quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Como o que não pode ser conhecido não pode ser planeado

Escrito por Frederico Hayek




«Ninguém pode dar-se à liberalidade de atacar a propriedade exclusiva e afirmar que dá valor à civilização. Não se pode dissociar a história de ambas.»

Henry Summer Maine

 

«A propriedade [...] é, consequentemente, inseparável da economia humana na sua forma social.»

Carl Menger


«Os observadores avisados da ordem alargada emergente tão-pouco tiveram grandes dúvidas de que esta estava alicerçada na segurança, garantida pelos governos, que limitava a coerção à aplicação de regras abstractas que determinavam a quem incumbia a posse de algo. O “individualismo possessivo” de John Locke foi, por exemplo, não apenas uma teoria política, mas também o produto de uma análise das condições que tinham propiciado a prosperidade da Inglaterra e da Holanda. Baseou-se na ideia de que a justiça que a autoridade política deve impor, se pretende assegurar a cooperação pacífica entre indivíduos em que assenta a prosperidade, não pode existir sem o reconhecimento da propriedade privada: "'Onde não há propriedade não há justiça' é uma proposição tão correcta quanto qualquer demonstração de Euclides. Sendo a ideia de propriedade o direito a algo e sendo a ideia a que é dada o nome de injustiça a invasão ou violação desse direito, é evidente que estando assim instituídas essas ideias e anexos a elas esses nomes, posso com certeza saber que esta proposição é tão verdadeira quanto a de os três lados de um triângulo serem iguais a dois recto" (John Locke: 1690/1924: IV, iii, 18). Pouco depois, Montesquieu fez saber que o comércio expandira a civilização, suavizando os costumes bárbaros do Norte da Europa.

Para David Hume e outros moralistas e teóricos escoceses do século XVIII era evidente que a adopção da propriedade exclusiva assinalava o início da civilização: as regras de regulamentação da propriedade pareciam tão centrais à moral que Hume lhes dedicou a maior parte do seu Treatise sobre moral. Foi às restrições ao poder do governo para interferir com a propriedade que, mais tarde, na sua History of England (Vol. V), atribuiu a grandeza desse país; no próprio Treatise (III, ii) explicou de modo claro que se a Humanidade executasse uma lei que, em vez de estabelecer regras gerais sobre a posse e troca de propriedade, pelo contrário, “atribuísse a maior posse à mais extensa virtude,... tão grande é a incerteza do mérito, quer devido à obscuridade natural, quer por causa da ideia que o indivíduo tem de si próprio, que nenhuma definição de regra de conduta poderia derivar daí, tendo como imediata consequência a dissolução da sociedade”. Posteriormente, em Enquiry, referiu: “Fanáticos podem crer que o domínio assenta na graça e que só os santos herdam a terra, mas o magistrado civil muito apropriadamente coloca estes teóricos sublimes ao mesmo nível dos vulgares ladrões e ensina-lhes através de disciplina severa que uma regra que, em especulação, possa parecer a mais vantajosa para a sociedade pode, contudo, revelar-se, na prática, totalmente perniciosa e destrutiva” (1771/1886: IV, 187).

Hume assinalou de forma clara a ligação destas doutrinas à liberdade e como a máxima liberdade de todos implica idênticas restrições à liberdade de cada um através do que denominou as três “leis fundamentais da natureza”: “a estabilidade da posse, a sua transferência por consentimento e o cumprimento de promessas” (1739/1886: II, 288, 293). Ainda que as suas opiniões derivassem em parte das dos teóricos da common law (direito comum), como Sir Mathew Hale (1609-76), Hume pode ter sido o primeiro a entrever claramente que a liberdade geral se torna possível quando os instintos morais naturais são “controlados e restringidos através de um julgamento subsequente” de acordo com a “justiça ou consideração pela propriedade alheia, fidelidade ou respeito por promessas [que se tenham] tornado obrigatórias ou adquirido autoridade para a Humanidade” (1741, 1742/1886: III, 455). Hume não incorreu no erro, posteriormente muito corrente, de confundir dois sentidos de liberdade: a ideia bizarra segundo a qual um indivíduo isolado é suposto ser livre e aquela segundo a qual muitas pessoas colaborando mutuamente podem ser livres. Neste último contexto de colaboração, só regras abstractas de propriedade – isto é, as regras da lei – garantem liberdade.

Quando Adam Ferguson resumiu tal ensinamento ao definir o selvagem como um homem que ainda não conhecia a propriedade (1767/73: 136) e Adam Smith assinalou que “nunca ninguém viu um animal expressar através de gestos ou gritos naturais que isto é meu e aquilo é teu” (1776/1976: 26), ambos exprimiam o que fora, apesar de recorrentes revoltas por bandos de predadores esfaimados, durante praticamente dois milénios a opinião das pessoas educadas. Na formulação de Ferguson, “é por demais evidente que a propriedade é uma questão de progresso” (ibid.). Tais questões foram, conforme referimos, também investigadas na linguagem e no direito; foram também compreendidas no liberalismo clássico do século XIX, e foi, provavelmente por via de Edmundo Burke, ou talvez ainda mais através da influência de linguistas e advogados alemães, como F. C. von Savigny, que tais temas foram retomados de novo por H. S. Maine. A declaração de Savigny (no seu protesto contra a codificação do direito civil) merece ser reproduzida por extenso: “Só é possível que em tais contactos existam lado a lado agentes livres, apoiando-se mutuamente e sem impedirem o seu desenvolvimento recíproco, por via do reconhecimento de uma fronteira invisível no interior de cujos limites é assegurado um determinado espaço livre à existência e acção de cada indivíduo. As regras de definição dessas fronteiras, e por meio delas o livre âmbito de cada um, constituem a lei” (Savigny, 1840: I, 331-332).»

Friedrich A. Hayek («Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo»).

«No primitivismo, que tanto pode ser um estado de barbárie em que “tudo é comum” como a expressão, ainda infantil ou já caduca, de uma mentalidade elementar, o homem vê-se extremamente carecente e quase só é um ser de necessidade. Então, a sua relação com as coisas é, não a da propriedade, mas a da posse que se destina à satisfação imediata de carências e desejos. Quando se encontra perante a coisa e se apossa dela, é para a destruir: seja porque, forçado pela necessidade, dela carece para se alimentar e vestir, seja porque outra relação não conhece. Ignora que as coisas podem não ser pura passividade e abandono, mas guardam algo de inviolável, uma espécie de ser que lhes é próprio. Porque a propriedade, distinguindo-se da posse, reside no conhecimento disso que é próprio das coisas. Mais do que adquirir-se, a propriedade assume-se, revela-se, conhece-se; consiste, da parte da coisa, na dádiva do que lhe é próprio e, da parte do homem, no conhecimento do que a coisa tem de inviolável. Como, ao contrário do homem, a coisa é destituída da faculdade de a si se conhecer, do homem lhe reverte esse conhecimento, dele recebe o modo de existência que, entregue a si mesma, jamais alcançaria. Com efeito, em si mesma, a existência da coisa é a mais próxima da matéria informe, contínua e infinita, tão próxima da não-existência ou do nada que quase não oferece resistência à destruição a que a sujeita a posse; poder-se-á até dizer que, abandonada a si mesma, a coisa, e com ela a natureza e o mundo, acabaria por se dissolver e regressar à matéria informe. O conhecimento que do homem lhe reverte, em troco da dádiva que ela de si lhe faz, é o que segura a sua quase não-existência numa forma definitiva, numa “presença” que é o repouso da coisa em si mesma sendo para outrem.»

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).


«A forma mais radical – e a única segura – de posse é a destruição, pois só possuímos para sempre e com certeza aquilo que destruímos. Os donos de propriedade que não consomem, mas continuamente procuram aumentar as suas posses, esbarram com um limite muito inconveniente: o facto lamentável de que os homens morrem. A morte é o verdadeiro motivo pelo qual a propriedade e a aquisição jamais podem tornar-se num princípio político verdadeiramente válido. Um sistema social baseado essencialmente na propriedade não pode levar a outra coisa senão à destruição final de toda a propriedade. A finitude da vida pessoal é um desafio tão sério à propriedade como fundamento social quanto os limites do globo são um desafio à expansão como fundamento do sistema político. Por transcender os limites da vida humana, o crescimento automático e contínuo da riqueza, além das necessidades e possibilidades de consumo pessoais, que é a base da propriedade individual, torna-se assunto público e sai da esfera da simples vida privada. Os interesses privados que, por sua própria natureza, são temporários, limitados pela duração natural da vida do homem, podem agora fugir para a esfera dos negócios e pedir-lhes emprestado aquele tempo infinito necessário à acumulação contínua. Isto parece criar uma sociedade muito parecida com as das formigas e das abelhas, onde “o bem comum não difere do bem privado; e, naturalmente inclinadas para o benefício privado, consequentemente procuram o benefício comum.

Como, porém, os homens não são formigas nem abelhas tudo não passa de uma ilusão. A vida pública assume um aspecto enganador quando aparenta constituir a totalidade dos interesses privados se esses interesses pudessem criar uma qualidade nova pelo simples facto de serem somados».

Hannah Arendt («As Origens do Totalitarismo»).


«Politicamente, as térmitas organizam-se bem melhor de que nós e a sua sociedade funciona aparentemente numa ordem perfeita, submetendo-se ao regímen da realeza matriarcal absoluta. Os regímenes absolutos não gozam hoje das simpatias gerais, pela simples razão de que, na História, não tornaram os homens definitivamente felizes. O Império Romano pôde ser um êxito total em certos momentos; mas cedo ou tarde, maus imperadores provocam catástrofes e soldados rebeldes destroem o poder. Se pudéssemos ter um Napoleão que não fosse belicoso e que durasse sempre, um Augusto ou Antonino imortal, ou mesmo um simples Marco Aurélio, seríamos todos absolutistas.

As térmitas resolveram este problema: a sua rainha dura anos: assiste a numerosas gerações de térmitas; e quando morre, outra rainha – ou mesmo outra termiteira – garante um funcionamento perfeito. A água, os alimentos, a educação dos jovens, a agricultura, a defesa, estão garantidos. As térmitas não têm, em política interna, nenhuma das nossas dificuldades.

A rainha, diz Marais, de todos os seus historiadores o que tem mais simpatia por elas, governa telepaticamente, assegurando a felicidade activa de todos.»

Denis Saurat («Preeminência das Térmitas», in «A Religião dos Gigantes e a Civilização dos Insectos»).



«Adaptação ao desconhecido é a chave de toda a evolução e o conjunto de eventos a que a moderna ordem de mercado se adapta permanentemente é, de facto, desconhecido de todos. A informação a que indivíduos e organizações podem recorrer para se adaptarem ao desconhecido é necessariamente parcial e comunicado por sinais (por exemplo, preços), através de extensas cadeias de indivíduos em que cada um transmite em forma modificada uma combinação de fluxos de sinais de mercado abstractos.

Não obstante, a estrutura global de actividades tende a adaptar-se através destes sinais parciais e desconexos a condições imprevisíveis e impossíveis de conhecer a nível individual, ainda que a adaptação nunca seja perfeita. É por isso que esta estrutura sobrevive, e que aqueles que a utilizam também sobrevivem e prosperam.

Não são possíveis substitutos deliberadamente planeados desse processo autodirigido de adaptação ao desconhecido. Nem a razão nem uma “bondade natural” inata orientam os homens neste sentido, tal cabendo antes à amarga necessidade de submissão a regras desagradáveis para suportar a competição com grupos que já começaram a expandir-se por terem deparado antes com essas regras.

Se tivéssemos construído deliberadamente ou déssemos conscientemente forma à estrutura da acção humana, bastaria inquirir junto dos indivíduos porque é que tinham interagido com uma estrutura específica. Na realidade, apesar dos esforços de gerações de investigadores, é extraordinariamente difícil de chegar a uma explicação destas questões e a consenso acerca das causas ou consequências de certos acontecimentos.

A curiosa incumbência da economia passa por demonstrar aos homens como efectivamente pouco sabem acerca do que imaginam ser capazes de conceber.

Para a mente ingénua, que só consegue conceber a ordem como produto de um arranjo estipulado, pode parecer absurdo que em condições complexas a ordem e a adaptação ao desconhecido possam ser alcançadas de forma mais efectiva através de decisões descentralizadas e que a divisão da autoridade aumente realmente a possibilidade de uma ordem global.

Acontece que a descentralização gera, de facto, mais informação a ser tida em linha de conta. Este é o principal motivo para rejeitar as exigências do racionalismo construtivista. Pela mesma razão, só a divisão, passível de alterações, do poder de dispor de certos recursos entre grande número de indivíduos capazes de decidir sobre a sua utilização – uma partilha obtida graças à liberdade individual e à propriedade exclusiva –, torna possível a exploração mais completa possível do conhecimento disperso.

