«A filosofia
com todos os seus progressos ainda não pôde oferecer às multidões nenhum ideal
que as encante, e, porque elas carecem a todo o custo de ilusões, dirigem-se
instintivamente, como o insecto que se arremessa para a luz, para os retóricos
que lhas apresentam. O grande factor da evolução dos povos nunca foi a verdade,
mas sim o erro. O socialismo, se é hoje tão poderoso, é por ser a única ilusão
que ainda hoje tem vida. E assim, apesar de todas as demonstrações científicas,
o socialismo continua a crescer. A principal força do socialismo reside em ser
defendido por espíritos que ignoram da realidade das coisas o bastante para
ousarem prometer a felicidade dos homens. A ilusão social pompeia hoje sobre
todas as ruínas acumuladas do passado e pertence-lhe, sem dúvida, o futuro. As
multidões nunca tiveram sede de verdades; em presença de evidências que lhes
desagradem, afastam-se, preferindo deificar o erro, se este as encantar. Quem
facilmente as souber iludir, assenhorear-se-ia delas; quem tentar desiludi-las
será sempre vítima delas.»
«Precisamos
de uma Revolução completamente ventilada. A nossa Revolução tem de sair à luz e
ao ar. Poderemos ter de aceitar a sovietização à russa muito em breve, a menos
que consigamos conceber nós uma colectivização melhor. Mas se concebermos uma
colectivização melhor, é bastante provável que o sistema russo incorpore as
nossas melhorias, esqueça de novo o seu nacionalismo em revitalização, destrone
Marx e Estaline (tanto quanto estes podem ser destronados) e se funda no único
Estado mundial.
Entre estes
antagonistas primários, entre a Revolução com os olhos abertos e a Revolução de máscara e mordaça, haverá certamente complicações devidas a patriotismos e
fanatismos e à cegueira deliberada e impermeável a ensinamentos daqueles que
não querem ver. A maioria das pessoas mente muito a si própria antes de mentir
às outras pessoas, e é impossível esperar que todos os cultos e tradições em
confronto que confundem o espírito humano actual se unam em face da compreensão
da situação humana tal como a descrevi aqui. Há multidões que nunca a
compreenderão. Poucos seres humanos são capazes de mudar as suas ideias
essenciais passada a metade da casa dos trinta anos. Ficam fixados e agem de
acordo com elas não mais inteligentemente do que os animais agem de acordo com
os seus impulsos inatos. Preferem morrer a mudar os seus segundos eus.»
Herbert George Wells («A Nova Ordem
Mundial»).
«As grandes
crenças gerais são em número muito restrito. O seu aparecimento e a sua
extinção formam o ponto culminante da História para toda a raça histórica; essas
crenças constituem o verdadeiro esqueleto do edifício das civilizações.
É facílimo estabelecer uma opinião passageira na alma das multidões; mas é dificílimo assentar nela
uma crença duradoura. Como é igualmente muito difícil destruí-la, logo que ela se haja assentado. A maior parte das vezes, só à custa de violentas revoluções
é que essa crença se pode mudar, sendo para notar que mesmo as revoluções só
conseguem isso quando a crença haja completamente perdido o domínio sobre as
almas. As revoluções só servem para de todo varrerem o que já estava quase
abandonado, mas que o hábito impedia de ser completamente abandonado. As
revoluções que se iniciam são, na realidade, crenças que acabam.»
Gustave Le
Bon («A Psicologia das Multidões»).
«(…) muitos
de nós estamos a começar a perceber que todos os governos existentes têm de entrar
no cadinho, acreditamos que temos diante de nós uma revolução mundial e que, na
grande luta para evocar um Socialismo Mundial Ocidentalizado, os governos
contemporâneos podem desaparecer como chapéus de palha nos rápidos do Niágara.»
Herbert George Wells («A Nova Ordem Mundial»).
«O absurdo
filosófico que muitas vezes apresentam as crenças gerais nunca foi um obstáculo ao seu triunfo. Este só parece até possível quando essas crenças contenham
qualquer misterioso absurdo. Não será, pois, a fraqueza evidente das crenças
socialistas actuais o que obstará ao seu triunfo na alma das multidões. A
verdadeira inferioridade das crenças socialistas, relativamente a todas as crenças
religiosas, reside unicamente no facto de estas apresentarem um ideal de
felicidade que só numa vida futura será realizado, não podendo, portanto,
ninguém contestar-lhe a realização. O ideal de felicidade socialista, porque
tem de ser realizado na terra, patenteará, logo às primeiras tentativas de
realização, a inanidade das suas promessas e a nova crença perderá nessa ocasião
todo o seu prestígio. O seu poder só aumentará, pois, até ao dia em que, pelo triunfo
obtido, comece a sua realização prática. E é por isto que, se a nova religião
exerce agora, como todas que a precederam, uma função destruidora, não poderá
depois exercer, como estas, a função criadora.»
Gustave Le
Bon («A Psicologia das Multidões»).
«Outra
probabilidade importante de uma ordem mundial colectivista que tem de ser aqui
referida é o enorme aumento da velocidade e da quantidade de investigação e
descobertas. Escrevo “investigação”, mas refiro-me àquele ataque cerrado à
ignorância, ao ataque biológico e ao ataque físico, a que geralmente se chama “Ciência”.
A “Ciência” chega-nos dessa Idade das Trevas académica, quando os homens tinham
de se consolar da sua ignorância fingindo haver uma quantidade limitada de
conhecimento no mundo e se pavoneavam homenzinhos de cartolas e togas, bacharéis
que sabiam tudo o que havia para saber. Agora é evidente que nenhum de nós sabe
grande coisa, e quanto mais analisamos o que sabemos, mais coisas não
detectadas até então encontraremos a espreitar dos nossos pressupostos.
Até agora,
isto da investigação, aquilo a que chamamos “mundo científico”, tem de facto
estado nas mãos de muito poucos. Deixo a sugestão de que no nosso mundo
actual, de todos os cérebros capazes de grandes e magistrais contributos para o
pensamento e a realização “científicos”, cérebros do calibre dos de Rutherford,
Darwin, Mendel, Freud, Leonardo ou Galileu, menos de um num milhar, menos de um
em muitos milhares, nasce em condições tais que lhe permitam realizar as suas
oportunidades. Os restantes nunca aprendem uma língua civilizada, nunca se
aproximam sequer de uma biblioteca, nunca têm a menor hipótese de se
autorrealizar, nunca ouvem o chamamento. Estão subnutridos, morrem novos, são
desaproveitados. E dos milhões que dariam bons, úteis e curiosos investigadores
e exploradores secundários, nem um num milhão é aproveitado.
Mas considere-se
agora como seriam as coisas se tivéssemos uma educação estimulante em todo o
mundo, uma busca sistemática e cada vez mais competente de qualidades mentais
excepcionais e uma rede cada vez mais extensa de oportunidades para elas.
