sexta-feira, 22 de setembro de 2023

"Quanto mais alto o nível intelectual, quanto mais falamos com intelectuais, mais provável é depararmos com convicções socialistas!"

Escrito por Frederico Hayek





«A filosofia com todos os seus progressos ainda não pôde oferecer às multidões nenhum ideal que as encante, e, porque elas carecem a todo o custo de ilusões, dirigem-se instintivamente, como o insecto que se arremessa para a luz, para os retóricos que lhas apresentam. O grande factor da evolução dos povos nunca foi a verdade, mas sim o erro. O socialismo, se é hoje tão poderoso, é por ser a única ilusão que ainda hoje tem vida. E assim, apesar de todas as demonstrações científicas, o socialismo continua a crescer. A principal força do socialismo reside em ser defendido por espíritos que ignoram da realidade das coisas o bastante para ousarem prometer a felicidade dos homens. A ilusão social pompeia hoje sobre todas as ruínas acumuladas do passado e pertence-lhe, sem dúvida, o futuro. As multidões nunca tiveram sede de verdades; em presença de evidências que lhes desagradem, afastam-se, preferindo deificar o erro, se este as encantar. Quem facilmente as souber iludir, assenhorear-se-ia delas; quem tentar desiludi-las será sempre vítima delas.»


«Precisamos de uma Revolução completamente ventilada. A nossa Revolução tem de sair à luz e ao ar. Poderemos ter de aceitar a sovietização à russa muito em breve, a menos que consigamos conceber nós uma colectivização melhor. Mas se concebermos uma colectivização melhor, é bastante provável que o sistema russo incorpore as nossas melhorias, esqueça de novo o seu nacionalismo em revitalização, destrone Marx e Estaline (tanto quanto estes podem ser destronados) e se funda no único Estado mundial.

Entre estes antagonistas primários, entre a Revolução com os olhos abertos e a Revolução de máscara e mordaça, haverá certamente complicações devidas a patriotismos e fanatismos e à cegueira deliberada e impermeável a ensinamentos daqueles que não querem ver. A maioria das pessoas mente muito a si própria antes de mentir às outras pessoas, e é impossível esperar que todos os cultos e tradições em confronto que confundem o espírito humano actual se unam em face da compreensão da situação humana tal como a descrevi aqui. Há multidões que nunca a compreenderão. Poucos seres humanos são capazes de mudar as suas ideias essenciais passada a metade da casa dos trinta anos. Ficam fixados e agem de acordo com elas não mais inteligentemente do que os animais agem de acordo com os seus impulsos inatos. Preferem morrer a mudar os seus segundos eus.»

Herbert George Wells («A Nova Ordem Mundial»).




«As grandes crenças gerais são em número muito restrito. O seu aparecimento e a sua extinção formam o ponto culminante da História para toda a raça histórica; essas crenças constituem o verdadeiro esqueleto do edifício das civilizações.

É facílimo estabelecer uma opinião passageira na alma das multidões; mas é dificílimo assentar nela uma crença duradoura. Como é igualmente muito difícil destruí-la, logo que ela se haja assentado. A maior parte das vezes, só à custa de violentas revoluções é que essa crença se pode mudar, sendo para notar que mesmo as revoluções só conseguem isso quando a crença haja completamente perdido o domínio sobre as almas. As revoluções só servem para de todo varrerem o que já estava quase abandonado, mas que o hábito impedia de ser completamente abandonado. As revoluções que se iniciam são, na realidade, crenças que acabam.»

Gustave Le Bon («A Psicologia das Multidões»). 

 

«(…) muitos de nós estamos a começar a perceber que todos os governos existentes têm de entrar no cadinho, acreditamos que temos diante de nós uma revolução mundial e que, na grande luta para evocar um Socialismo Mundial Ocidentalizado, os governos contemporâneos podem desaparecer como chapéus de palha nos rápidos do Niágara.»

Herbert George Wells («A Nova Ordem Mundial»).



«O absurdo filosófico que muitas vezes apresentam as crenças gerais nunca foi um obstáculo ao seu triunfo. Este só parece até possível quando essas crenças contenham qualquer misterioso absurdo. Não será, pois, a fraqueza evidente das crenças socialistas actuais o que obstará ao seu triunfo na alma das multidões. A verdadeira inferioridade das crenças socialistas, relativamente a todas as crenças religiosas, reside unicamente no facto de estas apresentarem um ideal de felicidade que só numa vida futura será realizado, não podendo, portanto, ninguém contestar-lhe a realização. O ideal de felicidade socialista, porque tem de ser realizado na terra, patenteará, logo às primeiras tentativas de realização, a inanidade das suas promessas e a nova crença perderá nessa ocasião todo o seu prestígio. O seu poder só aumentará, pois, até ao dia em que, pelo triunfo obtido, comece a sua realização prática. E é por isto que, se a nova religião exerce agora, como todas que a precederam, uma função destruidora, não poderá depois exercer, como estas, a função criadora.»

Gustave Le Bon («A Psicologia das Multidões»).

 

«Outra probabilidade importante de uma ordem mundial colectivista que tem de ser aqui referida é o enorme aumento da velocidade e da quantidade de investigação e descobertas. Escrevo “investigação”, mas refiro-me àquele ataque cerrado à ignorância, ao ataque biológico e ao ataque físico, a que geralmente se chama “Ciência”. A “Ciência” chega-nos dessa Idade das Trevas académica, quando os homens tinham de se consolar da sua ignorância fingindo haver uma quantidade limitada de conhecimento no mundo e se pavoneavam homenzinhos de cartolas e togas, bacharéis que sabiam tudo o que havia para saber. Agora é evidente que nenhum de nós sabe grande coisa, e quanto mais analisamos o que sabemos, mais coisas não detectadas até então encontraremos a espreitar dos nossos pressupostos.

Até agora, isto da investigação, aquilo a que chamamos “mundo científico”, tem de facto estado nas mãos de muito poucos. Deixo a sugestão de que no nosso mundo actual, de todos os cérebros capazes de grandes e magistrais contributos para o pensamento e a realização “científicos”, cérebros do calibre dos de Rutherford, Darwin, Mendel, Freud, Leonardo ou Galileu, menos de um num milhar, menos de um em muitos milhares, nasce em condições tais que lhe permitam realizar as suas oportunidades. Os restantes nunca aprendem uma língua civilizada, nunca se aproximam sequer de uma biblioteca, nunca têm a menor hipótese de se autorrealizar, nunca ouvem o chamamento. Estão subnutridos, morrem novos, são desaproveitados. E dos milhões que dariam bons, úteis e curiosos investigadores e exploradores secundários, nem um num milhão é aproveitado.

