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sexta-feira, 19 de julho de 2013

Os Sete Pilares da Sabedoria (ii)

Escrito por Thomas Edward Lawrence 








«(...) No rebordo limpo pela água e fragrante desnudei o meu corpo sujo e entrei na pequena bacia, a fim de saborear finalmente a frescura do ar em movimento e da água sobre a minha pele fatigada. Era deliciosamente fresca. Deixei-me ficar quieto, deixando que a água límpida, de um vermelho-escuro, corresse sobre mim, dividida em pequenas estrias, levando consigo a poeira da viagem. Enquanto ali descansava, feliz, um homem esfarrapado, de barba grisalha, com um rosto esculpido, cheio de força e de cansaço, avançou lentamente pelo caminho até chegar diante da fonte e aí se deixou cair com um suspiro em cima das minhas roupas estendidas sobre uma pedra, ao lado do caminho, para que o calor do Sol expulsasse os parasitas nelas reunidos.

Ouviu-me e inclinou-se para a frente, espreitando com os olhos ramelosos aquela coisa branca que se banhava na concavidade por detrás do véu de neblina do calor. Ao fim de uma longa observação, pareceu ficar satisfeito, e fechou os olhos, resmungando: "O amor vem de Deus, é de Deus e é para Deus".

As suas palavras, ditas em voz baixa, ressoaram distintamente dentro da minha piscina, por qualquer razão acústica. Fizeram-me parar subitamente. Eu pensava que os Semitas eram incapazes de utilizar o amor como elo entre eles e Deus, até mesmo incapazes de conceberem uma tal relação, excepto com a intelectualidade de Espinoza, que amava tão racional e assexuadamente, e tão transcendentalmente, que não procurava, e nem sequer permitia, uma retribuição. O cristianismo parecera-me o primeiro credo a proclamar o amor neste mundo superior, do qual o deserto e os Semitas (de Moisés a Zeno) tinham sido excluídos; e o cristianismo era um produto híbrido, excepto quanto à sua primeira raiz não essencialmente semítica.

O seu nascimento na Galileia salvara-o de ser apenas uma das mais inúmeras revelações dos Semitas. A Galileia era a província não semita da Síria e o contacto com ela era quase impuro para o perfeito judeu. Como a Whitechapel em relação a Londres, era alheia a Jerusalém. Cristo, por opção, passara o seu ministério naquela liberdade intelectual; não entre as cabanas feitas de lama de uma aldeia síria, mas em ruas arranjadas, entre praças romanas e casas com colunas, e banhos requintados, produtos de uma civilização grega intensa, embora muito exótica e corrompida.

Os habitantes desta colónia estrangeira não eram gregos - pelo menos não na sua maioria -, mas sim levantinos de diversos tipos, a imitar uma cultura grega; e, produzindo, em contrapartida, não o correcto e banal helenismo da sua pátria exausta, mas uma variante tropical, em que o equilíbrio rítmico da arte grega e do idealismo grego florescia em novas formas, mais vistosas e adornadas com as cores apaixonadas do Oriente.

Os poetas gadarenos, tartamudeando os seus versos na excitação prevalecente espelharam a sensualidade e o fatalismo desiludido, que passavam ao desejo desordenado, da sua época e da sua situação; de cuja mundanidade a ascética religiosidade semita talvez tenha captado o sabor a humanidade e o amor real que tornou diferente a música de Cristo e a transportou aos corações da Europa, de um modo que o Judaísmo e o Islamismo nunca conseguiram.






E depois tivera o cristianismo a sorte de posteriores arquitectos de génio; e, na sua passagem através de tempos e climas, sofreu mudanças incomparavelmente superiores às do imutável judaísmo, desde a abstracção do intelectualismo alexandrino até à prosa latina, para o continente europeu; e, prova final e mais terrível de todas, quando se tornou teutónico, com uma síntese formal para satisfazer o nosso frio e controverso norte. Tão distante se encontrava o credo presbiteriano da fé ortodoxa da sua primeira ou segunda encarnação, que, antes da guerra, enviávamos missionários para converter aqueles cristãos orientais mais flexíveis à nossa ideia de um Deus lógico.

