domingo, 17 de setembro de 2023

Portugal em África

Escrito por Franco Nogueira


Batalha de Coolela, travada em 7 de Novembro de 1895, durante a qual Mouzinho de Albuquerque esteve pela primeira vez debaixo de fogo.


Ocupação de Manjacaze, última operação militar antes de Chaimite.

«António Enes também veio a revelar-se um comissário lúcido em termos militares. Apesar de ser um civil, foi a ele que a tropa ficou a dever o esquema global das campanhas de 1895. Em primeiro lugar, decidiu-se a resolver a questão da segurança nas "terras da Coroa". Foi igualmente graças à sua acção que os oficiais puderam contar com meios logísticos locais. Também defendeu desde a primeira hora o avanço no terreno baseado em colunas móveis e foi o comissário régio quem procedeu à reorganização militar da província. Sob a sua direcção política, nasceu a tal geração de jovens soldados que ganhou destaque nas campanhas de Moçambique. No seu tempo, a tropa adquiriu experiência de combate e obteve com custos mínimos os resultados que até então ninguém havia conseguido. No seu conjunto, as vitórias de Marracuene, Magul, Coolela e Manjacaze terão custado 14 baixas brancas, número insignificante quando comparado com os 5592 mortos deixados pela França em Madagáscar, na mesma altura. Foi este sucesso e traquejo operacional que esteve na base da criação de uma percepção muito característica dos chamados "africanistas". Para eles, o Império viria a revelar-se a própria razão de ser da nação. Sem Império, esta não se cumpria, ideologia [ou realidade] que os regimes políticos até 1974 não mais iriam abandonar.

Assim, os louros da campanha de 1895 ficaram a dever-se mais à acção estratégica, organizativa e política de António Enes do que ao voluntarismo de Mouzinho de Albuquerque, tardiamente chegado a Moçambique, ou à vitória obtida em Chaimite já no final do ano. A captura do Gungunhana (...) seria apenas um episódio, ainda que significativo, do esforço militar português na colónia do Índico. No seu conjunto, as operações desenvolvidas ao longo de 1895 representaram a primeira campanha "moderna" levada a cabo pelas Forças Armadas nacionais, vindo a servir de modelo para as que se seguiram.


Todavia, para a história, os feitos deste ano seriam associados ao militar, não ao paisano. Percebe-se a razão da preferência. António Enes, para além de não pertencer ao meio castrense, tinha um perfil discreto, um passado de homem de Letras cordato, apesar de se ter envolvido uma década antes em polémicas políticas contra a Coroa no jornal O Progresso. Já o capitão Joaquim Mouzinho de Albuquerque tinha uma aura diferente, mais própria dos heróis que conseguiam triunfar apesar de rodeados de dificuldades. A prisão do "leão de Gaza", o seu feito maior, levado a cabo por um punhado de brancos, que enfrentaram destemidamente milhares de africanos no seu reduto, tornou-se uma façanha difícil de igualar.

De resto, para além da sua figura cimeira, a campanha de 1895 iria ser o berço de uma geração de protagonistas como Eduardo Galhardo, Paiva Couceiro, Eduardo Costa, Freire de Andrade, Sanches de Miranda e Aires de Ornelas, a que se juntariam em breve Gomes da Costa e João de Azevedo Coutinho. Este grupo de "africanistas", os "centuriões" como lhes chamou René Pélissier, não contando Caldas Xavier, que morreu em Lourenço Marques logo nos inícios de 1896, iria tornar-se a curto prazo numa espécie de Ínclita Geração do final do século XIX. O heroísmo demonstrado por Mouzinho de Albuquerque à entrada de Chaimite só passou a encontrar comparação na Batalha de Aljubarrota.

A «geração» de Mouzinho de Albuquerque. Os companheiros de África. Sentados da esquerda para a direita: Dr. Baltasar Cabral, Mouzinho de Albuquerque e Aires de Ornelas. De pé, da esquerda para a direita: Andrade Velez, Gomes da Costa, Eduardo Costa, João de Azevedo Coutinho, João Galvão e Baptista Coelho.

(...) Este grupo de militares teve o condão de, pelas suas proezas nunca alcançadas nos anos recentes, despertar o país para a realidade colonial e de promover a afirmação de Portugal perante o exterior numa altura em que o prestígio nacional em África já tinha conhecido melhores dias. Os inimigos não eram as azagaias dos Vátuas, mas sim os apetites que a debilidade da presença portuguesa despertou nas potências europeias, nomeadamente na Grã-Bretanha e na rival Alemanha».

