sábado, 6 de setembro de 2025

“Nós éramos ainda escolásticos nos séculos XVI e XVII!”

Escrito por Sampaio Bruno






«Passámos em frente da Igreja de S. Domingos com a sua cruz mais alta do que os prédios pombalinos do Rossio. Que mundo de recordações!... Uma multidão agitada e apressada comprime-se no largo passeio, entregue a preocupações urgentes e imediatas. A entrevista está longe de findar, pois quero debater ainda com Álvaro Ribeiro alguns pontos importantes. Chegámos e eu pergunto: 

- Entramos?

Vamos instalar-nos numa mesa do fundo, por sinal a mesma onde Fernando Pessoa teve uma das suas tertúlias e onde Pascoais e Leonardo Coimbra o iam procurar, quando vinham a Lisboa. Sentamo-nos. E eu desfecho, logo a seguir:

- E a renovação do tomismo?

- Do tomismo, ou da Escolástica?

- Do tomismo, repito.

- É um engano. Efectivamente, o magistério eclesiástico impõe aos professores dos seminários a obrigação de ensinar o tomismo e a obra de S. Tomás, que os clérigos se esforçarão por transmitir aos leigos. Mas o tomismo é uma filosofia do século XIII e da Europa Central muito diferente do nosso aristotelismo arábico e judeu -, que por isso mesmo, não pode ser assimilado pelos pensadores do nosso tempo e do nosso país.

Mando vir dois cafés, enquanto ao nosso lado continua a zumbir o eterno tema, o futebol. E Álvaro Ribeiro prossegue:

- Que acontece, então? Há uns intérpretes que se dedicam a mostrar a concordância de S. Tomás com uma filosofia perene, que vai de Aristóteles a Heidegger. Em vez de citar os filósofos que produziram as doutrinas, cita-se a sua tradução tomista, se possível em latim. É uma questão de fontes ou de citações. Tomista é, em suma, aquele que cita S. Tomás de Aquino.

- Em Portugal...

- Em Portugal nem sequer há tábuas de concordância. O nosso tomismo é franco-belga, um tomismo vergado ao preconceito da razão pura, mais próprio para cartesianos do que para aristotélicos, enfim, um tomismo sem filiação em Santo Alberto Magno. Não houve até agora um sacerdote ilustre que se desse ao trabalho de criticar, interpretar e traduzir, do ponto de vista tomista, a filosofia portuguesa, de Pedro Hispano a Leonardo Coimbra. Tal acontecerá, porém, dentro de alguns anos, a julgar por certos sintomas de interesse que não enganam.

- Sim, tenho lido alguns - bem raros, já sei - artigos de pensadores católicos em que começa a notar-se a referência à filosofia portuguesa, embora sobretudo com carácter histórico...

- Não há dúvida. Mas teria interesse e seria oportuna a publicação de um livro que fosse para hoje o que foi para 1924 a tão discutida obra de D. Manuel Gonçalves Cerejeira, "A Igreja e o Pensamento Contemporâneo". A apologética católica tem hoje aspectos muito diferentes em todos os países do mundo, mas em Portugal deram-se acontecimentos culturais que obrigam a uma revisão da doutrina. Depois do positivismo de Augusto Comte e dos seus sequazes franceses, divulgou-se entre nós o positivismo de Kant, Feuerbach e Marx, que alguns estudantes julgam ser materialismo dialéctico, e divulgou-se também o positivismo alemão de Husserl, mera teoria da descrição dos efeitos, com as suas consequências existencialistas. Três formas de positivismo em referência às quais teve de reagir a filosofia portuguesa. Haverá um sacerdote português, suficientemente culto, que possa escrever o livro da resposta à inquietação das novas gerações? Um livro que resolva enfim os problemas da nossa apologética? Um livro intitulado "À Igreja Católica pela Filosofia Portuguesa"?...».

Entrevista de António Quadros a Álvaro Ribeiro («O Testemunho de Álvaro Ribeiro»).



 


«Realmente os trabalhos de Averróis mal poderiam servir para guiar os Escolásticos na compreensão da Filosofia Aristotélica, visto que ele não sabia o grego e se servira de versões latinas, ou mais verosimilmente, siríacas. A sua opinião acerca da unidade do entendimento foi condenada por Leão X.