Também o islamismo mudara inevitavelmente de continente para continente. Evitara a metafísica, excepto o misticismo introspectivo dos devotos iranianos; mas em África adquirira as cores do feiticismo (para expressar numa palavra só as diversas animalidades do continente grego) e na Índia tivera de se curvar à legalidade e ao literalismo das mentes dos seus convertidos. Na Arábia, conservara um carácter semítico, ou, antes, o carácter semítico perdurara durante a fase do islamismo (como através de todas as fases dos credos com que os habitantes das cidades revestiam continuadamente a simplicidade da fé), expressando o monoteísmo dos espaços abertos, a passagem pelo infinito do panteísmo e a sua utilização quotidiana de um Deus pessoal que tudo consegue impregnar...».

T. E. Lawrence («Os Sete Pilares da Sabedoria»).





Os Sete Pilares da Sabedoria


A base comum de todos os credos semitas, vencedores ou fracassados, era a ideia sempre presente de falta de valor do mundo. A sua profunda reacção contra a matéria levou-os a pregar a nudez, a renúncia, a pobreza; e a atmosfera desta invenção asfixiava implacavelmente as mentes do deserto. Tive pela primeira vez conhecimento do seu sentido da pureza da rarefacção nos primeiros anos, depois de termos cavalgado longo tempo pelas planícies ondulantes do Norte da Síria até uma ruína do período romano que os Árabes pensavam ter sido feita por um príncipe da fronteira como palácio do deserto para a sua rainha. Dizia-se que o barro deste edifício fora amassado, para maior riqueza, não com água, mas com os preciosos óleos essenciais das flores. Os meus guias, cheirando o ar como cães, levaram-me pelas salas em ruínas, dizendo: «Esta é de jasmim, esta de violetas, esta de rosas».

Mas finalmente Dahoum puxou por mim: «Vem e aspira o mais doce de todos os perfumes». E entrámos na habitação principal, dirigimo-nos às armações abertas das janelas da sua face oriental, e aí bebemos, com as bocas abertas, o vento do deserto, passivo, vazio, sem refluxos, que pulsava sobre nós. Aquela lenta respiração tinha nascido algures, para além do distante Eufrates, e tinha-se arrastado durante muitos dias e muitas noites, percorrendo o seu caminho sobre as ervas mortas, até se lhe deparar o primeiro obstáculo, as paredes feitas pelo homem do nosso palácio em ruínas. Parecia agitar-se e demorar-se em volta delas, murmurando palavras infantis. «Este», disseram-me eles, «é o melhor: não tem sabor». Os meus árabes voltavam as costas aos perfumes e aos luxos e escolhiam as coisas em que a humanidade não toma parte.



Peter O'Toole em "Lawrence of Arabia", de 1962 (ver aqui).










O beduíno do deserto, nele nado e criado, abraçara com toda a sua alma esta nudez demasiado severa para os voluntários, pela razão, sentida mas não expressa, de que aí se sentia indubitavelmente livre. Afastava todos os laços materiais, todos os confortos, todas as coisas supérfluas e outras complicações, para alcançar uma liberdade pessoal que a fome e a morte perseguiam. Não via qualquer virtude na pobreza em si própria: apreciava os pequenos vícios e luxos - café, água potável, mulheres - que ainda podia conservar. Na sua vida tinha ar e ventos, sol e luz, espaços abertos e vastidões desertas. Não havia intervenção humana, nem fecundidade na natureza: apenas o Céu por cima dele e Terra imaculada por baixo. Aí se aproximava inconscientemente de Deus. Para ele, Deus não era antropomórfico, não era tangível, não era moral nem ético, nem se preocupava com o mundo ou com ele, não era natural: mas um ser incolor, informe, intangível, assim qualificado não por despojamento, mas por investimento, um Ser abrangente, a origem de todas as actividades, sendo a natureza e a matéria apenas um espelho que O reflectia.

