quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Leonardo Coimbra na terra mais antifilosófica do Planeta

Escrito por Álvaro Ribeiro

 




«Victor Mendanha – As missões das pátrias são resultantes dos desígnios humanos ou dos desígnios divinos?

Agostinho da Silva – Até hoje todas as metafísicas têm procurado saber isso, mas ninguém conhece como se move a máquina da História nem como se move a nossa máquina pessoal, ela própria parte da máquina da História.

Cada um, segundo o seu desenvolvimento, inteligência e cultura, segundo a educação e as circunstâncias ambientais, se inclina para uma ou outra solução mas parece-me que seria muito interessante para Portugal que um dos objectivos em vista, no seu desenvolvimento cultural e no seu procedimento futuro, fosse o de encontrar uma Metafísica tão vasta e tão geral capaz de reunir, como casos particulares e legítimos, em cada indivíduo, todas as filosofias que têm existido até hoje e aquelas que se venham a inventar.

E sobretudo que essa Metafísica, essa Filosofia ou essa Teologia, como pretenderem, não seja uma coisa apenas cerebrada, apenas pensada, mas algo realmente praticado, vivido, a que se seja inteiramente fiel em cada procedimento do existir.

V.M. – Esse deve ser um caminho difícil. Que português atingiu essa fidelidade aos seus próprios pensamentos?

A.S. – Espinosa, o único grande filósofo português e, porventura, um dos maiores filósofos do Mundo, teve esse cuidado. Ele não pensou, apenas, uma determinada filosofia e a escreveu, como foi coerente com ela e procedeu, sempre, como se não existisse outra maneira de viver senão essa.

Recusou todas as cátedras de Filosofia oferecidas, saindo da Sinagoga quando achou não estar de acordo com a Sinagoga, além disso quando pensou que as suas inclinações cristãs podiam não ser, exactamente, a de todos os outros, retirou-se igualmente daí.

No seu procedimento, na sua maneira de ser individual, Espinosa comportou-se, sempre, como o mais humilde dos homens, vivendo do seu trabalho que era o fabrico da lente, gastando o menos possível e ainda dispondo-se a defender os seus direitos, quando achava que os tinha, uma coisa que, por vezes, parece repugnar às pessoas...».

Conversas com Agostinho da Silva

 

«Dá-nos Agostinho da Silva uma imagem de si que é a imagem do filho pródigo antes de regressar a casa de seus pais. A casa que abandonou é a escola de Leonardo Coimbra, a Renascença Portuguesa, a mitologia de Pascoaes, a filosofia portuguesa de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Sempre a casa lhe esteve e está aberta, com o lume aceso e o pão na mesa. Amuos de Menino – ele é que é o Menino dos “Impérios” – prendem-no lá fora ao frio de um cientismo que deu o que não tinha a dar, à secura de um racionalismo sergista de que já se não vê o que ficou e coisas semelhantes que são o que mais há por esse mundo das universidades, das academias, das instituições, das teocracias sem Deus onde Agostinho parece dizer que gosta de fazer figura.




Da casa o viram a andar pelo Brasil e alegraram-se. Como os caminhos do Brasil passam perto da casa, esperam-no prestes, puseram mais um pão na mesa, mais uma acha ao lume. Em vão. Já velho, admirável velho, várias vezes passou à vista da casa, ouviu as vozes, parou, mas os amuos de menino foram mais resistentes. Álvaro Ribeiro ainda lhe demonstrou que o V Império, a ser coisa de Portugueses e do Espírito e se algum sentido tem, só pode ser a “filosofia portuguesa”. Inútil. Todavia, para ficar a meio caminho e ainda lhe chegar algum calor do lume, agarrou-se a Pessoa. Mas Pessoa está atirado à fama como um osso aos cães e é preciso esperar que, envenenados pelo osso, os cães o larguem. Teimou em retomar o blá-blá socializante da sua juventude sergista e, contentes, os dos poleiros dos galinheiros do Estado cobrem-no de flores, mostram-no na televisão, põe-no na capa de revistas, plebeízam-no.