Suponha-se que um espírito público arguto implicava uma atmosfera de respeito
cada vez maior pela realização intelectual e uma crítica mais contundente da
impostura. Aquilo que hoje chamamos “progresso científico” pareceria um avanço
débil, hesitante e incerto quando comparado com o que estaria a acontecer
nestas circunstâncias mais felizes.
O progresso
da investigação e da descoberta conduziu a resultados tão brilhantes e
surpreendentes no último século e meio que poucos de nós estamos cientes do
pequeno número de homens notáveis responsável por ele e do modo como figuras
menores por detrás destes líderes se vão diluindo num séquito de especialistas
tímidos e mal financiados que mal se atrevem a fazer frente a um responsável
público no seu próprio campo. Este pequeno exército, este “mundo científico”
dos nossos dias, que, creio, será constituído por não mais de duzentas mil almas desde o topo até à base e ao último lavador de provetas, estará
certamente representado na nova ordem mundial por uma força de milhões, mais
bem equipados, amplamente coordenados, livres de questionar, capazes de exigir
oportunidades. Os seus melhores não serão melhores do que os nossos melhores,
que não podiam ser melhores, mas serão muito mais numerosos e as suas fileiras –
exploradores, prospectores, equipas experimentais e uma hoste ciclópica de
classificadores, coordenadores e intérpretes – terão um vigor, um orgulho e uma
confiança que farão os laboratórios actuais parecerem quase covis de
alquimistas.
Alguém pode
duvidar de que o “mundo científico” irromperá desta forma quando a revolução se
concretizar e que o desenvolvimento do poder do homem sobre a natureza, sobre a
sua própria natureza e sobre este planeta ainda inexplorado sofrerá uma
aceleração contínua à medida que os anos forem passando? Nenhum homem pode
saber de antemão que portas se abrirão
nessa altura nem para que terras maravilhosas darão.
Estas são
algumas anotações dispersas sobre a qualidade mais ampla que uma nova ordem
mundial pode abrir à humanidade. Não especularei mais sobre esta porque não
quero que digam que este livro é utópico ou “imaginativo” ou outra coisa do
género. Não referi nada que não seja estritamente razoável e praticável. Este é
o mais sóbrio e o menos original dos livros. Julgo ter escrito o suficiente
para mostrar que é impossível os assuntos mundiais permanecerem no seu nível
actual. Ou a humanidade colapsa ou a nossa espécie se ergue com esforço, usando
as vias árduas, mas bastante óbvias, que apresentei neste livro para alcançar
um novo nível de organização social. Não pode haver muitas dúvidas quanto à
abundância, ao empolgamento e à pujança da vida que aguarda os nossos filhos
nessa terra superior. Se for alcançada. Não pode haver dúvidas quanto à
degradação e à miséria, caso não seja.»
Herbert George Wells («A Nova Ordem Mundial»).
«A
intervenção de um professor de direito ou a manipulação marxista da
universidade portuguesa
Nas
intervenções que se seguiram a esta 2.ª Conferência, foi especialmente
significativa a do Dr. Soares Martinez, professor da Faculdade de Direito de
Lisboa, que declarou:
a) que, na
generalidade dos países, 50% da economia está nacionalizada; como poderá,
portanto, estabelecer neles o Prof. Hayek o sistema de concorrência que
preconiza?
b) que a “lei
marxista da concentração capitalista” é irrefutável; como poderá, portanto, ser
viável o liberalismo?
c) que o
marxismo é inteiramente válido no domínio económico e só é refutável no domínio
do social, na hierarquia de valores sociais que estabelece.
F. Hayek respondeu com nitidez sumária e indisputável a estas declarações de Soares Martinez. Mas o que há nelas de significativo é virem confirmar a tese – exposta no n.º 3 da "Escola Formal" – de que, entre nós, a distinção entre capitalismo e socialismo consiste apenas no seguinte: o capitalismo separa as entidades que dispõem do poder económico e dominam o Estado, os plutocratas, e as entidades que representam o Estado, os governantes; o socialismo reúne nas mesmas entidades os senhores do governo e os senhores da economia, os que representam o Estado e os que dominam o Estado; no capitalismo, "a hierarquia social dos valores" (para empregar a expressão do Dr. Soares Martinez) é independente da hierarquia política ou burocrática; no socialismo, a hierarquia social identifica-se com a hierarquia burocrática ou política. O regime adoptado pelo Dr. Soares Martinez é o que vigorou até ao 25 de Abril; o regime advogado pelos socialistas é o que vigora desde o 25 de Abril. Tudo o mais é, para ambos, igual: o planeamento da economia, o controlo da produção, a negação da propriedade (para uns “de facto”, para outros “de direito”). Para ambos, a economia deve reger-se pelo marxismo. Para ambos, a marcha ou os ventos da história são inexoráveis e conduzem inexoravelmente à nacionalização e à colectivização de toda a acção humana, agora já em 50%, brevemente em 100%. A ambos é comum o horror ao liberalismo, à liberdade, ao indivíduo.
De registar
ainda que o Dr. Soares Martinez é professor da Faculdade de Direito e, por
sinal, um dos professores que mais resistiu às organizações socialistas ou
comunistas dos estudantes, o que lhe valeu a hostilidade da poderosa máquina de
propaganda do socialismo. Mais significativo se torna, portanto, que um homem
assim hostilizado pelos socialistas organizados não consiga desprender-se dos
quadros mentais socialistas que dominam o ensino universitário há largos anos e
venha agora defender, perante Frederico Hayek, a irrefutabilidade do marxismo
na economia. A “Escola Formal” não podia encontrar melhor confirmação da
descrição que fez, no seu n.º 2, do carácter estruturalmente marxista que,
desde alguns decénios adoptou, o ensino superior em Portugal. Esse carácter é o
principal factor da actual socialização do país.
O que
Frederico Hayek respondeu ao Dr. Soares Martinez foi isto:
– quanto à
dificuldade de estabelecer o sistema de concorrência nos países que já
nacionalizaram 50% da economia, Hayek observou que mais difícil seria
estabelecê-lo se já estivessem nacionalizados 100% da economia.
– quanto às
objecções levantadas pelo sistema marxista da economia, Hayek observou que todo
esse sistema, de princípio a fim, está errado.»
Orlando Vitorino («Frederico Hayek em Lisboa. O fim do socialismo», in Escola Formal, n.º 5, Dez. 1977/Fev.
1978, pp. 17-18).
«(...) é
certo que, antes de 1933 na Alemanha e antes de 1922 em Itália, os comunistas
colidiam muito mais facilmente com os nazis e os fascistas do que com os outros
partidos. É que disputavam entre si o apoio do mesmo tipo de pensamento e entre
si se dirigiam o mesmo ódio aos heréticos. Mas a sua acção mostrou bem como estavam
intimamente ligados. Para ambos, o inimigo real, o homem com quem nada tinham
de comum e que não podiam esperar convencer, era o liberal à maneira antiga.