(...) A respeito dos trabalhos importantes de Alberto o Grande, sobre Aristóteles, há uma consideração, que, per si, bastaria a mostrar a insuficiência dos seus trabalhos. Duvida-se se conhecia o grego. Além disso não se libertou das subtilezas e questiúnculas inumeráveis dos comentadores árabes.

S. Tomás não conhecia a língua grega. Conseguiu, porém, que um homem douto fizesse uma tradução; mas nem se sabe, ao certo, o nome do tradutor, nem o tempo em que a tradução foi feita. Portanto, estes comentários de Aristóteles não se podem dizer feitos sobre o original grego. A própria versão, feita por autor incerto, embora douto, não merece também plena e inteira confiança.»

Lopes Praça («História da Filosofia em Portugal»).

 

«Destituídos de legitimação filosófica, o liberalismo e o romantismo não poderiam sobreviver. Em 1870, pela propagação do positivismo em filosofia, do naturalismo em arte e do socialismo em política, é dado incremento ao maior factor de desnacionalização cultural, usando dos processos literários e dos métodos jornalísticos mais pertinentes para lançar a injúria sobre a Monarquia, o ridículo sobre a Tradição e o descrédito sobre a Pátria. Tais processos e tais métodos continuam ainda a ser enaltecidos por quantos elogiam nos Conferencistas do Casino, nos professores do Curso Superior de Letras ou nos Vencidos da Vida os nossos melhores agentes de europeização ou internacionalização.

Em plena vigência de confusão doutrinal, distingue-se a atitude singular de Sampaio Bruno que estabelece a luta em duas frentes. Combate a esquerda hegelina (Strauss, Feuerbach, Bruno Bach, Stirner, Proudhon, Marx) representada entre nós pelos escritores que realizaram as conferências do Casino, como também combate a direita positivista (Augusto Comte, Pierre Laffitte, Émile Littré) representada pelos escritores brasileiros e seus leitores portugueses. A obra de Sampaio Bruno, onde pela primeira vez se pensa "a filosofia da história portuguesa", vale contudo pela interpretação messiânica de "A Ideia de Deus".

Excluindo a "Renascença Portuguesa", que em filosofia, em literatura e até em política se propôs invocar o pensamento nacional, até atingir o máximo expoente no livro A Arte de Ser Português, escrito em momento de exaltação patriótica por Teixeira de Pascoes, todos os outros movimentos pedagógicos, assentando na história e procedendo à revisão do passado, preconizaram a importação, assimilação e divulgação de doutrinas estrangeiras, com seus nomes prestigiosos e prestigiados. Lançando globalmente o ridículo sobre aqueles que resistiam pela crítica de linhas clássicas e considerando-os ignorantes, atrasados ou estúpidos, os ensaístas obtiveram fácil aceitação entre estudiosos sem nitidez de convicções porque educados sem suficiente disciplina trivial e sem firmeza da doutrina de Aristóteles.

(...) O problema da cultura portuguesa encontrará solução no regresso à disciplina de Aristóteles. Fácil é ensinar a história da filosofia em termos de contínua refutação de Aristóteles ao longo das idades antiga, média e contemporânea, e concluir pela afirmação de que o sistema aristotélico, de vigência precária, não é digno da atenção que lhe preste quem deseje aproveitar, para estudos mais úteis, o seu limitado tempo. Muito tem sido dito, efectivamente, para conseguir que os estudantes desprezem quanto possível os escritos aristotélicos. Quem se aproximar, porém, de tais livros quase proibidos e os ler cuidadosamente ficará surpreendido com a descoberta do núcleo perene do pensamento vivo da nossa civilização.»

Álvaro Ribeiro («Liceu Aristotélico»).

«A Escola Aristotélica e as que lhe sucederam até ao renascimento das letras passam hoje entregues ao esquecimento como inúteis, absurdas e estéreis. Sobretudo em ciências naturais o esquecimento é quase completo. Não pensamos do mesmo modo.