Grande parte da informação particular ao dispor de cada um só pode ser utilizada na medida em que se possa recorrer a ela na tomada de decisões individuais. Ninguém é capaz de comunicar a outrem tudo o que sabe porque muita da informação que pode usar só se manifestará no processo de elaboração de planos para a acção. Essa informação será mobilizada à medida que trabalha na tarefa específica a que se propôs em condições peculiares, como seja a relativa escassez de diversos materiais disponíveis. Só assim pode o indivíduo descobrir o que procurar, e o que o ajuda a fazer isso no mercado são as respostas que os outros dão ao que encontram nos seus respectivos ambientes. O problema genérico é usar não apenas o conhecimento que se possui, mas também descobrir o máximo de informação que valha a pena procurar nas condições existentes.

É frequente a objecção de que a instituição da propriedade é egoísta por beneficiar apenas quem possui algo de seu e que foi efectivamente “inventada” por pessoas que, tendo adquirido alguns bens individuais, desejaram protegê-los de outrem para usufruto em seu benefício exclusivo.

Tais concepções, que naturalmente subjazem ao ressentimento de Rosseau e à sua alegação de que os nossos “grilhões” foram impostos por interesses egoístas e exploradores, não têm em conta que a gigantesca dimensão da nossa produção global só é possível por usarmos, através da troca mercantil de propriedade exclusiva, o conhecimento amplamente disperso de factos específicos para alocar recursos de propriedade exclusiva. O mercado é o único método conhecido para fornecer informação que capacite os indivíduos a avaliarem as vantagens comparativas dos diversos usos de recursos de que têm conhecimento directo e mediante os quais, de forma intencional ou não, satisfazem as necessidades de pessoas distantes e desconhecidas. Este conhecimento disperso é na sua essência disperso, e não pode ser reunido e transmitido a uma autoridade encarregada da tarefa de criação premeditada de ordem.

Portanto, a instituição da propriedade exclusiva não é egoísta nem foi ou poderia ter sido “inventada” para impor aos outros a vontade dos proprietários. Ao invés, é genericamente benéfica por transferir a orientação da produção das mãos de uns quantos indivíduos que – independentemente do que possam alegar – têm um conhecimento limitado, para um processo, a ordem alargada, que maximiza o uso do conhecimento de todos, beneficiando assim aqueles que não possuem propriedades quase tanto quanto aqueles que possuem.

A liberdade de todos ante a lei tão-pouco exige que todos sejam capazes de possuir propriedade individual, mas antes que muitos a ela possam aceder. Eu próprio preferia certamente dispor de propriedade num país em que muitos possuam qualquer coisa do que ter de viver onde toda a propriedade é “possuída pelo colectivo” e distribuída pela autoridade para usos específicos.

Este argumento é também contestado, e inclusivamente ridicularizado, como a desculpa egoísta das classes privilegiadas. Os intelectuais, raciocinando nos termos de processos causais limitados que aprenderam a interpretar em áreas como a física, acham fácil persuadir trabalhadores manuais de que decisões egoístas de proprietários individuais de capital – em vez do próprio processo mercantil – usam oportunidades muitíssimo dispersas e factos relevantes em constante mutação. O processo global de cálculo em termos de preços de mercado foi, inclusivamente, apresentado por vezes como parte de uma manobra sub-reptícia dos detentores de capital para esconderem a forma como exploram os trabalhadores. Essas objecções não chegam de modo algum a pôr em causa os argumentos e factos já apresentados: um hipotético corpo de factos objectivos não está ao dispor de capitalistas manipuladores nem é acessível aos gestores que os socialistas gostariam de colocar no seu lugar. Tais factos objectivos simplesmente não existem e não estão ao alcance seja de quem for.»

Friedrich A. Hayek («Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo»).




Como o que não pode ser conhecido não pode ser planeado


As dúvidas que Rousseau lançou sobre a instituição da propriedade exclusiva tornaram-se no fundamento do socialismo e continuaram a influenciar alguns dos maiores pensadores do nosso século. Até mesmo uma personalidade como Bertrand Russell definiu a liberdade como a «ausência de obstáculos à realização dos nossos desejos» (1940: 251). Antes do óbvio fracasso económico do socialismo da Europa do Leste, muitos desses racionalistas pensavam que uma economia de planeamento central propiciaria não apenas «justiça social» (...) como, ainda, uma utilização mais eficaz dos recursos económicos. Esta ideia parece eminentemente sensata à primeira vista. Ignora, contudo, os factos que acabámos de referenciar: ninguém está em condições de conhecer a totalidade dos recursos que se podem utilizar num tal plano e, portanto, dificilmente é possível um controlo centralizado.

Os socialistas continuam, mesmo assim, a não reconhecer os obstáculos ao posicionamento adequado de decisões individuais num padrão comum concebido como um «plano». O conflito entre os nossos instintos que, desde Rousseau, foram identificados com a «moral», e as tradições morais que sobreviveram no decurso da evolução cultural e refreiam esses instintos, está consubstanciado na frequente separação entre diversas filosofias éticas e políticas, por um lado, e a economia, por outro.

A questão não reside no facto de que tudo aquilo que os economistas estabelecem como sendo eficaz é portanto «correcto», mas que a análise económica pode elucidar a utilidade de práticas outrora tidas por correctas – utilidade na perspectiva de qualquer filosofia que condena o sofrimento humano e a morte que acarretaria o colapso da nossa civilização. É, consequentemente, uma traição à preocupação pelos outros teorizar sobre a «sociedade justa» sem ponderar cuidadosamente as consequências económicas da implementação de tais doutrinas. Contudo, após 70 anos de experiência socialista, é seguro dizer-se que a maior parte dos intelectuais fora das regiões – Europa de Leste e Terceiro Mundo – onde o socialismo foi experimentado continua a ignorar as lições económicas e a mostrar-se desinteressada em apurar por que razão o socialismo nunca parece funcionar conforme as intenções dos seus líderes intelectuais. A vã busca dos intelectuais por uma verdadeira comunidade socialista redunda na idealização e posterior desilusão com um rosário interminável de «utopias» – a União Soviética, depois Cuba, China, Jugoslávia, Tanzânia, Nicarágua – e devia indicar que algo deve haver com o socialismo que não se conforma a certos factos. Mas tais factos, explicados pela primeira vez por economistas há mais de um século, continuam por escrutinar por aqueles que se orgulham da sua rejeição racionalista da ideia de que podem existir factos que transcendem o contexto histórico ou representam um obstáculo intransponível aos desejos humanos.

Entre os que estudam economia na tradição de Mandeville, Hume e Smith, emergiu, entretanto, de uma forma gradual um entendimento do processo mercantil e, igualmente, uma crítica poderosa à possibilidade de o socialismo o poder substituir. As vantagens desses procedimentos de mercado eram tão contrárias às expectativas que só podiam ser explicadas retrospectivamente mediante a análise do seu processo de formação espontânea. Quando isso se fez, descobriu-se que o controlo descentralizado de recursos, em propriedade plena, leva à criação e uso de mais informação do que sob direcção centralizada. Ordem e controlo além do alcance imediato de uma direcção central só podem ser conseguidos por supervisão centralizada se, ao arrepio dos factos, os gestores locais responsáveis por aferir recursos manifestos e potenciais pudessem ser informados também em tempo real da alteração ininterrupta da sua importância relativa. Teriam, ainda, de comunicar na sua totalidade e em detalhe estes pormenores à autoridade de planeamento central a tempo de esta os poder instruir sobre o que fazer à luz de todas as demais, diferentes e concretas informações recebidas de outros gestores regionais ou locais, que, por sua vez, se deparariam com dificuldades semelhantes para a obtenção e transmissão de informação similar.

Uma vez percebida a tarefa de semelhante autoridade de planeamento central, torna-se claro que as ordens que teria de emitir não poderiam advir da informação que gestores locais tivessem identificado como importante, só podendo originar-se exclusivamente em acordos directamente delimitados. A suposição hipotética, habitualmente empregada nas descrições teóricas do processo de mercado – feitas por pessoas que habitualmente não pretendem apoiar o socialismo –, de que todos esses factos, ou parâmetros, podem considerar-se ser do conhecimento do analista do fenómeno, torna tudo isto obscuro e, em consequência, gera as excêntricas descrições que ajudam a manter diversas variantes do pensamento socialista.

A ordem da economia alargada é e só pode ser gerada por processos totalmente diferentes, mediante um método de comunicação evoluído que torna possível transmitir não infinitos e múltiplos relatórios sobre factos particulares, mas apenas determinadas propriedades abstractas de diversas condições específicas, como preços concorrenciais, que devem entrar em correspondência mútua de forma a alcançar uma ordem global. Estas comunicam as diferentes relações de substituição ou equivalência que as diversas partes envolvidas consideram predominar entre diversos bens e serviços ao seu dispor. Determinadas quantidades desses objectos podem ser equivalentes ou substitutos possíveis uns dos outros para satisfazer certas necessidades humanas ou para produzir, directa ou indirectamente, os meios para tal. Por mais surpreendente que seja a existência de semelhante processo e a sua emergência através de selecção evolutiva sem concepção deliberada, desconheço tentativas de refutar esta descrição ou negar a validade do próprio processo, a menos que se considerem as singelas declarações de que todos esses factos podem, de alguma forma, ser do conhecimento de alguma autoridade de planeamento central. [Ver também, relativamente a isto, a discussão do cálculo económico in Babbage (1832), Gossen (1854/1889/1927), Pierson (1902/1912), Mises (1922/81), Hayek (1935), Rutland (1985), Roberts (1971)].

A ideia de «controlo central» é, com efeito, confusa. Não há e não poderá nunca existir uma mente directora única, cabendo a um conselho ou comité a elaboração de um plano de actividades para determinada empresa. Ainda que membros individuais possam ocasionalmente, para convencer os outros, citar elementos específicos de informação que influenciaram as suas opiniões, as conclusões da entidade não se irão basear no conhecimento conjunto, mas num acordo entre diversos pontos de vista baseados em diferentes observações. Cada pedaço de informação com que uma pessoa contribua tenderá a levar outrem a relembrar ainda outros factos de cuja relevância apenas se apercebeu ao ser informado de outras circunstâncias que desconhecia. Semelhante processo faz uso de informação dispersa – estimulando assim o comércio, ainda que de modo muito deficiente, por em regra não ser concorrencial e implicar escassa responsabilização – em vez de unificar o conhecimento de diversas pessoas. Os membros do grupo só serão capazes de comunicar entre si escassas razões distintas, transmitindo sobretudo conclusões retiradas do respectivo conhecimento individual sobre o problema em causa. Além disso, só raramente as circunstâncias serão, de facto, idênticas para diferentes pessoas enfrentando a mesma situação ou, pelo menos, na medida em que diga respeito a algum sector da ordem alargada e não apenas a um grupo mais ou menos autoconfinado.

A melhor ilustração da impossibilidade de uma alocução «racional» propositada de recursos numa ordem económica alargada sem orientação por preços formados em mercados concorrenciais é o problema da alocução da oferta corrente de capital líquido entre diversas aplicações passíveis de aumentar o produto final. O problema consiste essencialmente em apurar o volume de recursos produtivos acumulados que podem ser poupados a prazo em relação às necessidades presentes. Adam Smith tinha presente o cunho relevante desta questão quando, referindo-se ao problema enfrentado pelo detentor privado de tal tipo de capital, escreveu: «em que género de indústria doméstica deve aplicar o seu capital e qual a produção mais valiosa, cada indivíduo, como é óbvio, na sua circunstância local, julga isso muito melhor do que qualquer estadista ou legislador em vez dele» (1776/1976).

Se considerarmos o problema do uso de todos os meios disponíveis para investimento num sistema económico de economia alargada sob uma autoridade directora única, a primeira dificuldade consiste em ser impossível uma pessoa conhecer a quantidade agregada de capital disponível para uso corrente, apesar de, obviamente, esta quantidade ser limitada no sentido do efeito de maior ou menor investimento resultar em discrepâncias entre a procura de vários tipos de bens e serviços. Tais discrepâncias não se irão autocorrigir, mas manifestar-se-ão através da impossibilidade de cumprir algumas instruções da autoridade directora por falta dos bens requeridos ou porque certos materiais ou instrumentos fornecidos não podem ser utilizados devido à carência dos meios complementares requeridos, como ferramentas, matéria-prima ou trabalho. Nenhuma das ordens de grandeza que deveriam ter sido levadas em conta pode ser definida pela inspecção ou medição de objectos «determinados» e tudo dependerá das possibilidades entre as quais outras pessoas terão de escolher em função do conhecimento que possuam na ocasião. Uma solução aproximada desta tarefa só será possível mediante a interacção entre quem possa averiguar a relevância de circunstâncias particulares do momento através dos seus efeitos nos preços de mercado. A «quantidade de capital» disponível demonstra, então, por exemplo, o que acontece quando a parcela dos recursos correntes utilizada para satisfazer necessidades a prazo é maior do que aquela que as pessoas estão dispostas a poupar no consumo corrente para aumentar a provisão para um futuro distante, isto é, a sua disponibilidade de aforro.