Mas considere-se agora como seriam as coisas se tivéssemos uma educação estimulante em todo o mundo, uma busca sistemática e cada vez mais competente de qualidades mentais excepcionais e uma rede cada vez mais extensa de oportunidades para elas. Suponha-se que um espírito público arguto implicava uma atmosfera de respeito cada vez maior pela realização intelectual e uma crítica mais contundente da impostura. Aquilo que hoje chamamos “progresso científico” pareceria um avanço débil, hesitante e incerto quando comparado com o que estaria a acontecer nestas circunstâncias mais felizes.

O progresso da investigação e da descoberta conduziu a resultados tão brilhantes e surpreendentes no último século e meio que poucos de nós estamos cientes do pequeno número de homens notáveis responsável por ele e do modo como figuras menores por detrás destes líderes se vão diluindo num séquito de especialistas tímidos e mal financiados que mal se atrevem a fazer frente a um responsável público no seu próprio campo. Este pequeno exército, este “mundo científico” dos nossos dias, que, creio, será constituído por não mais de duzentas mil almas desde o topo até à base e ao último lavador de provetas, estará certamente representado na nova ordem mundial por uma força de milhões, mais bem equipados, amplamente coordenados, livres de questionar, capazes de exigir oportunidades. Os seus melhores não serão melhores do que os nossos melhores, que não podiam ser melhores, mas serão muito mais numerosos e as suas fileiras – exploradores, prospectores, equipas experimentais e uma hoste ciclópica de classificadores, coordenadores e intérpretes – terão um vigor, um orgulho e uma confiança que farão os laboratórios actuais parecerem quase covis de alquimistas.

Alguém pode duvidar de que o “mundo científico” irromperá desta forma quando a revolução se concretizar e que o desenvolvimento do poder do homem sobre a natureza, sobre a sua própria natureza e sobre este planeta ainda inexplorado sofrerá uma aceleração contínua à medida que os anos forem passando? Nenhum homem pode saber de antemão que portas se abrirão nessa altura nem para que terras maravilhosas darão.

Estas são algumas anotações dispersas sobre a qualidade mais ampla que uma nova ordem mundial pode abrir à humanidade. Não especularei mais sobre esta porque não quero que digam que este livro é utópico ou “imaginativo” ou outra coisa do género. Não referi nada que não seja estritamente razoável e praticável. Este é o mais sóbrio e o menos original dos livros. Julgo ter escrito o suficiente para mostrar que é impossível os assuntos mundiais permanecerem no seu nível actual. Ou a humanidade colapsa ou a nossa espécie se ergue com esforço, usando as vias árduas, mas bastante óbvias, que apresentei neste livro para alcançar um novo nível de organização social. Não pode haver muitas dúvidas quanto à abundância, ao empolgamento e à pujança da vida que aguarda os nossos filhos nessa terra superior. Se for alcançada. Não pode haver dúvidas quanto à degradação e à miséria, caso não seja.»

Herbert George Wells («A Nova Ordem Mundial»).

«A intervenção de um professor de direito ou a manipulação marxista da universidade portuguesa

Nas intervenções que se seguiram a esta 2.ª Conferência, foi especialmente significativa a do Dr. Soares Martinez, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, que declarou:

a) que, na generalidade dos países, 50% da economia está nacionalizada; como poderá, portanto, estabelecer neles o Prof. Hayek o sistema de concorrência que preconiza?

b) que a “lei marxista da concentração capitalista” é irrefutável; como poderá, portanto, ser viável o liberalismo?

c) que o marxismo é inteiramente válido no domínio económico e só é refutável no domínio do social, na hierarquia de valores sociais que estabelece.

F. Hayek respondeu com nitidez sumária e indisputável a estas declarações de Soares Martinez. Mas o que há nelas de significativo é virem confirmar a tese  exposta no n.º 3 da "Escola Formal"  de que, entre nós, a distinção entre capitalismo e socialismo consiste apenas no seguinte: o capitalismo separa as entidades que dispõem do poder económico e dominam o Estado, os plutocratas, e as entidades que representam o Estado, os governantes; o socialismo reúne nas mesmas entidades os senhores do governo e os senhores da economia, os que representam o Estado e os que dominam o Estado; no capitalismo, "a hierarquia social dos valores" (para empregar a expressão do Dr. Soares Martinez) é independente da hierarquia política ou burocrática; no socialismo, a hierarquia social identifica-se com a hierarquia burocrática ou política. O regime adoptado pelo Dr. Soares Martinez é o que vigorou até ao 25 de Abril; o regime advogado pelos socialistas é o que vigora desde o 25 de Abril. Tudo o mais é, para ambos, igual: o planeamento da economia, o controlo da produção, a negação da propriedade (para uns “de facto”, para outros “de direito”). Para ambos, a economia deve reger-se pelo marxismo. Para ambos, a marcha ou os ventos da história são inexoráveis e conduzem inexoravelmente à nacionalização e à colectivização de toda a acção humana, agora já em 50%, brevemente em 100%. A ambos é comum o horror ao liberalismo, à liberdade, ao indivíduo.

De registar ainda que o Dr. Soares Martinez é professor da Faculdade de Direito e, por sinal, um dos professores que mais resistiu às organizações socialistas ou comunistas dos estudantes, o que lhe valeu a hostilidade da poderosa máquina de propaganda do socialismo. Mais significativo se torna, portanto, que um homem assim hostilizado pelos socialistas organizados não consiga desprender-se dos quadros mentais socialistas que dominam o ensino universitário há largos anos e venha agora defender, perante Frederico Hayek, a irrefutabilidade do marxismo na economia. A “Escola Formal” não podia encontrar melhor confirmação da descrição que fez, no seu n.º 2, do carácter estruturalmente marxista que, desde alguns decénios adoptou, o ensino superior em Portugal. Esse carácter é o principal factor da actual socialização do país.

O que Frederico Hayek respondeu ao Dr. Soares Martinez foi isto:

– quanto à dificuldade de estabelecer o sistema de concorrência nos países que já nacionalizaram 50% da economia, Hayek observou que mais difícil seria estabelecê-lo se já estivessem nacionalizados 100% da economia.

– quanto às objecções levantadas pelo sistema marxista da economia, Hayek observou que todo esse sistema, de princípio a fim, está errado.»

Orlando Vitorino («Frederico Hayek em Lisboa. O fim do socialismo», in Escola Formal, n.º 5, Dez. 1977/Fev. 1978, pp. 17-18).




«(...) é certo que, antes de 1933 na Alemanha e antes de 1922 em Itália, os comunistas colidiam muito mais facilmente com os nazis e os fascistas do que com os outros partidos. É que disputavam entre si o apoio do mesmo tipo de pensamento e entre si se dirigiam o mesmo ódio aos heréticos. Mas a sua acção mostrou bem como estavam intimamente ligados. Para ambos, o inimigo real, o homem com quem nada tinham de comum e que não podiam esperar convencer, era o liberal à maneira antiga. Enquanto que, para o nazi, o comunista, para o comunista, o nazi, e para ambos, o socialista, são recrutas potenciais feitos da mesma massa, transitoriamente diferenciados uns dos outros apenas por terem dado ouvidos a falsos profetas, todos eles sabem que não pode existir qualquer compromisso entre quaisquer deles e os homens que realmente acreditam na liberdade individual.