Enquanto que, para o nazi, o comunista, para o comunista, o nazi, e para ambos,
o socialista, são recrutas potenciais feitos da mesma massa, transitoriamente
diferenciados uns dos outros apenas por terem dado ouvidos a falsos profetas,
todos eles sabem que não pode existir qualquer compromisso entre quaisquer
deles e os homens que realmente acreditam na liberdade individual.
Para que
esta verdade não seja posta em dúvida pelas pessoas que estão dominadas pela
propaganda de qualquer dos lados, permito-me citar o depoimento de uma
autoridade que não pode ser suspeita. Num artigo com o significativo título “A
descoberta do liberalismo”, o professor Eduardo Heinnam, um dos chefes do
socialismo religioso alemão, escreve:
“O
hitlerianismo pretende ser, e como tal se intitula, uma verdadeira democracia e
um verdadeiro socialismo, e a terrível realidade é que há uma parte de verdade
nessa pretensão, uma parte infinitesimal, é certo, mas suficiente para servir de
fundamento a essa fantástica distorção. O hitlerianismo vai até o ponto de se
atribuir o papel de protector do cristianismo, e a terrível realidade é que
esta enorme falsidade é susceptível de causar alguma impressão. Mas no meio de
tantas névoas, um facto se desenha com perfeita clareza: Hitler nunca
pretendeu representar o verdadeiro liberalismo. O liberalismo tem, portanto, a
particularidade de ser a doutrina mais odiada por Hitler.” [Social Research – New York – vol.
XXVIII, n.º 4, Novembro, 1941. Vale a pena recordar que Hitler, quaisquer que
fossem as razões que a isso levaram, afirmou, num discurso pronunciado em
Fevereiro de 1941, que “essencialmente, nacional-socialismo e marxismo são a
mesma coisa” – cf. The Bulletin of
International News, publicado pelo Royal
Institute of International Affairs, vol. XVIII, n.º 5, p. 269].
Importa
acrescentar que tal ódio de Hitler ao liberalismo teve poucas ocasiões de se
manifestar porque, quando Hitler subiu ao poder, o liberalismo estava para
todos os efeitos destruído na Alemanha e havia sido o socialismo que o tinha
destruído.»
Frederico Hayek («O Caminho para a Servidão»).
«Só as
vantagens da conservação de uma classe de camponeses saudável, como fundamento
de toda a nação, são enormes. Muitos dos nossos males actuais não são mais do
que a consequência do desequilíbrio entre o povo dos campos e o das cidades.
Uma base firme constituída de pequenos e médios camponeses foi, em todos os
tempos, a melhor defesa contra as enfermidades sociais do género das que nos
afligem presentemente. Essa é também a única saída que permite a um povo
encontrar o pão de cada dia nos limites da sua vida económica. A indústria e o
comércio retrocedem da sua posição de dirigentes e colocam-se no quadro geral
de uma economia nacional de consumo e compensação. Uma e outro já não são a
base de alimentação do povo, mas sim um auxílio para a mesma. Dispondo eles de
uma compensação entre a produção e o consumo, tornam toda a alimentação do povo
mais ou menos independente do exterior. Ajudam, portanto, a assegurar a
liberdade de Estado e a independência da nação, sobretudo nos dias maus.»
Adolf
Hitler («A Minha Luta»).
«(...) o comércio surgiu muito cedo e o trato comercial a grande distância, e de artigos cuja origem seria provavelmente desconhecida para os comerciantes envolvidos, é mais antigo do que qualquer outro contacto rastreável entre grupos remotos. A arqueologia moderna confirma que o comércio é mais antigo do que a agricultura ou qualquer outro modo de produção regular (Leakey, 1981: 212)».
Friedrich A. Hayek («Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo»).
«É preciso,
todavia, investigar a originalidade da contribuição de Heidegger para estas
ideias. Ele responde a uma outra preocupação: a vontade dos alemães colocarem o
centro político no Nordeste. E como este deslocamento conduz à constituição de
centros de Poder nas grandes cidades (particularmente Berlim), Heidegger vai
opor-lhe a necessidade de procurar o móbil do trabalho espiritual e político
não só na província, mas no próprio campo. À burocratização dos Estados que se
submetem progressivamente à hegemonia da fracção institucional, Heidegger opõe
o movimento revolucionário das pátrias locais. A sua crítica do mundo urbano paralelamente
à valorização do mundo rural, escondem a defesa de um projecto político bem
preciso:
“O citadino
pensa que ‘se mistura com o povo’ se condescender numa longa conversa com um
camponês. Quando à noite, à hora do descanso, me sento com os camponeses à
volta do lume ou à mesa, por esses cantos perdidos, a maior parte do tempo nem sequer falamos. Fumamos o nosso cachimbo
em silêncio. De tempos a tempos
talvez, deixa-se cair uma palavra para dizer que o corte da lenha da floresta
está a acabar, que na noite anterior a marta devastou o galinheiro, que
provavelmente amanhã tal vaca irá parir [...]. A pertença íntima do meu
trabalho à Floresta Negra e aos homens que aí vivem vem de um enraizamento secular,
que nada pode substituir, no território alemânico e suábio.
“O citadino
é, quando muito, ‘estimulado’ pelo que se convencionou chamar uma estada no
campo. Mas é todo o meu trabalho que é animado e guiado pelo mundo destas
montanhas e dos seus camponeses. Agora, o meu trabalho lá em cima é de vez em
quando interrompido por períodos bastante longos para colóquios, deslocações
para conferências, discussões, e para o meu ensino cá em baixo. Mas logo que
regresso lá acima, desde as primeiras horas de presença na casa de campo, todo
o universo das questões antigas me invade, e na forma mesma em que as tinha
deixado [...].
“Os
citadinos admiram-se frequentemente do meu longo e monótono isolamento nas
montanhas, com os camponeses. Contudo, não é um isolamento, mas antes a solidão. Nas grandes cidades, o homem
pode com efeito facilmente estar mais isolado
do que em nenhum outro lugar. Mas lá
ele nunca pode estar só. Porque a solidão tem o poder absolutamente original de
não nos isolar, mas pelo contrário de
lançar toda a existência na ampla
proximidade da essência de todas as coisas.
“Lá podemos
num passe de magia tornar-nos uma ‘celebridade’, por intermédio dos jornais e
das revistas. É ainda o caminho mais seguro para votar o nosso querer mais puro
à falsa interpretação e para cair rápida
e radicalmente no esquecimento.
“Em
contrapartida, a memória camponesa testemunha uma fidelidade simples, experimentada e sem falhas. Há pouco tempo, uma
velha camponesa morreu lá em cima. Gostava frequentemente de cavaquear comigo,
e nessas ocasiões vinham à baila velhas histórias da aldeia. Ela tinha
preservado, na língua poderosa e figurada que era a sua, muitas das antigas
palavras e diversos adágios, que hoje a juventude da aldeia já não compreende e
que estão perdidos para a língua viva. Ainda no ano passado, quando vivi
sozinho semanas inteiras na casa de campo, esta camponesa de 83 anos subiu por várias vezes a encosta
íngreme para me vir ver. Queria, dizia ela, verificar de todas as vezes se eu
ainda lá estava e se ‘umas pessoas’ não me tinham vindo assaltar. A noite da
sua morte, passou-a a conversar com os membros da família. Ainda uma meia hora
antes do seu fim os encarregou de
darem cumprimentos ao ‘Senhor Professor’. – Uma lembrança destas vale
incomparavelmente mais do que a ‘reportagem’ mais hábil de um jornal
mundialmente conhecido sobre a minha suposta filosofia.”».
