domingo, 17 de abril de 2011

Linha Geral da Nova Universidade (i)

Escrito por Delfim Santos








Preâmbulo

Sob a chancela dos Cadernos de Cultura Democratista, veio a lume, em 1934, o opúsculo intitulado «Linha Geral da Nova Universidade», de Delfim Santos. Ora, um tal opúsculo, não obstante um certo influxo anti-burguês - próprio do ideário um tanto ou quanto socialista do Movimento da Renovação Democrática, lançado a 16 de Fevereiro de 1932 -, constitui, sem dúvida, um interessante quão significativo retrato da Universidade da época. Mas torná-lo presente, não significa, da nossa parte, remoer o passado, mas tão-somente salientar aqueles aspectos que transcendem o carácter efémero e contingente das circunstâncias epocais, no preciso sentido do que já Delfim Santos considerara ser a superação dinâmica da cultura superior perante uma Universidade estática e parasitária.

Delfim Santos faculta-nos, pois, uma oportunidade única para podermos assim distinguir o pensamento pensado do pensamento em acto, na esteira, aliás, de Leonardo Coimbra. Daí o constante influxo do filósofo criacionista no opúsculo em questão, bem como a frontalidade com que Delfim Santos põe a nu os burocratas estéreis e esterilizados de uma instituição que se limita a interesses ideológicos e corporativos acautelados em exames e concursos afins. Há, por conseguinte, uma diferença substancial entre o pensamento propriamente dito e a cultura universitária que não quer, não pode nem sabe reconhecer, muito menos ver e compreender, essa abissal diferença.

Não foi por acaso que Álvaro Ribeiro, ciente da tradição portuguesa, apelara para um Colégio das Artes a partir do qual o estudante já poderia entrar na escola superior de uma forma livre, independente e criadora. Entretanto, seguir-se-ia uma diminuição dos anos de frequência universitária, para que aquele lograsse realizar uma obra de sublimação simultaneamente pessoal, nacional e universal. Logo, vencer-se-ia, na medida do possível, todo e qualquer condicionalismo académico inibidor do aperfeiçoamento e da redenção espiritual do homem português.

Actualmente, o ensino, tal como vem configurado em manuais e planos curriculares, encontra-se todo ele programado e incutido a martelo. Enfim: ontem, tínhamos o analfabeto a par da potencial sabedoria das barbas brancas; hoje, temos o diplomado, o mestre e o doutor sobejamente empedernidos e ignorantes à laia de
estruturas universitárias de ostensiva expressão socialista.

Miguel Bruno Duarte





Linha Geral da Nova Universidade




A instituição medieval que ainda hoje conservamos com o nome de Universidade tinha por missão orientar a vida e a cultura de certas classes.

Desde então, toda a acção social e política tendeu a fazer desaparecer os privilégios dessas classes ou, quando o não conseguiu, a fazer transferência desses privilégios, com novo valor e significado, para outras, criadas de acordo com a nova orgânica social. À maior parte das instituições sucedeu o mesmo: ou desapareceram ou transferiram o seu significado. Tal não sucedeu à Universidade.

Porque esse significado institucional era imutável? Não. Apenas porque a Universidade se colocou à margem da evolução ideológica e na defesa calculada da estática social e dos interesses particulares das classes agora despojadas dos privilégios tradicionais. É, pois, lícito afirmar que o espírito do ensino universitário não está em correspondência com a vida e a cultura do nosso tempo, e que a futura Universidade deverá, para o conseguir, procurar novos fundamentos ideológicos e sociológicos.

Outra prova de que a velha Universidade perdeu totalmente o seu significado e valor consiste na inversão de funções nela operada: longe de ser um activo e persistente foco dinamizador do espírito e da vida cultural, é apenas um organismo passivo e receptador da cultura extra-universitária que a modela naquilo que ainda lhe resta de suficientemente plástico para admitir tal influência. Ora, se a função vitalizadora da cultura passou do domínio universitário para o extra-universitário, se essa função já não pertence, como de direito e de facto deveria pertencer, à Universidade, inútil é a sua existência. A função de conservação a que, por senilidade, se dedicou, não pode justificar a sua existência num período de vida como o dos nossos dias. Hoje, compreende-se o pouquíssimo valor do estatismo social em qualquer dos seus aspectos ou instituições...

A Universidade, como a Academia que lhe sucedeu para acamaradar no mesmo plano de inutilidade, é um albergue de homens sem vida e sem curiosidades pela vida, sem culpa nenhuma da sua incompreensão do tempo actual. A culpa é toda nossa. Primeiro, porque os deixamos lá estar; segundo, porque lhes demos a certeza de respeitarmos a velhice.