Paulo Jorge Fernandes («MOUZINHO DE ALBUQUERQUE. Um soldado ao serviço do Império»).

 

«Estamos em África há 400 anos, o que é um pouco mais que ter chegado ontem. Levámos uma doutrina, o que é diferente de ser levados por um interesse. Estamos com uma política que a autoridade vai executando e defendendo, o que é distinto de abandonar aos chamados “ventos da história” os destinos humanos. Podemos admitir que a muitos custe compreender uma atitude tão estranha e diversa da usual; mas não podemos sacrificar a essa dificuldade de compreensão populações portuguesas cujos interesses na comunidade nacional consideramos sagrados.»

Oliveira Salazar («Portugal e a Campanha Anticolonialista»).

«Portugal foi vítima de um ludíbrio gigantesco, os portugueses foram enredados num logro colossal. As forças que atacavam Portugal, e os seus agentes, criaram na consciência colectiva, quanto à visão do País, uma fractura entre o consenso nacional histórico e o consenso nacional contemporâneo. Não foi por acaso que se procurou, e ainda procura, apagar e fazer esquecer a história de Portugal, e deste facto é a tentativa de destruir a figura de Camões, o símbolo mais expressivo: àquelas forças importa que Portugal se transforme numa terra sem história.»

Franco Nogueira («Diálogos Interditos», I Volume).




Portugal em África


Depois da crise com a Inglaterra, não estavam findas as preocupações ultramarinas. Era a tradição: paz com Portugal na Europa; guerra ao que Portugal possuísse além-mar. Desencadeia-se uma campanha política e de imprensa, de âmbito internacional. Acusações graves são lançadas: incapacidade administrativa, atraso económico, prática de escravatura, tesouro exausto. Alegam-se massacres por autoridades portuguesas; e dissemina-se a ideia de que as populações se encontravam em estado de insurreição. As potências fingem-se preocupadas, e consideram um dever moral e político substituir Portugal em África: apenas assim poderiam continuar generosamente a suportar o fardo do homem branco, impondo ao negro o respeito que os portugueses eram inábeis para garantir, e só assim seria viável levar a civilização ao continente africano, explorando as suas riquezas, mercados, matérias-primas. E como Portugal – adiantavam os mesmos críticos – não tinha exércitos, capitais, técnicas, ou quadros administrativos suficientes, era forçoso que a Europa tomasse sobre si essa responsabilidade, e se assinasse o sacrifício de partilhar a África portuguesa. E a recusa ou a resistência de Portugal era um obstáculo, um embaraço incómodo que entravava o que era havido como alta política europeia, e ofendia os supremos ideais que as grandes potências difundiam no mundo, num mandato que ninguém lhes outorgara.

Tendo suspendido o pagamento da dívida externa, e vivendo em déficit, era desesperada a situação financeira [1]. O descrédito era total [2]. O conde de Reillac, nosso credor, era implacável. Cartazes ofensivos eram afixados em Paris; e nos cafés-concertos exibiam-se velhos decrépitos, andrajosos, que esmolavam para Portugal. Tentou-se um empréstimo na praça de Londres: em penhor, ficariam cativos os réditos aduaneiros do ultramar. Soube-o a Alemanha, e Berlim logo se precipitou: queria partilhar de qualquer operação financeira que acaso se repercutisse na África portuguesa. Em face de dificuldades com os boers, que se avizinhavam, a Grã-Bretanha tinha interesse em evitar a exclusiva intervenção alemã. E em 1898 Balfour assina com os alemães dois acordos secretos, e uma nota, prevendo a partilha das províncias portuguesas de África: para a Inglaterra, todo o sul do Zambeze e o norte de Angola; para a Alemanha, o sul de Angola, ligando com o sudoeste, e o norte de Moçambique (e ainda Timor). Firmados os documentos, os enviados britânicos e alemães em Lisboa, numa diligência comum, põem à disposição do Governo português os recursos financeiros necessários, solicitando para garantia o controle aduaneiro do ultramar. O governo fora informado dos acordos de Londres; e José Luciano, que o presidia, repudiou a oferta. Mas a França também apurara o segredo, e apressou-se a fornecer os créditos precisos, de forma desinteressada, porque o seu objectivo era frustrar o entendimento anglo-germânico. Fortalecidos com o apoio francês, e denunciado em Londres os acordos de que tivéramos conhecimento, foi viável levar a Grã-Bretanha ao cumprimento da aliança e do tratado de 1891. Foi essa a política de D. Carlos e de Soveral. Aproveitando a guerra contra os boers, que agora a Inglaterra conduzia na África Austral, e necessitando aquela de auxílio português, declarámos que lho prestaríamos em nome da aliança, e se esta fosse invocada; e foi essa invocação e confirmação que se obteve com o Tratado de Windsor, em fins de 1899.