Victor Farías («Heidegger e o Nazismo»).
«Tudo o que
é social se apresenta aos indivíduos, aos grupos que entre si formam e aos
povos com um poder de coerção limitativo, repressivo e, em muitos casos,
opressor, o que o torna tanto mais estranho quanto é certo que só em sociedade
o homem existe e pode ser feliz. Também aqui está presente o problema do mal.
Os
indivíduos, os grupos e os povos têm, sem dúvida, vários modos de existência.
Nos indivíduos, o mais próprio e nobre é o da existência espiritual, no dos
grupos, como a família, é o da existência natural, no dos povos é o da nação.
Mas todos eles têm, cumulativamente, uma existência social e é aí, enquanto
existindo em sociedade, que estão sujeitos à obrigatoriedade, que a norma moral
exprime, e à coerção, que o poder do Estado exerce. Acontece que a maior parte
dos homens são incapazes de transcender a existência social para se afirmarem
nos modos de existência que lhes são mais próprios.
A sociedade
é, como a positividade entre os sistemas e formas do direito, o denominador comum
das entidades que vimos serem a Pátria, a Nação, a República e o Estado. Isso
explica a tentação e a facilidade de as reduzirem a esse denominador aqueles
cujo pensamento, mais ingénuo do que filosófico, é incapaz de delas formar o
conceito.
Sociedade é
uma noção incerta, vaga e equívoca que a sociologia há mais de um século se
esforça por definir, sem conseguir enunciar-lhe o conceito e por determinar,
sem conseguir encontrar-lhe os termos ou limites.
A
sociologia é uma falsa ciência. Porque não há tema, problema ou realidade de
que se ocupe que não tenha o lugar próprio numa outra ciência, mais geralmente
na psicologia, na história e no direito. Quer dizer, a sociologia não tem
categorias e, sem categorias, não há ciência.
Falsa
ciência a sociologia, a sociedade não é, em rigor, real: não há sociedade, mas
sociedades, e dizer “sociedades” é já empregar um termo vago para designar os
povos e as nações.»
Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).
«Apesar do
abuso internacional da palavra “social”, as suas formas mais extremas talvez se
encontrem na Alemanha Ocidental, onde a Constituição de 1949 consagrou a expressão
sozialer Rechtsstaat (estado social
de direito), a partir da qual se espalhou o conceito de “economia social de
mercado” – num sentido em que o seu divulgador, Ludwig Erhard, certamente nunca
pretendeu. (Ele asseverou-me em conversa certa vez que para si a economia de
mercado não tinha de ser social, mas
que era assim devido à sua origem). Estado de direito e mercado são, à partida,
conceitos bastante claros, mas o qualficativo “social” priva-os de qualquer
significado inequívoco. A partir destes usos da palavra “social”, os especialistas
alemães chegaram à conclusão de que o seu governo está constitucionalmente
subordinado ao Sozialstaatsprinzip (princípio do estado social), o que significa,
pura e simplesmente, que o estado de direito se encontra suspenso. De igual modo,
estes especialistas alemães vislumbraram um conflito entre Rechtsstaat (estado de direito) e Sozialstaat (estado social) e implantaram o soziale Rechtsstaat (estado social de direito) na Constituição que,
deve talvez dizer-se, é da lavra de fabianos de ideias atabalhoadas inspirados
pelo inventor oitocentista do “Nacional-Socialismo”, Friedrich Naumann (H. Maier,
1972: 8).
O termo “democracia”,
de igual modo, tinha um significado bem claro, mas “social-democracia” não só
serviu para nomear o austro-marxismo radical do período entre guerras como foi
agora escolhido na Grã-Bretanha para denominar um partido político votado a uma
variante do socialismo fabiano. A expressão tradicional para o que hoje em dia
é chamado “estado social” era “despotismo iluminado” e o intrincado problema de
como alcançar tal despotismo de forma democrática, isto é, preservando a
liberdade individual, é simplesmente deixado de lado pela amálgama “social-democracia”».
Friedrich A. Hayek («Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo»).
«É evidente que, sem Deus, não há teocracia que tenha algum mínimo sentido. Dizer “teocracia sem Deus” é, no entanto, a designação adequada a um sistema que, paradoxalmente, a si mesmo retira o princípio que o justificaria e a cada uma das suas formas retira significado que lhe daria sentido. Todo este sistema supõe uma dedução a partir da ideia da divindade e em cada uma das suas formas está implícita uma noção teológica ou teonómica; mas completada a dedução, articulando todo o formalismo, o sistema nega e repudia o que lhe deu origem. Trata-se, pois, de uma teocracia que a si mesma se ignora o que é e que, portanto, faz da ignorância o seu fundamento e o seu método, uma espécie de lógica sem logos que positivamente rejeita tudo o que seja pensar.
(...) os
teocratas recusam-se a conceber como “formas jurídicas” os modos que a existência
comum dos homens pode adquirir. Preferem chamar-lhe, por exemplo, “formas de
existência social” para evitarem ter de atender aos princípios que as formas
jurídicas significam e dos quais se deduzem, para darem a existência comum como
o domínio do fortuito, do convencional e do arbitrário, domínio de onde, precisamente,
a arrancou o direito, e para, enfim, poderem propor, sem mais adequada
justificação, a substituição das “formas de existência” que condenam pelas “formas
de existência” que preconizam. As primeiras, serão expressões do que, na
desigualdade, singulariza os seres e individualiza os homens, as segundas, as
expressões da igualdade que repudia toda a individuação. Sabemos bem como só as
primeiras podem apresentar-se como “formas jurídicas” pois deduzem-se de
princípios e a igualdade é uma relação, não um princípio. Substituir um
princípio por uma relação, equivale a estabelecer que a existência não tem
significado.»
Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).
Os nossos intelectuais e a sua tradição de socialismo razoável
O que
aventei acerca da moral e tradição, sobre economia e mercado e em matéria de
evolução, entra obviamente em conflito com muitas ideias influentes, não só com
o velho social-darwinismo (...), mas também com muitas outras concepções do
passado e do presente: com as opiniões de Platão e Aristóteles, de Rousseau e
dos fundadores do socialismo, de Saint-Simon, Karl Marx, e de muitos outros.