No fundo, porém, ainda o têm por suspeito. Por isso o querem atirar agora para os confins da África perdida. O que lhes é suspeito é “aquela luzinha no alto dos céus” que ele um dia nos disse ser donde lhe vem toda a filosofia. É o que o fez dizer que “ Portugal é um dos nomes de Deus”. É o patriotismo e a Pátria que nele dá pelo nome de V Império. É o que fez dele um dos nossos mestres. É o que o fará, inevitavelmente, regressar à casa de seus pais.»

Ernesto Palma (Leonardo, Ano I, n.º 4, Dez. de 1989).


«A ciência não pode coisar em nenhuma das suas noções, mas, quando chega à pessoa, o dinamismo dialéctico da actividade moral deixa de ser o determinismo das noções inferiores para ser a própria noção de pessoa livre, que põe para si e [a] sociedade, por meio dos determinismos inferiores como instrumentos, a acção moral eficaz, fecunda e generosa. Já, em ciência, nós vimos que, ao chegar à psicologia e sociologia, o vício coisista se manifestava pelo reverso de não querer aceitar a realidade da ideia, do pensamento e do sentimento, sempre pela mesma cegueira da inteligência vulgar, que é uma inteligência táctil. A ciência só permite realizar, em sistema completo, a personalidade moral. Porque não há-de ser ela a suprema realidade?

Qual a noção de ordem científica que a isso se oponha?

O desaparecimento da pessoa e da vida e a permanência da matéria? Mas nós só assistimos ao desaparecimento da forma empírica duma dada personalidade, isto é, ao desaparecimento do sistema de determinismos inferiores, que a pessoa tenha dirigido.

Não assistimos ao desaparecimento da Vida, nem da Consciência. Sabemos, pelo contrário, que é impossível tirar, da matéria, a vida e a consciência: são noções cientificamente irredutíveis.» 

Leonardo Coimbra («O Criacionismo»).



