviço de uma indómita vontade, estimulou, por instantes, o organismo derrancado da nação. Mas, consumidas na violenta excitação das derradeiras energias desse corpo enfraquecido, o abatimento tinha de ser em seguida, e realmente foi, mais intenso e prolongado.

Entretanto, o reviver fictício da actividade portuguesa, em paralelo com o letargo de tantos anos, ilude o observador desprevenido e, quando no reinado seguinte a inevitável queda se lhe depara, mais desastrosa e fatal, a figura do ministro aparece aureolada de grandeza, à qual presta maior brilho a insuficiência ou a má estrela dos sucessores.

A verdade é que, só à custa de enormes sacrifícios, e por meio de providências, com o correr do tempo insustentáveis, o despertar da nação para a vida económica transitoriamente se realizou. No próprio momento em que as criações de Pombal parecem inaugurar uma nova era de riqueza e bem-estar, situação muito outra se nos revela, nos brados do povo clamando sua miséria, nas angústias do tesouro sob o constante assédio dos credores.

Sem embargo da fama em contrário, a gestão económica de Carvalho foi quase sempre infeliz. Providências, em que fundava seguras esperanças, davam afinal precário resultado, depois de haverem introduzido graves perturbações na vida económica, generalizando o descontentamento, arruinado não poucas fortunas. Logo em seguida à Companhia do Grão-Pará, Pombal, tomando gosto, fundara a do Alto Douro. Em 1759, a de Pernambuco e Paraíba; em 1773, a Companhia Geral das Reais Pescas do Algarve. Fontes de opulência para alguns, poucos, favorecidos, todas elas foram para o povo maldição. Do clamor a que as duas primeiras deram motivo, quando se instituíram, falou-se atrás. Imagine-se agora o exaspero dos lavradores da Estremadura, das regiões do Mondego e do Vouga, quando os esbirros do corregedor lhes iam intimar que arrancassem as vinhas (12), para muitos a sua única riqueza. Das suas, de Oeiras, Pombal vendia o produto, a bom preço, à privilegiada Companhia. Por efeito desta violência, da perturbação geral dos negócios, proveniente do monopólio, muitas casas se despenharam na ruína. O tráfico com o Brasil diminuíra consideravelmente, e as próprias companhias, apesar dos seus privilégios e das restrições em que se amparavam, arrastavam difícil existência. A do Grão-Pará, de 1776 em diante, nunca mais dividiu dividendos. Na colónia queixavam-se negociantes e agricultores. Por incúria da companhia escasseavam as fazendas que só ela podia levar da metrópole; os produtos da terra pagava-os a mesquinho preço; os escravos da África, que tinha por obrigação de levar, e cuja introdução era o motivo da sua existência, umas vezes não chegavam para as necessidades, outras, se vinham em maior número, não podiam ser vendidos em condições de lucro para a companhia, pela pobreza dos moradores. Na colónia e no reino era igual o descontentamento. Quando, em 1778, a concessão terminou, o júbilo foi tamanho em Lisboa que o comércio mandou celebrar um Te-Deum em acção de graças.

Sem embargo dos privilégios e favores do Estado, os títulos desta e das outras companhias corriam depreciados. Acudiu Pombal determinando que nas execuções e partilhas os juízes as considerassem não como dívidas contingentes mas por dinheiro líquido (13), depois impondo pesadas multas a quem os comprasse abaixo do valor nominal (14). Tudo, porém, debalde.

A companhia de Pernambuco e Paraíba fundara-se com grande capital. Promoveu adiantamentos na colónia com prejuízo dos accionistas, que por fim não tinham frete para o número excessivo de barcos empregados no tráfico. É de notar que a cultura do algodão foi introduzida em Pernambuco depois de extinta a companhia. Desta e da outra acabou nas mãos dos liquidadores (15).



Fortaleza no promontório sagrado da Ponta de Sagres.
























A protecção às pescarias do Algarve veio a dar na ruína de uma indústria que desde o tempo do infante de Sagres fora o viveiro tão fértil de onde os arrojados navegantes saíam. A Companhia Geral obteve o privilégio da pesca e dos peixes chamados reais, atum e corvina, com várias isenções fiscais, e o direito de expropriar armazéns, casas, embarcações, redes, cordoalhas, e mais utensílios que os particulares tivessem no mesmo tráfico (16). Depois disso, com o fito de expulsar os pescadores espanhóis, que vinham numerosos à costa portuguesa, Pombal incumbiu a indústria da sardinha a um sindicato Cartell - assim diríamos hoje - composto de oito sociedades, com certas vantagens e obrigações, entre estas a de manterem no tráfego cada uma seis barcos, além do de transporte, e os aparelhos necessários. Criou para sede deste ramo da indústria a Vila Real de Santo António e, querendo promover o desenvolvimento da nova povoação, mandou destruir pelo fogo a de Monte Gordo, ali próxima, onde residiam os pescadores e barqueiros, obstinados em não se transferirem à vila. Ensaio do assalto à Trafaria, três anos depois. Tão producentes foram estas providências que, ao findar do reinado, as sociedades, faltando-lhes a coação do Governo, quase todas se dissolveram; dos 48 barcos do encargo ficaram 10 no mar; os pescadores emigraram para Espanha, de Aiamonte até Cadiz; e a decadência acentuou-se nos anos seguintes, ferindo a indústria algarvia de modo fatal (17).