O beduíno não podia procurar Deus dentro de si: sentia-se demasiado seguro de se encontrar dentro de Deus. Não podia conceber coisa alguma que fosse ou não fosse Deus, pois só Ele era grande; contudo, havia algo de singelo, de quotidiano, no climático Deus árabe, que era o facto de eles comerem, de eles lutarem, de eles desejarem, era o mais vulgar dos seus pensamentos, o seu recurso e companheiro familiar, de um modo inconcebível para aqueles cujo Deus se encontra tão tristemente oculto para eles pelo desespero do seu carnal não merecimento d'Ele e pelo decoro da adoração formal. Os Árabes não consideravam incongruente trazer Deus para as fraquezas e apetites das suas causas menos dignas. Era a mais familiar das suas palavras; e, efectivamente, falta-nos muita eloquência quando fazemos d'Ele o mais curto e mais feio dos nossos monossílabos.























Esta crença do deserto parecia inexprimível em palavras e até em pensamentos. Era fácil senti-la como uma influência,e aqueles que estavam no deserto durante tempo suficiente para esquecerem os seus espaços abertos e o seu vazio eram inevitavelmente arrastados para Deus como único refúgio e ritmo de vida. O Bedawi poderia ser um Sunni nominal, ou um Wahabi nominal, ou qualquer outra coisa no perímetro semita, e não se importava com isso, um pouco como os vigias do portão de Sião, que bebiam cerveja e riam em Sião porque eram sionistas. Cada nómada tinha sua religião revelada, não oral, nem tradicional, nem expressa, mas instintiva, dentro de si próprio; e assim temos todos os credos semitas com (em carácter e essência) realce para a futilidade do mundo e a plenitude de Deus; e em conformidade com o poder e a oportunidade do crente, assim era a expressão deles.

O habitante do deserto não recebia honras pela sua crença. Nunca tinha sido evangelista ou prosélito. Chegara à sua intensa condensação de si próprio em Deus fechando os olhos ao mundo, a todas as complexas possibilidades nele latentes que apenas o contacto com a riqueza e as tentações poderia provocar. Alcançou uma confiança segura e uma confiança poderosa, mas quão estreito era o seu campo! A sua estéril experiência roubava-lhe a compaixão e pervertia a sua bondade humana à imagem da aridez em que ele se escondia. Consequentemente, magoava-se a si próprio, não apenas para ser livre, mas para agradar a si mesmo. Seguia-se um prazer no sofrimento, uma crueldade que era mais importante para ele do que os bens. O árabe do deserto não conhecia alegria maior do que a alegria de voluntariamente se abster. Encontrava conforto na abnegação, na renúncia, na autoprivação. Tornava a nudez da mente tão sensual como a nudez do corpo. Salvava a sua alma, talvez, e sem perigo, mas com duro egoísmo. O seu deserto era transformado num congelador espiritual, em que se conservava intacta, mas desaproveitada para todo o sempre, uma visão da unidade de Deus. Para aí fugiam, por vezes, aqueles que buscavam, vindos do mundo exterior, e aí permaneciam durante um período, olhando, de longe, para a natureza da geração que iriam converter.










Esta fé do deserto era impossível nas cidades. Era simultaneamente demasiado estranha, demasiado simples, demasiado impalpável, para exportação e para uso comum. A ideia, a crença básica de todos os credos semitas, aguardava-nos, mas tinha de ser diluída para se tornar compreensível. O grito de um morcego era excessivamente agudo para alguns ouvidos: o espírito do deserto escapava-nos, não penetrando na nossa textura mais grosseira. Os profetas regressavam do deserto com a sua visão de Deus e, através de um meio transmissor colorido (como se fosse através de vidro escurecido), mostravam-nos um pouco da majestade e do brilho, cuja visão total nos cegaria, nos ensurdeceria, nos emudeceria, nos faria como fez ao beduíno, afastando-o do mundo, transformando-o num ente à parte.

