Escrito por Édouard Jeauneau
«O
prestígio intelectual de Pio XII, a crise mental subsequente à II Guerra, que
atirou com a Europa para níveis de busca inicial, a consciência de que o corpo
da Igreja era obviamente visado por um enorme grupo de ideologias dissolutoras
da fé, levaram os católicos avisados a um aprofundamento do magistério católico
e a uma renovação dos interesses tomísticos.
Conjectura-se que foi neste quadro, para
mais enquadrado por um espírito nacionalista, e por uma perspectiva capaz de
futurar os males da influência marxista, que jovens universitários fundaram, em
Lisboa, no ano de 1950, o Centro de Estudos Escolásticos, ligado à Mocidade
Portuguesa, às actividades circum-escolares universitárias, e herdeiro das
experiências do grupo católico de juventude Ala
(1941-1942), génese do jornal universitário Encontro (1956) e com ligações ao grupo doutrinal da revista Aléo (1941-1945), que, no entanto, teve
mais impacto no subsequente grupo monárquico e personalista da Cidade Nova.
O nome do Centro manifesta o propósito
dos componentes. O testemunho público desse propósito é a revista Filosofia (1954-1961), que surgiu,
conservando um fundo escolástico, tanto quanto possível tomista e agostiniano,
orientado para o neotomismo.
A revista, constituindo importante
repositório de historiografia filosófica, ressentiu-se da carência de um
filósofo puro, mais atento à livre especulação (mesmo adentro do tomismo), do
que à descrição histórica. Vários foram os colaboradores que tentaram, na
perspectiva da história, levar mais longe a crítica intrínseca, no sentido de
uma passagem da perspectiva histórica à formulação filosófica.
Na publicação, as linhas augustinista e
tomista conviveram. A par dos que preferiam o sentido tomista, havia os que
abriam abordagens à fenomenologia e ao existencialismo, como Gustavo de Fraga e
Alexandre Fradique Morujão; enquanto outros, como António Alberto de Andrade e
Francisco da Gama Caeiro, iniciavam sérias investigações à filosofia dos
séculos XVII e XVIII, tendo comprovado a seriedade dessas investigações em
obras posteriores de maior tomo, atinentes aos temas e aos problemas da
filosofia escolástica e da filosofia portuguesa.
Mesmo antes do ano tomista (1955), a
revista já publicara assinaláveis abordagens sectoriais à problemática do
tomismo. Citamos, por nos parecerem modelares, as constituições de António
Barata Tavares, da Essência e da
Existência da Filosofia Tomista (1954), e a Suma Teológica de S. Tomás de Aquino (1958); as análises de Manuel
Saldida à vista das relações do tomismo e do cartesianismo; de José Manuel
Guerreiro, S. Tomás de Aquino e as Lutas
no seu Tempo (1955); e de Maria Luísa Guerra, Panorama Actual do Neotomismo (1954).
A historiografia do tomismo português
foi interesse maior de António Alberto de Andrade, mediante dois estudos: A Sorte de S. Tomás de Aquino na Filosofia
Portuguesa, e S. Tomás de Aquino no
Período Áureo da Filosofia Portuguesa.
No primeiro estudo, Andrade considerou
dois grandes períodos: até Pombal, e depois, o advento do neotomismo, seguindo
um tanto o esquema de Ferreira Deusdado, pese embora o facto de algumas
discordâncias, entre elas, a de não aceitar que os Cistercienses fossem de
Portugal a Paris, ouvir as lições de S. Tomás. A documentação comentada é de
molde a evidenciar maior actividade tomística nos Dominicanos do que noutras
Ordens, e a mostrar a decadência da filosofia perene depois de 1772, com
importantes sinais de recuperação na modernidade, mediante as obras de Alfredo
Pimenta e de João Ameal. A tese de uma demora maior na introdução do tomismo em
Portugal foi retomada pelo autor no segundo ensaio, em que sublinhou como, até
1280, o tomismo português teve menor significado em face da prevalência do
augustinismo. Mesmo os séculos XIV e XV mostrariam ainda pouco aprofundamento
tomista, embora no século XVI ele fosse notável, mediante actuação da Companhia
de Jesus e das actividades contra-reformistas.