Despojados em proveito dos monopólios os pequenos capitalistas, violentados os trabalhadores, empobrecido o comércio, por toda a parte no País, metrópole ou colónias, reboavam as queixas. A este respeito são impressivas as informações que à corte de Viena transmitiam os seus representantes: Kail em 1763: «A pobreza e a miséria são gerais e cada dia aumentam a ponto difícil de se imaginar. O comércio está completamente desbaratado, e recebeu agora o último golpe com a chegada da frota, que não trouxe um décimo do que se esperava para contentar os credores estrangeiros, que fiaram as fazendas, e ir entretendo o crédito da praça muito abalado» (18). Dois anos depois, o conde Welsperg considera o comércio do Brasil em desastrosa situação, agravada por notícias dos preparativos que então faziam contra Espanha. Nem se aguentavam as companhias, cujas extorsões levavam os habitantes do Brasil a sumirem-se no interior, deixando-lhes muitas vezes grandes dívidas por solver (19). Em 1769, Lebzeltern: «O comércio em geral acha-se em extrema decadência por causa de tantas companhias que se criaram». Em 1774: «Nunca o comércio se viu no estado de abatimento em que se encontra agora» E em 1776, já no fim do reinado: «O povo miserável e carregado de tributos suportaria ainda assim tudo com paciência, se visse que tentavam dar algum lenitivo a seus males, e o meio único, pelo qual todos suspiram, seria a extinção das companhias e a restituição do comércio livre» (20). O mesmo diplomata faz em breves palavras a síntese da obra de Pombal: «Este povo que D. João V, apesar de seus gastos desmedidos, da sua liberalidade excessiva, deixou, ao morrer, abastado, contente e feliz, oferece à primeira vista a imagem da indigência e da escravidão» (21). E não se diga ser isto maledicência de estrangeiros, que a emulação e interesse político tornavam hostis. Entre as cortes de Viena e Lisboa questões a debater não havia. As relações pessoais do primeiro-ministro, com aqueles que tão desfavorável juízo da sua administração formulavam, foram sempre cordiais; com Lebzeltern de relativa intimidade. Nada leva a infirmar os testemunhos com suspeição. Exagerados podiam ser no pessimismo, se a derrocada, seguinte à queda de Pombal, não desvendasse a fraqueza da sua obra. Em todo o caso, reflectiam a opinião corrente, o mal-estar, traduzido nas queixas gerais.

Sobre as indústrias, que o ministro com tanto desvelo buscava radicar em Portugal, ouçamos o mesmo julgador: «As circunstâncias, em que as fábricas, sem excepção alguma, se encontram, são tais, que os produtos não têm saída, já pela ruim qualidade, já pelo preço excessivo, de modo que só com extraordinários auxílios do tesouro se podem manter» (22). Em outra ocasião dizia ainda: «Quanto às indústrias, cuida-se mais de lhes dar uma aparente florescência, que de as estabelecer em bases sólidas. Para esse fim se exaure o tesouro público, se oprime o comércio estranho, e se acha a nação privada de cópia de objectos necessários e comodidades» (23). E a sorte dessas criações, quando o bafo carinhoso do fundador lhes faltou, confirmou estes assertos. Pouco escapou à derrocada geral.






(...) o homem era evidentemente inferior à tarefa da reformação geral que se impusera. Muitas das suas determinações são apenas devaneios de um espírito autoritário, que não vacila ante o atropelo improfícuo de direitos e costumes, ante as mesquinhas tiranias, para impor ideias que a persuasão, melhor que o constrangimento das leis, faria vingar. Tal foi a pragmática sobre os casamentos de pessoas da nobreza, que proíbe concorrerem à cerimónia, por convite ou sem ele, outras pessoas além dos padrinhos e parentes do primeiro grau, bem assim passarem os noivos na corte a noite de núpcias, devendo ir para fora da cidade, mais de duas léguas, e não voltar antes de passados dez dias (24). Outro decreto exclui, na fidalguia, as filhas da herança paterna quando haja varões, ficando a estes o encargo de as sustentar; proíbe os dotes e disfarçados donativos por ocasião do casamento; limita o enxoval e o presente do esposo, designado àquele o valor de 4000 cruzados, a este os objectos de que se há-de compor: um vestido de gala para o noivado, dois outros para os dias imediatos e algumas jóias modestas. «O fim desta lei», dizia Pombal, «é sustentar o património das casas e facilitar o matrimónio dos filhos delas» (25).