Os discípulos, tentando desfazer-se, eles próprios e os seus próximos, de todas as coisas, segundo a palavra do Mestre, tropeçaram na fraqueza humana e fracassaram. Para viver, o aldeão ou o citadino tem de satisfazer-se todos os dias com os prazeres da aquisição e da acumulação, e, por repercussão, transforma-se no mais baixo e no mais materialista dos homens. O notável desprezo pela vida que levou outros ao mais despojado ascetismo levou-o ao desespero. Esbanjou-se a si próprio imprudentemente, como um perdulário: gastou a sua herança da carne numa apressada procura do fim. O judeu na metrópole em Brighton, o mendigo, o adorador de Adónis, o devasso nos lupanares de Damasco, eram sinais semelhantes da capacidade semítica de prazer e expressões do mesmo vigor que nos deu, no outro extremo, a abnegação dos Essénios, ou dos primeiros cristãos, ou dos primeiros califas, achando mais belo o caminho do Céu para os pobres em espírito. O semita oscilava entre o prazer sensual e a abnegação.




Os Árabes podiam suspender-se de uma ideia como de uma corda; porque a fidelidade não comprometida das suas mentes fazia deles servidores obedientes. Nenhum deles fugiria ao compromisso até o êxito chegar, e, como ele, à responsabilidade e ao dever e às batalhas. Depois a ideia desaparecia e o trabalho terminava - em ruínas. Sem um credo, podiam ser arrastados para os quatro cantos do mundo (mas não para o Céu) se lhe mostrassem as riquezas da Terra e os seus prazeres; mas se no caminho, ao serem deste modo arrastados, encontrassem o profeta de uma ideia que não tivesse onde pousar a cabeça e dependesse, para se alimentar, da caridade ou das aves, seriam capazes de abandonar a riqueza por essa inspiração. Eram incorrigivelmente crianças perante uma ideia, débeis e cegos às cores, para quem o corpo e o espírito se encontravam eterna e inevitavelmente opostos. A sua mente era estranha e obscura, cheia de depressões e de exaltações, despida de regras, mas dotada de maior ardor e mais fértil em fé do que qualquer outra no mundo. Eram um povo de impulsos, para quem o abstracto era a mais forte motivação, o processo de infinita coragem e variação, e o fim nada. Eram tão instáveis como a água e, como a água, acabavam por triunfar finalmente. Desde a alvorada da vida, em vagas sucessivas, tinham-se precipitado sempre contra as costas da carne. Cada vaga era quebrada, mas, tal como o mar, desgastava uma parte infinitesimal do granito contra o qual se quebrava, e, um dia, muitas eras mais tarde, viria a rolar, sem se quebrar, sobre o sítio onde o mundo material tinha existido, e Deus avançaria sobre a superfície das águas. Uma dessas vagas (e não a última) fui eu que a elevei e a fiz rolar ao sopro de uma ideia, até atingir a sua crista e desabar sobre Damasco. O embate dessa onda, que a resistência das coisas empossadas fez recuar, fornecerá matéria à onda que se seguirá, quando, na plenitude do tempo, o mar se erguer uma vez mais (in ob. cit., pp. 39-43).










terça-feira, 16 de julho de 2013

Os Sete Pilares da Sabedoria (i)

Escrito por Thomas Edward Lawrence




A Esfinge e a Pirâmide de Queops (Egipto).


«Ao longo dos vinte meses em que Churchill deteve a pasta das Colónias - é a época em que o império alcança a sua expansão máxima -, o seu principal campo de acção foi o Médio Oriente, apesar da sua pouca competência para o mesmo. Manda criar de imediato o departamento especial, o Departamento para o Médio Oriente, no seio do Ministério das Colónias. Tanto para ele como para a Grã-Bretanha, o principal problema, na sequência da derrota do Império Otomano, e da atribuição de mandatos da Sociedade das Nações aos dois países colonizadores, é organizar naquela zona-chave do globo uma esfera de influências em que o poderio britânico seria preponderante, apoiando-se sobre dois pólos, a Palestina e a Mesopotâmia, e frustrando o mais possível as ambições francesas. Assim, o vasto espaço geopolítico que se estende de Gibraltar ao golfo Pérsico, passando por Malta, Egipto e o canal, seria rigorosamente controlado por Londres, com o apoio da Royal Navy e da Royal Air Force.