Para que esta verdade não seja posta em dúvida pelas pessoas que estão dominadas pela propaganda de qualquer dos lados, permito-me citar o depoimento de uma autoridade que não pode ser suspeita. Num artigo com o significativo título “A descoberta do liberalismo”, o professor Eduardo Heinnam, um dos chefes do socialismo religioso alemão, escreve:

“O hitlerianismo pretende ser, e como tal se intitula, uma verdadeira democracia e um verdadeiro socialismo, e a terrível realidade é que há uma parte de verdade nessa pretensão, uma parte infinitesimal, é certo, mas suficiente para servir de fundamento a essa fantástica distorção. O hitlerianismo vai até o ponto de se atribuir o papel de protector do cristianismo, e a terrível realidade é que esta enorme falsidade é susceptível de causar alguma impressão. Mas no meio de tantas névoas, um facto se desenha com perfeita clareza: Hitler nunca pretendeu representar o verdadeiro liberalismo. O liberalismo tem, portanto, a particularidade de ser a doutrina mais odiada por Hitler.” [Social Research – New York – vol. XXVIII, n.º 4, Novembro, 1941. Vale a pena recordar que Hitler, quaisquer que fossem as razões que a isso levaram, afirmou, num discurso pronunciado em Fevereiro de 1941, que “essencialmente, nacional-socialismo e marxismo são a mesma coisa” – cf. The Bulletin of International News, publicado pelo Royal Institute of International Affairs, vol. XVIII, n.º 5, p. 269].

Importa acrescentar que tal ódio de Hitler ao liberalismo teve poucas ocasiões de se manifestar porque, quando Hitler subiu ao poder, o liberalismo estava para todos os efeitos destruído na Alemanha e havia sido o socialismo que o tinha destruído.»

Frederico Hayek («O Caminho para a Servidão»).


«Só as vantagens da conservação de uma classe de camponeses saudável, como fundamento de toda a nação, são enormes. Muitos dos nossos males actuais não são mais do que a consequência do desequilíbrio entre o povo dos campos e o das cidades. Uma base firme constituída de pequenos e médios camponeses foi, em todos os tempos, a melhor defesa contra as enfermidades sociais do género das que nos afligem presentemente. Essa é também a única saída que permite a um povo encontrar o pão de cada dia nos limites da sua vida económica. A indústria e o comércio retrocedem da sua posição de dirigentes e colocam-se no quadro geral de uma economia nacional de consumo e compensação. Uma e outro já não são a base de alimentação do povo, mas sim um auxílio para a mesma. Dispondo eles de uma compensação entre a produção e o consumo, tornam toda a alimentação do povo mais ou menos independente do exterior. Ajudam, portanto, a assegurar a liberdade de Estado e a independência da nação, sobretudo nos dias maus.»

Adolf Hitler («A Minha Luta»).


«(...) o comércio surgiu muito cedo e o trato comercial a grande distância, e de artigos cuja origem seria provavelmente desconhecida para os comerciantes envolvidos, é mais antigo do que qualquer outro contacto rastreável entre grupos remotos. A arqueologia moderna confirma que o comércio é mais antigo do que a agricultura ou qualquer outro modo de produção regular (Leakey, 1981: 212)».

Friedrich A. Hayek («Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo»).

 




«É preciso, todavia, investigar a originalidade da contribuição de Heidegger para estas ideias. Ele responde a uma outra preocupação: a vontade dos alemães colocarem o centro político no Nordeste. E como este deslocamento conduz à constituição de centros de Poder nas grandes cidades (particularmente Berlim), Heidegger vai opor-lhe a necessidade de procurar o móbil do trabalho espiritual e político não só na província, mas no próprio campo. À burocratização dos Estados que se submetem progressivamente à hegemonia da fracção institucional, Heidegger opõe o movimento revolucionário das pátrias locais. A sua crítica do mundo urbano paralelamente à valorização do mundo rural, escondem a defesa de um projecto político bem preciso:

“O citadino pensa que ‘se mistura com o povo’ se condescender numa longa conversa com um camponês. Quando à noite, à hora do descanso, me sento com os camponeses à volta do lume ou à mesa, por esses cantos perdidos, a maior parte do tempo nem sequer falamos. Fumamos o nosso cachimbo em silêncio. De tempos a tempos talvez, deixa-se cair uma palavra para dizer que o corte da lenha da floresta está a acabar, que na noite anterior a marta devastou o galinheiro, que provavelmente amanhã tal vaca irá parir [...]. A pertença íntima do meu trabalho à Floresta Negra e aos homens que aí vivem vem de um enraizamento secular, que nada pode substituir, no território alemânico e suábio.

“O citadino é, quando muito, ‘estimulado’ pelo que se convencionou chamar uma estada no campo. Mas é todo o meu trabalho que é animado e guiado pelo mundo destas montanhas e dos seus camponeses. Agora, o meu trabalho lá em cima é de vez em quando interrompido por períodos bastante longos para colóquios, deslocações para conferências, discussões, e para o meu ensino cá em baixo. Mas logo que regresso lá acima, desde as primeiras horas de presença na casa de campo, todo o universo das questões antigas me invade, e na forma mesma em que as tinha deixado [...].

“Os citadinos admiram-se frequentemente do meu longo e monótono isolamento nas montanhas, com os camponeses. Contudo, não é um isolamento, mas antes a solidão. Nas grandes cidades, o homem pode com efeito facilmente estar mais isolado do que em nenhum outro lugar. Mas lá ele nunca pode estar só. Porque a solidão tem o poder absolutamente original de não nos isolar, mas pelo contrário de lançar toda a existência na ampla proximidade da essência de todas as coisas.

“Lá podemos num passe de magia tornar-nos uma ‘celebridade’, por intermédio dos jornais e das revistas. É ainda o caminho mais seguro para votar o nosso querer mais puro à falsa interpretação e para cair rápida e radicalmente no esquecimento.