É certo que os meios de observação de que Aristóteles dispunha eram poucos, e os instrumentos de análise, que existiam, desajudados da arte; no entretanto não se pode dizer que ele descurava a observação. As suas próprias palavras protestam contra tal asserção. As escolas que lhe sucederam foram mais descuidadas. Mil circunstâncias concorreram para isso. Quando melhores dias raiaram para a ciência olvidou-se o passado. Ingratidão injusta e nociva. Como diz Frederico Morin: “A teoria esboçada por Aristóteles parte de dados mal analisados, é completamente inexacta, e até deve à priori parecer absurda; mas liga-se ao que há de mais íntimo e mais constitutivo na razão; mas é na essência idêntica à grande teoria da matéria e da forma, na qual o pensamento humano viveu durante toda a antiguidade e durante toda a meia idade. Quem não compreende a teoria peripatética do movimento nada pode compreender do processo especial segundo o qual a humanidade concebeu, durante 20 séculos os seres finitos e o ser absoluto. Por conseguinte, as leis do desenvolvimento da razão humana ficarão para ele um mistério impenetrável”.»

Lopes Praça («História da Filosofia em Portugal»).

 

«Ante o problema de assimilar o método, a doutrina e os princípios de S. Tomás de Aquino, nacionalizando a expressão e o pensamento do Doutor Angélico, logo surgiram os elementos historicistas, ou historiográficos, para sobre eles incidir a primeira reflexão. Se considerarmos a obra de S. Tomás de Aquino, escrita e ensinada em pleno século XIII, como o ponto mais alto da Escolástica, teremos de observar nos séculos seguintes uma vertente ao longo da qual se descreve uma desactualização. Variam os historiadores quanto ao critério de determinar esse período de decadência da Escolástica. Alguns protelam o planalto de referência até à data de 1635; mas, concedida tão benigna moratória, teremos de admitir que entre a publicação do Discurso do Método e a da encíclica Aeterni Patris (1879) não foi entre nós brilhante, nem fecundo, o trabalho sério de comentar a Suma Teológica.

Tema controvertido, sobre o qual não incidiu a última e luminosa palavra, é o do tomismo explícito e implícito nas obras dos escolásticos portugueses. Deve-se ao Padre João Ferreira, O. F. M., o haver, por amor à verdade, demonstrado que Pedro Hispano não foi nem poderia ter sido tomista, e ainda mostrado que nos primeiros séculos da nacionalidade não foi preponderante nem predominante a lição de S. Tomás de Aquino. Neotomistas e paleotomistas não descuram, porém, de acumular argumentos bibliográficos e paleográficos da tese mais favorável à escola que pretendem exaltar, ainda que esqueçam, muitas vezes, a simples verdade de que "história da filosofia ainda não é filosofia". Aliás, nenhuma acta disciplinar prescreve a equação entre escolástica e tomismo, equação que nem histórica nem doutrinalmente pode ser admitida pelos pensadores católicos. Escolástica tanto é a obra de Santo Agostinho, como a de Santo Anselmo, como a de Escoto ou de Suárez, entre as quais o crente pode ainda hoje escolher para sua direcção a que mais lhe agradar.

Tema igualmente controvertido é o da posição da filosofia de Aristóteles na escolástica medieval e moderna. Este ponto admite, porém, uma indagação subtil, difícil e complexa, visto que o aristotelismo dos primeiros séculos medievais está longe de atingir o brilho, a força e a extensão que verificamos na obra de Santo Alberto Magno, na de Pedro da Fonseca e na de Francisco Suárez.

A cultura portuguesa, ou, se quisermos, a cultura do pensamento português, foi constantemente estruturada e dominada pelo aristotelismo. Ninguém porá em dúvida que tal aconteceu desde a fundação do Colégio das Artes até à reforma pombalina da Universidade de Coimbra. A defesa de Aristóteles, efectuada pelos professores portugueses nos séculos XVI, XVII e XVIII, assume na nossa argumentação o valor mais importante. É longa a lista dos nossos aristotélicos. Assim anotou Fidelino de Figueiredo no seu estudo Para a História da Philosophia em Portugal:

"Se deixarmos de lado os sermões de Santo António de Lisboa (1195-1231), que são mais do domínio da apologética do que do da filosofia, tomaremos o Papa João XXI, o famoso médico bracarense, Pedro Hispano ou Pedro Julião (?-1277) como o nosso primeiro pensador, sob a forma de vulgarizador do Organon de Aristóteles, com a suas Summulae Logicales, que largamente circularam e que Dante lembrou no seu conhecido terceto do Canto XII do seu Paraíso:


Ugo de San Vittore, é qui com elli

E Pietro Mangiator, e Pietro Hispano

Le quel giá luce in dodeci libelli.