Mas a Europa entrava no regime de paz armada. Era crescente a tensão entre as potências: deslocações das alianças e Entente Cordiale entre a França e a Inglaterra, com a morte da rainha Vitória e a subida de Eduardo VII ao trono [3]; intervenção alemã na África Equatorial; incidente de Agadir; crise em Marrocos e protectorado francês. Deseja a Inglaterra travar o rearmamento da Alemanha, e de novo a encaminhou para África. Voltou a ideia de reformar os acordos de 1898, e nos últimos anos do século XIX o Governo inglês sentiu sempre o desconforto da «situação ambígua» de que se queixava Sir Edward Grey. Em Berlim, todavia, falava-se de Angola como de território alemão, e também do norte de Moçambique, junto ao Tanganica; e em Inglaterra, sem embargo do Tratado de Windsor, cresce o fascínio pela mesma província, e o desejo de acaso a incorporar. Assinariam os dois governos, em Agosto de 1913, um novo tratado de partilha, que reproduzia as convenções secretas de 1898. Um ponto era alterado: para não desprazer à Austrália, substituía-se Timor por S. Tomé e Príncipe. Para fazer pressão sobre Portugal, e por sugestão de Tattenbach, a Alemanha enviara uma esquadra a Lisboa, e logo a Inglaterra, para equilibrar aquela pressão, fez comparecer no Tejo a sua frota de Gibraltar. De novo reagiu a França. Esta pretendia a Guiné, Cabo Verde e Cabinda. Paris intervém em Berlim e Londres, e exige que nenhumas modificações sejam feitas na bacia do Zaire sem o seu acordo. Para contemporizar, consegue a Inglaterra que a Alemanha aceda ao pedido francês; e nesse sentido foi assinado, em Julho de 1914, o respectivo acordo. Antes da sua execução, mergulharia a Europa numa guerra generalizada [4].

Um aspecto do desenvolvimento urbano de Lourenço Marques no final do século XIX.

Da rivalidade entre as potências, beneficiou Portugal: entravou a partilha do ultramar. Mas a conservação deste deveu-se, acima de tudo, ao esforço resoluto então feito para o guarnecer e administrar. Fustigados por crises sucessivas, feridos por um ultimato, ameaçados pelas cobiças de terceiros, empreendemos uma campanha sistemática de ocupação efectiva. Compreendeu a opinião pública quanto era imperioso fazê-lo: sentiu a Nação essa cruzada: e os governos, apoiados numa política nacional e mesmo compelidos a praticá-la, puderam tomar as providências apropriadas. Estava-se perante um problema vital do país: este gerara um movimento colectivo e uma mística popular: e contra esta foram impotentes os conluios palacianos, os ódios pessoais dos dirigentes, os grupos e facções partidárias, e até o desinteresse dos que se consideravam o escol mental.

Esse esforço tinha de se exercer em relação a Angola. Havia que demarcar com precisão os limites definidos, nos vários tratados: ao norte, em face de franceses e belgas; pelo sul, com os alemães; e a leste, ao longo de todo o Barotze [5], uma vasta faixa fora-nos arrancada na crise anglo-lusa de 1890. As populações locais encontravam-se em estado de excitação e incerteza, e era indispensável afirmar a soberania nacional. Tropas e material foram enviados da metrópole, e a ocupação levada aos confins da província. Destacam-se Artur de Paiva, Veríssimo Teixeira, Padrel. Dois povos ofereciam especiais dificuldades. Ao sul, os cuamatos: Alves Roçadas, partindo da Huíla, empenhou-se em combates sucessivos: e ao findar o ano de 1907 quase toda a área estava pacificada e sob domínio português. Ao norte, na região dos Dembos, régulos e sobas agiam com independência quase absoluta. Numa zona áspera pelo clima e configuração do terreno, João de Almeida estabelece postos militares e administrativos, e a soberania portuguesa retoma os seus direitos. Depois, como governador da Huíla, dirige-se ao sul; e continua a obra de Roçadas ocupando Hinga, Dombola, Balondo e demais pontos nevrálgicos. Por 1915, com Pereira de Eça, toda a fronteira sul de Angola estaria enfim balizada. Entretanto, durante o governo de Paiva Couceiro, já antes arduamente experimentado nas campanhas de Moçambique, haviam sido abertas vias de penetração por todo o interior: fora a política de «intervencionismo» que permitiu consolidar a província, dar-lhe unidade territorial, preparar o seu desenvolvimento, e sobretudo prevenir novas ambições de terceiros [6].