“Em contrapartida, a memória camponesa testemunha uma fidelidade simples, experimentada e sem falhas. Há pouco tempo, uma velha camponesa morreu lá em cima. Gostava frequentemente de cavaquear comigo, e nessas ocasiões vinham à baila velhas histórias da aldeia. Ela tinha preservado, na língua poderosa e figurada que era a sua, muitas das antigas palavras e diversos adágios, que hoje a juventude da aldeia já não compreende e que estão perdidos para a língua viva. Ainda no ano passado, quando vivi sozinho semanas inteiras na casa de campo, esta camponesa de 83 anos subiu por várias vezes a encosta íngreme para me vir ver. Queria, dizia ela, verificar de todas as vezes se eu ainda lá estava e se ‘umas pessoas’ não me tinham vindo assaltar. A noite da sua morte, passou-a a conversar com os membros da família. Ainda uma meia hora antes do seu fim os encarregou de darem cumprimentos ao ‘Senhor Professor’. – Uma lembrança destas vale incomparavelmente mais do que a ‘reportagem’ mais hábil de um jornal mundialmente conhecido sobre a minha suposta filosofia.”».

Victor Farías («Heidegger e o Nazismo»).




«Tudo o que é social se apresenta aos indivíduos, aos grupos que entre si formam e aos povos com um poder de coerção limitativo, repressivo e, em muitos casos, opressor, o que o torna tanto mais estranho quanto é certo que só em sociedade o homem existe e pode ser feliz. Também aqui está presente o problema do mal.

Os indivíduos, os grupos e os povos têm, sem dúvida, vários modos de existência. Nos indivíduos, o mais próprio e nobre é o da existência espiritual, no dos grupos, como a família, é o da existência natural, no dos povos é o da nação. Mas todos eles têm, cumulativamente, uma existência social e é aí, enquanto existindo em sociedade, que estão sujeitos à obrigatoriedade, que a norma moral exprime, e à coerção, que o poder do Estado exerce. Acontece que a maior parte dos homens são incapazes de transcender a existência social para se afirmarem nos modos de existência que lhes são mais próprios.

A sociedade é, como a positividade entre os sistemas e formas do direito, o denominador comum das entidades que vimos serem a Pátria, a Nação, a República e o Estado. Isso explica a tentação e a facilidade de as reduzirem a esse denominador aqueles cujo pensamento, mais ingénuo do que filosófico, é incapaz de delas formar o conceito.

Sociedade é uma noção incerta, vaga e equívoca que a sociologia há mais de um século se esforça por definir, sem conseguir enunciar-lhe o conceito e por determinar, sem conseguir encontrar-lhe os termos ou limites.

A sociologia é uma falsa ciência. Porque não há tema, problema ou realidade de que se ocupe que não tenha o lugar próprio numa outra ciência, mais geralmente na psicologia, na história e no direito. Quer dizer, a sociologia não tem categorias e, sem categorias, não há ciência.

Falsa ciência a sociologia, a sociedade não é, em rigor, real: não há sociedade, mas sociedades, e dizer “sociedades” é já empregar um termo vago para designar os povos e as nações.»

Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).


«Apesar do abuso internacional da palavra “social”, as suas formas mais extremas talvez se encontrem na Alemanha Ocidental, onde a Constituição de 1949 consagrou a expressão sozialer Rechtsstaat (estado social de direito), a partir da qual se espalhou o conceito de “economia social de mercado” – num sentido em que o seu divulgador, Ludwig Erhard, certamente nunca pretendeu. (Ele asseverou-me em conversa certa vez que para si a economia de mercado não tinha de ser social, mas que era assim devido à sua origem). Estado de direito e mercado são, à partida, conceitos bastante claros, mas o qualficativo “social” priva-os de qualquer significado inequívoco. A partir destes usos da palavra “social”, os especialistas alemães chegaram à conclusão de que o seu governo está constitucionalmente subordinado ao Sozialstaatsprinzip  (princípio do estado social), o que significa, pura e simplesmente, que o estado de direito se encontra suspenso. De igual modo, estes especialistas alemães vislumbraram um conflito entre Rechtsstaat (estado de direito) e Sozialstaat (estado social) e implantaram o soziale Rechtsstaat (estado social de direito) na Constituição que, deve talvez dizer-se, é da lavra de fabianos de ideias atabalhoadas inspirados pelo inventor oitocentista do “Nacional-Socialismo”, Friedrich Naumann (H. Maier, 1972: 8).

O termo “democracia”, de igual modo, tinha um significado bem claro, mas “social-democracia” não só serviu para nomear o austro-marxismo radical do período entre guerras como foi agora escolhido na Grã-Bretanha para denominar um partido político votado a uma variante do socialismo fabiano. A expressão tradicional para o que hoje em dia é chamado “estado social” era “despotismo iluminado” e o intrincado problema de como alcançar tal despotismo de forma democrática, isto é, preservando a liberdade individual, é simplesmente deixado de lado pela amálgama “social-democracia”».

Friedrich A. Hayek («Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo»).




«É evidente que, sem Deus, não há teocracia que tenha algum mínimo sentido. Dizer “teocracia sem Deus” é, no entanto, a designação adequada a um sistema que, paradoxalmente, a si mesmo retira o princípio que o justificaria e a cada uma das suas formas retira significado que lhe daria sentido. Todo este sistema supõe uma dedução a partir da ideia da divindade e em cada uma das suas formas está implícita uma noção teológica ou teonómica; mas completada a dedução, articulando todo o formalismo, o sistema nega e repudia o que lhe deu origem. Trata-se, pois, de uma teocracia que a si mesma se ignora o que é e que, portanto, faz da ignorância o seu fundamento e o seu método, uma espécie de lógica sem logos que positivamente rejeita tudo o que seja pensar.

(...) os teocratas recusam-se a conceber como “formas jurídicas” os modos que a existência comum dos homens pode adquirir. Preferem chamar-lhe, por exemplo, “formas de existência social” para evitarem ter de atender aos princípios que as formas jurídicas significam e dos quais se deduzem, para darem a existência comum como o domínio do fortuito, do convencional e do arbitrário, domínio de onde, precisamente, a arrancou o direito, e para, enfim, poderem propor, sem mais adequada justificação, a substituição das “formas de existência” que condenam pelas “formas de existência” que preconizam. As primeiras, serão expressões do que, na desigualdade, singulariza os seres e individualiza os homens, as segundas, as expressões da igualdade que repudia toda a individuação. Sabemos bem como só as primeiras podem apresentar-se como “formas jurídicas” pois deduzem-se de princípios e a igualdade é uma relação, não um princípio. Substituir um princípio por uma relação, equivale a estabelecer que a existência não tem significado.»

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).


Os nossos intelectuais e a sua tradição de socialismo razoável

 

O que aventei acerca da moral e tradição, sobre economia e mercado e em matéria de evolução, entra obviamente em conflito com muitas ideias influentes, não só com o velho social-darwinismo (...), mas também com muitas outras concepções do passado e do presente: com as opiniões de Platão e Aristóteles, de Rousseau e dos fundadores do socialismo, de Saint-Simon, Karl Marx, e de muitos outros.