Com efeito,
o ponto da minha tese segundo a qual a moral, incluindo em particular as nossas
instituições de propriedade, liberdade e justiça, não são uma criação da razão
humana, mas um legado suplementar produto da evolução cultural, opõe-se à
concepção intelectual dominante do século XX. A influência do racionalismo foi,
de facto, tão profunda e disseminada que, em regra, quanto mais inteligente e
educada a pessoa, o mais provável, presentemente, é que ele ou ela seja não só
um racionalista, como também cultive pontos de vista socialistas (independentemente
de ser suficientemente doutrinária para atribuir um rótulo às suas opiniões,
incluindo a etiqueta «socialista»). Quanto mais alto o nível intelectual, quanto
mais falamos com intelectuais, mais provável é depararmos com convicções
socialistas. Os racionalistas tendem a ser inteligentes e os intelectuais
inteligentes tendem a ser socialistas.
Se me é
permitido registar aqui duas notas pessoais, creio poder falar com o benefício
de alguma experiência sobre esta visão porque as opiniões racionalistas, que tenho
vindo a examinar e criticar sistematicamente há muitos anos, são aquelas que,
tal como sucedeu com muitos pensadores europeus não religiosos da minha
geração, alimentaram os meus próprios pontos de vista no início deste século.
Nessa altura revelavam-se óbvias e adoptá-las parecia ser a via para escapar a
todo o tipo de superstições perniciosas. Tenho eu próprio levado algum tempo a
libertar-me dessas noções e, na verdade, tendo descoberto nesse processo que se
tratava de superstições, não atribuo qualquer cunho pessoal às considerações
deveras ríspidas que reservo a certos autores nas próximas páginas. Será talvez
apropriado, inclusivamente, lembrar neste ponto os leitores do meu ensaio
«Porque Não Sou um Conservador» (1960: Posfácio)
para evitar que extraiam conclusões erradas. Apesar de a minha tese ser
contrária ao socialismo, tenho tão pouco de conservador tory quanto Edmund
Burke. O meu conservadorismo, tanto quanto existe, está confinado à moral dentro
de certos limites. Sou inteiramente a favor da experimentação e de uma
liberdade muito maior do que a permitida por governos conservadores. A minha
objecção aos intelectuais racionalistas que irei discutir não é o facto de eles
experimentarem. Pelo contrário, experimentam pouco e apreciam sobretudo experiências
banais; afinal, a ideia de retornar ao instintivo é vulgaríssima e já foi
tentada tantas vezes que é incompreensível considerá-la uma experimentação.
Oponho-me a esses racionalistas porque consideram as suas experiências como
resultantes da razão, revestindo-as de metodologia pseudocientífica e, assim,
ao tentarem convencer pessoas influentes, submetem a ataques infundados
costumes tradicionais inestimáveis (fruto de séculos de experiências por
tentativa e erro) e resguardam as suas próprias «experiências» do devido
escrutínio.
A surpresa
ao descobrir que pessoas inteligentes tendem a ser socialistas diminui quando
nos apercebemos de que tais indivíduos são, obviamente, propensos a sobrestimar
a inteligência e a supor que devemos todas as vantagens e oportunidades que
oferece a nossa civilização a um propósito deliberado em vez do respeito por
regras tradicionais. Presumem, igualmente, que conseguiremos, graças ao
exercício da nossa razão, eliminar quaisquer aspectos indesejáveis ainda
existentes graças a mais reflexões inteligentes, mais projectos apropriados e
mais «coordenações racionais» dos nossos esforços. Isso alimenta uma disposição
favorável em relação ao planeamento económico central e controlo que são o
âmago do socialismo. Intelectuais exigirão, com certeza, explicações sobre tudo
o que se espera deles e terão relutância em aceitar costumes pelo mero facto de
vigorarem nas suas comunidades de nascimento, o que os levará a entrar em
conflito com, ou pelo menos a depreciarem, quem aceita placidamente as normas
de conduta prevalecentes. Acresce que esses intelectuais pretenderão,
compreensivelmente, seguir na senda da ciência e da razão e consequentemente –
considerando o progresso extraordinário das ciências físicas nos últimos
séculos, além de terem sido ensinados de que construtivismo e cientificismo são
a razão de ser da ciência e da razão – terão dificuldade em acreditar que possa
existir algum conhecimento útil que não derive da experimentação deliberada ou
em aceitar a validade de outras tradições diversas da sua própria tradição de
razão. Assim, um distinto historiador escreveu nesse sentido: «A tradição é
quase por definição repreensível, algo a ridicularizar e lamentar»
(Seton-Watson, 1983: 1270).
Por
definição: Barry (1961, atrás citado) pretendia fazer a moral e a justiça imorais e injustas por «definição analítica»; aqui Seton-Watson tenta o mesmo
ardil em relação à tradição, tornando-a, por definição, repreensível.
Voltaremos a estas palavras, a esta «Novilíngua» (...). Entretanto, vejamos os
factos mais de perto.
Todas estas
reacções são compreensíveis, mas têm consequências. As consequências são
particularmente perigosas – para a razão e também para a moral – quando a opção
recai sobre esta tradição convencional da razão, em vez dos resultados reais da
razão, levando os intelectuais a ignorarem os limites teóricos da razão, a
menosprezarem um mundo de informação histórica e científica, a ignorarem as
ciências biológicas e humanas, como a economia, e a distorcerem a origem e
funções das nossas normas morais tradicionais. Tal como outras tradições, a
tradição da razão é adquirida e não inata. Também se situa entre o instinto e a razão; e a questão da efectiva razoabilidade e
veracidade desta proclamada tradição de razão e verdade tem de ser agora
escrupulosamente examinada.
Moral e razão: alguns exemplos
Para que
não pensem tratar-se de exagero, apresentarei seguidamente alguns exemplos. Não
quero, contudo, ser injusto para com os nossos grandes cientistas e filósofos,
dos quais pretendo discutir algumas ideias. Apesar das suas opiniões ilustrarem
a relevância do problema – a nossa filosofia e ciência natural estão muito
longe de compreender o papel desempenhado pelas nossas principais tradições –,
não são, em regra, directamente responsáveis pela ampla disseminação dessas
ideias porque têm melhores coisas em que se ocupar. Por outro lado, não se deve
supor que as afirmações que estou em vias de citar são meras aberrações
pontuais ou idiossincráticas da parte dos nossos distintos autores; são, ao
invés, conclusões consistentes derivadas de uma tradição racionalista bem
estabelecida. Não ponho em dúvida, com efeito, que alguns destes grandes
pensadores se esforçaram por compreender a ordem alargada de cooperação humana
– mesmo que tenham acabado como seus opositores tenazes e frequentemente
involuntários.
Quem mais
fez para difundir essas ideias, os verdadeiros portadores do racionalismo
construtivista e do socialismo, não foram, no entanto, esses distintos
cientistas. Foram antes e predominantemente os chamados «intelectuais» a quem
chamei noutra ocasião (1949/1967: 178-194), de modo pouco simpático, profissionais do
«trato em segunda mão de ideias»: professores, jornalistas e «representantes dos
media» que, tendo absorvido rumores
nos corredores da ciência, se autodesignam representantes do pensamento moderno
– pessoas de conhecimento e virtude moral superiores aos de quem mantenha em
alta consideração os valores tradicionais –, tendo como lídimo dever a
apresentação de novas ideias ao público e vendo-se por isso compelidos a
ridicularizar o convencional para vincar o cunho inovador da sua mercadoria.
