Escrito por António Quadros
Brasão de Armas de Luís de Camões |
As armas e os Barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram.
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Luís de Camões («Os Lusíadas», Canto I).
«Victor Mendanha – O senhor
Professor acha que Os Lusíadas são,
apenas, uma narrativa épica de acontecimentos heróicos passados, em relação ao
momento em que foram escritos, ou da sua leitura podem tirar-se ilações em proveito
para o futuro de Portugal?
Agostinho da Silva –
A primeira coisa que lhe posso dizer, acerca da parte narrativa de Os Lusíadas,
é que me parece ter tido Camões a intenção de dizer aos portugueses que eles
tinham feito, no Mundo, duas coisas extraordinárias que lhes assegurava um
valor e uma possibilidade de construir o futuro que o poeta achava que se devia
construir.
Ele mostrou, no poema épico, aos portugueses, não poupando nenhuma espécie de episódios – os heróicos ou os menos heróicos – como os portugueses construíram rapidamente um País, que ao princípio parecia inviável, passando por cima de religiões diferentes, por cima de várias etnias, edificando ao longo da Costa Ocidental da Península uma espécie de possível cais de embarque.
Cais de embarque a ser o único país do Mundo que sempre conservou as suas fronteiras depois de elas terem sido estabelecidas. Tudo o resto tem mudado as fronteiras e qualquer mapa que se veja, de qualquer época a partir do século XII, o que se encontra sempre é uma multidão de países, mudando de forma, ao passo que Portugal se conserva estável.
Camões, então,
diz aos portugueses que eles deram o modelo do que deve ser uma colectividade
estável no Mundo, pois ao longo de séculos nenhum outro Povo fez a mesma coisa,
tanto no Ocidente como no Oriente.
Depois de terem construído um modelo, em Terra, Camões diz aos portugueses que eles partiram para dar ao Mundo um modelo de Mar e conseguiram esse objectivo.»
Victor Mendanha («Conversas com Agostinho da Silva»).
«(...) tenho coincidido
com o Agostinho da Silva, com o desgosto de verificar que está cada vez mais
acérrimo na sua campanha contra a filosofia portuguesa. Portugal não tem filósofos (apenas o Spinoza) e aliás não tem importância, porque o que importa
é a Sabedoria (e isso o povo português tem-na com seus mitos e crenças)
e a matemática ou pragmática!
Não é preciso filosofar, o que é preciso é agir, para o que basta o fundamento de uma sophia
por assim dizer inerente ao nosso povo, com a graça do Espírito Santo a soprar no nosso
sentido, etc. Em tudo isto, muitos compromissos com a política do momento, com
o socialismo, com o terceiromundismo, com os nomes em voga, Soares, Saramago,
etc. É muito esquisito mas não me arrependo de lhe ter dedicado o livro, pois
tenho que ser justo: foi ele que me inspirou o seu tema central, além de que há
nele um fogo na oratória, que leva muita gente nova para fora dos
enquadramentos positivistas ou comunistas, abrindo-lhe portas.
No entanto, não o sigo, longe disso, pois sou acima de tudo discípulo de Leonardo Coimbra e de Álvaro Ribeiro, estando pois do lado das suas teses e procurando defendê-las e expandi-las.»
António Quadros para António Telmo (Carta XXI, Cascais, 8.7.87, in
António Quadros e António Telmo:
Epistolário e Estudos complementares).
«Se o Espírito sopra onde quer, não é, no entanto, legítimo justificar tudo, como o Soares e o Saramago e o terceiro mundismo e o mais que houver com a ideia da Nova Idade; se o mesmo sopro impele todas as velas que vogam no oceano é porque, hoje, todas elas levam a Cruz da Ordem de Cristo, mas há correntes se sentido contrário que revolvem águas turvas e retardam o movimento para a Índia.»
António Telmo para António Quadros (Carta XXII, Extremoz, 28 de Julho de 1987, in António Quadros e António Telmo: Epistolário
e Estudos complementares).
