domingo, 31 de outubro de 2010

Agostinho da Silva, filho pródigo

Escrito por Ernesto Palma






«O que é necessário ver e ver claro é que já há muito sinal e garantia de ser possível dar de comer a todos e a todos liberdade, desde que, mais ou menos habilmente, se ligue o que há de bom no comunismo, vida de corpo para todos, ao de que o capitalismo se reclama, a iniciativa privada, o que, na prática, tem sido bastante privar os outros de iniciativa. É a este ponto que tudo se tem de guiar, de fazer convergir e de se constituir em acordo. Não quereria Portugal experimentá-lo, ele que foi descobridor por combinar a ciência e a audácia, a realidade e o sonho? Não o quereríamos experimentar nós, os que nada podemos e nada governamos nem, sobretudo, queremos governar? Nós, os sem força, os voluntários pobres?».

Agostinho da Silva («Carta Vária»).



É, com Sant’Anna Dionísio, António Duarte, Azeredo Perdigão, Álvaro Cunhal, Miguel Torga, talvez mais algum, um dos patriarcas da cultura portuguesa. Cada um à sua maneira, naturalmente: Azeredo Perdigão tapando misérias com o ouro, que as põe mais à vista, Álvaro Cunhal veiculando por instituições universitárias e jornalísticas a propaganda da mediocridade de charra obediência moscovita, Miguel Torga em gesticulações terrunhas oferecendo o peito ao Nobel que nunca mais vem, António Duarte realizando um olímpico exemplo de liberdade artística, Sant’Anna Dionísio e Agostinho da Silva representando o escol de uma geração portuense que, só ela, assegura a sobrevivência da pátria portuguesa num mundo em que nada é eterno a não ser o próprio mundo.

De Agostinho da Silva reuniu e publicou agora o universitário Paulo Borges, os escritos dispersos nos quais o discípulo, malgré lui, de Leonardo Coimbra tem deixado dito o seu recado que, de outros modos além dos escritos, andou transmitindo pelos quatro cantos do mundo consoante lho deixaram transmitir os baldões da sorte em que tem feito viver seus vivíssimos 82 anos. Porque Agostinho da Silva não é manifestamente, e ele o diz, um escritor embora tenha passado grande parte da vida a escrever. Tão pouco é, também ele o diz, um político, embora a iluminar políticos tenha em vão terçado suas armas. Não é, abrenúncio, um divulgador, embora se haja dedicado, com fama e excelência, a fazer saber ignorados clássicos e outros. E insiste, com suspeita insistência, em negar que seja o filósofo que muitos vêem nele e lhe chamam. Agostinho da Silva é o que não é. Quer dizer: para sabermos quem é Agostinho da Silva torna-se necessário saber o que ele não é. Estamos, pois, perante um exemplo vivo da “razão bastarda” que Platão cultivou, com e sem ironia socrática.

Relendo, mas agora em grosso volume, os seus escritos dispersos, algumas constantes encontramos nos desvarios (em sentido clássico) do nosso Homem. Primeiro, uma constante hoje vulgaríssima por ter passado, de pedra de toque de gente superior, a pasto de toda a canzoada institucional: a admiração sem limites por Fernando Pessoa que Agostinho sempre razoadamente bastardo, diz não ser admiração pelo poeta, menos ainda pelo pensador, mas pelo homem que, como ele mesmo Agostinho, entregou a vida aos baldões da sorte não aceitando emprego certo com inscrição sindical, medicina para a doença e pensão para a velhice. Se assim na verdade fosse, quanta gente teria então de admirar Agostinho, desde os ricaços que vivem além dos empregos certos, como aqueles com quem Agostinho tão bem se entende, até à multidão de auto-marginais e auto-segregados, uns e outros, em geral, bem pobres de espírito. Os paradoxos nem sempre são felizes, e a verdade é que o que Agostinho admira em Pessoa é a riqueza de espírito que o fez ver, como a ele Agostinho, os símbolos da Pátria. Os símbolos, não o pensamento deles porque isso, desconfia Agostinho, já seria filosofia. E é conveniente anotar aqui que, em verdade ou em erro, só Sampaio Bruno pensou seriamente os símbolos da Pátria.

Mosteiro dos Jerónimos

Agostinho não se propõe, pois, pensar os símbolos. Propõe-se, sim, fazê-los passar à história. Não à história do passado mas à história do futuro. Agostinho é, afinal, um historiador.