 

Dante e Beatriz perante S. Tomás de Aquino, Alberto Magno, Pedro Lombardo e Siger de Brabante na esfera solar (fresco de Philipp Veit).

E dele partiu a corrente fiel e ortodoxa do estagirismo, com representantes de valor como António de Gouvêa, campeão de Aristóteles em Paris, Diogo de Contreiras, Luiz de Lemos, Albuquerque, Belliago, Margalho, Fr. Gaspar do Casal, Padre Baltazar Álvares, Egídio Romano, Fr. Vicente da Ponte, Soares Vilhegas, Fr. João de Santo Thomaz, Fr. Jerónimo de Paiva e outros que constituem um denodado exército de comentadores, exegetas e compendiadores, que no fim do século XVI cobra alentos novos com a plêiade brilhante de dissertadores de certa originalidade e serôdios defensores da escolástica, como D. Jerónimo Osório, Pedro da Fonseca, talvez o mais poderoso dos nossos pensadores, Manuel de Góis, Sebastião do Couto e Silvestre Aranha, e com a influência escolar e pessoal do insigne Padre Francisco Suárez (1548-1617), que em Coimbra regeu de 1597 a 1616".

A persistência do aristotelismo na cultura portuguesa foi alvo de reparos irónicos de Sampaio Bruno que, em A Ideia de Deus, anota igualmente a tardia entrada do pensamento de Descartes em Portugal, sem, contudo, descrever comparativamente as vicissitudes do cartesianismo nos outros países e, nomeadamente, em França. O aristotelismo perdurou no nosso ensino público até à reforma pombalina da Universidade de Coimbra. Proscritos pelo Marquês de Pombal, alguns dos nossos melhores jesuítas portugueses foram ensinar nos institutos filosóficos da Itália, fortalecendo pela tradição aristotélica o movimento que, no século XIX, haveria de culminar na palavra de ordem de Leão XIII, no regresso à Escolástica.

Convém, todavia, respeitar a verdade averiguada em estudos históricos, e confessar que na Europa Central o pensamento de Aristóteles perdera vigência doutrinal e didáctica, suplantado pelo que foi convencionado chamar filosofia moderna. Não podia o regresso à Escolástica, preconizado por Leão XIII, ser um regresso à filosofia de Aristóteles. Outro sistema científico adquirira prestígio, ou fascínio, perante os pensadores desejosos de ordem mas também de progresso: o sistema de Augusto Comte. Conciliar o velho tomismo com o novo positivismo seria a tarefa didáctica mais urgente, e mais oportuna, depois de proclamada a encíclica Aeterni Patris. Cumpriu conscienciosamente a missão de que foi incumbido o cardeal Mercier, cujos livros, escritos não em latim mas em francês, serviram durante muitos anos no Instituto Filosófico de Lovaina e no Instituto Católico de Paris.»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).

 

«A metafísica é a ciência do absoluto. Como tal, consoante a teologia, ela não tem variabilidade. É ou não é. Ou é verdade ou é erro. Se é verdade, não progride, porque é. Se é erro, não progride, porque não é.»

Sampaio Bruno («A Ideia de Deus»).

 