«Dá-nos Agostinho da Silva uma imagem de si que é a imagem do filho pródigo antes de regressar a casa de seus pais. A casa que abandonou é a escola de Leonardo Coimbra, a Renascença Portuguesa, a mitologia de Pascoaes, a filosofia portuguesa de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Sempre a casa lhe esteve e está aberta, com o lume aceso e o pão na mesa. Amuos de Menino – ele é que é o Menino dos “Impérios” – prendem-no lá fora ao frio de um cientismo que deu o que não tinha a dar, à secura de um racionalismo sergista de que já se não vê o que ficou e coisas semelhantes que são o que mais há por esse mundo das universidades, das academias, das instituições, das teocracias sem Deus onde Agostinho parece dizer que gosta de fazer figura.
Da casa o viram a andar pelo Brasil e alegraram-se. Como os caminhos do Brasil passam perto da casa, esperam-no prestes, puseram mais um pão na mesa, mais uma acha ao lume. Em vão. Já velho, admirável velho, várias vezes passou à vista da casa, ouviu as vozes, parou, mas os amuos de menino foram mais resistentes. Álvaro Ribeiro ainda lhe demonstrou que o V Império, a ser coisa de Portugueses e do Espírito e se algum sentido tem, só pode ser a “filosofia portuguesa”. Inútil. Todavia, para ficar a meio caminho e ainda lhe chegar algum calor do lume, agarrou-se a Pessoa. Mas Pessoa está atirado à fama como um osso aos cães e é preciso esperar que, envenenados pelo osso, os cães o larguem. Teimou em retomar o blá-blá socializante da sua juventude sergista e, contentes, os dos poleiros dos galinheiros do Estado cobrem-no de flores, mostram-no na televisão, põe-no na capa de revistas, plebeízam-no.
No fundo, porém, ainda o têm por suspeito. Por isso o querem atirar agora para os confins da África perdida. O que lhes é suspeito é “aquela luzinha no alto dos céus” que ele um dia nos disse ser donde lhe vem toda a filosofia. É o que o fez dizer que “ Portugal é um dos nomes de Deus”. É o patriotismo e a Pátria que nele dá pelo nome de V Império. É o que fez dele um dos nossos mestres. É o que o fará, inevitavelmente, regressar à casa de seus pais.»
Ernesto Palma («Agostinho da Silva, filho pródigo», in Leonardo,
Ano I, n.º 4, Dez. de 1989).
«A emotividade de Camões faz impressão, embebe toda a sua obra,
forma o substracto e o nexo profundo, inebriante de todas as peças, ainda que
articuladas; irrompe da própria epopeia como nascente irreprimível, “excesso definitivo
da alma sobre a acção”. Ígnea personalidade que em si ardendo destruía todos os
círculos limitadores (Agostinho da Silva). A par do fôlego passional em que os
eventos do amor e da condição humana sentidos na carne são transportados
ardentemente, em largos degraus, aos páramos da sublimação ideal, avultam a
capacidade sistematizadora e o poder de concepção do autor de Os Lusíadas.
Os seus vastos,
pungentes desalentos, a elaboração filosofada dos estados de alma, opõem-se à
primaridade de um lendário trinca-fortes, por alguns sobrevalorizada.
Não faltaram à vida do poeta aventura e as mais variadas ocorrências – zaragata, guerra, prisão, tempestade e naufrágio. Para uma definição caracterológica e de estilo, que representa isso perante a magnitude de uma obra onde se estampam grandes e experimentados sofrimentos, congeminações transcendentais e ardorosa vivência idealista? Por certo só uma inteira vida interior, leitura, reflexão, isolamento, – mais do pendor natural de Camões do que forçados – poderiam ter conduzido o seu estro a realizar-se em tão perfeitas criações. Português complexo e completo, ele sintetiza, em estrato genial, uma tendência para a acção logo que preciso intrépida e a propensão reflexiva, profunda, melancólica de um povo no qual o heroísmo enreda as ternuras do coração. O elemento líquido da maior Odisseia – a dos Lusíadas – anda nas almas em desassossego e lágrimas.
Quanto aos não-emotivos na seara das nossas letras parece-nos mínima a sua participação nas maiores alturas.»
Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).
«A identificação de Luís de Camões com Vasco da Gama necessita de ser fundada. Não é, porém, difícil ver que Os Lusíadas, não deixando de ser os Lusitanos, descendentes de Luso, como Fiéis de Amor, têm em si o Luís, porquanto o poema é o cantar épico do Luís (de Camões), da sua navegação material e imaterial. Luís como luso são duas formas da palavra luz.