Com efeito, o ponto da minha tese segundo a qual a moral, incluindo em particular as nossas instituições de propriedade, liberdade e justiça, não são uma criação da razão humana, mas um legado suplementar produto da evolução cultural, opõe-se à concepção intelectual dominante do século XX. A influência do racionalismo foi, de facto, tão profunda e disseminada que, em regra, quanto mais inteligente e educada a pessoa, o mais provável, presentemente, é que ele ou ela seja não só um racionalista, como também cultive pontos de vista socialistas (independentemente de ser suficientemente doutrinária para atribuir um rótulo às suas opiniões, incluindo a etiqueta «socialista»). Quanto mais alto o nível intelectual, quanto mais falamos com intelectuais, mais provável é depararmos com convicções socialistas. Os racionalistas tendem a ser inteligentes e os intelectuais inteligentes tendem a ser socialistas.

Se me é permitido registar aqui duas notas pessoais, creio poder falar com o benefício de alguma experiência sobre esta visão porque as opiniões racionalistas, que tenho vindo a examinar e criticar sistematicamente há muitos anos, são aquelas que, tal como sucedeu com muitos pensadores europeus não religiosos da minha geração, alimentaram os meus próprios pontos de vista no início deste século. Nessa altura revelavam-se óbvias e adoptá-las parecia ser a via para escapar a todo o tipo de superstições perniciosas. Tenho eu próprio levado algum tempo a libertar-me dessas noções e, na verdade, tendo descoberto nesse processo que se tratava de superstições, não atribuo qualquer cunho pessoal às considerações deveras ríspidas que reservo a certos autores nas próximas páginas. Será talvez apropriado, inclusivamente, lembrar neste ponto os leitores do meu ensaio «Porque Não Sou um Conservador» (1960: Posfácio) para evitar que extraiam conclusões erradas. Apesar de a minha tese ser contrária ao socialismo, tenho tão pouco de conservador tory quanto Edmund Burke. O meu conservadorismo, tanto quanto existe, está confinado à moral dentro de certos limites. Sou inteiramente a favor da experimentação e de uma liberdade muito maior do que a permitida por governos conservadores. A minha objecção aos intelectuais racionalistas que irei discutir não é o facto de eles experimentarem. Pelo contrário, experimentam pouco e apreciam sobretudo experiências banais; afinal, a ideia de retornar ao instintivo é vulgaríssima e já foi tentada tantas vezes que é incompreensível considerá-la uma experimentação. Oponho-me a esses racionalistas porque consideram as suas experiências como resultantes da razão, revestindo-as de metodologia pseudocientífica e, assim, ao tentarem convencer pessoas influentes, submetem a ataques infundados costumes tradicionais inestimáveis (fruto de séculos de experiências por tentativa e erro) e resguardam as suas próprias «experiências» do devido escrutínio.

A surpresa ao descobrir que pessoas inteligentes tendem a ser socialistas diminui quando nos apercebemos de que tais indivíduos são, obviamente, propensos a sobrestimar a inteligência e a supor que devemos todas as vantagens e oportunidades que oferece a nossa civilização a um propósito deliberado em vez do respeito por regras tradicionais. Presumem, igualmente, que conseguiremos, graças ao exercício da nossa razão, eliminar quaisquer aspectos indesejáveis ainda existentes graças a mais reflexões inteligentes, mais projectos apropriados e mais «coordenações racionais» dos nossos esforços. Isso alimenta uma disposição favorável em relação ao planeamento económico central e controlo que são o âmago do socialismo. Intelectuais exigirão, com certeza, explicações sobre tudo o que se espera deles e terão relutância em aceitar costumes pelo mero facto de vigorarem nas suas comunidades de nascimento, o que os levará a entrar em conflito com, ou pelo menos a depreciarem, quem aceita placidamente as normas de conduta prevalecentes. Acresce que esses intelectuais pretenderão, compreensivelmente, seguir na senda da ciência e da razão e consequentemente – considerando o progresso extraordinário das ciências físicas nos últimos séculos, além de terem sido ensinados de que construtivismo e cientificismo são a razão de ser da ciência e da razão – terão dificuldade em acreditar que possa existir algum conhecimento útil que não derive da experimentação deliberada ou em aceitar a validade de outras tradições diversas da sua própria tradição de razão. Assim, um distinto historiador escreveu nesse sentido: «A tradição é quase por definição repreensível, algo a ridicularizar e lamentar» (Seton-Watson, 1983: 1270).



Por definição: Barry (1961, atrás citado) pretendia fazer a moral e a justiça imorais e injustas por «definição analítica»; aqui Seton-Watson tenta o mesmo ardil em relação à tradição, tornando-a, por definição, repreensível. Voltaremos a estas palavras, a esta «Novilíngua» (...). Entretanto, vejamos os factos mais de perto.

Todas estas reacções são compreensíveis, mas têm consequências. As consequências são particularmente perigosas – para a razão e também para a moral – quando a opção recai sobre esta tradição convencional da razão, em vez dos resultados reais da razão, levando os intelectuais a ignorarem os limites teóricos da razão, a menosprezarem um mundo de informação histórica e científica, a ignorarem as ciências biológicas e humanas, como a economia, e a distorcerem a origem e funções das nossas normas morais tradicionais. Tal como outras tradições, a tradição da razão é adquirida e não inata. Também se situa entre o instinto e a razão; e a questão da efectiva razoabilidade e veracidade desta proclamada tradição de razão e verdade tem de ser agora escrupulosamente examinada.

 

Moral e razão: alguns exemplos

 

Para que não pensem tratar-se de exagero, apresentarei seguidamente alguns exemplos. Não quero, contudo, ser injusto para com os nossos grandes cientistas e filósofos, dos quais pretendo discutir algumas ideias. Apesar das suas opiniões ilustrarem a relevância do problema – a nossa filosofia e ciência natural estão muito longe de compreender o papel desempenhado pelas nossas principais tradições –, não são, em regra, directamente responsáveis pela ampla disseminação dessas ideias porque têm melhores coisas em que se ocupar. Por outro lado, não se deve supor que as afirmações que estou em vias de citar são meras aberrações pontuais ou idiossincráticas da parte dos nossos distintos autores; são, ao invés, conclusões consistentes derivadas de uma tradição racionalista bem estabelecida. Não ponho em dúvida, com efeito, que alguns destes grandes pensadores se esforçaram por compreender a ordem alargada de cooperação humana – mesmo que tenham acabado como seus opositores tenazes e frequentemente involuntários.