Era na costa oriental, todavia, que o nome português atingira a última das degradações. Para além de Lourenço Marques, quase se não exercia autoridade portuguesa em Moçambique. Em todas as terras da coroa lavrava a revolta. Surdira na região de Magaia, e logo se estendera a uma vasta área. A linha do Incomati pertencia aos rebeldes; até ao Save, mesmo em zonas tão distantes como Cossine, os soldados portugueses só estavam seguros da terra que pisavam; e ao norte do Save, desde a fronteira do Transwaal até aos vales do Pungue e do Busi, tudo estava abandonado a influência alheia. Diziam as populações aborígenes que o mato lhes pertencia e que apenas Lourenço Marques era dos brancos; e os portugueses eram havidos como mais timoratos que mulheres ou designados, por desprezo, como galinhas [7]. Nos territórios ingleses vizinhos era conduzida uma campanha contra Portugal, pela imprensa e pela corrupção; e Cecil Rhodes, o adversário mais tenaz que alguma vez defrontámos em África, espreitava em Capetown o ensejo de explorar as dificuldades portuguesas. Os governos europeus vigiavam os acontecimentos; sugeria-se que caudilhos e mercenários europeus formassem com os rebeldes uma hoste aguerrida que tomasse Lourenço Marques; e esta seria depois proclamada cidade livre, com estatuto de autonomia garantido pelas potências europeias [8]. Nas águas de Moçambique, e na baía da capital, cruzavam esquadras inglesas e alemãs; e por toda a África em redor, desde o Natal ao Niassa, considerava-se Moçambique como província a abandonar pelos portugueses. Estes estavam «prestes a ser atirados ao mar pelos cafres»; e na África Austral não tinham limite os insultos, as vaias, as calúnias, as acusações, as objurgatórias contra Portugal por causa de África. Complicava o problema a existência das comunidades boers no Transwaal; estes ambicionavam o porto e cidade de Lourenço Marques, sabiam que os ingleses, no entanto, não lho consentiriam; mas também não desejavam que estes últimos se apossassem daquela posição; e por isso preferiram que Portugal se firmasse naquela área vital para a república de Pretorius. Londres entrevia, do seu lado, o futuro conflito anglo-boer: para o ataque ao Transwaal considerava indispensável Lourenço Marques: e a menos que lançasse uma agressão frontal ou que os portugueses sucumbissem, apenas a aliança com Portugal, e a invocação expressa desta, permitiria usar aquele porto. Foi esta conjugação de circunstâncias que Soveral explorou com lucidez, e que levou ao Tratado de Windsor [9]. Tudo era seguido pelos gabinetes da Europa, e estes formavam a sua opinião àquela luz. E tudo parecia perdido para Portugal quando o governo de Lisboa, num sobressalto de pavor, resolve nomear António Enes como Comissário Régio em Moçambique, e com plenos poderes.

Vista geral de Lourenço Marques no primeiro decénio de 1900.