«Na sua serena e fecunda velhice, Goethe parece ter dito algumas vezes este preceito sibilino: “aquele que aspira ao Infinito só tem um trajecto a seguir: é percorrer todos os caminhos do finito”. Leonardo Coimbra sem ter, afigura-se-nos, estudado Goethe, no bom sentido da palavra “estudo” (o que foi seguramente para ele um grande mal, pois nenhum outro homem poderia tanto tê-lo ajudado a obter o equilíbrio e a sabedoria que os seus dons espontâneos baldadamente esperaram) cumpriu, pode dizer-se, como poucos, esse fado. A sua curiosidade universalista recorreu a todas as expressões particulares de esclarecimento e informação: a poesia, o romance, o espiritismo, a teosofia, a mística, a metapsíquica, a psicanálise, a teologia. Mas, acima de todas, foi à ciência, nas suas múltiplas especializações, que o seu espírito frequentemente recorreu. Por este lado poucos homens nos nossos dias (sem distinção de país) terão tido uma informação mais variada e vasta. E não basta dizer “informação” – porque Leonardo Coimbra, de facto, não era apenas uma pessoa “informada” mas dotada de um conhecimento profundamente reflectido de todas as ciências fundamentais, tanto no que diz respeito à genética dos seus conceitos gerais como sobre os progressos experimentais, de cada uma. E como ele possuía uma visão rigorosamente lúcida e historicamente informada das vicissitudes do pensamento filosófico europeu, desde os gregos aos modernos, e uma reflexão amadurecida no estudo das interferências dessas vicissitudes do pensamento especulativo sobre o caminhar das ciências (e o inverso), a sua inteligência possuía o dom raríssimo de ver simultaneamente os problemas metafísicos mais graves, implícitos nas noções ou teorias científicas, e apontar o significado das descobertas mais discretas de cada uma. O seu primeiro e já citado livro O Criacionismo é um testemunho significativo dessa duplicidade de dons, já possuídos em esboço por Antero, mas sem a segurança e a acuidade que nesta obra é manifesta. Por esse primeiro ensaio de filosofia tenta-se pela primeira vez, em Portugal, uma crítica do valor das noções científicas conjugada com uma crítica geral do conhecimento aplicada a todos os sistemas filosóficos importantes, em vista de uma tentativa de síntese unificadora de todas as contribuições para a compreensão do real, desde a contribuição das ciências do chamado inerte até às experiências morais, artísticas e religiosas. Quer dizer: Leonardo Coimbra tenta nessa obra precoce (e ofegantemente escrita – como aliás, todas as que escreveu) realizar este intento: achar uma imagem total da realidade, fundada na intuição de que na essência dessa realidade há, a despeito de todos os indícios de esmorecimento e usura, uma outra tendência invencível e contrária: a da criação ascensional de cada instante, a do aumento de Ser das formas ou estádios inferiores de ser no sentido das superiores, a lei do trânsito do mecânico para o vivo, do vivo para o espiritual, do espiritual para o consciente! Esta intuição optimista Leonardo Coimbra não desejava, porém, simplesmente afirmá-la, mas pô-la simultaneamente à prova dura de todos os factos e modalidades de conhecimento; e, principalmente, pô-la à prova, como ele mesmo diz, do conhecimento detentor de maior crédito social: a Ciência. Daí a obrigação que ele a si próprio se impôs de examinar os conceitos últimos de cada ciência e, a seguir, a óptica, que cada uma possui, na focagem dos seus factos particulares, inquirindo dos primeiros a origem (o que lhe permite mostrar que todos têm a proveniência comum e metafísica das Ideias), e, quanto à óptica, mostrar que os factos superiores da realidade concreta, a Vida, o Espírito e a Convivência, são gravemente lesados no que têm de específico (a espontaneidade e a luta contra a entropia) pela tendência notória nas ciências mais novas a verem esses factos pela “óptica” relativamente justificável para estudar e exprimir o procedimento dos factos do Inerte (ou tido como tal). Mediante esta demonstração (que, é certo, já estava feita por Boutroux e Bergson, mas que no nosso país era inteiramente ignorada) Leonardo Coimbra intentaria então, e intentou, denunciar a deficiência da óptica científica determinista e entrópica e provar que a óptica da contingencialidade e da espontaneidade ascensional está mais de acordo com a maneira de ser dos factos mais importantes, até aí lesados nos seus caracteres específicos pelo prestígio do mecanismo materialista: os factos vitais, sociais e espirituais. – Claro que uma empresa desta natureza era grande demais para um homem da sua idade (28 anos), nas circunstâncias desfavoráveis (para não dizer o qualificativo de Schopenhauer), em que a realizou, desajudado inteiramente das condições elementares de ambiência propiciatória à realização de uma tarefa tão nova e tão difícil. Não é, pois, de admirar que nesse livro hajas páginas intempestivas e precoces, muitas precipitações críticas, muitas dissonâncias afectivas, inadequadas à gravidade intelectual da tarefa que nele se tenta realizar. Em todo o caso esse esforço não pode deixar de ser tido como um testemunho estranho, de uma individualidade culturalmente orientada num sentido nitidamente inexplorado por nós. A despeito de todas as suas deficiências (e arrogâncias adolescentes!) esse livro é, na verdade, a primeira demonstração da amplitude singular da inteligência de Leonardo Coimbra; é por ele que se pode avaliar o drama do homem que quebra a tensão superficial do ambiente intelectual em que nasce e se esforça, ele mesmo, por criar outro ambiente mais de acordo com as solicitações viscerais do seu espírito; é por essa obra insólita, exclamativa e interrogativa talvez em demasia, mas honesta com todas as suas audácias ingénuas, que pode admirar-se a intensidade da sua amizade de saber e a sua capacidade de espontânea iniciação em problemas que eram literalmente virgens no nosso meio; é, finalmente, por esse livro, tão tocado, como todos os que se lhe seguiram, de inquietação, e todo ele percorrido por um indefinível halo de fatalidade, que se deixa vislumbrar (estamos em dizer) o presságio da morte que rondava o lar deste homem, e mais longinquamente, o pressentimento do seu fim trágico!»

Sant’Anna Dionísio («Leonardo Coimbra»).



«O preço de ser consciente, lembra-nos então Leonardo Coimbra, é cindir, limitar, distinguir. Sensação e imaginação, memória e amor existem originariamente como formas mais profundas de relação com o Ser que por elas exprime no homem tudo quanto pode, mas não tudo quanto é ou sabe. Tal é o sentido do pecado “impropriamente chamado original”: pois na criança, como no ser auroral, como em toda a forma inicial de ser ou de consciência, há uma “promessa infinita”, que no homem não dá tudo quanto anunciara. Por isso Leonardo Coimbra nos diz ser inviável qualquer cosmologia autêntica sem restituir à sensação como à imaginação, à memória como ao amor, o seu valor originário de “insofismáveis” caminhos do conhecimento. Do Amor e da Morte assinala, como vimos, o imprescindível sentido e valor da iniciação cósmica pelo amor.