A compreensão do papel desempenhado pela transmissão de informação ou de conhecimento factual abre a porta à compreensão da ordem alargada. Estas questões são, todavia, altamente abstractas e especialmente difíceis de entender por quem seja formado nos cânones de racionalidade mecanicista, cienticista e construtivista que dominam os nossos sistemas de ensino, tendendo, em consequência, a ignorar a biologia, a economia e a evolução. Confesso que demorei bastante desde o meu primeiro avanço, no ensaio «Economics and Knowledge» (1936/48), passando pela identificação da «Competition as a Discovery Procedure» (1978: 179-190), e o ensaio The Pretense of Knowledge (1978: 23-34), até formular a teoria do conhecimento disperso da qual derivam as conclusões sobre a superioridade das formações espontâneas em relação à direcção central.

(In Friedrich A. Hayek, Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo, Guerra e Paz, 1.ª Edição, Novembro de 2022, pp. 125-130).



sábado, 14 de outubro de 2023

Heidegger e o curso «Introdução à Metafísica» (1935)

Escrito por Victor Farías


A Lança Sagrada no Palácio Imperial de Hofburg (Viena, Áustria).


«Vós, homens superiores, aprendei a rir.»

Frederico Nietzsche («Zaratustra»).


«O cenário do último encontro entre Nietzsche e Wagner, em Bayreuth, é bem conhecido, porque o grande céptico e crítico o registou com o seu brilhantismo habitual. Parece que Wagner, completamente inconsciente da repugnância de Nietzsche pelos seus pensamentos sobre Cristo, tinha exposto o tema do seu Parsifal projectando-o através da sua recém-adquirida experiência religiosa de redenção e regresso ao seio cristão (tudo isto, claro, na premissa de que Jesus não nascera judeu, mas sim de uma gloriosa estirpe ariana).

Nietzsche, para quem o cristianismo era uma depravação, “um dizer Não a tudo”, uma capitulação ao veneno Paulino, mal conseguiu controlar os seus sentimentos de repugnância e virou costas a Wagner e a Bayreuth para sempre.

“Estava de facto na altura de dizer adeus”, escreveu (em Nietzsche contra Wagner), depois de ver o seu único amigo rastejar deploravelmente pelo caminho da renúncia, “um decadente decrépito e desesperado, impotente e quebrado, perante a cruz cristã”.

Nietzsche descreveu como deixou Bayreuth, o grande lar do Festspiel de Wagner, sentindo “aquele tremor que toda a gente sente depois de passar inconscientemente por um perigo tremendo”.

Em verso, parodiando o estilo de Fausto, de Goethe, Nietzsche registou os seus pensamentos sobre a conversão de Wagner.

 

Será isto ainda alemão?

Terá um coração alemão dado origem a estes tórridos gritos agudos?

Será de um corpo alemão esta autolaceração?

Ou serão sequer alemães esta afectação clerical,

 Este cheiro a incenso, estas rezas tétricas?

Alemão, este cambalear hesitante,

Este repique adocicado, bim-bam?

Estes olhares de freira, este Avé transformador,

Toda esta falsamente extática beatificação celestial?

 

Será isto ainda alemão?

Pensem! Reflictam! Estão perplexos?

Aquilo que ouvem é Roma – a fé de Roma sem o texto.

 

Friedrich Nietzsche: Wagner as the Apostle of Chastity.

 

Numa veia mais séria, uma mistura de fúria e desapontamento, Nietzsche diz o que pensa sobre o Parsifal de Wagner:

“Será o Parsifal, de Wagner, a sua forma secreta e superior de se rir de si próprio? É evidente que o desejaríamos; pois o que seria de Parsifal se fosse criado com a intenção de ser uma peça séria? Teremos de o ver (como alguém disse contra mim) como ‘o aborto enlouquecido do ódio pelo conhecimento, espírito e sensualidade’? Uma maldição sobre os sentidos e o espírito de um único ódio e fôlego. Uma apostasia e uma reversão a doentios ideais cristãos e obscurantistas? E no fim, uma auto-abnegação e uma auto-eliminação por parte do artista, que almejara anteriormente o oposto disto. Pois Parsifal é uma obra de perfídia, de espírito vingativo, de uma tentativa secreta de envenenar a pressuposição da vida – uma obra má... Desprezo qualquer pessoa que não entenda Parsifal como uma tentativa de assassinato da ética básica.”

Wagner as the Apostle of Chastity, Friedrich Nietzsche.



A troca de insultos pública entre Nietzsche e Wagner não foi de forma alguma uma coisa unilateral. Richard Wagner respondeu à letra, com uma argumentação muito persuasiva, a favor de uma forma de cristianismo que afastava a fé do seio do judaísmo, provando ser o oposto diametral daquilo a que o taciturno Nietzsche chamava desdenhosamente “uma consequência do judaísmo”. Mas Wagner afirmava que lhe fora revelado que Jesus Cristo nascera da mais pura estirpe ariana, e que o Deus cristão nunca fora um membro dos racialmente profanados povos judaicos, sobre os quais afirmava estarem à procura de uma “solução final” para libertar a pátria das suas influências corruptoras. [A expressão “solução final”, que prefigura as câmaras de gás dos campos da morte e a liquidação de cerca de seis milhões de judeus europeus, foi primeiro pronunciada pela boca de Richard Wagner durante a sua “conversão” cristã].

A ideia de que o sangue de Jesus era sangue ariano, um conceito que só por si mostra uma compreensão completamente errónea da natureza universal do cristianismo, dava um significado novo à demanda do Santo Graal. Significava que esses mistérios sagrados deviam ser considerados exclusivamente alemães e que os Cavaleiros do Graal eram uma prerrogativa unicamente alemã.

O feroz ódio e desdém que se desenvolvera entre os dois grandes heróis e fontes de inspiração de Adolf Hitler criava-lhe uma espécie de dilema – principalmente porque a rixa entre ambos começara por ser sobre a natureza do sangue de Cristo e o significado da Lança que o derramara.

Um grande problema permanecia por resolver: quem estava certo, nas suas opiniões sobre Jesus Cristo? O músico, que caíra de joelhos perante um Cristo ariano, ou o filósofo melancólico que chamara idiota ao Deus cristão? O maestre de Bayreuth, o grande profeta de um novo cristianismo pangermânico, ou o visionário solitário que previra a chegada do Super-Homem?

Adolf Hitler conseguiu, de alguma forma, chegar a uma decisão que não o forçava a tomar partido final de nenhum dos seus mentores heróicos (quem mais poderia ter feito um salto mortal intelectual tão admirável?): retirou simplesmente do talento irradiante de Wagner e do génio sombrio e taciturno de Nietzsche os elementos de que necessitava para construir a sua própria e distorcida Weltanschauung

Trevor Ravenscroft («A Lança do Destino»).




«A vida acaba onde começa o reino de Deus.»

Frederico Nietzsche («Crepúsculo dos Ídolos»).


«Apercebi-me a pouco e pouco de que a imprensa social-democrata era dirigida sobretudo por judeus; mas não atribuí nenhuma significação particular a esse facto, já que o mesmo acontecia em relação aos outros jornais. Uma única coisa podia, talvez, atrair a atenção: não se encontrava uma única folha que incluísse judeus entre os seus redactores que se pudesse considerar como verdadeiramente nacional no sentido que a minha educação e as minhas convicções me faziam dar a essa palavra.

Fiz um esforço e tentei ler as produções da imprensa marxista, mas a repulsa que elas me inspiravam acabou por tornar-se tão forte que procurei conhecer melhor os que urdiam essa colecção de canalhices.

Eram todos sem excepção, a começar pelos editores, judeus.

Reuni todas as brochuras sociais-democratas que pude arranjar e procurei os signatários: judeus. Notei o nome de quase todos os chefes: eram igualmente, na sua esmagadora maioria, membros do “povo eleito”, quer se tratasse de deputados ao Reichsrat ou de secretários dos sindicatos, de presidentes dos organismos do partido ou de agitadores de rua. Era sempre o mesmo quadro pouco tranquilizador. Não esquecerei nunca os nomes dos Austerlitz, David, Adler, Ellenbogen, etc.

Tornou-se-me então claro que o partido, cujos simples comparsas eram meus adversários desde há meses no mais violento combate, se achava quase exclusivamente, pelos seus chefes, nas mãos de um povo estrangeiro; porque um judeu não é um alemão, sabia-o eu definitivamente para repouso do meu espírito.

Conhecia, enfim, o génio mau do nosso povo.

Um único ano em Viena tinha-me convencido de que não há um operário tão enraizado nos seus preconceitos que não se renda perante conhecimentos mais justos e explicações mais claras. Tinha-me a pouco e pouco familiarizado com a sua própria doutrina e ela convertera-se na minha arma, no combate que eu travava pelas minhas convicções.

A vitória era quase sempre minha.

Era preciso salvar a grande massa, mesmo à custa dos mais pesados sacrifícios de tempo e de paciência.

Nunca, porém, pude libertar um judeu da sua maneira de ver as coisas.

Eu era então ainda suficientemente ingénuo para querer esclarecê-los sobre o absurdo da sua doutrina; no meu pequeno círculo, eu falava ao ponto de ficar rouco e com a língua esfolada, e persuadia-me de que conseguiria convencê-los do perigo das loucuras marxistas. Obtinha o resultado oposto. Parecia que os efeitos desastrosos, fruto evidente das teorias sociais-democratas e da sua aplicação, só serviam para fortalecer a sua determinação.

Quanto mais discutia com eles, melhor aprendia a conhecer a sua dialéctica. Eles contavam, em primeiro lugar, com a estupidez do adversário e quando já não conseguiam encontrar uma escapatória, procuravam eles próprios fazer-se passar por tolos. Se isto não produzia efeito, eles já não compreendiam mais nada, ou, encostados à parede, saltavam para um outro terreno; alinhavam truísmos que, uma vez admitidos, lhes serviam de argumento para questões inteiramente diferentes; caso fossem de novo encostados à parede, eles escorregavam-nos das mãos, e não se lhes podia arrancar qualquer resposta concreta. Quando se queria agarrar um destes apóstolos, a mão limitava-se a colher uma matéria viscosa e pegajosa que escorria entre os dedos para se refazer no momento seguinte. Se se desferisse num deles um golpe tão decisivo que ele não podia deixar de, na presença dos assistentes, se render à vossa opinião, e quando se julgasse ter ao menos dado um passo em frente, não era pequena a surpresa no dia seguinte. O judeu já nada sabia do que se tinha passado na véspera; recomeçava a divagar como dantes, como nada se tivesse passado, e quando, indignados, o intimássemos a explicar-se, ele fingia-se surpreendido, não se lembrava de absolutamente nada, excepto de ter já provado na véspera o fundamento das suas afirmações.

Isso deixava-me muitas vezes petrificado.

Não se sabia o que mais admirar: se a abundância do seu palavreado, se a sua arte da mentira.

Acabei por odiá-los.



Tudo isso tinha o seu lado bom: à medida que eu conhecia melhor os chefes, ou pelo menos os propagandistas da social-democracia, o meu povo tornava-se-me mais precioso. Quem teria podido, perante a habilidade diabólica daqueles sedutores, amaldiçoar os desgraçados que dela eram vítimas? Com que dificuldade eu próprio não triunfava sobre a dialéctica pérfida daquela raça! E quão vã era semelhante vitória sobre os homens cuja boca deforma a verdade, negando sem cerimónia a palavra que acaba de pronunciar a fim de tirar partido dela logo no instante seguinte.

Não, quanto mais eu aprendia a conhecer os judeus, mais me sentia inclinado a desculpar os operários.

Os mais culpados, aos meus olhos, não eram eles, mas antes todos aqueles que eram de opinião que não valia a pena apiedar-se do povo, assegurar-lhe o que lhe é devido mediante leis rigorosamente equitativas, encostar finalmente à parede o sedutor e o corruptor.

As experiências que eu fazia todos os dias levaram-me a investigar as fontes da doutrina marxista. Conhecia agora claramente a sua acção em todos os seus pormenores; o meu olhar atento descobria cada dia que passava o sinal dos seus progressos; bastava ter um pouco de imaginação para se fazer uma ideia das consequências que ela devia acarretar. A questão era agora a de saber se os seus fundadores tinham previsto o que devia produzir a sua obra chegada à sua última forma, ou se eles próprios tinham sido vítimas de um erro.