Importa assinalar que o Centro de
Estudos Escolásticos se opunha também ao ideário da "filosofia
portuguesa", proposto em 1943 por Álvaro Ribeiro, na forma pelo qual
ressaltava da polémica na imprensa. Afinal, Álvaro Ribeiro retraía a fundação
da filosofia portuguesa para Sampaio Bruno, com um canal de desenvolvimento por
via Leonardo Coimbra, o que não era de todo simpático ao pensamento católico
integrista. Na verdade, o autor de A
Razão Animada reivindicava a presença activa das três escolásticas
peninsulares (hebraica, cristã e árabe), o que não era aceite pelos
escolásticos católicos, alguns dos quais mostraram dificuldade em admitir o
pensamento de Álvaro Ribeiro que, não obstante, chegou a colaborar na revista Filosofia, mas com uma prevenção redactorial,
aos leitores da mesma.
A redacção da revista mostrou-se obediente ao ensino ortodoxo da Igreja, testemunho do qual foi inserido mais de uma vez na publicação. Citam-se a transcrição do discurso de Pio XII ao IV Congresso Internacional Tomista (1955), sobre o tema "escolástica e ciência"; e, logo, a exposição de Honorato Rosa sobre as relações do magistério da Igreja com a Filosofia (1955). Não era à "filosofia portuguesa" que Honorato Rosa visava quando, numa correcta expressão crítica, afirmava que não se pode arrogar o título de filósofo cristão o que não respeita o tomismo, dado que a "filosofia portuguesa", se bem que não reivindique um tomismo como factor exclusivo e unicista, não se tem por completa sem o recurso às três tradições escolásticas hispânicas, em que o tomismo se inclui. O primado de Aristóteles, requerido pela chamada "filosofia portuguesa" teria de incluir o posterior recurso aos comentadores, isto é, a Maimónides, a Averróis e a Tomás. A revista possuía boas relações com centros escolásticos estrangeiros, o que se documenta na colaboração de autores de outros países, e de que nos apraz citar o contributo de José Abbá sobre o tomismo e o pensamento católico.»
Pinharanda Gomes («O Centro de Estudos Escolásticos», in «A Filosofia Tomista em Portugal)».
«Conhecidas as razões da tese de que o intelecto não é a alma que é a forma do nosso corpo nem uma parte dessa alma, mas algo separado segundo a substância, falta examinar as razões que os leva a dizer que o intelecto possível é único para todos os homens. Talvez afirmar isto em relação ao intelecto agente ainda fosse razoável, e muitos filósofos assim pensaram; de facto, não parece seguir-se nenhum inconveniente se se admitir que várias coisas são aperfeiçoadas por um único agente, como que à maneira de um único Sol que aperfeiçoa todas as potências visuais dos animais para verem, ainda que isto não seja conforme à intenção de Aristóteles, o qual, ao compará-lo a um lume, defendeu que o intelecto agente é qualquer coisa na alma. Por seu lado, Platão, ao defender um único intelecto separado, comparou-o ao Sol, conforme Temístio diz, porque há um único Sol mas muitas luzes difundidas pelo Sol que nos permitem ver. Contudo, seja qual for o estatuto do intelecto agente, dizer que o intelecto possível é único para todos os homens é absurdo por muitos motivos.»
São
Tomás de Aquino («A Unidade do Intelecto contra os Averroístas»).
«Boaventura leu Aristóteles. Cita-o abundantemente – já se contaram mais de mil citações – no seu Comentário das "Sentenças". Todavia, coloca Platão acima de Aristóteles. Se Aristóteles falou a linguagem da ciência, Platão, ao impor as Ideias, falou a linguagem da sabedoria. Mas alguém houve que fez melhor ainda. Foi Santo Agostinho, já que soube utilizar as duas linguagens, a da sabedoria e a da ciência.»
Édouard Jeauneau («A Filosofia Medieval»).
Vimos como a influência de Aristóteles
se afirma em Boaventura e na escola franscicana. Esta influência manifesta-se
de modo muito mais determinante entre os mestres dominicanos. Ainda, aqui,
contentar-nos-emos com examinar o pensamento dum só desses mestres, o mais
representativo de todos, S. Tomás de Aquino. Mas seria injustiça não assinalar
que um outro dominicano, antes de S. Tomás de Aquino já havia aberto as portas
à filosofia peripatética, SANTO ALBERTO MAGNO (1200 aprox.-1280). Mestre
Alberto foi, de resto, o primeiro a discernir, no seu auditório de Colónia, o
génio precoce de Tomás de Aquino.
É certo que Alberto Magno não levou a
cabo a perfeita síntese de todos os materiais que o seu infatigável labor
conseguiu reunir. Como diz Étienne Gilson. «Alberto lançou-se sobre o saber
greco-árabe com o alegre apetite dum colosso de bom humor... No seu caso era
como que uma manifestação de pantagruelismo...» Depois de termos constatado que
Alberto abriu as portas a Aristóteles, convém acrescentar igualmente que nem
por isso as fechou a muitas outras influências, no número das quais ocupam
lugar de destaque o neoplatonismo do Pseudo-Dionísio e dos árabes.