Para compreender tudo quanto em várias linhas de visão, alegoria ou conceito o pensador por tais caminhos estabelece, importa introduzir a noção de símbolo ou correspondência simbólica. Sem isso, A Alegria, a Dor e a Graça permanece um livro cerrado. Há, assim, correspondência explícita entre o processo cósmico – aurora, manhã, luz meridiana, tarde, crepúsculo e noite – e o próprio ritmo da vida do homem – nascimento e infância, puberdade, juventude, maturidade, velhice e morte; essa correspondência, aqui mais difícil de determinar, estende-se aos graus e formas da consciência e da razão, da arte, do saber e da acção, do conhecimento e da religião. Neste sentido já antes vimos uma correspondência entre a Aurora, a Infância e a Sensação. No Cosmos vivente, no homem vivente e na consciência, são formas de relação entre o Universo, o homem e o mais íntimo ser de tudo.

Se tais formas nos dizem apenas o que ocorre em tais e tais circunstâncias determinadas, é porque não atendemos ao mais fundo sentido que possuem, porque não as consideramos como os já referidos “núcleos de realidade” nos quais o ser aparece em sua plenitude substancial e significativa. Uma imperativa mas falsa concepção do tempo dispõe tais formas de ser ou de intuição em “cadeias de causalidade”; entretanto, sob essa relação extrínseca, é sempre possível ao homem, alguma hora, algum dia, penetrar na intrínseca relação. Nenhum homem deixa de viver nela ou dela, nenhum ser ou forma de ser, por mais humilde. E uma nova ideia aparece na filosofia de Leonardo Coimbra.»

José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).



Leonardo Coimbra na terra mais antifilosófica do Planeta

A palavra filosofia significa etimamente o amor da verdade, ou a primeira forma de amor. É o amor académico, ou platónico. Em estudo novel de prefácio à primeira tradução portuguesa do Banquete, ou Simpósio, Leonardo Coimbra explicou luminosamente o que significa essa ascensão da Terra para o Céu, cuja doutrina Sócrates atribuiu iniciaticamente à Mulher de Mantineia.

Oráculo de Delfos

O filósofo português, seguindo a tradição católica em que havia sido doutrinado, compõe o platonismo com o cristianismo, para concluir pelo preceito religioso de conhecer, amar e servir a Deus. A tal mandamento subordinou a sua actividade de pensador, de orador e de escritor. Qualquer nota sobre a conversão do filósofo à apologética católica da tríade Deus, Cristo, Igreja, excederá o propósito de elucidar a unidade consciente de uma dedicação à Pátria Portuguesa.

Este breve resumo do sistema filosófico de Leonardo Coimbra, dividido segundo a teoria do pensamento, a teoria do conhecimento e a teoria do procedimento, não comporta bem a temática múltipla e vária de uma intervenção atenta e operante que procurou inserir-se na cultura da sociedade contemporânea. A extensão e a dispersão dos escritos de Leonardo Coimbra, que não estão reunidos em volumes dignos de uma edição completa, dotada dos índices onomásticos e ideográficos, impede, dificulta e adia a composição de um estudo de profundidade, analítico e sintético. Não deixa, porém, de nos inquietar a interrogação sobre o problema de como uma obra ímpar, original e superior de um filósofo não exerceu notável influência docente sobre os escritores contemporâneos, nem foi integrada no património cultural da sociedade portuguesa.

Os livros publicados pelo autor de O Criacionismo não provocaram a responsabilidade dos estudiosos competentes que se mantiveram num prudente ou dúbio silêncio; não obtiveram dos periódicos culturais grande recensão informativa ou grande crítica judicativa; não deslindaram mais do que meras notícias bibliográficas. Até mesmo nas revistas de que Leonardo Coimbra era colaborador foram escassos os artigos próprios para projectar voz eloquente sobre uma actividade editorial que causava estranheza e merecia o respeito de estudiosos interessáveis. Escritores contemporâneos, dotados de alguma preparação filosófica, como Alfredo Pimenta, António Sardinha ou António Sérgio, em poucas palavras expressaram a sua atitude emulativa e competitiva perante uma obra que ia sendo construída na coerência séria de uma tecnicidade perfeita.