Em meu entender, uma e outra coisa eram possíveis.

Num dos casos, era o dever de qualquer homem capaz de pensamento opor-se a esse movimento funesto para tentar impedir o pior; no outro, era preciso admitir que os autores responsáveis por esta doença que tinha infectado os povos tinham sido verdadeiros demónios; pois só o cérebro de um monstro, não o de um homem, podia conceber o plano de uma organização cuja acção devia ter por resultado último a ruína da civilização e, como consequência disso, a transformação do mundo num deserto.

Neste caso, o único recurso era a luta, a luta com todas as armas que podem fornecer o espírito humano, a inteligência e a vontade, fosse qual fosse, aliás, aquele dos adversários em favor do qual a sorte fizesse pender a balança.

Comecei, então, a estudar a valer os fundadores dessa doutrina a fim de conhecer os princípios do movimento. Fiquei unicamente a dever ao meu conhecimento da questão judaica, se bem que ainda pouco aprofundado, o ter alcançado o meu objectivo mais rapidamente do que tinha ousado esperar. Só ele me permitiu comparar praticamente a realidade com mentirolas contidas nas teorias dos apóstolos e fundadores da social-democracia. Eu tinha aprendido, com efeito, o que falar significa para o judeu: unicamente dissimular ou esconder o seu pensamento. E não há que procurar descobrir o seu verdadeiro desígnio no texto, mas nas entrelinhas, onde ele o ocultou cuidadosamente.

Foi nessa época que se operou em mim a revolução mais profunda que alguma vez consegui levar a cabo.

O cosmopolita sem energia que eu tinha sido até então tornou-se um anti-semita fanático.

Outra vez ainda - mas seria essa a última vez -, uma angústia dolorosa oprimiu-me o coração.

Enquanto estudava a influência exercida pelo povo judeu através de longos períodos da História, perguntei-me subitamente com ansiedade se o destino, cujas intenções são insondáveis, não quereria, por razões desconhecidas de nós, pobres homens, e em virtude de uma decisão imutável, a vitória final desse pequeno povo?

A este povo, que nunca viveu senão para a Terra, teria sido acaso prometida a Terra em recompensa?

O direito que julgamos ter de lutar pela nossa conservação tem um fundamento real, ou existe somente no nosso espírito?

O próprio destino deu-me a resposta enquanto eu me absorvia no estudo da doutrina marxista e observava imparcialmente e sem pressa a acção do povo judeu.

A doutrina judaica do marxismo rejeita o princípio aristocrático observado pela natureza e substitui o privilégio eterno da força e da energia pela predominância do número e o seu peso morto. Nega o valor individual do homem, contesta a importância da entidade étnica e da raça, e priva, assim, a humanidade da condição prévia da sua existência e da sua civilização. Admitida como base da vida universal, teria como efeito o fim de qualquer ordem humanamente concebível. E da mesma forma que uma tal lei só poderia dar em resultado o caos neste universo para além do qual se detêm as nossas concepções, também ela significaria, neste mundo, o desaparecimento dos habitantes do nosso planeta.

Se o judeu, com o auxílio da sua profissão de fé marxista, alcança a vitória sobre os povos deste mundo, o seu diadema será a coroa fúnebre da humanidade. Então, o nosso planeta recomeçará a percorrer o éter como o fez há milhões de anos: sem que haja homens à sua superfície.



A natureza eterna vinga-se implacavelmente quando se transgride os seus mandamentos.

É por isso que creio agir segundo o espírito do Criador todo-poderoso, pois:

Defendendo-me contra o Judeu, combato para defender a obra do Senhor».

Adolf Hitler («Mein Kampf», E-Primatur, 2015). 


«A alta sociedade e os políticos da III República haviam produzido a ralé francesa numa série de escândalos e fraudes públicas. Invadia-os agora um terno sentimento de familiaridade paterna pelo seu rebento, um sentimento misto de admiração e medo. O menos que a sociedade podia fazer pela sua filha era protegê-la com palavras. Enquanto a ralé tomava de assalto as lojas dos judeus e os agredia na rua, a linguagem da alta sociedade fazia com que a violência, intensa e verdadeira, parecesse inócua brincadeira de criança. O mais importante dos documentos contemporâneos a este respeito é o “Memorial Henry” e as várias soluções que propunha para a questão judaica: os judeus deviam ser despedaçados como Marsias na lenda grega; Reinach devia ser atirado para um caldeirão de água a ferver; os judeus deviam ser cozidos em óleo ou furados com agulhas até morrerem; deviam ser “circuncidados até ao pescoço”. Um grupo de oficiais revelou-se muito impaciente para experimentar um novo tipo de canhão nos 100 000 judeus do país. Entre os subscritores havia mais de 1 000 oficiais, inclusive quatro generais no activo, e o ministro da guerra, Mercier. O número relativamente alto de intelectuais e até de judeus que constavam da lista é surpreendente. As classes superiores sabiam que a ralé era a carne da sua própria carne e o sangue do seu próprio sangue. Até um historiador judeu da época, embora houvesse visto com os próprios olhos que os judeus não têm qualquer segurança quando a populaça impera nas ruas, falou com secreta admiração do “grande movimento colectivo”. Isto mostra apenas quão profunda eram as raízes dos judeus numa sociedade que estava a procurar eliminá-los.

Ao descrever – referindo-se ao processo Dreyfus – o anti-semitismo como um importante conceito político, Bernanos tem razão no tocante à ralé. Havia sido experimentada anteriormente em Berlim e em Viena, por Ahlwardt e Stoecker, por Schoenerer e Lueger, mas em lugar nenhum a sua eficácia foi demonstrada mais claramente do que em França. Não pode haver dúvida de que, aos olhos da ralé, os judeus passaram a representar o que era detestável. Se odiavam a sociedade, podiam denunciar o modo como os judeus eram tolerados nela; e se odiavam o governo, podiam denunciar como os judeus haviam sido protegidos pelo Estado ou se confundiam com ele. Embora seja um erro presumir que a ralé caça apenas judeus, estes estão certamente em primeiro lugar entre as suas vítimas favoritas.

Excluída, como é, da sociedade e da representação política, a ralé recorre necessariamente à acção extraparlamentar. Além disso, sente a inclinação de procurar as verdadeiras forças da vida política naqueles movimentos e influências que os olhos não vêem e que actuam por trás da cortina. Não resta dúvida de que, durante o século XIX, o povo judeu incidiu nesta categoria, exactamente como os maçons e os jesuítas. É falso que qualquer um desses grupos realmente constituísse uma sociedade secreta propensa a dominar o mundo por meio de uma gigantesca conspiração. Contudo, é verdade que a sua influência, por mais abstracta que fosse, era exercida além da esfera formal da política e operava em grande escala nos corredores, nos bastidores e no confessionário. Desde a Revolução Francesa, estes três grupos têm dividido a honra duvidosa de serem, aos olhos da ralé europeia, o eixo da política mundial. Durante a crise Dreyfus, cada um deles pôde explorar essa noção popular, jogando sobre o outro a acusação de conspirar pelo domínio do mundo, O termo “Judá Secreta” é devido, sem dúvida, à inventividade de certos jesuítas, que decidiram ver no primeiro Congresso Sionista (1897) o núcleo de uma conspiração mundial judaica. [V. “II caso Dreyfus em Civilità Cattolica (5 de Fevereiro de 1898). Entre as excepções à afirmação anterior, a mais notável é a do jesuíta Pierre Charles Louvain, que denunciou os Protocolos dos Sábios de Sião]. Do mesmo modo, o conceito de “Roma Secreta” deve-se a a mações anticlericais e, talvez, também a calúnias indiscriminadas e impensadas de alguns judeus.»

Hanna Arendt («As Origens do Totalitarismo»).




«Lembro-me como, na minha juventude, [o] vocábulo [“germanizar”] dava margem a concepções incrivelmente falsas. Mesmo nos círculos pangermanistas, ouvia-se a opinião de que, com auxílio do Governo, se poderia realizar com êxito a germanização da Áustria eslava, sem que ninguém se apercebesse de que só é possível germanizar um território e nunca um povo. O que se compreendia pela palavra germanização resumia-se na adopção forçada da língua. É quase incrível que alguém pense ser possível transformar um negro ou um chinês em alemão somente por ter o mesmo aprendido a falar alemão e esteja disposto a usá-lo por toda a vida e a votar em qualquer dos partidos alemães. Os meios nacionalistas burgueses nunca chegaram a compreender que semelhante processo de germanização redundaria numa desgermanização. Quando, hoje, pela imposição de uma língua comum, se diminuem ou mesmo se suprimem as diferenças mais sensíveis entre os povos, isso representa um começo de mestiçamento da raça e, no nosso caso, não uma germanização, mas a destruição dos elementos germânicos. Acontece muito frequentemente na História que um povo conquistador consiga impor a sua língua aos vencidos e que, depois de milhares de anos, essa língua venha a ser falada por outro povo e que assim o vencedor passe à posição de vencido.

Uma vez que a nacionalidade, ou melhor, a raça, não está na língua que se fala, mas no sangue, só se deveria falar em germanização se, por um tal processo, se pudesse modificar o sangue dos indivíduos. Isso é absolutamente impossível. Essa modificação teria de ser feita pela mistura do sangue, o que resultaria no rebaixamento do nível da raça superior. A consequência final seria a destruição justamente das qualidades que tinham preparado o povo conquistador para a vitória. Por uma tal mistura com raças inferiores sobretudo as forças culturais desapareceriam, mesmo que o produto daí resultante falasse perfeitamente a língua da raça superior. Durante muito tempo, travar-se-á uma luta entre os dois espíritos e pode ser que o povo votado a uma decadência irremediável consiga, por um esforço supremo, elevar-se e criar uma cultura de surpreendente valor. Isso pode acontecer com os indivíduos das raças mais elevadas ou com os mestiços, nos quais, no primeiro cruzamento, ainda prevalece o melhor sangue: nunca se verificará, porém, esse facto com os produtos definitivos da mistura. Nestes verificar-se-á sempre um movimento de regressão cultural.

Deve-se considerar uma felicidade que a germanização da Áustria, nos moldes da empreendida por Francisco José, não fosse continuada. O êxito ter-se-ia traduzido na conservação do Estado austríaco, mas num rebaixamento do nível da raça alemã. Pode ser que daí surgisse um novo Estado, mas ter-se-ia perdido uma cultura. Com o correr dos séculos, ter-se-ia organizado um rebanho, mas esse rebanho seria de valor muito medíocre. Poderia talvez surgir um povo organizado em Estado, mas com isso teria desaparecido uma civilização.

Para a nação alemã foi muito melhor que se não tivesse realizado essa mistura, aliás evitada, não por motivos elevados, mas devido à miopia dos Habsburgos. Se tivesse acontecido o contrário, hoje mal se poderia apontar o povo alemão como um factor de cultura.

Não apenas na Áustria como na própria Alemanha, os chamados nacionalistas eram e ainda são inclinados a esses falsos raciocínios. A tão desejada política polaca, no sentido de uma germanização do Leste, apoiava-se quase sempre em idênticos sofismas. Acreditava-se poder conseguir a germanização dos elementos polacos apenas pela adopção da língua. O resultado dessa tentativa só poderia ser funesto. Um povo de raça estrangeira exprimindo os seus pensamentos próprios em língua alemã só poderia, pela sua mediocridade, comprometer a majestade do espírito alemão.

Os grandes prejuízos que, indirectamente, já sofreu o espírito alemão, podem ser verificados no facto de os americanos, por falta de conhecimentos, confundirem o dialecto judaico com o alemão. A ninguém passará pela cabeça que essa piolheira judaica que, no Leste, fala alemão, só por isso deve ser vista como de descendência alemã, como pertencente ao povo alemão.

A História mostra que foi a germanização da terra, que os nossos antepassados promoveram pela espada, a que nos trouxe proveitos, pois essa terra conquistada era colonizada com agricultores alemães. Sempre que o sangue estrangeiro foi introduzido no corpo da nação, os seus desastrados efeitos fizeram-se sentir sobre o carácter do povo, dando lugar ao superindividualismo, infelizmente ainda hoje muito apreciado

Adolf Hitler («Mein Kampf», E-Primatur, 2015). 