Nesta perspectiva, Churchill convoca, em Março de 1921, uma conferência no Cairo, com os responsáveis da região (arranjando tempo para pintar as Pirâmides, e depois para visitar Jerusalém). Para os assuntos árabes, recorreu ao coronel Lawrence, como conselheiro. Graças à audiência deste junto da dinastia Hachemita, a Mesopotâmia (a partir de então denominada Iraque), que, em 1920, fora varrida por uma sublevação, rapidamente reprimida, acolhe como rei o emir Fayçal - que faz figura de fantoche dos Ingleses - enquanto o seu irmão, o emir Abdallah, é colocado no trono da Transjordânia.

Na Palestina, pelo contrário, Churchill pisa um solo muito menos seguro. A sua concepção pessoal é a de um duplo dever frente aos Árabes e aos Judeus, de forma a conciliar, senão a reconciliar, os dois povos. Por um lado, ele reafirma oficialmente a adesão de Londres à Declaração Balfour de 1917, ou seja, à promessa de criar uma pátria nacional na Palestina; tal promessa, confirmando os direitos dos imigrantes judeus no país, provoca a fúria dos Árabes. Por outro lado, ele deixa os sionistas profundamente desiludidos, ao reconhecer os direitos dos Árabes palestinianos sobre a sua própria terra. É verdade que neste caso o secretário das Colónias se via confrontado com o problema da quadratura do círculo.


Finalmente, no sector do mar Egeu, Winston, em total desacordo com a política obstinadamente pró-Grécia de Lloyd George, e que, aliás, detesta os Gregos, vê na Turquia de Ataturk um pólo de equilíbrio para o Mediterrâneo Oriental, ao mesmo tempo que uma defesa contra a União Soviética e a ameaça bolchevique.

Quanto a África, cuja sedução nunca deixou de o influenciar, Churchill opõe a riqueza potencial do continente, cujas populações se comportam de forma tão sensata, aos espaços desérticos e agitados do Médio Oriente. Para dizer a verdade, ele não nutre simpatia alguma pelos Árabes. "Em África", declara ele, "a população é dócil e o território produtivo; na Mesopotâmia e no Médio Oriente, o território é árido e a população violenta. Com pouco dinheiro consegue-se muito em África, com muito dinheiro não se consegue nada na Arábia". Ao mesmo tempo, os seus preconceitos de cor e de raça, profundamente enraizados, levam-no a pensar na segregação num país como o Quénia, onde se deve proceder à separação de brancos (proprietários das boas terras), índios e negros, pois "os princípios democráticos da Europa não estão adaptados ao desenvolvimento dos povos da Ásia e da África" (Discurso frente à British Cotton Growing Association, Manchester, 7 de Junho de 1921: citado por Ronald Hyam, "Churchill and the British Empire", in Robert Blake W. Roger Louis, ed., Churchill, Oxford University Press, 1993, p. 174; discurso de 27 de Janeiro de 1922: citado por H. Pelling, Churchill..., op. cit., p. 267)».

François Bédarida («Winston Churchill»).




Os Sete Pilares da Sabedoria


"Lawrence da Arábia" (ver aqui).


A primeira dificuldade do movimento árabe consistia em definir quem eram os Árabes. Sendo um povo criado, o seu nome ia mudando de sentido lentamente, ano após ano. Outrora, um árabe era uma pessoa natural da Arábia. Havia um país chamado Arábia; mas nada tinha a ver com o caso. Havia uma língua chamada árabe; e aí residia a dificuldade. Era a língua corrente da Síria e da Palestina, da Mesopotâmia e da grande península a que se chama Arábia nos mapas. Antes da conquista muçulmana, essas zonas eram habitadas por diversos povos, que falavam línguas da família arábica. Chamámos-lhes Semitas, mas (como sucede com a maioria dos termos científicos) incorrectamente. Contudo, o arábico, o sírio, o babilónico, o fenício, o hebreu, o aramaico e o siríaco eram línguas aparentadas; e os sinais de influências comuns no passado, ou mesmo de uma origem comum, eram reforçados pelo conhecimento de que o aspecto e os costumes dos actuais povos de expressão árabe da Ásia, embora tão variados como um campo de papoilas, tinham uma semelhança regular e essencial. Poderíamos, com absoluta propriedade, chamar-lhes primos - e primos sem dúvida conscientes, ainda que tristemente, do seu parentesco.