Quem mais fez para difundir essas ideias, os verdadeiros portadores do racionalismo construtivista e do socialismo, não foram, no entanto, esses distintos cientistas. Foram antes e predominantemente os chamados «intelectuais» a quem chamei noutra ocasião (1949/1967: 178-194), de modo pouco simpático, profissionais do «trato em segunda mão de ideias»: professores, jornalistas e «representantes dos media» que, tendo absorvido rumores nos corredores da ciência, se autodesignam representantes do pensamento moderno – pessoas de conhecimento e virtude moral superiores aos de quem mantenha em alta consideração os valores tradicionais –, tendo como lídimo dever a apresentação de novas ideias ao público e vendo-se por isso compelidos a ridicularizar o convencional para vincar o cunho inovador da sua mercadoria. Para essas pessoas, devido às posições que ocupam, o «novo», a «novidade», em vez da verdade, tornam-se no valor principal, mesmo que não seja essa, de forma alguma, a sua intenção e que aquilo que têm para apresentar esteja longe de ser novo e verdadeiro. Podemo-nos perguntar, ainda, se esses intelectuais não serão por vezes motivados pelo ressentimento de, apesar de um conhecimento superior sobre o que deve ser feito, ganharem muito menos do que aqueles cujas instruções e actos orientam efectivamente as questões práticas. Esses intérpretes literários de avanços científicos e tecnológicos, entre os quais H. G. Wells – que devido à elevada qualidade da sua obra seria um magnífico exemplo –, fizeram mais pela difusão do ideal socialista de uma economia dirigida e centralizada em que a cada um é atribuída a parte devida do que os verdadeiros cientistas cujas obras extorquiram muitas das suas ideias. Outro exemplo similar é o jovem George Orwell, que afirmou que «quem tem cabeça para pensar sabe perfeitamente que está no âmbito das possibilidades [que] o mundo, potencialmente pelo menos, seja extremamente rico», pelo que seríamos capazes de «desenvolvê-lo como pode ser desenvolvido de modo a podermos todos viver como príncipes, caso o desejássemos».




Vou concentrar-me aqui não nas obras de homens como Wells e Orwell, mas nas opiniões sustentadas por alguns dos maiores cientistas. Podemos começar com Jacques Monod. Monod foi uma grande personalidade cujo trabalho científico muito admiro, tendo criado, no essencial, a moderna biologia molecular. As suas reflexões sobre ética são, no entanto, de qualidade diferente. Em 1970, num simpósio da Fundação Nobel sobre «O Lugar dos Valores num Mundo de Factos», afirmou: «O desenvolvimento científico finalmente destruiu, reduziu ao absurdo, relegou ao nível de uma noção ilusória e sem sentido, a ideia de que a ética e os valores não são livre escolha nossa, mas antes uma obrigação» (1970: 20-21). Mais tarde, nesse ano, reiterou as suas opiniões e defendeu-as num livro que se tornou famoso, O Acaso e a Necessidade (1970/1977). Nessa obra intima-nos a renunciar a qualquer outro alimento espiritual e a reconhecer a ciência como a nova e virtualmente exclusiva fonte de verdade, e a rever, em conformidade com isto, os fundamentos da ética. O livro conclui, como tantas outras declarações similares, com a ideia de que a «ética é na sua essência não objectiva e encontra-se para sempre excluída do campo do conhecimento» (1970/77: 162). A nova «ética do conhecimento não se impõe ao homem; é ele, pelo contrário, quem se lhe impõe» (1970/77: 164). Esta nova «ética do conhecimento» é, afirma Monod, «a única atitude quer racional quer resolutamente idealista sobre a qual pode ser edificado um verdadeiro socialismo» (1970/77: 165-66). As ideias de Monod são representativas por estarem profundamente enraizadas numa teoria do conhecimento que tentou desenvolver uma ciência do comportamento – chame-se-lhe eudaimonia, utilitarismo, socialismo ou outra coisa qualquer – assente no princípio de que determinados tipos de comportamento são os mais indicados para satisfazer os nossos desejos. Somos aconselhados a adoptar um comportamento que conduza a determinadas situações capazes de satisfazer os nossos desejos, tornando-nos mais felizes, e assim por diante.

Por outras palavras, pretende-se uma ética que os homens possam acatar propositadamente de modo a alcançar fins conhecidos, desejados e pré-seleccionados.

As conclusões de Monod advêm da sua opinião de que a única outra forma possível de explicar a origem da moral – além de atribuí-la a uma invenção humana – passa por recorrer aos relatos animistas ou antropomórficos de muitas religiões. E é, de facto, verdade que «para a Humanidade no seu conjunto todas as religiões se interligavam com a visão antropomórfica da divindade como um pai, amigo ou potentado a quem o homem devia servir, rezar, etc.» (M. R. Cohen, 1931: 112). Não posso de forma alguma aceitar este aspecto da religião, tal como Monod e a maioria dos cientistas da natureza. Parece-me rebaixar algo muito além da nossa compreensão a um nível ligeiramente superior a uma mente de tipo humano. Mas rejeitar este aspecto da religião não implica deixar de reconhecer que devemos a essas religiões a preservação – ainda que por razões erróneas – de costumes sumamente mais importantes para a sobrevivência e prosperidade do homem do que muitos dos estabelecidos racionalmente (...).

Monod não é o único biólogo a argumentar nestes termos. Uma declaração de outro grande biólogo e investigador erudito ilustra melhor do que qualquer outra com que me tenha deparado os absurdos a que podem chegar inteligências superiores por via da incompreensão das «leis da evolução» (...). Joseph Needham escreve que «a nova ordem mundial de justiça social e camaradagem, o estado racional e sem classes, não é um sonho idealista, mas a extrapolação lógica de todo o curso da evolução, derivando exclusivamente daí a sua autoridade, sendo, consequentemente, a mais racional de todas as crenças» (J. Needham, 1943: 41).

(...) Um dos casos mais apropriados, que discuti noutro local (1978), é representado por John Maynard Keynes, um dos mais representativos líderes intelectuais de uma geração emancipada da moral tradicional.

Keynes acreditava que, levando em linha de conta efeitos previsíveis, poderia construir um mundo melhor do que acatando regras tradicionais abstractas. Keynes usou a frase «sabedoria convencional» como uma expressão favorita de desprezo e, num revelador relato autobiográfico (1938/49/72: X, 446), contou como o círculo de Cambridge da sua juventude, de que muitos membros viriam a integrar o Grupo de Bloomsbury, «repudiava em absoluto a obrigação pessoal de obedecer a regras gerais» e como eram, «no sentido estrito do termo, imoralistas». Acrescentou modestamente que, ao chegar aos 55 anos, era demasiado velho para mudar e continuaria a ser um imoralista. Este homem extraordinário também justificou de modo peculiar alguns dos seus pontos de vista económicos e a sua crença genérica na gestão de uma ordem mercantil, alegando que «a longo prazo estaremos todos mortos» (isto é, não importa o prejuízo que causemos a longo prazo; só conta o momento presente, o curto prazo, consistindo na opinião pública, exigências, votos e toda a parafernália e subornos da demagogia). A máxima «a longo prazo estaremos todos mortos» é também uma manifestação típica da recusa em reconhecer que a moral se preocupa com os efeitos a longo prazo – efeitos além da nossa capacidade de percepção – e da tendência para desprezar o estudo da evolução a longo prazo.