«Anotou Sampaio Bruno que uma das características da cultura portuguesa é ser aristotélica, mas o aristotelismo não contém uma teodiceia, nem resolve satisfatoriamente o problema do mal. Será, portanto, lícito admitir que no povo português demorou sempre a esperança pelo advento do Messias e a confiança nos respectivos profetas. Durante longa meditação sobre documentos selados e cifrados, desde os cancioneiros medievais até aos contemporâneos folhetos de cordel, o historiador português foi perseguindo os vestígios de uma doutrina religiosa que, por demasiado transcendente, seria contrária à cristologia ortodoxa da Igreja Católica. A vinda de "um novo Cristo", do Paracleto anunciado no Evangelho de S. João, é para o autor de A Ideia de Deus, artigo de fé a interpretar à luz da ciência contemporânea. Na intenção de abonar a tese acreditada, socorre-se Sampaio Bruno de imensa documentação histórica, desde o Evangelho Eterno, pregado pelo franciscano Joaquim de Floris, até ao messianismo de Wronski, Ballanche e Joséphin Péladan. Entende-se, portanto, a solidariedade do messianismo com a teoria da existência de Deus. Se a existência é o ser no tempo e no espaço, pelo que se distingue da essência metafísica, o problema de Deus apela pelo problema de Cristo, ou seja, pelo problema da filosofia cristã. É de notar que, em livro que teve o seu período de celebridade, o Padre Del Prado, tomista convicto, afirmou que a distinção real entre a essência e a existência é a verdade fundamental da filosofia cristã. A filosofia portuguesa, de estrutura aristotélica, admite a transcensão, pelo que se opõe tanto ao existencialismo condenado pela encíclica Humani Generis, como a qualquer sistema de dedução cronológica, francês, inglês ou alemão.»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).




«O pensamento de Bruno não é uma teologia, nem uma teodiceia, dissemos, mas em todo o rigor do termo, uma teurgia.

É possível uma teologia ali e onde um conhecimento de Deus se estrutura luminosamente com toda a clara demonstração da sua existência e das relações entre Deus, o Universo e o homem. É possível uma teodiceia ali e onde a contemplação ou a compreensão da perfeição total divina, permite ao filósofo uma explicação do mal do mundo como resultado da visão parcial da existência. Em Bruno não temos uma coisa nem outra.

Não temos um Deus perfeito, como verdade, e não podemos consequentemente ter dele e dos seus atributos qualquer visão estável. Não temos um Deus perfeito, como amor e bondade plenos, eficazes, e não podemos encontrar então justificação alguma para o mal do homem a partir do divino modelo de eficaz amor e compreensão. E eis como não podemos ter uma teologia em Bruno, enquanto concepção definida e acabada, eis como, também, não podemos ter nem uma explicação ético-metafísica do mal do mundo, nem a serena e activa contemplação de suas dolorosas aparências.

A queda não é estado aleatório de uma parte da criação divina, é substancial ao universo. E, portanto, a redenção requerida é total e dele carece mesmo Deus “para cujo resgate – como interpreta Leonardo Coimbra – em todo o Universo trabalham as consciências, em amorosa e sábia cooperação”.»

José Marinho («Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo»).

 

«Ao ponto de vista do ensino francês se deve aquela opinião corrente, que se apoia na oposição polémica de Descartes a Aristóteles. É uma tradição escolar que substitui a tradição escolástica. A lógica e metafísica de Aristóteles, princípio e fim de um sistema filosófico, são fundamentalmente criticadas por incompatíveis com o sistema da física moderna; de aí a inverter a posição do problema filosófico, a pedir à física moderna uma lógica e uma metafísica, a fundamentar na epistemologia o novo intelectualismo, vai o passo rápido e fácil do ensino francês.

Os escritores de formação universitária que ultimamente têm abordado, entre nós, assuntos de carácter filosófico, seguem o ensino estrangeiro: manifestam geral concordância em atribuir à matemática e à física um predomínio intelectual que leva à adulteração da lógica e à repulsão da metafísica; mas, assim, acompanham tardiamente um movimento caduco.

E por daquele ponto de vista terem sido julgadas as vicissitudes da filosofia em Portugal, admite-se inadvertidamente que a persistência na silogística escolástica e a resistência passiva ao cartesianismo, longe de parecerem um enigma cuja decifração seria de proveito, dêem pretexto a juízos pessimistas, e até injuriosos, acerca da capacidade especulativa dos portugueses.

Afastados da Europa Central, por situação geográfica e por missão histórica, desatentos à aurora e ao crepúsculo da filosofia “moderna”, (da Renascença ao Iluminismo), talvez os portugueses preservassem dessa maneira uma qualidade oculta mas original; assim, o que na linha internacional parece marcha retardatária, talvez possa ser interpretado como fidelidade nobilíssima, se não como astúcia antevisora.