Heidegger

«No contexto das medidas administrativas tomadas pelo reitor Heidegger e a fim de ver a radicalidade de que ele deu provas para levar a bom termo a tarefa de “revolucionar” a sua Universidade, convém examinar uma série de documentos descobertos por Hugo Ott. Na sua qualidade de reitor da Universidade de Freiburg, Martin Heidegger informou o relator das questões universitárias do Ministério de Karlsruhe, doutor Fehrle, que existiam documentos pondo gravemente em causa o professor de Química, Hermann Staudinger, especialista conhecido no mundo inteiro. Staudinger receberia mais tarde o Prémio Nobel. A informação que Heidegger tinha fornecido a Fehrle em 29 de Setembro de 1933 permitiu a este último denunciar logo no dia seguinte Staudinger à polícia de Freiburg. A Gestapo de Karlsruhe assumiu a investigação confidencial sob a designação “Operação Sternheim”. Os documentos a que Heidegger tinha feito alusão referiam rumores segundo os quais Staudinger teria feito, durante a Primeira Guerra Mundial – era então professor na Universidade Técnica de Zurique – declarações pacifistas, apoiado por colegas que partilhavam as suas opiniões e não escondiam a sua oposição ao militarismo alemão. Os elementos reunidos pela Gestapo, em particular as actas provenientes do consulado alemão de Zurique, bastaram para que a secretaria central de Karlsruhe encetasse um processo contra Staudinger. Heidegger, consultado em 6 de Fevereiro de 1934 pelo Ministério, é convidado oficialmente a fazer diligências, “dado que uma eventual aplicação do §4 da lei [...] deve ocorrer antes de 31 de Março de 1934, data limite”. Respondeu quatro dias mais tarde, num relatório escrito à máquina por uma mão manifestamente inexperiente (tendo em conta o número de erros de dactilografia). Este relatório figura em papel com carimbo do reitorado, mas não comporta número de registo (Hugo Ott). Neste relatório, Heidegger diz assumir todas as acusações apresentadas pela Gestapo e acrescenta um juízo pessoal, que era em si mesmo uma condenação: “Estes factos, só por si, exigem a aplicação do §4 da lei. E tendo em conta que eles são conhecidos da opinião pública alemã desde 1925/26, época na qual Staudinger foi contratado pela Universidade de Freiburg, é também o prestígio da Universidade que está em jogo, é preciso tomar medidas. Tanto mais que Staudinger se faz passar hoje em dia por um incondicional da reconstrução nacional. De preferência a uma aposentação, é uma demissão que seria preciso encarar. Heil Hitler! Heidegger.” Em resposta à solicitação de Heidegger, o ministro badenense pediu ao ministro de Estado, num relatório de 22 de Fevereiro de 1934, a expulsão de Staudinger do serviço público.

Ainda que Staudinger tenha tentado, durante os interrogatórios, minimizar as provas de culpa apresentadas contra ele, a sua situação tornou-se absolutamente insustentável, enquanto o carácter monstruoso da medida tomada contra ele se tornava cada vez mais evidente. É assim que, por razões puramente tácticas, receando as repercussões internacionais que a questão podia ter, primeiro o presidente da Câmara Municipal de Freiburg, doutor Kerber, depois o próprio Martin Heidegger, decidiram intervir para que Staudinger não fosse demitido mas “apenas” aposentado. No final da sua carta enviada ao Ministério em 5 de Março de 1934, sempre em papel com carimbo do reitorado da Universidade e sem número de registo (e “é quase certo que nenhum duplicado destes documentos figura nos arquivos da Universidade” – Hugo Ott) Heidegger escreve: “Seja como for, é supérfluo acrescentar que tudo isto não altera nada à coisa-mesma. Trata-se unicamente de evitar uma nova complicação nas nossas relações com o estrangeiro [...].” Como diz Ott, o epílogo desta questão não deixa de ser grotesco e não se pouparam as humilhações a Staudinger. O Ministério obrigou-o a apresentar, “por sua própria iniciativa”, um pedido de demissão. Arquivado durante seis meses, o Ministério consentiu em não o aceitar “salvo se, no futuro, se oferecesse uma razão para o fazer”. Passado o prazo acordado, e não tendo “nenhuma razão” sido apresentada, autorizou-se que retirasse o seu pedido.

Relativamente à atitude de Heidegger face à perseguição dos seus colegas judeus, é preciso na verdade estabelecer matizes. Em particular no que concerne aos professores de Freiburg, von Hevesy e Fränkel, especialistas de reputação mundial respectivamente em Química (Prémio Nobel 1943) e Filologia Clássica. Nos arquivos gerais de Karlsruhe, encontra-se uma carta de Martin Heidegger ao conselheiro ministerial Fehrle, de 12 de Julho de 1933, na qual ele toma a defesa dos dois cientistas a fim de não serem expulsos do serviço público. Heidegger sublinha, por um lado, o grande prestígio dos dois professores nas suas disciplinas respectivas na opinião do mundo científico, incluindo no estrangeiro e, por outro lado, afirma que “seriam judeus ilustres de carácter exemplar (Sie sein edle Juden von vorbildlichem Charakter). Os seus argumentos perante as autoridades ministeriais consistem em dizer que a exclusão definitiva poderia causar um forte prejuízo para a boa reputação da ciência alemã no estrangeiro, particularmente nos meios intelectuais dominantes e politicamente influentes. A defesa destes dois casos particulares, sublinha Heidegger, não deve ser considerada como uma recusa das disposições gerais para os docentes judeus. Ao contrário, ele assume a sua atitude mesmo estando “plenamente consciente da necessidade de aplicar incondicionalmente a lei relativa à reorganização do serviço público”; ele toma somente em consideração os prejuízos que a exclusão poderia causar “ao necessário reforço, a nível mundial, do prestígio da ciência alemã, ao novo Reich e à sua missão”».

Victor Farías («Heidegger e o Nazismo»).




«A razão na linguagem: Oh, que velha fêmea enganadora... Creio que não vamos desembaraçar-nos da ideia de “Deus” porque continuamos ainda a acreditar na gramática”».

Frederico Nietzsche («Crepúsculo dos Ídolos»).


«A Introdução à metafísica começa retomando o problema com que concluía Que é a metafísica? que, tendo elaborado o conceito de nada e esboçado a sua relação constitutiva com o ser, não tinha todavia respondido à pergunta “Porquê em geral o ser, em vez do nada”? Na realidade, este problema não se resolve com uma resposta que expresse o porquê buscado; e isto explica-se tendo em conta o que diz o escrito sobre o fundamento acerca do facto de que toda a atribuição do porquê, toda a justificação é sempre interna ao mundo como totalidade de entes que se justificam entre si, mas não tem sentido a respeito do ente na sua totalidade. Perguntar: “Porquê o ente, e não antes o nada”? serve no entanto justamente, por meio do “não antes”, para não esquecer a transcendência do estar-aí, para problematizar a totalidade do ente como tal. O facto de o problema não ter sido elaborado pela metafísica na sua história (referir os entes a um ente supremo é também uma maneira de se manter no interior do ente; o ente supremo é sempre um ente ao lado dos outros entes) significa justamente que a metafísica esqueceu o “não antes”, isto é, esqueceu o problema do nada. A metafísica contentou-se com eliminar o problema do nada como se não fosse um problema: se o nada não existe, não se fala dele, não se pode discutir sobre ele e é melhor atermo-nos ao ser. Mas, quando se desliga do nada, o ser identifica-se imediatamente com o ente como presença, efectividade, realidade. Toda a fundação metafísica se limita a buscar um ente sobre o qual fundar os outros, sem cair na conta de que, ainda no caso deste primeiro ou último, se re-coloca completamente o problema do ser.

Uma vez que não elabora o problema do nada, a metafísica não elabora sequer, autenticamente, o problema do ser do qual, todavia, partiu. A metafísica tem a característica de um esquecimento do ser. Este esquecimento do ser manifesta-se no facto de que, para a metafísica, o ser é uma noção óbvia que não tem necessidade de ulteriores explicações. Isto equivale a afirmar que o ser é uma noção estreitamente vaga que fica indeterminada; e é o que afirma Nietzsche, ao constatar que a ideia de ser já não passa da “exalação última de uma realidade que se dissolve”.

O esquecimento do ser, em conformidade com o resultado a que se chegou no escrito sobre a verdade, não é algo que se deva a nós ou às gerações que nos precederam. Assim como a não-verdade pertence à própria essência da verdade, assim também o esquecimento do ser, que constitui a metafísica, é um facto que incumbe ao ser como tal, pelo que se poderá dizer, como afirma Heidegger explicitamente nos seus estudos sobre Nietzsche (que amadurecem nos anos imediatamente posteriores à Introdução), que a metafísica é “história do ser”. Isto significa, em primeiro lugar, que o ser é para nós uma noção, ao mesmo tempo óbvia e vaga, isto é, o esquecimento do ser,

“não é algo estranho, perante o qual nos encontramos e que nos é dado unicamente verificar na sua existência como algo acidental. Pelo contrário, trata-se da própria situação em que nos encontramos. É um estado da nossa existência, mas decerto não no sentido de uma propriedade verificável psicologicamente. Por “estado” entendemos aqui toda a nossa constituição, o modo como nós próprios estamos constituídos em relação ao ser”.

Há que entender estas expressões no seu significado mais forte: afirmar que a metafísica como o esquecimento do ser determina o modo em que estamos existencialmente constituídos não quer dizer apenas que a metafísica é algo profundamente enraizado em nós, o que constituiria ainda uma perspectiva “psicológica”. Na medida em que não somos outra coisa senão a abertura ao ser do ente, a metafísica, como modo de abrir-se ao ente esquecendo o ser, é a nossa própria essência e nesse sentido pode dizer-se que é o nosso destino. Que a metafísica seja história do ser, entende-se, sobretudo, atendendo ao facto, evidenciado por A essência do fundamento, de que o projecto não se dilui na relação entre o estar-aí e os entes; o modo como este projecto se institui efectivamente não é um facto do ente, nem um acto do Dasein: depende de outra coisa, daquilo que o escrito sobre a verdade chama a essência da verdade e que nas obras posteriores à Introdução se chamará cada vez mais explicitamente o ser. Dito de maneira esquemática, não somos outra coisa que a abertura na qual os entes (e nós próprios somos entes) aparecem: esta abertura implica sempre um certo modo de relação com o ser do ente, e a abertura em que nos encontramos lançados (e que nos constitui radicalmente) caracteriza-se como um esquecimento do ser em favor do ente; esse carácter de abertura histórica em que nos encontramos não depende de uma decisão nossa ou das gerações anteriores, porque toda a decisão só pode dar-se dentro de uma abertura já aberta; remonta, pois, a algo que não somos nós (nem com maioria de razão, os entes); é a essência da verdade ou, mais em geral, o ser.

A metafísica é, pois, história do ser e ao mesmo tempo, posto que o sentido da definição é idêntico, a nossa história: não como obra nossa, mas como situação que nos constitui. Se tivermos isto presente, é fácil ver que as indagações (continuamente retomadas e aprofundadas por Heidegger) sobre a história da metafísica são simplesmente o ulterior e extremo trabalho de concretizar a analítica existencial de Ser e Tempo: o que o Dasein é não pode pensar-se em termos de “propriedades” ou de características de uma essência homem que, por meio deles, se define e dá a conhecer. Agora o “programa”, enunciado já em Ser e Tempo, realiza-se do modo mais cabal. O estar-aí não se define atendendo a propriedades, pois não é outra coisa que a abertura histórica que o constitui. Tal abertura, que não lhe pertence, mas à qual ele próprio pertence, é a história do ser. Nesta base, voltar a conceber e a reconstruir a história da metafísica significa, ao mesmo tempo, concretizar ulteriormente a analítica existencial – libertando-a de toda a possibilidade de interpretação metafísica que ainda pudesse subsistir na base de Ser e Tempo – e dar um passo em frente no caminho da indagação do sentido do ser, que constituía precisamente o objectivo para que devia servir a analítica.»

Gianni Vattimo («Introdução a Heidegger»).




«(...) lá onde o homem já nada tem que ver e que agarrar, também nada tem que procurar.»

Frederico Nietzsche («Para Além do Bem e do Mal»).



«Nos arquivos de Alfred Bäumler, conservados pela sua esposa, encontra-se um documento muito importante escrito por Bäumler sobre Martin Heidegger e datado de 22 de Setembro de 1933. (Para que se tome conhecimento da integralidade do documento, a Sr.ª Bäumler pede-nos que se aguarde a sua publicação ao cuidado de G. Schneeberger). Dada a coincidência das datas, pode presumir-se que este texto foi escrito por Bäumler no momento em que Heidegger foi nomeado para Berlim. A sua importância é acrescida pelo facto de Bäumler ser uma figura preponderante da Amt-Wissenschaft de Alfred Rosenberg. Transpare uma vez mais que, até aí, as relações entre Heidegger e a Amt-Wissenschaft eram excelentes. Escreve Bäumler: “Martin Heidegger é o acontecimento mais importante da filosofia alemã desde Dilthey. Tanto no que diz respeito ao sistema como no que diz respeito à história, Heidegger revolucionou as questões postas pela investigação filosófica. Com o aparecimento do seu livro Ser e Tempo, o pensamento filosófico entrou numa era nova (que se preparava desde há muito). Todo o trabalho filosófico actual é impensável sem uma crítica – favorável ou desfavorável – deste livro. No que diz respeito ao sistema, o trabalho de Heidegger consiste em reexaminar e aperfeiçoar o que, desde Dilthey, é convencionado chamar-se a filosofia da vida. Com uma subtileza sem par, Heidegger elaborou uma posição radical, através da qual a lógica formal tradicional foi despojada do seu poder e do seu prestígio, ao mesmo tempo que foi substituída por uma ontologia que trata de um sujeito entendido simultaneamente como pensante e activo num mundo [...] A dedução do conceito de tempo quotidiano que constitui o cume da obra de Ser e Tempo é uma contribuição que não tem equivalente na literatura.”