Para essas pessoas, devido às posições que ocupam, o «novo», a «novidade», em
vez da verdade, tornam-se no valor principal, mesmo que não seja essa, de forma
alguma, a sua intenção e que aquilo que têm para apresentar esteja longe de ser novo e verdadeiro. Podemo-nos
perguntar, ainda, se esses intelectuais não serão por vezes motivados pelo
ressentimento de, apesar de um conhecimento superior sobre o que deve ser
feito, ganharem muito menos do que aqueles cujas instruções e actos orientam
efectivamente as questões práticas. Esses intérpretes literários de avanços
científicos e tecnológicos, entre os quais H. G. Wells – que devido à elevada
qualidade da sua obra seria um magnífico exemplo –, fizeram mais pela difusão
do ideal socialista de uma economia dirigida e centralizada em que a cada um é
atribuída a parte devida do que os verdadeiros cientistas cujas obras
extorquiram muitas das suas ideias. Outro exemplo similar é o jovem George Orwell, que afirmou que «quem tem cabeça para pensar sabe perfeitamente que
está no âmbito das possibilidades [que] o mundo, potencialmente pelo menos,
seja extremamente rico», pelo que seríamos capazes de «desenvolvê-lo como pode
ser desenvolvido de modo a podermos todos viver como príncipes, caso o
desejássemos».
Vou
concentrar-me aqui não nas obras de homens como Wells e Orwell, mas nas
opiniões sustentadas por alguns dos maiores cientistas. Podemos começar com
Jacques Monod. Monod foi uma grande personalidade cujo trabalho científico
muito admiro, tendo criado, no essencial, a moderna biologia molecular. As suas
reflexões sobre ética são, no entanto, de qualidade diferente. Em 1970, num
simpósio da Fundação Nobel sobre «O Lugar dos Valores num Mundo de Factos»,
afirmou: «O desenvolvimento científico finalmente destruiu, reduziu ao absurdo,
relegou ao nível de uma noção ilusória e sem sentido, a ideia de que a ética e
os valores não são livre escolha nossa, mas antes uma obrigação» (1970: 20-21). Mais tarde, nesse ano, reiterou as suas opiniões e defendeu-as num livro que se
tornou famoso, O Acaso e a Necessidade
(1970/1977). Nessa obra intima-nos a renunciar a qualquer outro alimento
espiritual e a reconhecer a ciência como a nova e virtualmente exclusiva fonte
de verdade, e a rever, em conformidade com isto, os fundamentos da ética. O
livro conclui, como tantas outras declarações similares, com a ideia de que a
«ética é na sua essência não objectiva
e encontra-se para sempre excluída do campo do conhecimento» (1970/77: 162). A
nova «ética do conhecimento não se impõe ao homem; é ele, pelo contrário, quem se lhe impõe» (1970/77: 164). Esta nova
«ética do conhecimento» é, afirma Monod, «a única atitude quer racional quer
resolutamente idealista sobre a qual pode ser edificado um verdadeiro
socialismo» (1970/77: 165-66). As ideias de Monod são representativas por
estarem profundamente enraizadas numa teoria do conhecimento que tentou
desenvolver uma ciência do comportamento – chame-se-lhe eudaimonia,
utilitarismo, socialismo ou outra coisa qualquer – assente no princípio de que determinados tipos de comportamento são os
mais indicados para satisfazer os nossos desejos. Somos aconselhados a
adoptar um comportamento que conduza a determinadas situações capazes de
satisfazer os nossos desejos, tornando-nos mais felizes, e assim por diante.
Por outras
palavras, pretende-se uma ética que os homens possam acatar propositadamente de modo a alcançar fins
conhecidos, desejados e pré-seleccionados.
As
conclusões de Monod advêm da sua opinião de que a única outra forma possível de
explicar a origem da moral – além de atribuí-la a uma invenção humana – passa
por recorrer aos relatos animistas ou antropomórficos de muitas religiões. E é,
de facto, verdade que «para a Humanidade no seu conjunto todas as religiões se
interligavam com a visão antropomórfica da divindade como um pai, amigo ou
potentado a quem o homem devia servir, rezar, etc.» (M. R. Cohen, 1931: 112).
Não posso de forma alguma aceitar este aspecto da religião, tal como Monod e a
maioria dos cientistas da natureza. Parece-me rebaixar algo muito além da nossa
compreensão a um nível ligeiramente superior a uma mente de tipo humano. Mas
rejeitar este aspecto da religião não implica deixar de reconhecer que devemos
a essas religiões a preservação – ainda que por razões erróneas – de costumes
sumamente mais importantes para a sobrevivência e prosperidade do homem do que
muitos dos estabelecidos racionalmente (...).
Monod não é
o único biólogo a argumentar nestes termos. Uma declaração de outro grande
biólogo e investigador erudito ilustra melhor do que qualquer outra com que me
tenha deparado os absurdos a que podem chegar inteligências superiores por via
da incompreensão das «leis da evolução» (...). Joseph Needham escreve que «a
nova ordem mundial de justiça social e camaradagem, o estado racional e sem
classes, não é um sonho idealista, mas a extrapolação lógica de todo o curso da
evolução, derivando exclusivamente daí a sua autoridade, sendo,
consequentemente, a mais racional de todas as crenças» (J. Needham, 1943: 41).
(...) Um
dos casos mais apropriados, que discuti noutro local (1978), é representado por
John Maynard Keynes, um dos mais representativos líderes intelectuais de uma
geração emancipada da moral tradicional.
Keynes
acreditava que, levando em linha de conta efeitos previsíveis, poderia
construir um mundo melhor do que acatando regras tradicionais abstractas.
Keynes usou a frase «sabedoria convencional» como uma expressão favorita de
desprezo e, num revelador relato autobiográfico (1938/49/72: X, 446), contou
como o círculo de Cambridge da sua juventude, de que muitos membros viriam a
integrar o Grupo de Bloomsbury, «repudiava em absoluto a obrigação pessoal de
obedecer a regras gerais» e como eram, «no sentido estrito do termo,
imoralistas». Acrescentou modestamente que, ao chegar aos 55 anos, era
demasiado velho para mudar e continuaria a ser um imoralista. Este homem
extraordinário também justificou de modo peculiar alguns dos seus pontos de
vista económicos e a sua crença genérica na gestão de uma ordem mercantil,
alegando que «a longo prazo estaremos todos mortos» (isto é, não importa o
prejuízo que causemos a longo prazo; só conta o momento presente, o curto
prazo, consistindo na opinião pública, exigências, votos e toda a parafernália
e subornos da demagogia). A máxima «a longo prazo estaremos todos mortos» é
também uma manifestação típica da recusa em reconhecer que a moral se preocupa
com os efeitos a longo prazo – efeitos além
da nossa capacidade de percepção – e da tendência para desprezar o estudo
da evolução a longo prazo.