Tornar acessíveis aos latinos os
tesouros acumulados pelos filósofos gregos, árabes e judeus, tal foi o ideal
que Alberto diz ter-se proposto. Mas este grande leitor é também um observador.
Não deixa de completar ou de corrigir, através das suas experiências pessoais,
as informações que Aristóteles lhe fornece, particularmente em matéria de
zoologia. O gosto da observação e a predilecção pela experiência valeram a
Alberto a reputação de mestre em ciências ocultas. O Grande Alberto,[1]
que durante muito tempo circulou e de que fala Gérard de Nerval em La Main de Gloire, era uma compilação de
receitas mágicas.
A obra imensa de Alberto Magno
compreende vinte e um volumes in folio.
Não foi porventura estudada tanto quanto merece. Os historiadores do tomismo
adquiriram o hábito de a considerar como um esboço da síntese realizada por S.
Tomás de Aquino. Trata-se, sem dúvida, de uma perspectiva incompleta, visto que
o pensamento de Alberto Magno era portador de um número maior de germes do que
aqueles que o tomismo desenvolverá. Para além do tomismo, a influência de Santo
Alberto parece prolongar-se entre os místicos renanos. De qualquer modo, não se
engana quem considere que o mais belo título de glória de mestre Alberto
decorre de ter permitido e preparado a obra de Tomás de Aquino.
Abadia de Monte Cassino |
TOMÁS nasceu em 1224 ou 1225. Era filho
de Landolfo de Aquino, senhor de Roccasecca, no reino de Nápoles. A sua família
sonhava provavelmente que, um dia, ele haveria de cingir a mitra abacial do
rico mosteiro de Monte-Cassino. Em 1230, o jovem Tomás, com a idade de cinco
anos, é confiado ao abade desse mosteiro, o seu tio Sinnibaldi. É aí que o
futuro teólogo aprende os rudimentos da cultura. Em 1236 ou 1239, Tomás chega à
Faculdade de Artes da jovem Universidade de Nápoles, onde lhe deve ter sido
proporcionado um primeiro contacto com o aristotelismo. Mas, em 1243, ou 1244,
toma uma decisão que destrói os belos sonhos da família: veste o hábito
dominicano. Orientação decisiva: Tomás teria sido o que foi se tivesse seguido
o destino traçado pelos seus? Já não se estava no século de Santo Anselmo. E
para desempenhar um papel no mundo do pensamento as brancas vestes dos irmãos
pregadores era um trunfo mais seguro do que a cruz abacial. De 1248 a 1252,
Tomás de Aquino estuda em Colónia sob a direcção de Alberto Magno. Em 1252,
chega a Paris. Em 1257, ao mesmo tempo que S. Boaventura, é oficialmente
admitido entre os mestres em teologia da Universidade. Daí em diante, o ensino
será a sua única ocupação. Até 1259, é em Paris que a ele se dedica. De 1259 a
1269, acompanha a corte pontifícia a Itália. De 1269 a 1272, ensina de novo em Paris. Em 1272, regressa
a Nápoles. Morre em 7 de Março de 1274, quando se dirige ao Concílio de Lião.
A obra de Tomás de Aquino pode
dividir-se em cinco categorias de escritos: 1.º Comentários bíblicos; 2.º Comentários
filosóficos ou teológicos [sobre
as Sentenças do Lombardo (1254-1256),
os Opúsculos Teológicos de Boécio
(1257-1258), os Nomes Divinos do
Pseudo-Dionísio (1260), o Livro das Causas (1271-1272), sobre a
maior parte dos escritos de lógica, de física e de metafísica de Aristóteles
(1266-1274)]; 3.º Questões disputadas e
questões quodlibéticas; 4.º Opúsculos
sobre diversos assuntos, por exemplo, o De
Ente et Essentia (1250-1256), o De Aeternitate
Mundi (1270), etc.; 5.º duas Sumas:
Suma contra os Gentios (1259-1264) e Suma Teológica (1266-1274).
Seria pretensioso e vão estabelecer um
quadro dos diferentes escritos de S. Tomás. Todavia, a quem, impossibilitado de
ler tudo, anseie por entrar em contacto com este genial pensador, é de
aconselhar que abra a Suma contra os
Gentios ou a Suma Teológica. De
resto, esta última foi organizada, diz-nos o autor, na intenção dos
principiantes. Mas o leitor moderno não deixará de se surpreender com os
conhecimentos que S. Tomás pressupõe nos principiantes.