Diferentemente do que outros ideólogos nacionais-socialistas criticavam na noção heideggeriana de “cuidado” [Sorge], Bäumler escreve em 1933: “Ao caracterizar a existência como “cuidado”, Heidegger influenciou da maneira mais profunda a situação actual da filosofia [...] Penso que ter tornado possível um tal fenómeno corresponde a uma das raras e insignes descobertas da história da humanidade [...]. No que diz respeito à história, o contributo de Heidegger é igualmente extraordinário. A amplitude da sua visão da história não é hoje igualada por ninguém [...]. E quando nas suas análises históricas, Heidegger parece proceder por vezes de maneira arbitrária, ele fá-lo com o direito que assiste aos génios filosóficos.”»

Victor Farías («Heidegger e o Nazismo»).


«(...) a verdade é aquela classe de erro sem a qual uma determinada espécie de seres vivos não poderiam viver. O valor para a vida é o que decide em última instância».

Frederico Nietzsche («A Vontade de Poder»).



«Podem ser chamados de heróis, no sentido em que colhem o seu objectivo e a sua vocação, não do curso regular das coisas, sancionado pela ordem estabelecida; mas de uma fonte oculta, desse Espírito interior, ainda escondido sob a superfície, que colide contra o mundo exterior, como se fosse uma concha, e o desfaz em pedaços.»

Jorge Guilherme Frederico Hegel («Filosofia da História»).


«Lá onde o Estado acaba, olhai para ali, irmãos meus! Não vedes o arco-íris e os poentes do Super-Homem?».

Frederico Nietzsche («Zaratustra»).




Heidegger e o curso «Introdução à Metafísica» (1935)


O curso «Introdução à Metafísica» tinha sido precedido em 1934-1935 por um curso sobre Hölderlin. Esta circunstância é significativa, porque o interesse de Heidegger pela obra de Hölderlin, que para a sua evolução posterior seria decisiva, começou com a análise dos problemas filosóficos e políticos do nacional-socialismo. Acerca de Hölderlin, Heidegger havia dito:

“A verdade do povo é a correspondente manifestação [condição de patente] do ser na sua totalidade de acordo com o qual os poderes sustentadores, ordenadores e condutores obtêm as suas hierarquias e provocam o seu consenso. A verdade de um povo é aquela manifestação do Ser a partir do qual o povo sabe o que historicamente quer, ao querer-se, ao querer ser ele próprio [...]. A verdade do Dasein de um povo é fundada originariamente pelos poetas; mas o ser do ente assim descoberto é concebido como Ser (Seyn) e assim também é disposto e revelado pelos pensadores, e o assim concebido Seyn se converte na última e primeira seriedade do ente, quer dizer, é colocado na verdade histórica de-determinada, pelo facto de o povo ser levado a si mesmo como povo. Isso acontece pela criação de um Estado conforme à sua essência, pelo criador do Estado. Mas todo este acontecer tem os seus próprios tempos e, portanto, a sua própria sequência temporal; os poderes da poesia, do pensamento, da criação do Estado actuam, pelo menos nas épocas da história desenrolada, para a frente e para trás e não são, sobretudo, calculáveis. Durante longo tempo podem actuar sem serem conhecidos e sem pontos entre si não obstante influindo-se, cada um segundo o seu diverso poder de desdobramento, do pensar, do agir de Estado, e em cada diverso grande domínio público” [1].

E, relacionando tudo isto com o seu próprio ponto de vista nacional-socialista, Heidegger prosseguiu:

“Teve lugar uma eclosão: esta eclosão, não obstante, não encontrou a «saída» (Aufbruch) correcta; não achou ainda o seu caminho nem era de esperar que o encontrasse rapidamente; a preparação do verdadeiro que um dia sobrevirá não se logra da noite para o dia e por encomenda, requer muitas vidas humanas e até «gerações»; esse longo período permanece fechado para todos aqueles que se vêem atacados pelo aborrecimento e não dão conta do seu próprio aborrecimento. Mas nesse longo período, certo dia, acontece o verdadeiro: o tornar-se manifesto do Seyn. Nesse lugar da necessidade metafísica está o poeta” [2].

No curso do semestre de Verão de 1935, chamado «Introdução à Metafísica», tratou-se da tematização da história ou, se se quiser, de uma reflexão sobre o papel da filosofia (que Heidegger naquela época concebia como «metafísica») na constituição da história. Nos seus trabalhos anteriores, Heidegger insistia na necessidade de vincular a história e a filosofia, e de buscar precursores do que entendia por historicidade da história; agora, em contrapartida, importava-lhe mostrar a história como um movimento dinâmico que pela sua mesma origem oferecia um modelo para o presente e para o futuro.




É importante salientar que, neste ponto, Heidegger recolhe todos os problemas tratados até esse momento (inclusivamente na sua aleatoriedade e contingência política imediatas), se bem que a partir de uma nova perspectiva. Heidegger insiste na diferença básica entre a essência do povo alemão e as manifestações históricas pelas quais se traduzia. Essa diferença permitia a Heidegger julgar a identidade conseguida pelo nacional-socialismo em relação com a sua origem. Daí que Heidegger insistisse, de antemão, na diferença entre a filosofia e aquele enfoque das coisas que a filosofia esperava converter imediatamente num meio, na hora de criar uma nova sociedade:

“Com tais perspectivas e pretensões sobrevalorizava-se o alcance e a essência da filosofia. A maior parte das vezes, o excessivo dessa exigência evidenciava-se no menosprezo da própria filosofia. Diz-se, por exemplo, que se deve rejeitar a metafísica porque não cooperou na preparação da revolução. E isso tem tanto espírito como afirmar: posto que não se pode voar com um banco de carpinteiro, há que prescindir dele” [3].

Que Heidegger não atribuísse à filosofia qualquer eficácia imediata, não significava que quisesse revogar as suas possibilidades históricas, mas, pelo contrário, que intentava transcendentalizá-la historicamente:

“Pelo contrário, o que a filosofia pode e tem que ser, pela sua própria essência, é: uma abertura pensante de vias de perspectivas do saber que estabelece critérios e hierarquias, de um saber no qual e graças ao qual um povo concebe e realiza o seu Dasein no mundo histórico-espiritual; isto é, trata-se de um saber que ascende, ameaça e constrange todo o perguntar e avaliar [...]. A filosofia, pela sua essência, não torna as coisas mais fáceis, mas mais difíceis. E isso não é casualidade, pois o modo como se comunica ao entendimento vulgar parece estranho e até próprio de dementes.

O autêntico sentido da produção filosófica consiste em tornar mais difícil a existência histórica e, deste modo, no fundo e para dizê-lo com uma palavra, o Ser. Tal agravamento devolve peso (ser) às coisas, ao ente. Porquê? Porque constitui uma das condições essenciais e fundamentais do nascimento de tudo o que é grande, o qual nos permite medir, sobretudo, o destino e as obras de um povo histórico. O destino só se encontra ali onde a existência se encontra dominada por um verdadeiro saber das coisas. Mas a filosofia é a que abre caminhos e perspectivas para lograr tal saber” [4].

Heidegger estava convencido de que isso era precisamente o que os ideólogos oficiais não faziam. Não podiam dar-se conta, nem compreender, onde e como estavam os problemas. Não podiam aperceber-se de que tratar do «Nada» (Nichts) era algo distinto de uma «decomposição» que minava «toda a cultura e toda a fé». Na sua mediocridade, eles opinavam: «O que despreza tanto o pensamento na sua lei fundamental, como o que destrói a vontade construtiva e a fé, é puro niilismo.» [5].

Heidegger deduziu o perigo que representava a situação em que a Europa se encontrava:

“Esta Europa, em atroz cegueira e sempre a ponto de apunhalar-se a si mesma, jaz hoje sob a grande tenaz que a Rússia, por um lado, e a América, pelo outro, formam. Rússia e América, metafisicamente encaradas, são a mesma coisa: a mesma fúria desesperada da técnica desenfreada e da organização infunda do homem normal. Quando o mais afastado recanto do globo tiver sido tecnicamente conquistado e convertido em economicamente explorável; quando uma ocorrência qualquer for rapidamente acessível num lugar qualquer e num tempo qualquer; quando se puderem «experimentar», simultaneamente, o atentado a um rei em França e um concerto sinfónico em Tóquio; quando o tempo só for rapidez, instantaneidade e simultaneidade, e o tempo, como história, tiver desaparecido da existência de todos os povos; quando um número de milhões em assembleias de massas for um triunfo – então sim, voltarão a pairar como fantasmas sobre toda esta algazarra as perguntas: para quê? Para onde? E depois, o quê?” [6].




Esta crítica cultural, que foi acompanhada de uma versão fascista [?] contra qualquer tipo de democracia, e que questionava não só os seus abusos como a sua existência, completava-se com a valoração da Alemanha como o único «centro» do qual podia surgir uma salvação universal:

“Estamos dentro da tenaz. Por achar-se no centro, o nosso povo experimenta a pressão mais incisiva; é o povo que tem mais vizinhos e, por isso, o mais ameaçado, e, sobretudo, é um povo metafísico. Mas a partir desta determinação, de que estamos seguros, este povo só obterá o seu destino quando em si mesmo chegar a criar-se um eco, uma possibilidade de eco para esta determinação, e conceber a sua tradição de modo criador. Tudo isto encerra em si que este povo, como povo histórico, se expunha (e, portanto, à história do Ocidente) a partir do centro do seu acontecer futuro no domínio originário das potências do Ser. Precisamente, se a grande decisão sobre a Europa não houver de dar-se pelo caminho do aniquilamento, então só poderá dar-se mediante o desdobramento de novas forças historicamente espirituais, a partir do centro” [7].

Ao retomar aquela ideologia ultranacionalista e imperialista que professores alemães haviam formulado antes da Primeira Guerra Mundial para justificar uma política agressiva, Heidegger estabeleceu uma continuidade entre aquela época e o fascismo [?]. Como «centro» da Europa, como povo metafísico – por isso – especialmente ameaçado, como autoridade escolhida, o povo alemão devia decidir sobre o destino de todos os povos, precisamente, na medida em que decidia por si mesmo. A planetarização da técnica através do seu movimento centrífugo, em direcção ao maior vazio, exigia do povo metafísico um movimento centrípeto contrário em direcção a si mesmo, como centro estabilizador. E no centro estava a «pergunta pelo Ser», com a qual se justificava a si mesmo.

“Por isso colocámos a pergunta pelo Ser em conexão com o destino da Europa, onde se decidirá o destino da Terra, com o que, para a própria Europa, a nossa existência histórica como centro fica provada” [8].

Este nacionalismo extremo, que foi criticado por Robert Minder [9], teve que ser entendido inequivocamente como uma vinculação ao nacional-socialismo partindo daquela crítica a que Heidegger quis submeter o nacional-socialismo para o clarificar.

Pois, o que a Alemanha vivia, desde o instante em que a sua direcção nacional-socialista assumiu a sua evolução histórica e começou a extraviar-se do caminho recto, foi absolutamente análogo ao ocorrido no século XIX, e que Heidegger concebia como origem e ponto de partida de todos os perigos e males de então. O processo que se pode designar brevemente como «a derrocada do idealismo alemão», não tinha nada disso.

“Não foi o idealismo alemão que se desmoronou, foi a época que deixou de ser suficientemente forte para estar à altura da grandeza, da amplitude e originariedade desse mundo espiritual [10]. [...] A existência começou a deslocar-se em direcção a um mundo que não tinha aquela profundidade, a partir da qual o essencial advém e retorna ao homem [...]. A dimensão predominante era a da extensão do número [...]. Tudo isto se intensificou depois na América e na Rússia, chegando-se a um etcétera desmesurado do sempre igual e do indiferente, até ao ponto de o quantitativo de tudo isto degenerar numa qualidade própria” [11].