Por outro lado, n'Os Lusíadas, se declara que o homem Vasco da Gama, se o compararmos a César e a Alexandre, a Marco António e a Augusto tendo, como herói, a mesma bravura, era nulo no domínio do Espírito. Não tinha "na mão uma espada e na outra o livro", como de si diz Camões. Era rude, áspero e minguado de engenho.
Explicitamente, na estrofe 99 do Canto V, afirma ser ele, o Gama pouco amado das musas que inspiram Os Lusíadas, das Tágides e de Calíope. Daí podermos afirmar que o Vasco da Gama do Poema não é, senão por empréstimo, o homem Vasco da Gama.
Luís de Camões também fez materialmente a mesma viagem e, como o outro, sofreu as inclemências do mar. Como é possível, e mais do que possível, ver no "herói" um Cavaleiro do Amor, um Adepto, somos forçados a pensar que o nauta e a sua navegação, no que significa de iniciático, são a expressão da própria vivência do Poeta naquele domínio da alma em que a contemplação e a acção se reflectem uma na outra.
Posto isto, o caminho fica aberto para identificar Luís de Camões como também o Adamastor, como propusemos já. Luís de Camões é o Gama e é, nesse aspecto terrível, o Adamastor. Não se deve passar por alto aquilo que dele pensavam os seus contemporâneos, que era possuidor de uma natureza extraordinária, que tinham por terrível.»
António Telmo («Luís de Camões é verdadeiramente o Gama», in «Luís
de Camões e o Segredo d'Os Lusíadas seguido
de Páginas Autobiográficas»).
O homem Vasco da Gama |
CAMONOLOGIA
O maior poeta dos Portugueses, o seu rapsodo, a voz angustiada,
iluminada, teleonómica do seu ser profundo, viu publicada em 1572 a opera magna, a que dedicou os últimos
anos de uma existência aventurosa e apaixonada.
O poema Os Lusíadas não foi só a composição
humanista, cultista e renascentista inspirada nos modelos clássicos de Homero e
de Virgílio, não foi apenas a contrapartida epopeica e patriótica do seu
lirismo platonizante, petrarquiano e conceptista, como não foi unicamente a
reacção apaixonada de um idealista ferido pelo ambiente de uma nação caída no gosto da cobiça e na rudeza /
duma austera, apagada e vil tristeza [1],
porque estamos essencialmente perante a expressão em termos épicos (a que não
falta a sensibilidade lírica) de uma herança ou revelação recebida por via
tradicional, de um apelo dirigido ao Rei, à aristocracia e ao povo, de uma
prece ao divino e enfim de uma poïesis
transfiguradora.
Herança cultural,
herança axiológica, herança humana e social, herança teleológica desentranhada
dos sinais visíveis de uma longa experiência histórica, trazida à tona da
consciência desde os recessos do seu inconsciente arcaico, lida na
identificação natural com um destino colectivo e na vivência dolorosa de um
quotidiano decaído, mas ainda não totalmente cindido da grandeza antiga e
porventura a tempo de ser salvo do mergulho definitivo na insignificância ou no
anonimato históricos, herança que Luís de Camões, o lírico, o aventureiro, o
apaixonado, a partir de certa altura da sua vida em verdade recebeu, reconheceu
e assumiu como uma revelação deslumbrante, a que valia a pena dedicar os dias,
os meses, os anos, o melhor do seu ser, consumido no fogo e no entusiasmo de
uma grande obra poética, não apenas expressiva, mas sobretudo criacionista.
Em seu redor viu o
edifício em escombros, o rio faiscante vindo de longe agora cortado e desviado,
a revelação transformada em segredo íntimo da sua alma, por muitos esquecida e
só por raros partilhada ainda. O poema arranca desta consciência dolorosa de
uma queda histórica, estímulo ao dinamismo criacionista que o caracteriza e
distingue, entre muitas outras epopeias clássicas e humanistas da época.
E este dinamismo
criacionista desenvolve-se efectivamente nas três instâncias apontadas. Apelo dirigido ao rei, à aristocracia e ao
povo, em primeiro lugar, no plano político, no plano da vontade, no plano
pragmático. Tratava-se de colocar o organismo social da nação perante o dever
de se restaurar, de se regenerar, de se curar da esclerose, da apatia, da
degenerescência, da redução política da comunidade a um aglomerado de
interesses egoístas e sem grandeza, mediante a tomada de consciência de que
fora até há pouco tempo como entidade colectiva e trans-histórica, e do
imperativo ético a que se obrigavam, a começar pelo Rei, os que não tinham
perdido totalmente o sentido da honra e da dignidade de serem portugueses, isso
a que os gregos, no período criador da sua vida e cultura, chamavam a arete e a
que Camões chama amor da pátria, não
movido / De prémio vil, mas alto e quase eterno [2].