Os historiadores confessam que não é
fácil determinar, com uma perfeita precisão, onde reside a originalidade de S.
Tomás relativamente aos seus predecessores imediatos. Quando estes últimos
forem melhor conhecidos, poder-se-á com mais exactidão perceber o que a síntese
tomista deve não apenas a Alberto Magno mas a Boaventura, a Alexandre de Halès
e a esse Guilherme de Auvergne (mortos em 1249), tão próximo ainda dos homens
do século XII e tão francamente aberto a todos os grandes problemas do século
novo. Contudo, não é de pôr em dúvida que, aos olhos dos seus contemporâneos,
Tomás tenha feito figura de inovador. Guilherme de Tocco, seu biógrafo,
escreve, com efeito: «O irmão Tomás punha no seu curso problemas novos,
descobria novos métodos, empregava novos elementos de prova.» Dificilmente se
poderia traduzir com maior insistência a novidade que, no seu tempo,
representou o ensino de Tomás de Aquino.
Numa história de filosofia medieval, S.
Tomás ocupa incontestavelmente um lugar de primeiro plano. Na realidade, se é
certo que compôs substanciais comentários sobre Aristóteles e uma série de
opúsculos filosóficos, é por vocação e por profissão, primeiramente e
sobretudo, um teólogo. Mesmo a Suma
contra os Gentios, destinada a homens que não reconhecem a autoridade das
Escrituras cristãs, é uma obra teológica; foi absusivamente que por vezes lhe
chamaram «suma filosófica». Mas, para S. Tomás, a teologia é verdadeiramente
uma ciência. Existem, com efeito, dois tipos de ciências. Umas partem de
princípios evidentes em si: desse tipo são a aritmética e a geometria. As
outras partem de princípios cuja evidência só surge à luz duma ciência
superior: assim a perspectiva deriva de princípios conhecidos pela geometria, a
música procede de princípios conhecidos graças à aritmética. É por esta segunda
forma que a teologia se define como uma ciência. Os princípios da teologia são indemonstráveis em teologia. Só são evidentes para
Deus que é o único a possuir a verdadeira compreensão dela. E é da ciência
divina que o crente recebe a respectiva comunicação pelo dom da fé. Os
princípios da teologia constituem, pois, aquilo a que se chama «artigos de fé».
Na posse desses princípios, o teólogo pode construir uma ciência análoga a
essas ciências do segundo tipo de que se falou, onde a razão se exerce com todo
o rigor e precisão.
S. Tomás reserva, na elaboração do
saber teológico, um amplo lugar à razão. Mas sabe que não possível pedir-lhe
aquilo que ela não pode dar. Na Suma
contra os Gentios, escrita, segundo se crê, na intenção dos missionários
cristãos enviados para os países muçulmanos, distingue nitidamente dois
domínios: «Certas verdades que respeitam a Deus», diz, «ultrapassam
absolutamente o poder da razão humana: nesse número está o dogma da Trindade.
Outras verdades podem ser atingidas pela razão natural: tais são a existência
de Deus, a sua unidade, etc.» S. Tomás reconhece que «filósofos guiados pela
luz da razão natural» souberam provar e demonstrar as verdades da segunda
espécie: é possível, pois, fazer outro tanto. Quanto às verdades da primeira
espécie, seria um erro e uma tolice pretender estabelecê-las pela razão visto
que elas ultrapassam a razão. Apenas se poderá mostrar ao infiel que as suas
dificuldades não são inultrapassáveis, que as objecções que ele formula não se
impõem. Uma tal refutação, pensa S. Tomás, é possível, pois que «a razão natural
não pode ser contrária à verdade da fé», dando que uma e outra derivam da mesma
Verdade absoluta que é Deus.
A orientação filosófica de Tomás de
Aquino contém a marca do génio latino, amigo da clareza. Contém mesmo,
poder-se-ia dizer, a marca do génio italiano, inclinado à jurisprudência, hábil
de deslindar os conflitos de jurisdição. Na síntese tomista, os direitos e os
deveres da razão, relativamente à fé, estão claramente delimitados. Mas a razão
não poderia manter o seu espaço e desempenhar o seu papel nesta síntese se não
possuísse uma autonomia suficiente. Deste modo, Tomás de Aquino exclui tanto a
tese da «iluminação divina», cara aos franciscanos, como a tese do «único
intelecto», sustentada pelos árabes. Num e noutro caso, pensa Tomás, a
autonomia da razão humana acha-se mais ou menos alienada. Ora, «não parece
provável que na alma racional não haja princípio por meio do qual esta possa
desenvolver a sua operação natural; e seria isso que aconteceria se
admitíssemos que apenas existe um só intelecto agente quer se chame Deus ou
inteligência». S. Tomás defende, pois, que cada homem possui um intelecto
agente particular. Daí decorre a dignidade humana. Como seria possível
definir-se este último como «um animal racional» se não possuísse como coisa
própria aquilo que o faz ser homem, a saber, a razão?