António Enes chega a Moçambique praticamente sem nada. Mas em nenhum momento equacionou a missão a cumprir com os elementos, de homens e de material, que possuía: aquela tinha de ser executada com o que houvesse ou lhe pudesse vir a ser fornecido. Desfrutava o Comissário Régio do apoio firme do rei D. Carlos e da rainha D. Amélia, que no alto nível da política portuguesa pareciam ser as únicas figuras interessadas com paixão pela África. E tinha ainda a compreensão e o auxílio do ministro da Marinha e Ultramar, Ferreira de Almeida. Este lutava, no entanto, com as maiores dificuldades: os seus colegas de gabinete tinham pavor de tudo e deixavam-se impressionar pelas críticas [10]; os jornais políticos e homens de governo não queriam a campanha contra Gungunhana [11]; todas as medidas eram paralisadas pela «engenhoca política» e pelos «interesses ilegítimos» [12], e queixava-se de que todos queriam resultados sem sacrifícios. Então desabafa com Enes: «eu ainda não percebi a razão de certos receios e ainda menos a importância que se dá a certos sujeitos; que por este andar o país não se aguenta é fora de toda a dúvida; assim vou-me embora e hei-de arrepender-me toda a minha vida de mais uma vez tomar alguma coisa a sério» [13]. Era este o ambiente político que António Enes, ao partir, deixara atrás de si. Mas nem o facto, nem a escassez de meios em Moçambique entibiaram o Comissário Régio. Empreendeu a sua missão com a coragem e a cegueira de quem luta por ideia ou interesse que o transcende. Enes trabalhou sobretudo com homens: Caldas Xavier, Paiva Couceiro, Aires de Ornelas, Mouzinho, Freire de Andrade, Eduardo Costa, Eduardo Galhardo, Roque de Aguiar. Estes homens, quase entregues a si próprios, improvisando com engenho, imaginando com fé, de nada fazendo tudo, indiferentes à fortuna e ao sacrifício, mantiveram Moçambique na nação portuguesa, e impuseram aos locais e aos estranhos o respeito pela soberania nacional.

Chegou António Enes nos primeiros dias de Janeiro de 1895 a Lourenço Marques, e inteirado da situação logo organiza, com bocados de forças díspares, uma coluna que marcha para o Norte. É confiado o comando ao major de infantaria Caldas Xavier. No grupo do Comissário Régio, este era decerto a individualidade mais rica, mais humanamente generosa, mais densa de isenção e de espírito de sacrifício: de uma energia inquebrantável, era a obstinação personificada e tinha brasas nos olhos: e era oficial de grande valor militar, além do mais. Em 2 de Fevereiro, a coluna está acampada por alturas de Marracuene, a cerca de trinta quilómetros de Lourenço Marques. Na madrugada daquele dia, com as tropas formadas em quadrado, os vátuas, cafres, landins atacaram por milhares. Era a mais fraca a face constituída por angolas, e sobre essa se concentraram os assaltantes. Rompido esse lado penetraram no interior: e a doutrina militar dizia que uma vez desfeito um lado, não mais se poderia recompor um quadrado, e seria destruído. Mas os oficiais de Marracuene – Caldas Xavier, Couceiro, Ornelas, Eduardo Costa, alferes Pinto – «esqueceram-se de que não havia exemplos de se salvarem quadrados arrombados» [14]. Todas as outras três faces, constituídas por tropas brancas, mantiveram-se firmes: embora sentindo nas suas costas a luta corpo a corpo com os vátuas no interior do quadrado, continuaram sob formatura imperturbável e a fazer pontaria certeira para o exterior. Roque de Aguiar e o alferes Pinto correm para os angolas espavoridos; e Caldas Xavier, dominando todos com a sua presença e a sua bravura, obriga-os a retomarem as fileiras. Reconstituiu-se o quadrado: e «é tão desusado, tão único, este fenómeno de se reorganizar, sob pressão do inimigo, um quadrado já desmantelado, que se tem procurado para ele muitas explicações, extraordinárias, mas inverosímeis» [15]. Ao cair da tarde, retiravam-se os assaltantes: haviam perdido centenas de mortos: e depois, dos ferimentos graves, muitos outros «estiveram muito tempo a morrer», como disse uma das testemunhas nativas. Limpo o terreno, exploradas as cercanias, fortificado o local, regressou a coluna a Lourenço Marques. Era um conjunto de destroços humanos. Mas, chegados às primeiras casas, gritou Caldas Xavier às forças: «Lembrem-se de que vão ser vistos por estrangeiros!». Não foi preciso mais exortação ou ordem: foi geral o aprumo. «Nas filas que passavam cadenciadas descobriam-se rostos emaciados, peles esverdeadas ou terrosas, magrezas esqueléticas, malares esbrugados e retintos pelas vermelhidões das febres, lábios sem cor, pálpebras negras e entumecidas; mas os olhos, esses brilhavam sempre. Traziam os uniformes de linhagem empastados de lama até às golas, negros pela pólvora e pela graxa do equipamento, encarnados da areia, escorrendo água, descosidos de farpões; o calçado vinha cambado e roto, as ferragens do armamento cheias de ferrugem. Cobriam-nos todos os estigmas, todas as imundícies, todos os desalinhos com que o sertão e a guerra, as duras provações e o forçado abandono de si podem deprimir a dignidade da figura humana; mas a expressão viril dos semblantes, o próprio esforço com que dissimulavam a fadiga, o sereno desassombro com que deixavam ver os seus farrapos sujos, a lembrança do que tinham ousado, feito e padecido, faziam-nos parecer tanto mais nobres quanto mais sórdidos, e mais heróicos quanto mais definhados» [16]. Frente à residência do Comissário Régio, a coluna faz alto, abre em formatura, saúda em continência. Caldas Xavier, muito naturalmente, manda o chefe do estado-maior pedir ordens e instruções para acção imediata. Mas Enes determina que a força regresse a quartéis. E «estrangeiros escarninhos, que paravam para os ver, ficavam sérios e reverentes; e lágrimas silenciosas de enternecimento e ufania rolavam pelas faces dos bons portugueses» [17].