(...) Agora, a problemática filosófica, resultada da crítica aos erros dominantes nos três séculos passados, oferece ao espírito português a possibilidade de verificar a compatibilidade do aristotelismo dos coimbrões com o mais elevado e o mais recente voo do pensamento especulativo.»

Álvaro Ribeiro («O Problema da Filosofia Portuguesa»). Ver aqui




 

“Nós éramos ainda escolásticos nos séculos XVI e XVII!”


Nunca os portugueses mostraram queda para as altas especulações filosóficas; e a metafísica à nossa gente pareceu sempre ludíbrio fátuo de cerebrações senão já de raiz mórbidas, perturbadas, contudo, na normalidade clara duma pachorrenta irrigação sadia. Não impediu esta originária indisposição, estrutural, de natureza e essência, que, à laia do demais, como dever de ofício e encargo de profissão, nas aulas públicas, de todo o tempo, se lesse, entre nós, de filosofia e que até pretendesse o engenho pátrio, de onde a onde, aqui ou ali, alçapremar-se à região vaga das cogitações metafísicas, que, em regra, uma invencível, preguiçosa antipatia formalmente sentenciara e categoricamente condenara. Os mestres e pedagogos, desvairados do engano subjectivo da semi-reflexão, que empresta confiança à sua vítima e lhe dá uma característica suficiência, pavonearam-se de seus supostos méritos e foi-lhes, nas crises da irrespeitosa dúvida das intermitentes dissidências, motivo de inexplicável assombro e de tão sincera quão cândida indignação o facto inverosímil de que surgissem autónomos reparos contra a decadência da mente culta lusitana, a qual em filosofia, então, se asseverava convicta de rastejar prostrada.

(...) No domínio da positividade ignorar Galileu e Newton; na zona da racionalidade desconhecer Descartes e Bacon: isto equivale, para um público letrado, manter-se na penumbra mediévica, a não provar do pão espiritual do método novo, a iluminar-se dos sobressaltos dos clarões bruxuleantes, a não se banhar na luz tranquila mas crescente do espírito moderno. Por Verney apuramos de como Descartes era, em 1746 (em 1746!) nome morto para portugueses; e os adversários de Verney, com superior desdém é que se dignam memorar Descartes, que, à data, consideram já como findo e extinto, mentalmente morto e enterrado, no justo e liquidador indiferentismo por seu quimérico desvario.

Nas Reflexões Apologéticas, contra o Verdadeiro Método de Estudar declaradas expendidas para desagravo dos portugueses pelo P. Frei Arsénio da Piedade, religioso da província dos capuchos, Verney recebe esta reprimenda com respeito ao seu prezado Descartes: «Por não tornar mais a falar em Cartésio, nem em filósofos que tenham parentesco com ele, digo que o seu sistema há muitos séculos que morreu; e os espanhóis, que têm o juízo em seu lugar, proibiram os livros dele e os mandaram sepultar na cova do desprezo, por dizer coisas boas para encaixar na cabeça de rapazes; quem agora lhe quer desenterrar os ossos, que os venere. Melhor que Cartésio foi Platão, a quem muito se encostou Santo Agostinho, e bem celebrado foi Epicuro, Anaxágoras, Empédocles e outros, juntos com os químicos; e, contudo, veio-se a alcançar que o sistema de Aristóteles concordava mais com os dogmas da religião.»

(...) em 1735 (em 1735!) em Portugal o nome de Bacon merecia tanto ou tão pouco conceito que totalmente se fez esquecer a versão e impressão de suas obras. De tal sorte que Jacob de Castro Sarmento não teve mais resposta sobre este particular e ficou não só perdendo todo o seu trabalho mas até lhes restou por embolsar a despesa que havia feito já com ele. Sarmento o confessa em outra carta, do ano de 1749 essa, endereçada ao mesmo Dr. João Mendes Sacheti e de que o citado Compêndio Histórico transcreve este trecho: «No que respeita à impressão de Bacon, estou sumamente queixoso das ordens que o conde da Ericeira me deu da parte de Sua Majestade, metendo-me em trabalho tão grande e pondo-me na despesa e desembolso que fiquei perdendo.»