As zonas de expressão árabe da Ásia, neste sentido, constituíam mais ou menos um paralelograma. A face norte partia de Alexandreta, no Mediterrâneo, atravessando a Mesopotâmia, para oriente, até ao Tigre. A face sul era o contorno do oceano Índico, de Adem a Muscat. A ocidente era limitado pelo Mediterrâneo, o canal de Suez e o mar Vermelho até Adem. A oriente, pelo Tigre e pelo golfo Pérsico até Muscat. Este quadrilátero de terreno, tão grande como a Índia, constituía a pátria dos nossos semitas, onde nenhuma raça estrangeira se fixara em permanência, embora os Egípcios, os Hititas, os Filisteus, os Persas, os Gregos, os Romanos, os Turcos e os Francos o tivessem tido por diversas vezes. Todos tinham acabado por ser dominados e os seus elementos esparsos submersos pelas fortes características da raça semita. Os Semitas forçaram por vezes a saída para o exterior desta área, tendo eles próprios sido submersos pelo mundo exterior. O Egipto, a Argélia, Marrocos, Malta, a Sicília, a Espanha, a Cilícia e a França absorveram ou obliteraram as suas colónias semíticas. Apenas em Trípoli, na África, e no eterno milagre da Judeia, os semitas distantes da sua zona conseguiram conservar parte da sua identidade e da sua força.

A origem destes povos era uma questão académica; mas, para o entendimento da sua revolta, as suas diferenças sociais e políticas actuais eram importantes e podiam ser compreendidas pelo estudo da sua situação geográfica. O continente que eles formavam atravessava algumas grandes regiões, cujas imensas diversidades físicas impunham a diversidade de hábitos dos seus habitantes. A ocidente, o paralelograma era enquadrado, de Alexandreta a Adem, por uma cadeia montanhosa, chamada (ao norte) Síria, e a partir daí, progressivamente para o sul, chamada Palestina, Midian, Hejaz e, finalmente, Iémen. Tinha uma altitude média de cerca de novecentos metros, com picos de três mil metros e três mils e seiscentos metros. Estava voltada para ocidente, era bem provida de água da chuva e das nuvens que vinham do mar e, de maneira geral, estava totalmente povoada.




Uma outra cadeia de montes desabitados, voltada para o oceano Índico, formava o contorno meridional do paralelograma. A fronteira oriental era, a princípio, uma planície de aluvião chamada Mesopotâmia, mas a sul de Basra era um litoral plano, chamado Kuweit, e Hasa, até Gattar. Grande parte dessa planície era habitada. Esses montes desabitados e as planícies rodeavam um golfo de sedento deserto, em cujo coração existia um arquipélago de oásis providos de água e habitados, chamados Kasim e Aridh. Neste grupo de oásis ficava o verdadeiro centro da Arábia, a reserva do seu espírito nativo e a sua mais consciente individualidade. O deserto envolvia-a e conservava-a pura de contactos.

(...) Dado que os homens das tribos e os homens das cidades, na Ásia de expressão árabe, não eram de raça diferente, mas apenas homens em diferentes fases sociais e económicas, seria de esperar que houvesse semelhanças familiares no funcionamento das suas mentes, e, por isso, era perfeitamente razoável que surgissem elementos comuns no produto de todos esses povos. Logo de início, ao encontrá-los pela primeira vez, deparava-se-nos uma limpidez universal ou rigidez de crença, quase matemática na sua limitação e repulsiva na sua forma insensível. Os Semitas não tinham meios-tons no seu registo de visão. Eram um povo de cores primárias, ou, antes, de preto e branco, que via o mundo sempre em contorno. Eram um povo dogmático, que desprezava a dúvida, a nossa moderna coroa de espinhos. Não compreendiam os nossos problemas metafísicos, as nossas interrogações introspectivas. Só conheciam a verdade e a não-verdade, a crença e a descrença, sem a nossa hesitante série de tons menores.