Paiva Couceiro

Fora um golpe duro no império vátua; mas apenas um golpe. Tanto bastou para que a imprensa internacional redobrasse nos seus ataques e calúnias; muitos jornais apresentavam a vitória portuguesa como tendo sido um massacre dos soldados brancos; as correspondências expedidas de Moçambique vilipendiavam e achincalhavam a acção do Comissário Régio e das suas forças; os interesses das potências sentem-se afectados; e Couceiro, indignado, procura pelos cafés da Polana os correspondentes estrangeiros, e esbofeteia-os até caírem. Entretanto, António Enes trabalha politicamente. Urde as suas intrigas contra o chefe vátua; oculta ciosamente os seus planos; e por intermédio do conselheiro Almeida procura averiguar das verdadeiras intenções de Gungunhana. Ao norte, as companhias majestáticas, com predomínio de capitais estrangeiros, tinham atitudes equívocas. Almeida era ao mesmo tempo secretário da Companhia de Moçambique; e o tenente Bicker, que Enes destacara para junto do conselheiro, considerava suspeitas as relações daquele com o chefe vátua. Este último, nas conversas com Almeida e Bicker, prometia vassalagem ao rei de Portugal, e depois desdizia-se; procurava comportar-se como se fosse alheio aos rebeldes; mas em Abril já o Comissário Régio concluíra que o régulo tinha entendimentos com agentes estrangeiros [18], não desejava cooperar com os portugueses, e que sem a sua destruição não haveria paz em Moçambique.

Reorganizadas as forças, recebidos do reino alguns elementos em homens e material, coadjuvado pelo auxílio técnico do coronel Galhardo (que acabava de chegar), o Comissário Régio lança sucessivas colunas para o norte. Ocupa Incanene; bate a margem esquerda do Incomati; submete Mapunga e Maputo; e inicia os preparativos contra Inhambane. Chega da metrópole um esquadrão de cavalaria. Enes sente o seu poder aumentar, é crescente o prestígio das armas portuguesas, muitos régulos se acolhem à autoridade do governo: podia passar à ofensiva. Ponto fundamental a resolver, contudo, era este: tentar a submissão de Gungunhana por meios pacíficos ou destruí-lo em guerra aberta? Almeida continuava de intermediário, e afirmava ter grande ascendente sobre aquele. E depois de muitas trocas de mensagens, dá a conhecer as condições do imperador dos vátuas; se retirássemos das fronteiras do seu território as nossas forças, licenciaria a sua gente de guerra; e para garantia de que entregava os rebeldes oferecia dois reféns importantes, mil libras em oiro e três dentes de elefante, dos grandes. Almeida acrescentava não ser viável conseguir mais: os ingleses espalhavam no sertão o rumor de que os portugueses em qualquer caso fariam a guerra; e porque persuadido de que esta era inevitável, não poderia aceitar outras condições. Desde este momento, Enes tomou a decisão, embora sem a enunciar, de se apoderar de Gungunhana, e não mais confiou na lealdade do conselheiro Almeida. «E do Reino? Vinham da metrópole palavras de apoio, de encorajamento, de orientação que minorassem ou levitassem as preocupações do Comissário Régio? Não: o Terreiro do Paço continuara sempre preocupado com os problemas partidários e os favores pessoais; e, na imprensa, as velhas rivalidades políticas ou os antagonismos jornalísticos não tinham férias, enquanto Enes se devotava a uma alta e difícil tarefa de puro interesse nacional» [19]. Enes chega a solicitar a exoneração; mas retira-a, a pedido de Lobo de Ávila. E com redobrado vigor prossegue a campanha contra os vátuas.