Keynes
também criticou a tradição moral da «virtude de aforrar», recusando, na
companhia de milhares de economistas excêntricos, reconhecer que a redução da
procura de bens de consumo é em regra requerida para aumentar a produção de
bens de capital (isto é, investimento). E isto, por seu turno, levou-o a
devotar a sua formidável capacidade intelectual ao desenvolvimento da teoria
«geral» da economia – à qual ficámos a dever a inaudita inflação mundial do
último quartel do nosso século e, por inevitável consequência, a subsequente
situação de acentuado desemprego (Hayek, 1972/1978).
Portanto,
não foi apenas a filosofia a induzir Keynes em erro. A economia também. Alfred
Marshall, que percebia do assunto, parece não ter conseguido que Keynes
compreendesse adequadamente uma das importantes ideias a que John Stuart Mill
chegara na sua juventude: a saber, que «a procura de mercadorias não é uma
procura de trabalho». Sir Leslie
Stephen (o pai de Virginia Woolf, outro membro do Grupo de Bloomsbury)
descreveu esta doutrina em 1876 como uma «doutrina tão escassamente
compreendida que o seu cabal entendimento é, possivelmente, o melhor teste de
um economista» e Keynes reduziu-o ao ridículo por esta afirmação. (Ver Hayek,
1970/78: 15-16, 1973: 25, e (sobre Mill e Stephen) 1941: 433ff.)
Apesar de
Keynes ter, involuntariamente, contribuído imenso para o debilitamento da
liberdade, chocou os seus amigos de Bloomsbury ao recusar o seu vago
socialismo. A maioria dos seus discípulos, contudo, era constituída por
socialistas de várias correntes. Nem ele nem esses discípulos compreenderam que
a ordem alargada tem de assentar em considerações de longo prazo.
A ilusão
filosófica por detrás da visão de Keynes da existência de um atributo indefinível
de «bondade» destinado a ser descoberto pelo indivíduo, impondo-lhe a obrigação
de o acatar, e cujo reconhecimento justifica o desprezo e desrespeito para com
a maior parte da moral tradicional – uma visão que graças à obra de G. E. Moore
(1903) predominava no Grupo de Bloomsbury – levou a uma típica hostilidade para
com as fontes em que se alimentara. Isso era também óbvio, por exemplo, em E.
M. Forster, que defendeu seriamente que a libertação da Humanidade dos
malefícios do «comercialismo» se tornara tão urgente quanto a sua libertação da
escravidão.
Convicções similares às de Monod e Keynes foram também expressas por um cientista de menor gabarito, mas, ainda assim, influente: G. B. Chisholm, o psicanalista que se tornou no primeiro secretário-geral da Organização Mundial de Saúde. Chisholm advogava nada menos do que «a erradicação do conceito de certo e errado» e sustentava que a função do psiquiatra era libertar a raça humana do «fardo prejudicial do bem e do mal», orientação que à época foi louvada por altas autoridades legais americanas. Aqui, de novo, a moral é vista – dado não ter fundamento «científico» - como irracional e o seu estatuto como encarnação do conhecimento cultural é ignorado.
Consideremos,
no entanto, um cientista de gabarito bem superior a Monod ou Keynes, Albert
Einstein, talvez o maior génio da nossa época. Einstein interessava-se por um
assunto diferente, ainda que muito próximo. Recorrendo a uma popular máxima
socialista, escreveu que a «produção para uso» deve substituir a «produção para
o lucro» da ordem capitalista (1956: 129).
«Produção
para uso» significa aqui o tipo de trabalho que, num pequeno grupo se efectiva
em função da utilização esperada do produto. Mas esta noção não leva em linha de
conta os argumentos que avançámos em capítulos anteriores e que abordaremos de
novo no próximo: na ordem autogerada do mercado só as diferenças entre os
preços expectáveis para diversas mercadorias e serviços e os seus custos
indicam ao indivíduo a melhor forma de contribuir para o acervo do qual nos
abastecemos na proporção devida à nossa contribuição. Einstein parece não se
ter apercebido de que só através do cálculo e distribuição em termos de preços
de mercado é possível utilizar os recursos ao nosso dispor de modo intensivo a
fim de orientar a produção para satisfazer objectivos que se encontram muito
além do campo de percepção do produtor e capacitando o indivíduo a participar
vantajosamente na troca produtiva. Primeiro, servindo pessoas que na maioria
desconhece, mas cujas necessidades pode, apesar disso, satisfazer de forma
efectiva e, em segundo lugar, abastecendo-se a si próprio porque pessoas que
ignoram a sua existência são induzidas, também por sinais do mercado, a
providenciar às suas necessidades (...). Ao expressar tais pontos de vista,
Einstein revela a sua falta de compreensão, ou interesse efectivo, acerca dos
reais processos de coordenação das acções dos seres humanos.
O biógrafo
de Einstein nota que ele considerava evidente que a «razão humana deve ser
capaz de encontrar um método de distribuição capaz de funcionar de forma tão
efectiva como o da produção» (Clark, 1971: 559), descrição que faz lembrar uma
das afirmações do filósofo Bertrand Russell segundo a qual uma sociedade não
podia ser tida por «plenamente científica» a não ser que «tivesse criado
intencionalmente uma determinada estrutura para concretizar certos fins» (1931:
203). Tais exigências, sobretudo por Einstein, pareciam ser de tal modo
plausíveis, numa abordagem superficial, que, inclusivamente, um filósofo
sensato, ao censurá-lo por afirmações fora da sua esfera de competência em
escritos de divulgação, declarou em tom aprovador que «Einstein tem perfeita
consciência de que a actual crise económica se deve ao nosso sistema de
produção orientada para o lucro em vez do uso e ao facto de o tremendo aumento da
capacidade produtiva não ser acompanhado por um equivalente acréscimo no poder
de compra das grandes massas» (M. R. Cohen, 1931: 119).
Deparamos
ainda com Einstein a repisar no citado ensaio frases típicas da agitação
socialista sobre a «anarquia económica da sociedade capitalista» em que «o
pagamento dos trabalhadores não é determinado pelo valor do produto», ao passo
que «uma economia planeada... distribuiria o trabalho a realizar entre todos os
que fossem capazes de trabalhar» e outras declarações semelhantes.
Opinião similar,
mas mais prudente, surge no ensaio do colaborador de Einstein, Max Born (1968:
cap. 5). Apesar de Born ter obviamente compreendido que a nossa ordem alargada
deixara de satisfazer instintos primitivos, também ele não examinou com atenção
as estruturas que a geraram e mantêm, nem escrutinou como os nossos instintos
morais ao longo de mais de cinco mil anos passaram por substituições ou
restrições graduais. Desse modo, ainda que se tenha apercebido de que a
«ciência e a tecnologia destruíram a base ética da civilização, talvez
irreparavelmente», pensa que tal se deve aos factos que desvelaram, em vez de
terem desacreditado de forma simétrica, crenças que não satisfaziam determinados
«padrões de aceitação» exigidos pelo racionalismo construtivista (...). Mesmo
aceitando que «ninguém concebeu ainda maneira de manter a coesão social sem
princípios éticos tradicionais», Born espera, contudo, que possam vir a ser substituídos
«por via do método tradicional usado na ciência». Também ele não consegue
entrever que aquilo que existe entre instinto e razão não pode ser substituído
pelo «método tradicionalmente usado na ciência».