Todavia, nada há, como neste caso, menos digno de respeito e mais digno de piedade: respeito pela velhice é qualquer coisa que, no nosso tempo, tende a tornar-se incompreensível. Este respeito fê-los supor que admirávamos as suas capacidades. Precisamos de lhes mostrar o engano em que incorreram. Respeitamos as capacidades, as possibilidades e o valor nos novos e nos velhos; não podemos respeitar carência e vacuidade, quer nuns, quer noutros. Mas, só por si, a velhice não é mais respeitável do que a infância ou a adolescência. Respeita-se a velhice pela sua experiência. Mas a experiência dos anteriores não nos pode interessar. Só nos interessa a nossa própria experiência; só ela poderá ter valor, porque é feita nestas condições especiais: por nós e no nosso tempo. A deles foi feita no tempo deles e só para eles serviu, enquanto o seu tempo se não modificou. Depois, nem a sua experiência serviu. É para o novo, e não para o velho, que nos teremos de voltar. O velho adaptou-se, minorizou-se, idealizou realidades, subordinando-se a elas interessadamente; o novo procura adaptar a si o mundo circundante e realizar ideais de vida nova. (Chamamos velho e novo a duas orientações na vida, independentes da idade civil...) No entanto, repetimos, eles não têm culpa. Preparam um saber eruditíssimo para o seu tempo e, com essa preparação intensa, impediram qualquer possibilidade de adaptação a outro qualquer tempo. Não têm culpa da volubilidade da vida. Firmes, eles lá estão, imutáveis e sublimes, nos seus museus.






(...) As funções docentes não dependem da idade civil que, por isso, não deve ser fixa e a mesma para todos. Precisamos de despejar as universidades, pois a acção do catedrático não termina com o limite de idade: continua indefinidamente. Os novos que ingressam na carreira universitária são seleccionados pelos seus antigos professores e, é bem de ver, apenas serão escolhidos aqueles que manifestarem concordância com as suas ideias ou falta de ideias, e lhes admitirem os métodos de ensino. Assim, não haverá possibilidade de jamais renovar o espírito do ensino universitário, enquanto os velhos professores escolherem os novos, tendo em conta, como quase sempre sucede, aquilo que eles manifestam de semelhante e, portanto, de velho. Há excepções, certamente. Há alguns catedráticos competentes, concordamos. Mas o seu exíguo número e a experiência do problema universitário português nos últimos vinte anos levam-nos a admitir, como única e proveitosa, a solução radical, ainda que dos competentes se fizesse uma justa reintegração.

Um parêntese: quando nos referimos ao ensino universitário, entendemos o ensino chamado de Letras e Ciências e as faculdades assim denominadas. As outras faculdades (medicina, direito, engenharia) e as escolas superiores de agronomia, farmácia, comércio, belas artes, música, colonial e veterinária não devem pertencer à Universidade, e não aparecem, pois, no problema universitário. São escolas técnicas, especializadas na aplicação de conhecimentos, estreitamente profissionais, levantando a sua organização problemas derivados, diferentes do universitário.

Não se suponha, porém, que depreciamos o ensino técnico - só o contrário é verdade. Pretendemos distinguir o que no actual plano universitário é confuso e equívoco. A técnica é um domínio de aplicação da cultura e, só por ela, esta se pode renovar e aprofundar. Por isso mesmo, há uma distinção. Porque tal não tem sido feita, está sofrendo consequências funestas a nossa civilização. O ensino técnico ou profissional não é superior nem inferior ao universitário: é diferente. No esboço de plano universitário que vamos apresentar, os dois ensinos aparecem como ramos convergentes, cujos pontos de encontro são os Institutos de cultura e investigação, anexos indispensáveis de cada faculdade.

(...) Conhecemos muitos factos denunciantes da crise universitária; mas sobretudo, conhecemos alguns professores que, melhor do que os factos, exprimem a decadência e o ridículo da nossa Universidade.

Valerá a pena denunciá-los?

Todos nós os conhecemos. As nossas três universidades estão recheadas de homens sem probidade intelectual, sem carácter e sem a menor capacidade para o trabalho remunerado pelo Estado e exigido pela sociedade. Dizer que temos professores plagiários e ignorantes - é dizer uma verdade sem novidade nenhuma. Dizer que, em cada faculdade universitária, há meia dúzia de professores que possuem as virtudes raras da seriedade e da contemporaneidade é ser excessivamente generoso».