Organizada poderosa coluna, sob o comando de Galhardo, este parte em direcção de Manjacase, no interior do território vátua. Em Coolela dá-se o embate com as forças de Gungunhana: o resultado é desastroso para estas. No seu relatório ao Comissário Régio, e ao analisar o comportamento do quadrado, Galhardo informa: «Tais oficiais e soldados são o orgulho dos chefes que têm a honra de os dirigir, exaltam o seu país e o seu Rei, e bem merecem da Pátria» [20]. Fora novo golpe para o poderoso régulo: e este é obrigado a fugir desordenadamente. Galhardo não soube ou não pôde, todavia, explorar a vitória. Seria o capitão Mousinho de Albuquerque, por encargo de Enes, que remataria a campanha. Entretanto, o Comissário Régio dava a sua missão por concluída: tudo estava pacificado: e em Janeiro de 1896, um ano depois de chegar, embarcava para Lisboa. Nomeado governador militar de Gaza, com suficientes meios militares à sua disposição, Mousinho empreende a prisão de Gungunhana. Num gesto de supremo arrojo, depois de ter feito cercar Chaimite, dirige-se quase só ao local onde se encontra o chefe vátua com os seus ministros. Perante o assombro de quantos negros cercam a cabana real, Gungunhana é preso, amarrado, lançado por terra. Dois dos seus ministros, mais hostis a Portugal, são fuzilados de pronto. Era a derrocada do império que pusera em risco Moçambique. A caminho do reino seguia António Enes: desgostoso, amargurado, tendo «desejado muitas vezes morrer» perante a incompreensão e a injustiça de Lisboa. Como Sá de Miranda havia mais de três séculos, como Herculano havia vinte ou trinta anos, também Enes ansiava por abandonar tudo, desaparecer, aniquilar-se. E antes de partir escrevera a sua filha Luísa: «Não quero ser mais coisa alguma neste país em decomposição! Como eu agora tenho podido apreciar os homens, os caracteres, as coisas, os serviços públicos! E que tristeza e amargura me tem causado essa apreciação! Está tudo tão podre! Se eu aqui conseguir evitar desastres e vergonhas, já terei operado um verdadeiro milagre, que me fará acreditar na Providência. Não me meto noutra, não!» [21]. Um homem, todavia, reparou  nos serviços de António Enes: em 24 de Janeiro de 1896, o rei D. Carlos, depois de o felicitar, oferecia-lhe a grã-cruz da Torre e Espada «como lembrança dos grandes e relevantes serviços que à tua Pátria e ao teu Rei prestaste em África». E uma figura de mulher expressou a sua emoção: em telegrama, a rainha D. Amélia quis associar-se numa «derradeira homenagem àqueles que pela Pátria deram a vida e saúdo todos aqueles, Comissário Régio, oficiais e soldados que tão brilhantemente continuaram as nossas gloriosas e nunca interrompidas tradições» [22].

Praça Mouzinho de Albuquerque (Moçambique, cerca de 1970).



Suportou a massa do povo português todos os sacrifícios e todos os gastos com as campanhas de África. Enquanto a política se agitava, e os governos se sucediam, e a ideia republicana se difundia, o nome de Portugal ganhava prestígio por todo o sul do Sara, e os conluios das potências, para partilhar os nossos domínios, eram frustrados. Nos primeiros anos do século XX apenas um território dava cuidados sérios: a Guiné. Surge então a grande figura de João Teixeira Pinto: mercê da sua acção, também naquela província foi viável consolidar a soberania portuguesa e pôr cobro a desígnios territoriais franceses [23]. Mas aproximava-se uma crise internacional de proporções catastróficas. Novos cuidados, novos sacrifícios iam afectar o povo português, e  também novos erros de alguns.

(In Franco Nogueira, As Crises e os Homens, Livraria Civilização Editora, 2.ª edição, 2000, pp. 223-232).



[1] Soveral escrevia para Lisboa: «O que parece incrível é que El-Rei não veja os perigos da sua situação e a catástrofe inevitável». Carta inédita de Luís Soveral ao conde de Arnoso, de 22-7-1898, na posse da Família.

[2] Soveral informava: «Chamberlain disse ontem ao Príncipe de Gales que nada se podia fazer com os governos portugueses, que eram de uma fraqueza inconcebível». Carta inédita de Soveral ao conde de Arnoso, de 7 de Agosto de 1898, na posse da Família.