Ao Rei, D.
Sebastião, maravilha fatal da nossa
idade, / Dada ao mundo por Deus, que todo o mande, / Para do mundo a Deus dar
parte grande [3],
se dirige primordialmente o poeta, em incitamento a que reassuma o facho da
grandeza e da glória lusíadas de antanho, em transe de queda ou perdição na
última parte do reinado do seu antecessor, D. João III, crescentemente
estrangeirado, e bem assim na regência da sua avó D. Catarina.
Apelo insofismável ao
Desejado. E, enquanto eu estes canto e a
vós não posso / Sublime Rei, que não me atrevo a tanto, / Tomai as rédeas vós
do Reino vosso, / Dareis matéria a nunca ouvido canto [4].
Apelo a uma regeneração e mais do que uma regeneração, à criação portuguesa do
Quinto Império, aplicando a Portugal, antes de D. João de Castro ou do Padre
António Vieira, a profecia do profeta Daniel, na sua interpretação do sonho de
Nabocodonozor [5].
O rei de Portugal, D. Sebastião, será, conforme intento dos Fados, Imperador do
V Império, sucessor e sublimador dos quatro Impérios ou ciclos civilizacionais
anteriores, o Assírio, o Persa, o Grego e o Romano. Releia-se a estância, que
não deixa margem para dúvidas a este respeito, em que o poeta faz Júpiter falar
deste modo aos restantes deuses do Olimpo: Eternos
moradores do luzente, / Estelífero polo e claro assento: / Se do grande valor
da forte gente / de Luso não perdeis o pensamento, / Deveis de ter sabido
claramente / Como é dos Fados grandes certo intento / Que por ele se esqueçam
os humanos / De Assírios, Persas, Gregos e Romanos [6].
E se o poeta
exalta as armas e os Barões assinalados /
Que, da ocidental praia lusitana, / Por mares nunca dantes navegados / Passaram
ainda além da Taprobana [7] ou
também as memórias gloriosas / Daqueles
Reis que foram dilatando / A Fé, o Império, e as terras viciosas / De África e
da Ásia [8],
e ainda aqueles que por obras valerosas / Se vão da lei da Morte libertando [9],
dirige-se ao mesmo tempo, numa exortação à unidade em volta do Desejado, cabeça
do Império prometido, aos vassalos
excelentes, a tudo aparelhados e sempre obedientes, que por várias vias,
irão, quais rompantes leões e bravos
touros, / Dando os corpos a fomes e orgias, / A ferro, a fogo, a setas e
pelouros, / A quentes regiões, a plagas frias, / a golpes de idólatras e de
Mouros, / A perigos incógnitos do mundo, / A naufrágios, a peixes, ao profundo [10].
E um último
conselho, falando agora ao orgulho e à consciência que os portugueses devem ter
do seu próprio valor: Fazei, Senhor, que
nunca os admirados / Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses / Possam dizer que são
mandados, / Mais que para mandar, os Portugueses [11].
São os poderosos europeus de época, perante os quais o poeta não tem o complexo
de inferioridade que mais tarde desceria sobre o nosso espírito empecido...
Uma prece ao divino. Em aparência menos saliente, há contudo também
nos Lusíadas, inclusa e como escondida mas omnipresente, a oração, a súplica a
todo o momento dirigida para Júpiter (figuração simbólica da Santa Providência) [12] e
para os deuses (figurações dos Anjos) [13],
a palavra silenciosa enviada nas asas da poesia ao Sumo Deus, que por segundas / Causas obra no mundo, tudo manda [14],
para que se cumpra o destino glorioso de luso ou do Lusíada a quem prometido lhe está do Fado eterno, / Cuja
alta lei não pode ser quebrada, / Que tenha longos tempos o governo / Do mar
que vê do Sol a roxa entrada [15].