A seguinte disposição, que o ministro considera entre as suas mais beneméritas, descobre uma usança que vinha das idades longínquas da raça. Por efeito dela não devem ser as viúvas encerradas em quartos escuros, nem dormir em camas rasas no chão, nem ficar por largo tempo reclusas, após a morte dos maridos; abrir-se-ão as janelas ao fim de oito dias; não passará o lutuoso retiro de um mês (26). É isto sob pena de 2000 mil cruzados, em que os parentes, responsáveis das práticas vedadas, participavam.

Voltemos à gestão económica e financeira.

Agravando o mal-estar geral, a penúria constante do erário reflectia-se no comércio e na vida particular. A falta de pontualidade nos pagamentos foi um dos característicos desta administração famosa. Devia-se o pré às tropas; deviam-se os salários nas oficinas do Estado, as soldadas aos serviçais do paço. Em 1763, dizia Kail que ninguém recebia os soldos, ordenados, pensões ou juros (27). O viajante inglês Wraxall, que veio a Lisboa em 1772, dá a informação seguinte: «A casa real andava tão mal administrada que a maior parte dos oficiais e criados não eram pagos, havia uns poucos de anos, e se achavam por isso nas mais penosas circunstâncias... Os lacaios, que acompanhavam as carruagens reais, estavam quase sem meios de subsistência» (28). Estes factos deviam ser notórios, e recolheu-os Wraxall evidentemente nas conversas durante a sua visita. Segundo Dalrymple, oficial da guarnição de Gibraltar, que percorreu o País em 1774, os rendimentos públicos, entre os quais avultava o ouro do Brasil, eram desbaratados sem critério, em toda a casta de despesas alheias aos compromissos correntes. «O rei», dizia ele, «está a dever a todo o pessoal da sua casa» (29). Não menos positivo é o depoimento que se encontra na apócrifa Viagem do Duque de Chatelet, obra de um admirador de Pombal. O escritor teve ocasião de verificar, segundo diz, quão pouco cuidadoso era D. José em pagar as suas dívidas, même les plus criardes. Por ocasião da sua morte todos os criados reclamavam quatro ou cinco anos de soldadas. A propósito disso mais de uma vez lhes ouviu murmurações nada respeitosas (30). Em 1764, referia Kail que ao fornecedor das reais ucharias a dívida era de um e meio milhão de cruzados, conseguindo ao cabo de muitas e sérias representações que lhe pagassem um terço (31). Em 1769, o cônsul da Áustria, Stockler, negociante, a pique da falência, dava-se a insanos esforços para cobrar quatro mil cruzados, dívida do paço. Ainda sobre os criados escrevia, em 1773, Lebzeltern: «Há dez anos não recebem um real dos seus ordenados, de modo que a maior parte vive de esmolas» (32).






Notas:

(11) Observações secretíssimas, IV.

(12) Lei de 26 de Outubro de 1765.

(13) Alvará de 21 de Junho de 1766.

(14) Alvará de 30 de Agosto de 1768.

(15) Ratton, Recordações, 242.

(16) Alvará de 15 de Janeiro, de 1773.

(17) Cf. a «Memória Sobre a Decadência da Pescaria do Monto Gordo», por Constantino Botelho de Lacerda Lobo, nas Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, III, 351 e seg.

(18) 18 de Outubro de 1763, Duhr, Pombal, 31.

(19) 20 de Agosto de 1763, Duhr, Pombal, 32.

(20) Idem, 34, 43, 40.

(21) Relatório de Dezembro de 1776, Idem, 31.

(22) 18 de Março de 1773, Duhr, Pombal, 41.

(23) 18 de Outubro de 1774, em cifra, Idem, 41.

(24) Lei de 19 de Agosto de 1761.

(25) Contrariedade ao libelo oferecido por Francisco José Caldeira Soares Galhardo de Mendanha contra o Marquês de Pombal, apêndice, Epítome Cronológico.

(26) Lei de 17 de Agosto de 1761. Veja-se a Contrariedade ao libelo etc.

(27) 17 de Outubro de 1763, Pombal, Duhr, 32.

(28) Wraxall, Mémoires historiques de mon temps, trad., Paris, 1817, I, 21.

(29) Dalrymple, Voyage en Espagne et en Portugal, trad., Paris, 1783, p. 197.

(30) Voyage du ci-devant duc de Chatelet, II, 63.

(31) Duhr, Pombal, 46.

(32) Idem, id., 46.

Continua


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