[3] É geralmente desconhecida em Portugal a acção de relevo desempenhada por Soveral na negociação da Entente Cordiale. Foi Soveral um dos comissários que Eduardo VII utilizou junto de Delcassé. Ver André Maurois, Edouard VII et son temps, Paris, 1937.

[4] Minúcias de todas as negociações podem ver-se em: Professor Doutor Marcello Caetano, ob. cit., 153-180; José de Almada, Convenções anglo-alemãs relativas às colónias portuguesas; História de Portugal, ed. de Barcelos, VII, 598-600. Sobre os aspectos financeiros, Teixeira de Sousa, Para a história da Revolução, I, 40 e segs, e nos aspectos políticos, págs 157 e segs.

[5] Soveral ocupava-se activamente em Londres do caso, e comentava com bom humor: «Eu devia ir à Irlanda na próxima semana mas o Barotze não permite». Carta inédita ao conde de Arnoso.

[6] Pode encontrar-se no volume «Angola», editado pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (1963-1964), talvez o melhor estudo de conjunto sobre a fixação das fronteiras de Angola, por Luís de Matos, até este período. No mesmo volume, e no plano político, o estudo de Henrique Martins de Carvalho sobre as relações de Angola com os territórios vizinhos. Ver ainda «Angola, meio século de integração», de João Pereira Neto, ed. do I.S.C.S e P.U.

[7] António Enes, A Guerra d’África em 1895, pág. 44, ed. de 1898.

[8] António Enes, A Guerra d’África em 1895, pág. 45.

[9] Sobre a acção diplomática de D. Carlos e de Soveral, e embora o autor nem sempre seja objectivo, tem interesse o D. Carlos I, de Luís Vieira de Castro, 2.ª ed., 1941.

[10] Carta de Ferreira de Almeida a António Enes, de 7-5-95, in «As Campanhas de Moçambique em 1895», compilação, prefácio e notas do Professor Doutor Marcello Caetano, Lisboa, 1947.

[11] Carta sem data, ibidem.

[12] Carta sem data, ibidem, pág. 79.

[13] Cartas de Ferreira de Almeida a António Enes, de 7-4-95 e 2-7-95.

[14] António Enes, ob. cit., 95.

[15] António Enes, ob. cit., 95.

[16] António Enes, ob. cit., 107.

[17] António Enes, ob. cit., 108.

[18] Salisbury chegou a propor que Portugal reconhecesse Gungunhana como soberano independente.

[19] Professor Doutor Marcello Caetano, prefácio a Campanhas de Moçambique em 1895, pág. 10.

[20] António Enes, ob. cit., 506.

[21] Carta de 27 de Junho de 1895.

[22] Sobre este período da história de Moçambique contém elementos de interesse: A derrocada do império vátua e Mouzinho de Albuquerque, de Francisco Toscano e Julião Quintinha; Mouzinho, do general Ferreira Martins; As fronteiras de Moçambique, de Luís de Matos; Relações entre Moçambique e a África do Sul, de Silva Rego; Mouzinho de Albuquerque, de Eduardo de Noronha.

[23] Ver João Teixeira Pinto, A ocupação militar da Guiné, ed. de 1936.


Conjunto de espadas e o bastão de guerra de Mouzinho de Albuquerque.


2 comentários:

  1. Boas!
    Há muito tempo, muito mais de 10 anos, que sigo, muitas vezes não com a atenção que eu desejaria, o teu blogue e, após um hiato de 4 ou mais anos (precipitado por o computador que eu usava e onde tinha os links ter avariado), decidi, às 7 e tal da manhã, pesquisar, e acabei por o reencontrar.
    Bem, o meu propósito é convidá-lo (humildemente) a escrever um livro sobre o muito que tem escrito/publicado aqui. Quanto ao receio, fundado, de não haver quem esteja disponível para patrocinar tal obra, há formas de o autor publicar o seu próprio livro, e acredito que teria sucesso se o fizesse.
    Fica aqui a sugestão.
    Abraço e continuação de um trabalho profícuo!
    D.

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    1. Naturalmente, agradeço o incentivo. Em todo o caso, tendo já saído a 2.ª edição dos "Noemas de Filosofia Portuguesa" no Brasil (Curitiba), estão já preparados para publicação mais 4 livros a serem dados a lume - esperemos! - na Editora Danúbio.

      MBD

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