Ao exagerar qualitativamente a agressividade potencial própria de cada nacionalismo extremo, Heidegger forja um inimigo que havia de exterminar de raiz, justamente por ser demoníaco e perverso:

“O predomínio da mediocridade, do indiferente, já não é algo de insignificante e de meramente estéril, mas a ameaça de algo que ataca toda a hierarquia e destrói e faz passar por mentira o que é espiritual no mundo. É o empate daquilo que chamamos demoníaco (no sentido de malvado e destrutor). Há diversos sinais de surgimento deste império do demoníaco, unido ao crescente desconcerto e insegurança da Europa, com respeito a si própria e em si própria. Um deles está no debilitamento do espírito, no sentido de uma sua má interpretação. Hoje encontramo-nos no centro de tal acontecer” [12].

Tanto no conteúdo como na forma, Heidegger refere-se aqui aos sermões fanáticos e maniqueus do seu compatriota Abraham a Sancta Clara, que queria chamar a atenção para a verdadeira origem e significado da peste e «despertar» a população de Viena a fim de que adquirisse consciência do perigo turco. Heidegger integrou esta posição espiritual (partilhada pelas encíclicas papais) na concepção do mundo nacional-socialista. Também Hitler havia desenhado uma demonologia própria (e não só com referência aos judeus). Para ele, os fundadores do marxismo, «essa doença dos povos», eram verdadeiros demónios, pois só na mente de um monstro – e não de um homem – pode [...] adquirir forma de um plano de organização cuja realização haveria de levar ao desmoronamento da cultura humana e, com isso, à desolação do mundo. Neste caso, como última salvação restava ainda a luta, a luta com todas as armas que o espírito humano, o intelecto e a vontade podem imaginar, sem que importasse então a quem tinha o destino dado a sua bênção no prato da balança [13].

A luta, que devia ser dirigida a partir do «centro», tinha que ser preparada cuidadosamente, como cruzada que haveria de aniquilar o inimigo apocalíptico mais espalhado no planeta. Na opinião de Heidegger, tratava-se de aguçar a arma mais importante nesta luta, que não era senão o «espírito», justamente porque tudo ia decidir-se nele, e porque um dos indícios do domínio do demoníaco e perverso era a desfiguração da actividade verdadeira do espírito. A partir desta premissa, Heidegger formulou a sua «crítica» ao nacional-socialismo de uma maneira absolutamente diferente. Para Heidegger, era particularmente vil «a má interpretação do espírito como inteligência», a sua despromoção ao «papel de uma ferramenta ao serviço de outrem, cujo manejo se pode ensinar e aprender» [14]. Esta má interpretação tinha tomado três formas: no marxismo, a inteligência pôs-se ao serviço da «regulação e domínio das relações materiais de produção». No positivismo, limitou-se «à ordem do entendimento e da explicação de todo o sempre presente e já estabelecido». E no nacional-socialismo desviado do seu caminho, o espírito foi degradado para inteligência na «direcção organizativa da massa e raça vitais de um povo». A caracterização das três variantes de degradação do espírito que Heidegger propôs parecia diferenciada e exacta. Não obstante, enquanto condenava os dois primeiros (marxismo e positivismo), do terceiro observou unicamente o seu desenrolar erróneo. Que Heidegger também aqui se esforçava por reconhecer a «intrínseca verdade e grandeza» do movimento nacional-socialista, viria pouco depois a ser óbvio [15].

“Se se entende, como o marxismo fez da forma mais extrema o espírito como inteligência, será absolutamente justo dizer, em resistência a ele, que o espírito, isto é, a inteligência, tem sempre que se subordinar, dentro da ordem das forças eficientes da existência humana, à sã capacidade física e ao carácter”.

Diferentemente do marxismo e do positivismo, que devem ser interpretados só como representação do demoníaco e perverso, o nacional-socialismo actua e pensa «correctamente» no sentido de uma defesa do espírito. Na opinião de Heidegger, o erro do nazismo não consistia em empreender e prosseguir a luta baseando-se no racismo, mas no facto de que a estabelecera sobre uma base frágil. Já que a «sua ordem, em si correcta, se converte em errónea logo que concebe a essência do espírito na sua verdade. Pois toda a força e beleza verdadeiras do corpo, a segurança e a ousadia pela espada, assim como a autenticidade e habilidade do intelecto, têm a sua raiz no espírito e encontram a sua ascensão ou a sua decadência apenas no correspondente poder ou impotência do mesmo. É o que suporta e domina, o primeiro e o último, e não só um terceiro factor imprescindível» [16].



Daí que para Heidegger a alternativa racista ou belicista pudesse devir verdade. Esta alternativa, que em si, e para os dois braços da tenaz ofensiva dirigida contra a Alemanha – o marxismo e o positivismo –, parecia para sempre impossível, era, segundo o juízo de Heidegger, perfeitamente possível, inclusivamente necessária para a terceira variante, o nacional-socialismo. A diferença importante entre o dito por Heidegger no seu curso «Sobre a questão fundamental da filosofia» (que não era necessário espiritualizar a revolução) e o que dizia aqui consiste em que a espiritualização tinha chegado a ser necessária, porque o seu objectivo, o nacional-socialismo, estava em vias de perder alguns dos seus atributos essenciais. Apesar de tudo tinha capacidade de recuperação. O seu propósito de fundamentar o racismo e a agressão no «espírito» («toda a força e a beleza verdadeiras do corpo, a segurança e a ousadia da espada») não era uma voz clamando no deserto. Hitler também exigiu a espiritualização da espada:

“É possível aniquilar ideias espirituais com a espada? Pode-se lutar contra concepções do mundo com o uso da violência bruta? Pus a mim mesmo estas perguntas frequentemente [...]. Concepções e ideias, assim como movimentos com uma determinada base espiritual falsa ou verdadeira, a partir de um determinado momento do seu desenvolvimento só se podem vencer com os meios do poder técnico quando estas armas corporais são por sua vez portadoras de um novo pensamento, de uma ideia ou ideologia [...]. A aplicação exclusivamente da violência, sem a força motriz de uma ideia espiritual básica como premissa, nunca poderá levar à eliminação de uma ideia nem à sua propagação, a menos que se chegue a aniquilar o seu último porta-voz e se destrua a sua última transmissão. Isto, não obstante, significa afastar esse corpo político [Staatskörper] do círculo que tem significado em termos de poder político por um tempo indefinido, quiçá para sempre: um sacrifício destes afecta o melhor do povo segundo a experiência demonstra, já que toda a perseguição que tem lugar sem uma condição espiritual prévia aparece como moralmente injustificada, e incita ao protesto, precisamente, os elementos mais valiosos do povo, com a sua consequente identificação com o conteúdo espiritual do movimento (doutrina) injustamente perseguido. Em muitas pessoas, isto ocorre simplesmente por causa de uma reacção instintiva contra o intento de redução à bastonada de uma ideia por meio de uma violência brutal”.

Daí que Hitler visse como única solução a colaboração entre «a espada» e «o espírito».

“O primeiríssimo pressuposto de um modo de luta com as armas da força bruta tem sido desde sempre a tenacidade [...]. A aplicação uniforme da violência sem mais é o primeiro pressuposto do êxito. Mas essa tenacidade só se dá partindo de uma determinada convicção espiritual. Toda a violência que não surja de uma base espiritual firme será vacilante e insegura” [17].

A combinação errónea de espírito e acção que Heidegger concebia como o maior perigo para o «centro» e para o «movimento» reflectia-se também na Universidade – como lugar a partir do qual deveria ser possível devolver ao espírito as suas próprias possibilidades – que corria mesmo assim o perigo de ser destruída por causa da equivocada evolução do nacional-socialismo.

“Na ciência que aqui na Universidade particularmente nos interessa pode reconhecer-se facilmente a situação das últimas décadas, situação que, pese embora alguns intentos de saneamento, permanece imutada. Duas concepções aparentemente distintas parecem combater-se: a ciência como conhecimento profissional técnico e prático por um lado, e a ciência como valor cultural per se por outro; na realidade, ambas se movem no mesmo sentido decadente de uma falsa interpretação do espírito e da sua debilitação. Só se diferenciam na medida em que, enquanto a concepção técnico-prática – profissional – adquire importância pelas suas consequências abertas e claras, a interpretação reaccionária da ciência como valor cultural, que agora surge outra vez, intenta cobrir a impotência do espírito com uma mendacidade inconsciente. A confusão de falta de espírito pode alcançar tal ponto que a interpretação técnico-prática da ciência se reconheça simultaneamente como ciência enquanto valor cultural, de modo que ambas, na sua falta de espiritualidade, se tolerem bem entre si. Se se quiser chamar Universidade à instituição que une as ciências especializadas em ensino e em investigação, isso será um mero nome, não um poder espiritual originariamente unificador que coadjuve um compromisso imperativo” [18].

A partir desta perspectiva, o curso de Heidegger intentava recuperar espírito perdido. Não o concebia como algo de estabelecido e fixado pela administração num plano de estudos – um curso «intelectual» que tivera a filosofia por «tema» –; devia, sim, converter-se numa espécie de ritual, no qual importava «realizar» novamente o «espírito» como uma instância «histórico-transcendental». A nova tentativa de salvação do espírito tinha que começar por um retorno às origens, ao começo da filosofia ocidental dos gregos. E tinha que tratar-se de uma salvação, porque o acesso a esta origem estava bloqueado. Os gregos concebiam nos começos do seu pensamento o ser como physis; mas ao fazê-lo estabeleceram as bases de um começo que pouco tempo mais tarde foi alterado.

“Costuma-se traduzir esta palavra grega fundamental, que designa o ente, como «natureza». Utiliza-se a tradução latina natura que, em sentido próprio, significa «ser nascido», «nascimento». Não obstante, com esta tradução latina marginalizou-se o conteúdo original da palavra physis e destruiu-se o próprio poder expressivo filosófico da expressão grega. E isto não só vale para a tradução latina desta palavra, como para as demais traduções da linguagem dos filósofos para romano. O processo desta tradução do grego para romano não é acidental e inofensivo; assinala o primeiro capítulo do que seria o fechamento brusco à essência originária da filosofia grega e o alheamento dela. A tradução latina tornou-se depois normativa para o cristianismo e para a Idade Média cristã. Traduziu-se numa filosofia moderna, que se movimenta no mundo conceptual da Idade Média e que, com o tempo, criou aquelas representações correntes e aqueles termos conceptuais com que, ainda hoje se torna inteligível o começo da filosofia ocidental” [19].

Já na crítica da filosofia de Descartes que Heidegger faz em Ser e Tempo se podiam reconhecer indícios das suas múltiplas reservas face ao chamado «latim» e «romano». Reservas que são características da tradição xenófoba, da qual Abraham a Sancta Clara é exemplo. A partir da sua adesão ao nacional-socialismo, Heidegger mantém uma xenofobia antilatina radical que se converteu num dos elementos (ou factores) essenciais do seu pensamento, e ao qual finalmente nunca renunciou. É notória a diferença relativamente à época em que havia concebido o seu escrito «Sobre a essência do fundamento» (1929), época em que tinha encontrado no evangelista João um conceito de Cosmos fenomenologicamente válido, continuando depois na exegese do mundus de Agostinho e Tomás de Aquino [20]. Que a xenofobia de Heidegger não foi abstracta nem tinha por objecto meras concepções filosóficas, demonstra-o o facto de a filosofia e a linguagem não serem para Heidegger campos separados, mas factores constitutivos e decisivos da existência humana. A juízo de Heidegger, «os povos» em nada se realizam tanto como na sua filosofia e na sua linguagem.

Esta perspectiva foi radicalizada pelo nacional-socialismo até às suas últimas consequências. Para o nacional-socialismo, o eixo Grécia-Alemanha constituía o centro de uma cultura universal. No mesmo sentido escreveu também Alfred Bäumler no seu ensaio «A dialéctica da Europa», num fragmento polémico dirigido contra Jules Romains: «Diferenciamos a cultura e a tradição romanas – com as quais tivemos um contacto histórico – da relação de livre eleição que temos com o espírito grego; mas esta relação não nos interessa menos que aquele contacto. Estamos conscientes de que o grego não nos foi transmitido pela tradição romana, mas conquistado por nós autonomamente em sedimentos sempre novos. Lutero traduziu do original grego, não da Vulgata; Winckelmann sentia o mármore grego; Goethe e o Sturm und Drang reencontraram Homero; Hölderlin libertou Píndaro, e Nietzsche redescobriu a tragédia dionisíaca. Todos eles são outros tantos descobrimentos do génio grego, levados a cabo sem mediação da cultura latina, e ainda em oposição a ela» [21].