Reitoria da Universidade de Lisboa


(...) A extinção da Universidade, só por si, valorizará imenso a nossa cultura; desaparecerá assim um valor negativo que inferioriza grandemente os possíveis valores positivos da cultura nacional. Qualquer outra solução nos parece incapaz de consequências proveitosas. As reformas não conseguirão nada. A criação ou extinção de cadeiras de nada valerá. Nomear um ou dois professores novos para trabalhar junto dos antigos é contraproducente. Formar-se-ão correntes de opinião e fácil é prever quem dominará. Os novos e os velhos não se poderão entender. E quando os novos se entendem com os velhos, duvidemos. Não temamos a falta de competências; a competência é uma função da cultura e, renovada esta, aparecerá aquela. Os novos poderão, dentro dos seus interesses, superar muito facilmente todas as glórias nacionais existentes. O que elas têm de insuperável pelos novos é precisamente o que lhes não interessa nada superar: eruditismo, academismo, catedratismo, arqueologismo, positivismo, filologismo, burguesismo, clericalismo ou anti-clericalismo... O problema é de espírito novo e não é com formalismos de ordem administrativa e externa que se resolve; portanto, primeiro, extinção. Daí não adviria mal a ninguém: os competentes voltariam a ocupar os seus lugares e os incompetentes procurariam uma melhor situação, de acordo com as suas possibilidades. Depois, organização da nova Universidade.

Esta não terá por fim fornecer a uma classe instrumentos de domínio sobre as outras. Terá como finalidade ser um orgão propulsor de cultura e acção social, tendente a melhorar, sobre todos os aspectos, a vida nacional. Não à margem da vida, mas dentro da vida; não uma sociedade fechada, mas uma sociedade aberta a todas as influências, a todas as teorias e a todos os problemas, sem quaisquer limites traçados pelos diplomas jurídicos ou pela pressão social.

Não é, porém, uma universidade neutra perante todas as influências a instituição que pretendemos. Não acreditamos na neutralidade dum ser vivo. Viver é tomar posição e aderir ao que mais importa. A Universidade terá de ser um organismo vivo e, portanto, dirigido intencionalmente para uma finalidade humanista. O professor, também, não poderá ser neutro perante as soluções propostas a uma sociedade, como nenhum homem que pense com o seu próprio pensamento. E só destes homens deve haver na futura universidade.

Pretendemos, nas linhas que vão seguir-se, traçar um plano, mais ou menos aproximado, da instituição a que desejaríamos dar o nome de Universidade.

Surgem para nós dificuldades. Não temos um plano de reforma da mentalidade e bem sabemos, para desgraça nossa, que a mentalidade alheia se não reforma com planos. Consegue-se com a acção de mentalidades renovadas, mas acção que não deverá ter por fim a reforma da mentalidade de outrem. Não se trata de modelar os outros segundo um tipo mais ou menos abstracto, em série, como vulgarmente se diz. Orientação e não modelação.

Partiremos da crítica a alguns defeitos do ensino da velha universidade para melhor compreensão do sentido a dar à nova. Apreciaremos primeiramente o ensino ministrado nas faculdades de ciências e a seguir o ensino ministrado nas faculdades de letras, fazendo ressaltar da nossa crítica, e, por oposição ao existente, a linha geral que proporíamos para a reorganização dessas escolas. Demorar-nos-emos a traçar, com certa minúcia, o plano especial da Faculdade de Filosofia, escola que, para quem tiver cultura actualizada e perfeita intuição da vida espiritual, deverá ser a alma da Universidade.






O principal defeito no ensino superior de ciências consiste na especialização excessiva e na falta de correlação com o saber total ou cultura. Ensina-se matemática, ensina-se física, ensina-se química e ciências naturais sem relação de qualquer espécie com os problemas da cultura e sem procurar integrar estes diferentes aspectos do saber. Isto é, segue-se, em qualquer destas especialidades, um tratado com limites fixados para as respectivas ciências; respeitam-se absolutamente esses limites e repetem-se de memória os resultados alcançados pela ciência, sem a menor curiosidade pelo élan dinamizador que conseguiu esses resultados e que, em si, traz vitalidade suficiente para ir além. A ciência para a quase todos os mestres da Universidade velha é estática; é um conjunto de resultados ou de fórmulas e, muitas vezes, um conjunto de palavras imutáveis em si e na sua sintaxe a repetir mecanicamente, sem outra preocupação que não seja bem repetir. Mas a ciência não está nos livros; ou só está nos livros a parte da ciência que já morreu. A ciência é acção pensante; é função de criação e renovação no mundo intelectual; é sempre resposta a inquietações sérias e profundas e, por sua vez, fonte de novas inquietações; manifesta-se progressivamente como produto de reflexão sobre a experiência; é incessante procura dum acordo entre o homem e o universo e entre o homem e os outros homens. É, pois, criação, vida, movimento. Só um método marcando acordo com este dinamismo poderia desenvolver a actividade científica, tendo em vista que os resultados práticos da ciência não são a própria ciência, como os actos da vida não são a própria vida. Estes actos foram motivados pela vida; mas a vida, que os supera, poderá renová-los, corrigi-los, ampliá-los, dar-lhes novo sentido e nova significação. Assim a ciência e os factos científicos.