A fidelidade à filosofia não é frequente nos escritores portugueses, os quais cedo se desinteressaram da teoria pura e da valoração especulativa para aplicarem a sua cultivada inteligência a actividades menores ou inferiores, como a história, a política, a economia, a geografia, onde realizam trabalhos subsidiários mas subordinados, quando não se deixam absorver pelo jornalismo partidário ou pela crítica literária, onde satisfazem as suas veleidades ou as suas vaidades. A filosofia exige condições de dedicação, isenção, instrução que a sociedade portuguesa não garante nem respeita, antes pelo contrário ofende ao praticar injustiça na distribuição legal dos vencimentos, das recompensas e dos prémios. Num momento de sombria amargura referiu-se Leonardo Coimbra ao criacionismo como um conjunto de doutrinas expostas na terra mais antifilosófica do Planeta [1].





A filosofia não tem lugar de distinção, identidade e independência nas instituições culturais da sociedade portuguesa, em contraste nítido com a literatura, a história e a tecnologia. Ninguém observa que os problemas filosóficos, tal como aparecem enumerados na sua nudez lógica, são os promotores do aperfeiçoamento da ciência pura. Tal atitude condenatória da razão explica o lamentável predomínio de uma mentalidade assente no empirismo da imaginação e da sensitividade, e explica a causa, ou a origem, de muitos estranhos acontecimentos sociais.

Leonardo Coimbra não se deixou intimidar pela aversão que a sociedade portuguesa apresentava à filosofia e aos filósofos, pois enfrentou com superior ironia os remoques e as galhofas que costumam recair sobre os pensadores teóricos, especulativos e contemplativos. Ele vivia a síntese subjectiva da sua aptidão para os trabalhos a que se dedicava e plena certeza de que cumpria a obrigação de servir a verdade. De livro para livro ia completando, corrigindo e aperfeiçoando a exposição de uma doutrina a que fora fiel desde a hora da sua primeira intuição religiosa.

Como fiel de Deus, revendo a sua personalidade na imagem da sua obra escrita, tinha plena consciência de que era um homem superior. Sem falsa modéstia, mantinha com os seus contemporâneos um convívio afável e agradável, já que em monadologia aceitava o princípio moral da «equivalência metafísica das almas». Atraía a si a curiosidade de alguns admiradores que se agrupavam para formação de uma tertúlia sem paralelo na vida da cidade política e industrial.

O Mestre era dotado de um espírito de escol e de um temperamento aristocrático. Elevava o pensamento de quantos o escutavam. Com efeito, ele teve frequentes ocasiões de mostrar que a divulgação cultural, política ou religiosa, era uma ilusão, uma mentira, uma fraude, porque fazendo apelo ao bom senso repartido entre os homens, segundo o aforismo cartesiano, fingia facilitar o entendimento do que só a exigente razão filosófica pode ceder a quem praticar o respectivo esforço especulativo.

Entre quantos falam de política, só poucos serão capazes de pensar o significativo étimo de cada termo da nomenclatura, só raros estão habilitados para dizer uma definição certa, segundo as normas jurídicas constitucionais. A democracia afirma que a qualquer homem, votador, eleitor ou crítico, bastará a boa volição para dizer quem é justo e quem é injusto nos negócios públicos e nos ócios particulares.

Porque a liberdade não assenta na vontade, mas na inteligência, a discussão política não passa, na maior parte das vezes, de um processo singular de julgar pessoas, quando o seu fito verdadeiro deveria ser o de analisar os critérios legítimos de tais juízos, ou as lícitas premissas do silogismo formal.

Tem sido discutido o problema de saber se Leonardo Coimbra, sempre pronto a ensinar por discurso todos quantos desejassem ouvi-lo, pretendia, ou não, criar discípulos quando usava o método socrático, platónico e aristotélico de dialogar. Inclinamo-nos para a resposta afirmativa. De outro modo não poderemos entender a prática dialéctica e didáctica do filósofo português, nem a intervenção do político nos departamentos da escolaridade pública.