Não lograra Jacob de Castro Sarmento seu propósito; e baldas foram suas admoestações a seus surdos e obcecados conterrâneos. Infrutuosamente, aos portugueses, Jacob de Castro Sarmento bradara: «No sistema Aristotélico (fundado na imaginação, em lugar da Natureza) se não acha outra coisa que palavras vãs e vazias; e depois das suas doutrinas, todas, muito bem estudadas, e de examinadas tão renhidas e perpétuas disputas, se pode dizer com certeza delas:


Dico ego, tu dicis, sed denique dixit et ille;

Dictaque post toties, nil nisi dicta vides.» 


Infrutuosamente. Os portugueses não se resignavam a abandonar o seu aristotelismo arábico; e do grande observador e experimentalista grego, por uma das mais incongruentas aberrações do espírito humano, obstinavam-se em cata do patrocínio para os delírios verbais da sua mania raciocinante. A Escolástica era, nesta terra sáfara, a irmã bem-amada do jesuitismo e da inquisição. Coimbra perpetuava o comentário aristotélico com ufano louvor e o jesuíta Pedro da Fonseca, da Cortiçada, resultava cognominado o «Aristóteles conimbricense».

Apesar das mitigações que, a todo o instante do comento dos estrangeiros juízos acerca dos nossos nacionais, um zeloso amor-pátrio insinua ao Sr. Lopes Praça, este distinto escritor não pode menos de convir em que nos fastos da filosofia racional o nosso país ocupa um lugar muito secundário.

A primeira grande e séria história da filosofia de que uma erudição moderna haja de fazer menção é a de Brucker, escrita em latim, a Historia critica philosophiae a mundi incunabulis, etc. Sua segunda edição, aumentada, apareceu em Leipsig (Heredes Weidemanni et Reichii) em 1767. Este livro não se sai com menos de seis enormes volumes em quarto, e contém uma erudição, em regra geral, seguríssima, principalmente pelo que concerne à bibliografia. É visível que a Brucker o obsidia o ardor de não omitir coisa alguma e por isso Jules Simon o acusa de confundir as doutrinas religiosas com as doutrinas filosóficas, perdendo-se em questões que lhe não cabem na alçada. De facto, é típico que Brucker chegue a consagrar um capítulo à filosofia antediluviana!

Pois este mão-largas, para a filosofia portuguesa volve-se em unhas-de-fome. Dos Comentários do Colégio Conimbricense se ocupa ele considerando-os como um apêndice dos filósofos espanhóis. «A estes filósofos, diz, devemos acrescentar o Colégio de Coimbra, nascido dos jesuítas portugueses. Usando do nome destes, publicou Manuel de Góis, da Companhia de Jesus, os seus comentários à Física de Aristóteles, aos livros do Céu, dos Meteoros, da Ética, aos livros chamados Parva Naturalia, aos da Geração e Corrupção e aos da Alma. A estes acresceram os comentários à Lógica de Aristóteles por Sebastião do Couto e os Problemas que se resolvem nos comentários do Colégio Conimbricense à Física de Aristóteles. Nestes comentários Conimbricenses louvarás com razão a erudição peripatética e sentirás pesar por a veres desfigurada com a penetração e subtilezas escolásticas








A este juízo, que parece sóbrio sim mas acomodado e exacto, desabridamente o qualifica o Sr. Lopes Praça de elaborado em «termos acanhados e insulsos». De Brucker recorre para Barthélemy-Saint-Hilaire, a quem com melhor acerto, proclama como o escritor mais autorizado para julgar quaisquer trabalhos sobre filosofia aristotélica. Por essa razão, resolve-se a traduzir alguns períodos de um magnífico artigo do tradutor contemporâneo de Aristóteles e assevera, com equitativo espírito, ser esse artigo recomendável pela exactidão, profundeza e imparcialidade.

Assim é, com efeito, mas as palavras justiceiras e corteses de Barthélemy-Saint-Hilaire são a corroboração de tudo quanto de genérico e essencial ficou exarado nas linhas que precedem.