Todo o ensino das ciências na faculdade respectiva deverá, por conseguinte, ser orientado segundo o método genético ou epistemológico. A ciência, enquanto problemática, é filosofia; as ciências, quando sistematizadas, são o caminhar dirigido pela reflexão filosófica ao longo da natureza. Não se compreende que alguém saiba matemática, desconhecendo os problemas fundamentais que a originaram e a especulação filosófica que a orientou. Não se compreende o ensino da física ou da química sem uma concepção geral do Universo e sem o conhecimento da especulação filosófica acerca da estrutura íntima da matéria. Ainda há pouco, certo professor de física, falando acerca da relatividade e dos princípios da ciência moderna, confessava estranhar as dúvidas que alguns físicos, como Heisenberg, tinham da causalidade. Estas dúvidas, aceites agora por ele, nunca poderiam ter originalmente surgido ao seu espírito porque, para ele, o princípio da causalidade não admitia dúvidas, pelo menos no macrofísico. Defeito dum ensino que pôs fora da ciência os princípios que a orientam.

Da biologia poder-se-ia dizer o mesmo. Para os respectivos professores, a biologia é uma ciência fechada, sem relações com a vida universal. Quando muito, procuram relações com a física e com a química, subordinando assim o estudo vital aos métodos apropriados para o estudo da matéria inerte. A importância da especulação filosófica da biologia é por eles desconhecida e poucos saberão situar os seus problemas na cultura contemporânea. Não poderão entender os filósofos, que nunca ninguém lhes ensinou a ler, e, portanto, os biólogos que, como Cuénot, Vialleton e Driesh, compreenderam ser impossível a biologia sem uma concepção geral da vida. Por estes exemplos se pode ver quanto certos métodos de ensino impossibilitam a verdadeira compreensão da realidade a estudar. Muitas vezes acusam-se os laboratórios e a falta de aparelhos; é para muitos boa desculpa, mas é falsa. O problema é de método e não de instrumentos laboratoriais. Não diremos que os nossos laboratórios universitários são completos; mas diremos, convencidamente, que com eles se poderia e poderá fazer muito mais.




A história das ciências, a epistemologia e metodologia especial de cada ciência deverão orientar o ensino na respectiva faculdade; sem isto tudo continuará na mesma, ainda que se renovem os programas e se enriqueçam os laboratórios. A criação da cultura científica portuguesa e a renovação, nesta parte, da cultura universitária depende do estudo da filosofia das ciências ou epistemologia. Poderão estas palavras parecer demasiado optimistas. Não o julgamos. Recordemos qualquer dos poucos homens que em Portugal desenvolveram as ciências e fizeram descobertas; concluiremos que todos eles tinham o conhecimento aprofundado da história e da filosofia dos seus problemas científicos. Certamente, não basta o conhecimento da história das ciências e da epistemologia para criar ciência. Mas nunca, quando essa criação é possível, se poderá fazer sem o conhecimento orientador da epistemologia. A ciência ensinada até hoje nas nossas velhas universidades - (fazemos, é claro, excepções) - é demasiadamente técnica, de aplicação prática imediata e poderia, sob este aspecto, continuar a ser ensinada nos institutos especiais técnicos e nas escolas de engenharia, então distintas da universidade, em virtude das suas respectivas finalidades nada terem de comum. Para qualquer das carreiras técnicas exigir-se-ia a frequência preliminar na Universidade da cadeira de filosofia e história da ciência que mais afim fosse com o curso técnico escolhido. Abolição do F.Q.N. e dos preparatórios de engenharia a ministrar nas respectivas escolas, etc. (in Linha Geral da Nova Universidade, Cadernos de Cultura Democratista, Lisboa, 1934, pp. 9-17; 22-31).

Continua


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