A preferência espiritual do autor de Adoração ia para os poetas da nova onda, a quem traduzia o autêntico valor das mais altas, belas e significativas obras de Antero, Junqueiro e Pascoaes. A hermenêutica daquelas palavras que em português são comuns à poesia e à liturgia – tais como admiração, adoração, iniciação, mistério, entusiasmo, boaventura ou felicidade, paraíso terrestre e celeste, – era a chave esotérica que lhe permitia abrir e expor os segredos recônditos na consciência, e na inconsciência, dos génios. Os discípulos davam prova de gratidão pelo ensinamento do Mestre, dedicando-lhe sonetos publicados nas revistas literárias ou pedindo-lhe humildemente a honra de um prefácio para o primeiro livro de versos.


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A confessada relação da poesia com a filosofia na história do pensamento português alarga um tópico dos nossos estudos humanísticos que havia sido pela primeira vez enfrentado por Fernando Pessoa, nos seus célebres artigos de A Águia. O movimento da «Renascença Portuguesa» procurava associar, na sua temática poética, a inspiração haurida na Natureza e a inspiração haurida na História. Ensinou Fernando Pessoa que a Religião, – digamos, a transnatureza e a transhistória –, se desenvolve culturalmente no quadro da teologia católica, ortodoxa ou heterodoxa.

Exemplos vivos de poetas inquietos, oscilantes e dubitativos, foram Teófilo Braga, Gomes Leal e Guerra Junqueiro, afirmando a oposição dialéctica, pondo Deus oposto ao Anti-Deus, Cristo oposto ao Anti-Cristo, Jeová oposto a Satã. É de observar que no catolicismo português avultam São Paulo, Santo Agostinho e S. Francisco de Assis como figuras carismáticas da predilecção dos humanistas mais ou menos democráticos. Muitas poesias religiosas são motivadas pelo calendário litúrgico ou consagradas ao devocionário dos santos e dos anjos, o que convém notar etnograficamente, visto que Portugal tem sido, apesar de tudo, excessivamente santeiro na antroponímia e na toponímia.

Eis porque a leitura da Divina Comédia, catedral insuperada da poesia católica, continua a ser recomendada aos verdadeiros poetas pelos verdadeiros filósofos. Augusto Comte teria desejado também que a poesia humana se depurasse segundo a lei dos três estados, deixasse a mitologia vulgar e a lei metafísica pretensiosa, doutrina que aparece mais belamente explicitada na teoria da arte de João-Maria Guyau. O processo positivo de análise poética foi realizado por Leonardo Coimbra nos estudos que dedicou à psicologia de alguns autores e à síntese sociológico-religiosa de alguns poemas, em textos de alto comentário para exaltação e glória da literatura portuguesa.

Motivo certo de útil monografia minuciosa seria o estudo comparativo das obras poéticas que Leonardo Coimbra leu, estudou e meditou, com suas notas decisivas sobre as vivências essenciais, estruturais e existenciais, estudo que nos deixaria ver os temas preferidos pelo filósofo: a contradição da Natureza, o nascer e o morrer, a vida e a morte, a luta pela imortalidade, o destino das almas, a fenomenologia e a ontologia do amor. A filosofia portuguesa, esboçada já por precursores românticos, atinge no criacionismo a consciência formal, a expressão técnica e a comunicação didáctica a que pensadores, os leitores e escritores não estavam habituados. Os seus traços distintivos, digamos agora sem imagem – diferem e divergem das doutrinas europeias que mais divulgadas foram no século XX, mas agrupam-se e articulam-se de modo coerente, racional e transcendente na construção majestosa do genial, ou geniado, filósofo português.

Em um número da revista Atlântida, expressamente elaborado para situar Portugal na cultura complexa e complementar da Europa, deteve-se Leonardo Coimbra a escrever uma resenha subtil da evolução cronológica e ideológica da nossa poesia para a nossa filosofia. Alude apenas aos trabalhos dispersos de Amorim Viana, Antero de Quental e Sampaio Bruno, que considera sinais de crise e trabalhos de crítica, sem função adunativa de intuição original. «Filosofia sistemática temo-la nós; – afirma modestamente Leonardo Coimbra; – não nos compete, pois, referi-la. Apenas diremos que nos nossos livros – O Criacionismo, O Pensamento Criacionista, A Morte, A Alegria, a Dor e a Graça – ele está exposto e que seria interessante compará-lo com o que dissemos sobre o pensamento poético.