E a S. Tomé, o
apóstolo da Pérsia e das Índias de que os portugueses seriam os continuadores
ou os discípulos, dedicando-lhe por isso doze estâncias [16],
assim se dirige: pedimos-te que a Deus
ajudas peças / com que teus lusitanos favoreças [17].
Mais poderosa é todavia em Camões a poïesis transfiguradora. Poïesis, acto de fazer, no caso de fazer como edificar ou construir, pela magia da palavra, do verso e do ritmo. Neste sentido, cantar não é uma forma unicamente estética, é, pela lei mágica das equivalências, accionar uma energia (energia espiritual, verbal e poética) que tem consigo uma força por assim dizer ôntica, na concepção heideggeriana de que a palavra, e mais fortemente a palavra poética, não é apenas desveladora, mas também fundadora do ser. Em análogo sentido, palavra e palavra poética são para Leonardo Coimbra criacionistas e por isso escreveu que as oitavas dos Lusíadas, ondas do mar salgado, são eternos estremecimentos da memória, esculpindo no Infinito a fisionomia espiritual da Pátria [18].
Ora esculpir a fisionomia espiritual da Pátria é libertá-la de toda a impureza e de toda a contingência, elevá-la ao essencial e assegurar-lhe a perenidade na sua forma, na sua substância e no seu movimento, segundo um arquétipo ideal.
A epopeia portuguesa é prometaica, diz
Leonardo, mas se a Luz prometaica
iluminara os mundos, não tendo sido o Espaço regelado comovido por essa fria
luz da inteligência, as naus da cruz de Cristo levavam consigo a candeia cristã, para purificar e aquecer essa luz, isto é, transportavam e
expandiam o Amor, a Grande Presença
Universal, Dadivosa e inesgotável [19].
Há que retomar, por
isso, a Grande Viagem interrompida,
detida ou desviada na sua determinação original, há que refazer um povo de
sábios, de santos, e de heróis, há que reconstituir o ímpeto genesíaco que da
ideia para o acto deu corpo à gesta. Em Camões, a evocação ardente e constante
do engenho e arte [20],
de um estilo grandíloquo [21],
de uma fúria grande e sonorosa [22]
que movam e comovam as ideias, as almas, as vontades dos portugueses do
presente, mais cobiçosos do que abnegados, mais apagados na insignificância
cinzenta de uma vil tristeza do que realizando com entusiasmo e alegria uma
grande obra de civilização, é portadora da vontade por assim dizer mágica de
recriar, no duplo fundador do poema, o projecto português, de uma Jerusalém celeste à escala ecuménica, neste
mundo.
Foi a partir de uma
compreensão profunda do poema, não na sua face voltada para o passado, mas na
sua face voltada para o futuro, no sentido de que Os Lusíadas contém poderosas sementes de idealismo e de
criacionismo, capazes de fundamentar uma renascença nacional, que Leonardo
Coimbra escreveu, no final do mesmo texto: faça
cada português as suas pazes com Camões e, de novo, no Infinito, radiosa e
feliz, a Pátria há-de sorrir [23].
(In António Quadros, Portugal, Razão e Mistério, I, Guimarães Editores, 1988, pp. 29-33).
[1] Os Lusíadas, Canto X, 145.
[2] Ibid., Canto I, 10.
[3] Ibid., Canto I, 6.
[4] Ibid., Canto I, 15.
[5] In Livro de Daniel, Bíblia Sagrada, Ed. Verbo, Lisboa, 1982, págs 1016
e 1017.
[6] Os Lusíadas, Canto I, 24.
[7] Ibid., Canto I, 1.
[8] Ibid., Canto I, 2.
[9] Ibid.
[10] Ibid., Canto X, 146-148.
[12] Ibid., Canto X, 83.
[13] Ibid., Canto X, 84.
[14] Ibid., Canto X, 85.
[15] Ibid., Canto I, 28.
[16] Ibid., Canto X, 108 a 119.
[17] Ibid., Canto X, 118.
[18] Leonardo Coimbra, Camões e a fisionomia espiritual da Pátria,
discurso proferido no Teatro Águia de Ouro, do Porto, a 10 de Junho de 1920, in
Dispersos. I – Poesia Portuguesa, Ed. Verbo, Lisboa, 1984.
[19] Ibid.
[20] Os Lusíadas, Canto I, 2.
[21] Ibid., Canto I, 4.
[22] Ibid., Canto I, 5.
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