Keynes também criticou a tradição moral da «virtude de aforrar», recusando, na companhia de milhares de economistas excêntricos, reconhecer que a redução da procura de bens de consumo é em regra requerida para aumentar a produção de bens de capital (isto é, investimento). E isto, por seu turno, levou-o a devotar a sua formidável capacidade intelectual ao desenvolvimento da teoria «geral» da economia – à qual ficámos a dever a inaudita inflação mundial do último quartel do nosso século e, por inevitável consequência, a subsequente situação de acentuado desemprego (Hayek, 1972/1978).

Portanto, não foi apenas a filosofia a induzir Keynes em erro. A economia também. Alfred Marshall, que percebia do assunto, parece não ter conseguido que Keynes compreendesse adequadamente uma das importantes ideias a que John Stuart Mill chegara na sua juventude: a saber, que «a procura de mercadorias não é uma procura de trabalho». Sir Leslie Stephen (o pai de Virginia Woolf, outro membro do Grupo de Bloomsbury) descreveu esta doutrina em 1876 como uma «doutrina tão escassamente compreendida que o seu cabal entendimento é, possivelmente, o melhor teste de um economista» e Keynes reduziu-o ao ridículo por esta afirmação. (Ver Hayek, 1970/78: 15-16, 1973: 25, e (sobre Mill e Stephen) 1941: 433ff.)

Apesar de Keynes ter, involuntariamente, contribuído imenso para o debilitamento da liberdade, chocou os seus amigos de Bloomsbury ao recusar o seu vago socialismo. A maioria dos seus discípulos, contudo, era constituída por socialistas de várias correntes. Nem ele nem esses discípulos compreenderam que a ordem alargada tem de assentar em considerações de longo prazo.

A ilusão filosófica por detrás da visão de Keynes da existência de um atributo indefinível de «bondade» destinado a ser descoberto pelo indivíduo, impondo-lhe a obrigação de o acatar, e cujo reconhecimento justifica o desprezo e desrespeito para com a maior parte da moral tradicional – uma visão que graças à obra de G. E. Moore (1903) predominava no Grupo de Bloomsbury – levou a uma típica hostilidade para com as fontes em que se alimentara. Isso era também óbvio, por exemplo, em E. M. Forster, que defendeu seriamente que a libertação da Humanidade dos malefícios do «comercialismo» se tornara tão urgente quanto a sua libertação da escravidão.

Convicções similares às de Monod e Keynes foram também expressas por um cientista de menor gabarito, mas, ainda assim, influente: G. B. Chisholm, o psicanalista que se tornou no primeiro secretário-geral da Organização Mundial de Saúde. Chisholm advogava nada menos do que «a erradicação do conceito de certo e errado» e sustentava que a função do psiquiatra era libertar a raça humana do «fardo prejudicial do bem e do mal», orientação que à época foi louvada por altas autoridades legais americanas. Aqui, de novo, a moral é vista – dado não ter fundamento «científico» - como irracional e o seu estatuto como encarnação do conhecimento cultural é ignorado.





Consideremos, no entanto, um cientista de gabarito bem superior a Monod ou Keynes, Albert Einstein, talvez o maior génio da nossa época. Einstein interessava-se por um assunto diferente, ainda que muito próximo. Recorrendo a uma popular máxima socialista, escreveu que a «produção para uso» deve substituir a «produção para o lucro» da ordem capitalista (1956: 129).

«Produção para uso» significa aqui o tipo de trabalho que, num pequeno grupo se efectiva em função da utilização esperada do produto. Mas esta noção não leva em linha de conta os argumentos que avançámos em capítulos anteriores e que abordaremos de novo no próximo: na ordem autogerada do mercado só as diferenças entre os preços expectáveis para diversas mercadorias e serviços e os seus custos indicam ao indivíduo a melhor forma de contribuir para o acervo do qual nos abastecemos na proporção devida à nossa contribuição. Einstein parece não se ter apercebido de que só através do cálculo e distribuição em termos de preços de mercado é possível utilizar os recursos ao nosso dispor de modo intensivo a fim de orientar a produção para satisfazer objectivos que se encontram muito além do campo de percepção do produtor e capacitando o indivíduo a participar vantajosamente na troca produtiva. Primeiro, servindo pessoas que na maioria desconhece, mas cujas necessidades pode, apesar disso, satisfazer de forma efectiva e, em segundo lugar, abastecendo-se a si próprio porque pessoas que ignoram a sua existência são induzidas, também por sinais do mercado, a providenciar às suas necessidades (...). Ao expressar tais pontos de vista, Einstein revela a sua falta de compreensão, ou interesse efectivo, acerca dos reais processos de coordenação das acções dos seres humanos.

O biógrafo de Einstein nota que ele considerava evidente que a «razão humana deve ser capaz de encontrar um método de distribuição capaz de funcionar de forma tão efectiva como o da produção» (Clark, 1971: 559), descrição que faz lembrar uma das afirmações do filósofo Bertrand Russell segundo a qual uma sociedade não podia ser tida por «plenamente científica» a não ser que «tivesse criado intencionalmente uma determinada estrutura para concretizar certos fins» (1931: 203). Tais exigências, sobretudo por Einstein, pareciam ser de tal modo plausíveis, numa abordagem superficial, que, inclusivamente, um filósofo sensato, ao censurá-lo por afirmações fora da sua esfera de competência em escritos de divulgação, declarou em tom aprovador que «Einstein tem perfeita consciência de que a actual crise económica se deve ao nosso sistema de produção orientada para o lucro em vez do uso e ao facto de o tremendo aumento da capacidade produtiva não ser acompanhado por um equivalente acréscimo no poder de compra das grandes massas» (M. R. Cohen, 1931: 119).

Deparamos ainda com Einstein a repisar no citado ensaio frases típicas da agitação socialista sobre a «anarquia económica da sociedade capitalista» em que «o pagamento dos trabalhadores não é determinado pelo valor do produto», ao passo que «uma economia planeada... distribuiria o trabalho a realizar entre todos os que fossem capazes de trabalhar» e outras declarações semelhantes.