Os meus
exemplos são extraídos de declarações de importantes vultos do século XX e não
inclui inúmeras outras personalidades, como R. A. Milikan, Arthur Eddington, F.
Soddy, W. Oswald, E. Solvay, J. D. Bernal, que proferiram muitas afirmações
insensatas sobre questões económicas.
Pode-se,
com efeito, citar centenas de declarações similares de cientistas e filósofos
de renome comparável quer de séculos transactos ou da actualidade. Mas creio
ser mais proveitoso analisar de perto esses exemplos contemporâneos e o que
está por detrás deles do que o mero acumular de citações e casos. A primeira
coisa a sublinhar, talvez, é que, longe de serem idênticos, estes exemplos
possuem um certo parentesco.
Uma litania de erros
As ideias
arroladas nestes exemplos têm em comum um certo número de raízes temáticas
intimamente inter-relacionadas que não se resumem a meras questões de
antecedentes históricos comuns. Aos leitores não familiarizados com alguma
desta literatura podem escapar numa primeira abordagem certas interligações.
Por esta razão gostaria, antes de prosseguir o exame dessas ideias, de
identificar certos temas recorrentes – na maior parte e à primeira vista sem
nada a objectar e todos eles familiares – que, em conjunto, constituem uma
tese. Esta «tese» também pode ser descrita como uma litania de erros ou um
receituário para gerar o suposto racionalismo que denomino cientismo e
construtivismo. Iniciemos esta ronda consultando um dicionário, essa «fonte de
conhecimento» imediata.
Coligi do
muito útil Fontana/Harper Dictionary of
Modern Thought (1977) algumas sucintas definições de quatro conceitos
filosóficos básicos que, por via de regra, orientam os pensadores contemporâneos
educados segundo a linha cienticista e construtivista: racionalismo, empirismo,
positivismo e utilitarismo, conceitos que nos últimos séculos foram tidos como
expressões representativas do «espírito científico da época». Segundo essas
definições, formuladas por Lorde Quinton, um filósofo presidente do Trinity
College de Oxford, o racionalismo
repudia crenças que não assentam exclusivamente na experiência e no raciocínio
dedutivo ou indutivo. O empirismo
defende que todas as proposições de índole cognitiva têm de ter justificação na
experiência. O positivismo é descrito
como a doutrina de acordo com a qual todo o conhecimento verdadeiro é
científico, no sentido de que descreve a coexistência e sucessão de fenómenos
observáveis. O utilitarismo «assume
que o prazer ou dor experimentados são o critério da rectidão do acto.
Nestas
definições surgem de modo bastante explícito, tal como se nota implicitamente
nos exemplos citados na anterior secção, as profissões de fé da moderna ciência
e da filosofia da ciência e as suas declarações de guerra contra as tradições
morais. Estas declarações, definições e postulados criaram a impressão de que
só o justificável racionalmente, o demonstrado por observação experimental, somente
o vivenciado e passível de exame, são dignos de crédito, sendo de evitar acções
que não produzam deleite. Daqui deriva directamente a tese de que as principais
tradições morais que criaram e criam a nossa cultura – impossíveis naturalmente
de justificar de tal forma e frequentemente detestadas – não são dignas de
respeito e que é nossa obrigação erguer uma nova moral assente no conhecimento
científico, por via de regra a nova moral do socialismo.
Estas
definições, juntamente com os nossos anteriores exemplos, examinadas com maior
detalhe, incluem os seguintes pressupostos:
1. 1. A ideia de que é infundado o que não possa ser justificado
cientificamente ou provado através da observação (Monod, Born).
2. 2. A ideia de que não é razoável seguir o que não se compreende. Esta
noção está implícita em todos os nossos exemplos, mas devo confessar que eu
próprio a partilhei outrora e chego a encontrá-la num filósofo com quem em
geral concordo. Assim, Sir Karl Popper alegou certa vez (1948/63: 122; destaque
meu) que os pensadores racionalistas «não se submetem cegamente a qualquer
tradição», o que é, obviamente, tão impossível quanto ignorar toda e qualquer
tradição. Terá sido, talvez, um deslize, dado que noutra ocasião ele nota com
acerto que «nunca saberemos acerca de que é que falamos» (1974/1976: 27, sobre
isto, ver também Bartley, 1985/1987). (Por muito que o homem livre insista no
seu direito a examinar e, quando apropriado, rejeitar qualquer tradição, não
consegue viver em sociedade se recusar a aceitação de incontáveis tradições sem
sequer pensar nelas e ignorando os seus efeitos.)
3. 3. A ideia relacionada de que não é racional seguir determinada via
sem propósitos previamente definidos (Einstein, Russell, Keynes).
4. 4. A ideia, também intimamente relacionada, de que não é razoável
fazer algo a não ser que os seus efeitos sejam não apenas totalmente conhecidos
de antemão, mas totalmente observáveis e vistos como benéficos, no caso dos utilitaristas. (Os pressupostos 2, 3 e 4, são, a despeito das suas ênfases diferentes,
praticamente idênticos, mas assinalei as distinções para chamar a atenção para
o facto de que os argumentos a seu favor redundam, conforme quem os defenda,
numa falta de compreensão em geral ou, mais em particular, na ausência de
propósito específico ou, ainda, de conhecimento perceptível dos efeitos.)
Podia-se
adiantar outros requisitos, mas estes quatro (...) serão suficientes para os
nossos propósitos, essencialmente ilustrativos. Dois aspectos quanto a esses
requisitos devem ser referidos desde já. Em primeiro lugar, nenhum dá prova de
compreender que podem existir limites ao nosso conhecimento ou razão em certas
áreas ou tem em conta que, em certas circunstâncias, a descoberta desses
limites pode ser a tarefa mais importante da ciência. Aprenderemos a seguir que
existem tais limites e que eles podem de facto ser parcialmente superados, como
por exemplo através da ciência da economia ou da «catalaxia», mas que eles não podem ser superados se nos atermos aos
quatro requisitos acima. Em segundo lugar, a abordagem na base dos
requisitos carece de capacidade de compreensão de tais problemas, de
entendimento quanto à forma de reconhecer e lidar com eles, como revela ainda uma
singular falta de curiosidade acerca da génese e subsistência da nossa ordem
alargada e de quais as consequências das tradições que a criaram e mantêm.
(In Friedrich A. Hayek, Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo, Guerra e Paz, 1.ª Edição, Novembro de 2022, pp. 79-93).
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