Não, naturalmente, historiador à maneira de Herculano ou Oliveira Martins, para só nomearmos os significativos. Antes à maneira de Fr. Bernardo de Brito que, no século XVI, nasceu na terra onde, quatro séculos depois, Agostinho da Silva viria a nascer, terra suspensa das estrelas que desenham as muralhas de Almeida, coroada das ruínas do Castelo de Rodrigo, convulsionada pela judiaria de Pinhel, sacudida pelas profecias do de Trancoso e donde, em madrugadas sebásticas, parte a Barca de Alva. Terra mitológica, portanto. Mas por muito que tenha contribuído para a renascença de Portugal, Bernardo de Brito foi, e à luz do mais fiel catolicismo, um historiador do passado, e o passado, seja o do último minuto, é sempre mais remoto e distante do que o futuro mais longínquo. Tanto assim que, na história mitificada do cisterciense, o Portugal nascido com o mesmo Adão não chega aos tempos do seu primeiro Rei. De outro historiador, também ele clérigo mas suspeito de heresia como Agostinho gosta, se socorre então Agostinho. Do Padre António Vieira que, como ele, calcorreou os caminhos do Brasil e escreveu uma História do Futuro não tão sugestiva, ao ler-se, quanto o título promete.

Do passado, sublinhando seus enigmas e mistérios, escolhe e recolhe Agostinho os símbolos e os mitos – os mesmos de Pessoa – em que entende guardarem-se as chaves do futuro: a heresia joaquimita, a religião paracletiana e o Culto do Espírito Santo lhe basta. Basta-lhe porque está manifestamente referido ao que virá depois do Pai e do Filho, ao espírito que ordenará o futuro. E também porque anuncia a idade da abundância (há claros vestígios nos Dispersos de como Agostinho teve a ilusão de que o comunismo teria trazido a abundância aos povos que se lhe submeteram e hoje são alimentados a rações) E porque abre as portas aos presos das prisões, o que sobretudo agrada a este discípulo de Leonardo que reconhece ao menos ter sido com o mestre que aprendeu a liberdade. E porque, finalmente, senta no trono do Império, que sendo o do Espírito será o V da ordem bíblica, não um filósofo como queria Platão (Agostinho fala de Platão como fala de Pessoa: a sua filosofia nada lhe interessa), mas um Menino, quer dizer, a inocência, o não-saber, a vida fácil, em suma.

Insularidade açoriana

Um outro elemento, talvez o mais precioso, oferece o Culto do Espírito Santo ao patriota Agostinho da Silva. É que onde o culto persiste, embora reduzido a gestos e por preguiça dos costumes, é nos sertões brasileiros e nas ilhas açorianas. Se é assim em Portugal – Agostinho, quando diz Portugal, diz Brasil – que o culto persiste, é porque é Portugal que formará o V Império. O V Império será a história do futuro e tem já, em Agostinho, o seu cronista. Uma observação convém fazer aqui. Se há história do futuro é porque há conhecimento do futuro. Conhecer o que não há ainda e se dá como a haver necessariamente, é a expressão extrema da identidade entre conhecer e fazer ou, como só os filósofos explicam, (mas os filósofos são abomináveis) entre pensar e ser. O historiador do futuro é, então, o autor do futuro.

Dá-nos Agostinho da Silva uma imagem de si que é a imagem do filho pródigo antes de regressar a casa de seus pais. A casa que abandonou é a escola de Leonardo Coimbra, a Renascença Portuguesa, a mitologia de Pascoaes, a filosofia portuguesa de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Sempre a casa lhe esteve e está aberta, com o lume aceso e o pão na mesa. Amuos de Menino – ele é que é o Menino dos “Impérios” – prendem-no lá fora ao frio de um cientismo que deu o que não tinha a dar, à secura de um racionalismo sergista de que já se não vê o que ficou e coisas semelhantes que são o que mais há por esse mundo das universidades, das academias, das instituições, das teocracias sem Deus onde Agostinho parece dizer que gosta de fazer figura.

Da casa o viram a andar pelo Brasil e alegraram-se. Como os caminhos do Brasil passam perto da casa, esperam-no prestes, puseram mais um pão na mesa, mais uma acha ao lume. Em vão. Já velho, admirável velho, várias vezes passou à vista da casa, ouviu as vozes, parou, mas os amuos de menino foram mais resistentes. Álvaro Ribeiro ainda lhe demonstrou que o V Império, a ser coisa de Portugueses e do Espírito e se algum sentido tem, só pode ser a “filosofia portuguesa”. Inútil. Todavia, para ficar a meio caminho e ainda lhe chegar algum calor do lume, agarrou-se a Pessoa. Mas Pessoa está atirado à fama como um osso aos cães e é preciso esperar que, envenenados pelo osso, os cães o larguem. Teimou em retomar o blá-blá socializante da sua juventude sergista e, contentes, os dos poleiros dos galinheiros do Estado cobrem-no de flores, mostram-no na televisão, põe-no na capa de revistas, plebeízam-no.


No fundo, porém, ainda o têm por suspeito. Por isso o querem atirar agora para os confins da África perdida. O que lhes é suspeito é “aquela luzinha no alto dos céus” que ele um dia nos disse ser donde lhe vem toda a filosofia. É o que o fez dizer que “ Portugal é um dos nomes de Deus”. É o patriotismo e a Pátria que nele dá pelo nome de V Império. É o que fez dele um dos nossos mestres. É o que o fará, inevitavelmente, regressar à casa de seus pais (in Leonardo, Ano I, n.º 4, Dez. de 1989, pp. 40-41).


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