Heidegger aprestou-se a lutar para libertar «a origem» do lastro romano:

“Precisamente porque nos atrevemos a empreender a tarefa, grande e longa, de demolir um mundo envelhecido e de o reconstruir deveras, isto é, historicamente, temos que conhecer a tradição. Devemos saber mais, isto é, de um modo mais rigoroso e imperativo do que se sabia nas épocas e períodos de transição que nos precederam. Só o conhecimento histórico radical nos permitirá afrontar o extraordinário da nossa tarefa, preservando-nos ao mesmo tempo de uma nova irrupção de meras reproduções e de imitações estéreis” [22].


Estar à altura de semelhante tarefa tinha algo de titânico:

“Agora [...] nós saltamos por cima deste curso de desfiguração e decadência para intentar reconquistar a capacidade original da linguagem e das palavras” [23].

Existiam objectivamente possibilidades para isso:

“Que a formação da gramática ocidental surgisse da reflexão sobre a linguagem grega, confere a este processo todo o seu significado. Pois, esta língua (encarada em relação às possibilidades do pensar) é, junto com a alemã, a mais poderosa e ao mesmo tempo a mais espiritual” [24].

O guia mais importante no caminho da restauração da origem foi, segundo Heidegger, Heraclito. Através de Heraclito se podia compreender desde o começo que a luta (polemos) significava a relação ontológica entre physis e verdade (aletheia). Com a equivalência de polemos e logos se mostraria a dinâmica originária da existência:

“A luta a que aqui se alude é combate originário, pois permite que os combatentes surjam antes de tudo como tais: não é uma mera arremetida entre coisas já existentes. A luta projecta e des-enrola o inaudito, o até então não-dito e não-pensado. Esta luta será pois a dos criadores, dos poetas, dos pensadores, dos homens de Estado. Opõem ao poder avassalador o bloco da sua obra e conjuram nela o mundo que com a sua obra abriram. Mediante essas obras, a physis chega a fazer-se presente. Só assim o ente, como tal, se torna ente. Este tornar-se mundo (Weltwerden) constitui o acontecer histórico propriamente dito. A luta como tal não só faz surgir o ente como também o conserva na sua estância. Onde a luta se suspende certamente que o ente não desaparece, mas o mundo desvia-se” [25].

O conceito heraclitiano de polemos devia servir de fundamento ontológico do pensamento corporativo dos fascistas [?], ao fundamentar da discriminação entre os homens e à negação radical da possibilidade da solidariedade humana.

“O conflito (Auseinandersetzung) no que engendra, faz brotar tudo (o presente); mas (também) é o que conserva e domina. A uns mostra-os como deuses; a outros como homens; a uns põe-nos como servos; aos outros como livres” [26].

Mas aqueles que não captam o logos, «não são capazes de ouvir nem de dizer». Não podem estabilizar a sua existência dentro do ser do ente. Só os que podem fazê-lo dominam a palavra: os poetas e os pensadores. Os outros dão voltas dentro do círculo da sua obstinação e falta de entendimento. Só admitem o que lhes sai ao caminho, o que lhes é lisonjeiro e conhecido. «São como os cães: pois também os cães ladram aos que não conhecem.» São asnos: «Os asnos preferem a palha ao ouro» [27].

O desprezo que Heraclito sente pela multidão e a sua estima por aqueles que possuem posição e domínio, assim como a circunstância de falar dos “impróprios” como de cães e asnos faz parte essencial da realidade grega. Se hoje se fala, às vezes com excessivo fervor, da polis dos gregos, não deve silenciar-se o conceito de polis em algo de anódino e de sentimental. O realmente forte é o hierárquico [...]. Justamente porque o ser é logos, harmonia, aletheia, physis e phaynestay não se mostra discricionariamente. O verdadeiro não é para qualquer um, mas apenas para os fortes [28].




Com isto, abria-se o caminho da equiparação da polis grega à sociedade corporativa fascista do nacional-socialismo, aquela sociedade de caudilhos cujo estado era obra «dos fortes»:

“A polis constitui o lugar do acontecer histórico, o ali no qual, a partir do qual e para o qual acontece a história. A semelhante lugar do acontecer histórico pertencem os deuses, os templos, os sacerdotes, as festas, os jogos, os poetas, os pensadores, os dominadores, o conselho dos anciãos, a assembleia do povo, as forças armadas, os barcos. Se tudo isto é próprio da polis, se tudo isto é político, não é pela sua relação com um homem de Estado, com um general ou com os negócios do Estado. O mencionado é, antes, político, isto é, está no centro do acontecer histórico, sempre que os poetas sejam só poetas, mas então que o sejam realmente, os pensadores só pensadores, mas que o sejam então realmente, os sacerdotes só sacerdotes, mas que então e por isso sejam somente governantes. E que o sejam significa que, como executores da violência, a empreguem realmente e se convertam em preeminentes no ser histórico como criadores, como fazedores.”

Por tudo isso, a Introdução à metafísica converte-se numa Introdução à política, na medida em que é transcendentalizada sem perder a sua força inerente. Pelo contrário, a juízo de Heidegger, esta transcendentalização servirá para devolver ao «político» o seu poder decisivo que, sem lugar a dúvidas, devia conseguir-se no ideário sociopolítico do nacional-socialismo e nas suas concepções organizativas. Que esta obra de Heidegger deva ser interpretada como começo da sua ruptura com o nacional-socialismo, e que tal ruptura devia ter lugar inevitavelmente, a menos que Heidegger renunciasse ao seu pensamento, parece insustentável. Esta tese é defendida sobretudo por Alexander Schwan, cuja afirmação de que Heidegger tinha deixado de alienar-se aqui junto aos nacionais-socialistas, por ter reconhecido o carácter totalitário da sua ideologia, não é compatível com a sua outra afirmação de que Heidegger em 1935 aprovava ainda o Estado totalitário [29]. Na Introdução à metafísica, Heidegger fundamentou o mesmo Estado que havia defendido em 1933-1934 e, decerto, como poder central de uma sociedade composta de ordens na qual o exercício do poder político só devia caber aos homens de Estado, coincidindo plenamente neste sentido com o fascismo.

Além disso, Schwan sustenta que Heidegger neste trabalho compreende o «povo histórico» como categoria social central. Já que este povo adquire a sua unidade mediante o Estado (como povo num Estado), Heidegger conceberia o povo como «obra» do Estado, como «uma realização da verdade» abstracta, e inclusivamente não-histórica. Mas o certo é que Heidegger nunca abandonou as suas convicções quanto ao carácter cimentador-originário e até sacralizador do povo alemão, ainda que nesta época já afirmasse na «obra» a equivalência de Estado e povo. Uma vez que também em 1935 queria desenvolver o Estado apenas a partir do povo, do mesmo modo que em 1934 exigia que o povo se encontrasse a si mesmo no Estado e no Führer.

Os problemas editoriais da Introdução à metafísica vão mais além do marco do presente trabalho. Em 1953, quando se publicou o texto, a discussão centrava-se sobretudo numa determinada frase que Heidegger reconhecia ter escrito, mas que afirmava ter omitido na leitura. Nesta frase aparece resumida a evolução ideológica de todo o curso numa fórmula que ilustra de um modo exemplar a sua conotação política. Depois de Heidegger ter aludido à declinação do espírito e à sua consequente instrumentalização numa filosofia de valores e totalidades – com o que se mostrava aos seus prosélitos o ponto onde o nacional-socialismo se havia perdido no caminho –, comenta:

“Tudo isto se chama filosofia. O que hoje se oferece por todos os lados como filosofia do nacional-socialismo – mas que não tem absolutamente nada que ver com a intrínseca verdade e grandeza deste movimento (nomeadamente, com a confrontação da técnica planetariamente determinada e do homem moderno) – faz a sua pesca nessas turvas águas de «valores» e «totalidades» [30].

Heidegger afirmou mais tarde não ter pronunciado as palavras que apareciam entre parênteses no manuscrito original [31]. Com isso pretendia indicar que as ditas palavras implicavam uma crítica aos filósofos nacional-socialistas, à direcção política, e ao nacional-socialismo como tal. Mas cabe perguntar-se se a crítica de Heidegger aos filósofos nacional-socialistas e à direcção não foi pronunciada em nome daquele nacional-socialismo que Heidegger acreditava que já em 1934 havia sido atraiçoado e que só era de novo libertado por ele, por Heidegger, num polemos como o do seu curso. Mesmo que as palavras colocadas entre parênteses constassem no texto original, isso não mudava qualitativamente a orientação ideológica do curso. Se o nacional-socialismo desembocava na «confrontação da técnica planetariamente determinada e do homem moderno», era porque, para Heidegger, o poder e a possibilidade de assumir tal confronto eram inerentes ao nacional-socialismo. Daí a sua verdade e a sua grandeza unicamente alcançadas «intrinsecamente» depois de a direcção política e os filósofos as terem convertido em exterioridades. Do que se tratava aqui era de uma força e de um poder efectivos, de que o marxismo e o positivismo careciam, não só porque representavam povos não-metafísicos, mas porque Heidegger os concebia como agentes do mal. Por tudo isso, eram incapazes de oferecer uma solução.

Rainer Marten comentou há pouco tempo como Heidegger se comportou durante a preparação da reedição da Introdução à metafísica: «Em 1953, durante os preparativos para a reimpressão do curso, nós três aconselhámo-lo, prevendo a reacção pública, a que omitisse a passagem «com intrínseca verdade e grandeza do nacional-socialismo» da frase «O que hoje se oferece por todos os lados como filosofia do nacional-socialismo, mas que não tem absolutamente nada que ver com a intrínseca verdade e grandeza do nacional-socialismo». Em lugar de fazer o indicado, trocou o segundo «nacional-socialismo» por «movimento» e, depois, pôs entre parênteses: «nomeadamente, a confrontação da técnica planetariamente determinada e do homem moderno». No entanto, por 1935, para Heidegger, ainda não existia a distinção de um nacional-socialismo pervertido pelo desgaste técnico do existente. O carácter maléfico da técnica atribui-o nesta época, unicamente e de um modo significativo, às potências não-germânicas. Heidegger diz textualmente numa aula anterior do mesmo curso: «Rússia e América são ambas [...] o mesmo: o mesmo delírio desesperado da técnica desenfreada e da organização infunda do homem normal». Está claro que a «famosa» passagem sanciona em cada uma das suas palavras inequívocas e favoravelmente o fascismo [?], considerando-o filosoficamente autêntico e justo, e desmente automaticamente a interpretação efectuada pelo mesmo Heidegger [32]

(In Victor Farías, Heidegger e o Nazismo, Editorial Caminho, 1990, pp. 339-355).





[1] M. Heidegger, Vorlesung über Hölderlin im Winter 1934-35, citado segundo O. Pöggeler, Philosophie und Politik bei Heidegger, Freiburg / München, 1972, pp. 28 e segs.

[2] M. Heidegger, op. cit., p. 108.

[3] M. Heidegger, Einführung in die Metaphysik, Tübingen, 1953, p. 8.

[4] Ibidem, pp. 8 e segs.

[5] Ibidem, p. 18.

[6] Ibidem, pp. 28 e segs.

[7] Ibidem, p. 29.

[8] Ibidem, p. 32.

[9] Cf. Minder, Hölderlin unter den Deutschen und andere Aufsätze zur deutschen Literatur, Frankfurt, 1968, pp. 132 e segs.

[10] M. Heidegger, op. cit., pp. 34 e segs.

[11] Ibidem, p. 35.

[12] Ibidem.

[13] A. Hitler, Mein Kampf, p. 68: sobre a Rússia como «demónio», p. 752.

[14] M. Heidegger, op. cit., pp. 35 e segs.

[15] Ibidem, p. 152.

[16] Ibidem, p. 36.

[17] A. Hitler, op. cit., pp. 118 e segs.

[18] M. Heidegger, op. cit., pp. 36 e segs.

[19] Ibidem, pp. 10 e segs.




[20] M. Heidegger, Über das wesen des Grundes, in Wegmarken, Frankfurt, 19, op. cit., pp. 21-71 e 40-42.

[21] A. Bäumler, «Die Dialektik Europas. Antwort an Jules Romains», in Politik und Erziehung. Reden und Aufsätze; 4.ª ed., Berlin, 1943, pp. 50, 53, 56.

[22] M. Heidegger, op. cit., p. 96.

[23] Ibidem, p. 11.

[24] Ibidem, p. 43.

[25] Ibidem, pp. 47 e segs.

[26] Ibidem, p. 47.

[27] Ibidem, p. 101.

[28] Ibidem, p. 102.

[29] Cf. A. Schwan, Die politische Philosophie in Demken Heideggers, Köln und Opladen, 1965, pp. 94 e 101.

[30] Cf. Einführung in die Metaphysik, p. 152.

[31] Der Spiegel, op. cit., p. 204.

[32] R. Marten, Ein rassistisches Konzept von Humanität, in Badische Zeitung, 12 / 20 Dezembro de 1987, p, 14.