Barthélemy-Saint-Hilaire, na transcrição e versão do Sr. Lopes Praça, começa por dizer: «As obras dos coimbrões não têm nada de profundamente original para o pensamento filosófico; mas é essa mesma ausência de originalidade que lhes dá o carácter que lhes é próprio. São unicamente fiéis à tradição peripatética. A necessidade de inovar, que, no fim do século XV, agita os espíritos, é-lhes completamente antipática. Defendem Aristóteles e a Igreja com igual ardor; e o peripatetismo não lhes é menos caro que a doutrina católica. Limitam-se, portanto, em geral, a simples comentários; e, ainda quando não adoptam esta forma, é sempre o pensamento do mestre que reproduzem. Mas reproduzem-no com os desenvolvimentos que a Escolástica lhe tinha dado. São ainda nisto os representantes fidelíssimos da tradição, de que eles não ousam desviar-se por forma nenhuma e que os liga, sobretudo, a S. Tomás.»

Condensa o seu parecer Barthélemy-Saint-Hilaire assertando, dos coimbrões, que eles «não acrescentam muito, se quiserem, aos trabalhos anteriores; mas completam-os, aproximando-os uns dos outros e deixando-nos ver o seu último resultado.»

Pela erudição, pelo sincretismo esmiuçador, confere aos coimbrões, em filosofia, Barthélemy-Saint-Hilaire um lugar assaz considerável. Deles escreve ainda: «Sustentam a autoridade de Aristóteles com trabalhos muito estimáveis, se não devo dizer muito novos, numa época em que esta autoridade é ameaçada de todas as partes. Instituem os mais laboriosos estudos sobre esta grande doutrina numa época em que ela está desacreditada, e procuram conservar em todo o seu vigor hábitos que não estão no espírito daquele tempo. São escolásticos nos séculos XVI e XVII.» Eis aí a grande calamidade. Nós éramos ainda escolásticos nos séculos XVI e XVII!

Barthélemy-Saint-Hilaire busca, benevolamente, atenuar a responsabilidade da teimosa rotina dos nossos mestres, ponderando que o papel de inovadores pertencia, tão-só, aos espíritos livres que, como Ramus, Bacon e Descartes, procuraram caminhos novos em ciência e em filosofia. Mas o facto é que, entre nós, não surgiu sombra de inovador; e, pelo contrário, contra o serôdio transporte para aqui da estrangeira inovação o enquistado nacionalismo, em desagravo dos portugueses, reagia quanto pôde e recalcitrou com unhas e dentes.


Porém, Barthélemy-Saint-Hilaire, impelido da freima da verdade, acaba por frisar nitidamente o desserviço dos coimbrões. «Os Coimbrões, diz ele, fizeram rejuvenescer quanto puderam a Escolástica, fundamentada sobre Aristóteles; não podiam ir além. Esta reserva teve, certamente, o seu lado censurável; e, prolongada demasiadamente, pôde ter no século XVIII o seu lado algum tanto ridículo.»

In cauda venenum. Após as amabilidades polidas, a fulminante marretada. Regista Barthélemy-Saint-Hilaire que Brucker lhe parece justo quando pensa que a história completa da Escolástica deveria compreender os Coimbrões. Eles nada inventaram; e o juízo de Brucker é um juízo exacto. Assim, aos olhos de Barthélemy-Saint-Hilaire, ela «deve demonstrar e circunscrever, a um tempo, a importância dos seus trabalhos».

Esta penúria lusitana em matéria filosófica foi (é ainda) atribuída ao efeito deprimente duma educação perversamente adequada a embrutecer as gerações. Deste pavoroso crime ter-se-iam tornado réus os jesuítas; e é esse tema tenebroso o que constitui a matéria da célebre Dedução Cronológica e do não menos célebre Compêndio Histórico.

Sem embargo, os jesuítas foram expulsos do alto ensino por Pombal, e a sua sociedade acabou por ser dissolvida e exterminada pelo papa Ganganelli. E, contudo, a esterilidade filosófica portuguesa continuou como até ali.

Mesmo, os espíritos mais vivazes, desprendidos, liberais, de personalidade crítica e iniciativa mental, obscurecem e esmorecem desde que sentem que sobre eles se projecta a vasta e solene sombra da metafísica. Com o novo regímen político e social não coincide um novo regímen filosófico. Os ânimos afrouxam e as inteligências inquietam-se.

(In Sampaio Bruno, A Ideia de Deus, Lello & Irmãos Editores, Porto, 1987, pp. 1, 11, 15-20).



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