Este povo era a preto e branco, não somente na visão, mas por íntima guarnição: preto e branco não apenas na claridade, mas na justeza. Os seus pensamentos só estavam à vontade nos extremos. Residiam em superlativos voluntariamente. Por vezes, os inconsequentes pareciam possuí-los simultaneamente em sentidos diferentes; mas nunca se rendiam: perseguiam a lógica de diversas opiniões incompatíveis até alcançarem fins absurdos, sem se aperceberem da incongruidade. Com a cabeça fria e um julgamento tranquilo, imperturbavelmente inconscientes da fuga, oscilavam de assimptota em assimptota (1).


Eram gente limitada, de mente estreita, cujos intelectos inertes jaziam em pousio, numa negligente resignação. A sua imaginação era viva, mas não criativa. Existia tão pouca arte árabe na Ásia que quase se poderia considerar inexistente, embora as suas classes superiores fossem patronos liberais e tivessem encorajado todos os talentos, na arquitectura, ou na cerâmica, ou noutras artes, que os seus vizinhos e hilotas manifestassem. Também não se dedicavam a grandes indústrias; não tinham organizações relacionadas com a mente e o corpo. Não inventaram sistemas filosóficos, nem mitologias complexas. Orientavam o seu curso entre os ídolos da tribo e da caverna. Sendo o menos mórbido dos povos, tinham aceitado o dom da vida incondicionalmente, como sendo axiomático. Para eles era uma coisa inevitável, vinculada ao homem, um usufruto, algo sem controlo. O suicídio era algo impossível e a morte não era um desgosto.

Eram um povo de espasmos, de convulsões, de ideias, a raça dos génios individuais. Os seus movimentos eram tanto mais chocantes quanto contrastavam com a humanidade da sua multidão. As suas convicções eram ganhas por instinto, as suas actividades intuitivas. A sua maior produção era de credos: quase tinham o monopólio das religiões reveladas. Três desses esforços tinham-se tornado estáveis entre eles: dois deles tinham sido mesmo exportados (em formas modificadas) para povos não semitas. O cristianismo, traduzido para os espíritos diversos das línguas grega e latina e teutónica, conquistara a Europa e a América. O islamismo, com diversas transformações, estava a sujeitar a África e partes da Ásia. Ambos eram êxitos semitas. Os fracassos, guardavam-nos para eles próprios. As fronteiras dos seus desertos estavam semeadas de credos falhados.


Era significativo o facto de este naufrágio e religiões falhadas se encontrar no ponto de encontro entre o deserto e os terrenos plantados. Explicava a geração de todos esses credos. Eram afirmações, não argumentações; por isso necessitavam de um profeta para as espalhar. Os Árabes diziam que tinha havido quarenta mil profetas: nós conhecemos, pelo menos, algumas centenas. Nenhum deles viera do deserto, mas as suas vidas seguiam um padrão determinado. O seu nascimento situava-os em lugares superpovoados. Uma ânsia apaixonada e ininteligível arrastava-os para o deserto. Aí viviam durante maior ou menor tempo em meditação e abandono físico; e daí regressavam com a mensagem imaginada e já elaborada, para pregar aos seus antigos, e agora duvidosos, companheiros. Os fundadores dos três grandes credos cumpriram este ciclo: a sua possível coincidência transformou-se em lei pelas histórias das vidas paralelas de miríades de outros, os infelizes que fracassaram, que não devemos considerar de profissão menos verdadeira, mas para quem o tempo e a desilusão não se tinham ainda acumulado nas almas secas, prontas a serem incendiadas. Para os pensadores da cidade, o impulso em direcção a Nítria foi sempre irresistível, provavelmente por não encontrarem Deus a morar aí, mas porque, na solidão, ouviam com maior certeza o mundo vivo que tinham levado com eles (in «Os Sete Pilares da Sabedoria», Publicações Europa-América, 2004, pp. 33-34 e 38-39).


(1) A metáfora da oscilação «de assimptota» teve origem na conversa com um amigo que me disse que tinha aplicado, por engano, o termo «assimptota» para designar as curvas da hipérbole.

Continua