Opinião similar, mas mais prudente, surge no ensaio do colaborador de Einstein, Max Born (1968: cap. 5). Apesar de Born ter obviamente compreendido que a nossa ordem alargada deixara de satisfazer instintos primitivos, também ele não examinou com atenção as estruturas que a geraram e mantêm, nem escrutinou como os nossos instintos morais ao longo de mais de cinco mil anos passaram por substituições ou restrições graduais. Desse modo, ainda que se tenha apercebido de que a «ciência e a tecnologia destruíram a base ética da civilização, talvez irreparavelmente», pensa que tal se deve aos factos que desvelaram, em vez de terem desacreditado de forma simétrica, crenças que não satisfaziam determinados «padrões de aceitação» exigidos pelo racionalismo construtivista (...). Mesmo aceitando que «ninguém concebeu ainda maneira de manter a coesão social sem princípios éticos tradicionais», Born espera, contudo, que possam vir a ser substituídos «por via do método tradicional usado na ciência». Também ele não consegue entrever que aquilo que existe entre instinto e razão não pode ser substituído pelo «método tradicionalmente usado na ciência».


Os meus exemplos são extraídos de declarações de importantes vultos do século XX e não inclui inúmeras outras personalidades, como R. A. Milikan, Arthur Eddington, F. Soddy, W. Oswald, E. Solvay, J. D. Bernal, que proferiram muitas afirmações insensatas sobre questões económicas.

Pode-se, com efeito, citar centenas de declarações similares de cientistas e filósofos de renome comparável quer de séculos transactos ou da actualidade. Mas creio ser mais proveitoso analisar de perto esses exemplos contemporâneos e o que está por detrás deles do que o mero acumular de citações e casos. A primeira coisa a sublinhar, talvez, é que, longe de serem idênticos, estes exemplos possuem um certo parentesco.

 

Uma litania de erros

 

As ideias arroladas nestes exemplos têm em comum um certo número de raízes temáticas intimamente inter-relacionadas que não se resumem a meras questões de antecedentes históricos comuns. Aos leitores não familiarizados com alguma desta literatura podem escapar numa primeira abordagem certas interligações. Por esta razão gostaria, antes de prosseguir o exame dessas ideias, de identificar certos temas recorrentes – na maior parte e à primeira vista sem nada a objectar e todos eles familiares – que, em conjunto, constituem uma tese. Esta «tese» também pode ser descrita como uma litania de erros ou um receituário para gerar o suposto racionalismo que denomino cientismo e construtivismo. Iniciemos esta ronda consultando um dicionário, essa «fonte de conhecimento» imediata.

Coligi do muito útil Fontana/Harper Dictionary of Modern Thought (1977) algumas sucintas definições de quatro conceitos filosóficos básicos que, por via de regra, orientam os pensadores contemporâneos educados segundo a linha cienticista e construtivista: racionalismo, empirismo, positivismo e utilitarismo, conceitos que nos últimos séculos foram tidos como expressões representativas do «espírito científico da época». Segundo essas definições, formuladas por Lorde Quinton, um filósofo presidente do Trinity College de Oxford, o racionalismo repudia crenças que não assentam exclusivamente na experiência e no raciocínio dedutivo ou indutivo. O empirismo defende que todas as proposições de índole cognitiva têm de ter justificação na experiência. O positivismo é descrito como a doutrina de acordo com a qual todo o conhecimento verdadeiro é científico, no sentido de que descreve a coexistência e sucessão de fenómenos observáveis. O utilitarismo «assume que o prazer ou dor experimentados são o critério da rectidão do acto.

Nestas definições surgem de modo bastante explícito, tal como se nota implicitamente nos exemplos citados na anterior secção, as profissões de fé da moderna ciência e da filosofia da ciência e as suas declarações de guerra contra as tradições morais. Estas declarações, definições e postulados criaram a impressão de que só o justificável racionalmente, o demonstrado por observação experimental, somente o vivenciado e passível de exame, são dignos de crédito, sendo de evitar acções que não produzam deleite. Daqui deriva directamente a tese de que as principais tradições morais que criaram e criam a nossa cultura – impossíveis naturalmente de justificar de tal forma e frequentemente detestadas – não são dignas de respeito e que é nossa obrigação erguer uma nova moral assente no conhecimento científico, por via de regra a nova moral do socialismo.


Estas definições, juntamente com os nossos anteriores exemplos, examinadas com maior detalhe, incluem os seguintes pressupostos:

1.  1. A ideia de que é infundado o que não possa ser justificado cientificamente ou provado através da observação (Monod, Born).

2.   2. A ideia de que não é razoável seguir o que não se compreende. Esta noção está implícita em todos os nossos exemplos, mas devo confessar que eu próprio a partilhei outrora e chego a encontrá-la num filósofo com quem em geral concordo. Assim, Sir Karl Popper alegou certa vez (1948/63: 122; destaque meu) que os pensadores racionalistas «não se submetem cegamente a qualquer tradição», o que é, obviamente, tão impossível quanto ignorar toda e qualquer tradição. Terá sido, talvez, um deslize, dado que noutra ocasião ele nota com acerto que «nunca saberemos acerca de que é que falamos» (1974/1976: 27, sobre isto, ver também Bartley, 1985/1987). (Por muito que o homem livre insista no seu direito a examinar e, quando apropriado, rejeitar qualquer tradição, não consegue viver em sociedade se recusar a aceitação de incontáveis tradições sem sequer pensar nelas e ignorando os seus efeitos.)

3.   3. A ideia relacionada de que não é racional seguir determinada via sem propósitos previamente definidos (Einstein, Russell, Keynes).

4.   4. A ideia, também intimamente relacionada, de que não é razoável fazer algo a não ser que os seus efeitos sejam não apenas totalmente conhecidos de antemão, mas totalmente observáveis e vistos como benéficos, no caso dos utilitaristas. (Os pressupostos 2, 3 e 4, são, a despeito das suas ênfases diferentes, praticamente idênticos, mas assinalei as distinções para chamar a atenção para o facto de que os argumentos a seu favor redundam, conforme quem os defenda, numa falta de compreensão em geral ou, mais em particular, na ausência de propósito específico ou, ainda, de conhecimento perceptível dos efeitos.)

Podia-se adiantar outros requisitos, mas estes quatro (...) serão suficientes para os nossos propósitos, essencialmente ilustrativos. Dois aspectos quanto a esses requisitos devem ser referidos desde já. Em primeiro lugar, nenhum dá prova de compreender que podem existir limites ao nosso conhecimento ou razão em certas áreas ou tem em conta que, em certas circunstâncias, a descoberta desses limites pode ser a tarefa mais importante da ciência. Aprenderemos a seguir que existem tais limites e que eles podem de facto ser parcialmente superados, como por exemplo através da ciência da economia ou da «catalaxia», mas que eles não podem ser superados se nos atermos aos quatro requisitos acima. Em segundo lugar, a abordagem na base dos requisitos carece de capacidade de compreensão de tais problemas, de entendimento quanto à forma de reconhecer e lidar com eles, como revela ainda uma singular falta de curiosidade acerca da génese e subsistência da nossa ordem alargada e de quais as consequências das tradições que a criaram e mantêm.

(In Friedrich A. Hayek, Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo, Guerra e Paz, 1.ª Edição, Novembro de 2022, pp. 79-93).


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