«O seu anti-cousismo, o seu pluralismo social, o carácter do equilíbrio social, permanentemente reinventado pelos seres sociais, o poder criador do pensamento, a realidade metafísica das memórias, o princípio da conservação e evolução da memória, tudo isto é de molde a fazer pressentir o seu parentesco espiritual com o pensamento poético português» [2].

Outras características determinam também a originalidade da filosofia leonardina. A distinção entre a análise científica ou regressiva, e a síntese filosófica, ou progressiva, que está na linha paralela à distinção entre cousismo e criacionismo, mas também a ontologia da alma e a fenomenologia do amor na estética, na ética e na política, pensadas contrariamente às oposições dialécticas, polémicas e trágicas, enfim, a relação religiosa das almas com Deus e de Deus com as almas, são teses que poderiam ter sido anotadas no belo ensaio do modesto escritor. Só o estudo assíduo da obra de Leonardo Coimbra poderá demonstrar que o filósofo português foi em algumas críticas precursor de outros filósofos europeus, seus contemporâneos, graças ao talento poético, fecundo e valioso com que foi agraciado pelo Espírito Santo.

Leonardo Coimbra era em 1917 um homem ciente e consciente do seu valor. Em 1912, quando estava prestes a completar 30 anos de idade, elaborou um livro, O Criacionismo, que concluía com estas ingénuas palavras: «Eis a filosofia que um pensador português pensou na sua terra natal, diante a evocação de todos os homens e seres, na mais pura sinceridade e na mais verídica, premente e directa curiosidade» [3]. Tal apresentação de um pensamento filosófico original merecia ser acolhida e saudada como a promessa de uma série de trabalhos que o autor poderia expor, desenvolver e fundamentar.

Com efeito, Leonardo Coimbra continuou a estudar a fundamentação do seu sistema filosófico, e a expor a sua teoria do conhecimento. Viu com extraordinária lucidez as doutrinas dos filósofos mais célebres, ou mais celebrados, abrindo com uma crítica notável os horizontes fechados pelos sistemas de Kant, Schopenhauer e Nietzsche. Não só nos seus livros mais conhecidos, mas também em muitos artigos insertos na imprensa concelhia, municipal ou regional, de norte a sul do País, Leonardo Coimbra repartiu a verdade de que vivia e de que se nutria, luminosamente anunciada em A Alegria, a Dor e a Graça (1916).

Leonardo Coimbra tinha perfeita consciência de que assumira na cultura portuguesa uma posição singular, adquirida não só por um decénio de profundos estudos literários, científicos e filosóficos, mas também pelo que da sua palavra luminosa iam dizendo os ouvintes e os leitores, os quais exprimiam a sua estranheza em juízos levianos, provenientes de inveja, maledicência ou admiração estulta. Leonardo Coimbra não se considerava por isso um homem superior, um super-homem, ou um génio, como provou na modéstia de uma vida dedicada à missão generosa de ensinar, explicar e educar, própria de um espírito transigente, tolerante e bondoso; mas reconheceu e apontou a inferioridade das «aparências ou dos esboços de alma» que a injustiça social ia situando nos postos mais eminentes, onde se faz a distinção entre o bem e o mal, o crime e o castigo. «A filosofia – explicou em um momento mais alto da sua carreira – é o depoimento de cada época sobre o grau da sua cultura, e é sobretudo o depoimento das almas mais esclarecidas e leais sobre a relação da consciência moral do homem com a mais provável realidade que a actividade científica tenha atingido» [4].

(In Memórias de Um Letrado, II, Lisboa, Guimarães Editores, 1979, pp. 135-144).



[1] O Pensamento Filosófico de Antero de Quental. 240 – Porto, 1921.

[2] Leonardo Coimbra. A poesia e a filosofia moderna em Portugal. Artigo publicado em Atlântida. Mensário artístico, literário e social para Portugal e Brasil. Volume VII, número 25. Lisboa, 15 de Novembro de 1917.

[3] O Criacionismo, 311.

[4] A Razão Experimental, 85.


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