Mais profundamente, a autonomia da
razão, apoia-se na autonomia das naturezas criadas. E nisso S. Tomás opõe-se
nitidamente a certas tendências da filosofia cristã – que Malebranche
desenvolverá tão longe quanto possível – e que visam reabsorver toda a
causalidade criada na causalidade divina. Aos olhos de Tomás de Aquino, os que
retiram à criatura a sua actividade própria para a atribuírem ao Criador são
muito mal avisados: «O que se retira à perfeição das criaturas», diz ele, «é à
própria perfeição de Deus que se retira», porque Deus quis comunicar a sua
semelhança às suas criaturas. Ora, para a criatura, assemelhar-se a Deus não é
simplesmente existir, é, por seu turno, ser causa. Não há nisto nenhuma
blasfémia, nenhuma ofensa à glória de Deus. A causalidade das criaturas deriva
da causalidade criadora. O intelecto agente é, em cada um de nós, uma «luz
emanada de Deus».
Partidos de um problema metodológico – o
das relações da razão e da fé – somos insensivelmente levados ao problema
psicológico do intelecto agente, depois à doutrina da criação, que nos
introduz em plena metafísica. Para elaborar a doutrina da criação, S. Tomás não
podia limitar-se a contar com o apoio de Aristóteles. A ideia da criação,
essencialmente bíblica, é estranha ao filósofo grego. O que dela diz S. Tomás
honra as suas qualidades de metafísico. A criação não se define como um
acontecimento. Pouco importa para o filósofo que o mundo tenha começado ou que
seja eterno. De qualquer maneira, ele é criatura. Aqui o tempo não tem
verdadeiramente nada a ver com o caso. Eterno ou não, o mundo é criado. E dizer
que o mundo é criado, é dizer que tudo o que existe nele deve ter a sua origem
no Ser divino. Só Deus possui, por si, o ser. Ele é o próprio Ser subsistente («Ipsum esse subsistens»), aquele cuja essência implica a
existência. Foi esta a «sublime verdade»: «Eu sou aquele que é». Mas esse nome
inefável comunicado a Moisés na sarça do Horeb, pretende S. Tomás metafísico
encontrá-lo pela luz da razão. Traça cinco vias, todas elas conduzindo ao
reconhecimento da existência de Deus. Cada uma dessas vias tem um ponto de
partida diferente: o movimento, a causalidade eficiente, a contingência, os graus de perfeição, a ordem
ou a finalidade dos seres. Mas o ponto de chegada é sempre o mesmo. Chama-se
Deus. É infinito e único. Só Ele existe por si. Tudo o resto não existe senão
por seu intermédio.
E eis a consequência religiosa desta
metafísica do ser: Deus está presente em todas as coisas. «Visto que Deus é o
próprio Ser, aquele cuja essência inclui a existência, daqui se segue que o ser
criado é o seu próprio efeito, do mesmo modo que arder é o efeito do próprio
fogo. Ora, este efeito provoca-o Deus não apenas quando as coisas chegam ao
ser, mas por tanto tempo quanto elas se conservam no ser, da mesma forma que a
luz é causada no ar pelo sol por tanto tempo quanto o ar se conserve
iluminado. Ora, o ser (no sentido preciso de existir) é o que há de mais íntimo
e de mais profundo nas coisas... Segue-se que Deus está presente em todas as
coisas, e que Ele está nelas intimamente presente.»
S. Tomás move-se, pois, no plano do ser.
A distinção real entre essência e existência dos seres criados – que ele não
encontrava em Aristóteles, mas que Avicena delineara – permite-lhe construir
uma doutrina da criação profunda e coerente. Mas foi Aristóteles que forneceu a
S. Tomás uma outra distinção verdadeiramente fundamental, a do acto e potência. O ser apresenta-se-nos sob dois aspectos. Tão depressa é perfeição realizada, isto é, o acto;
como capacidade de perfeição, ou
potência. Tentemos compreender, pelo menos sumariamente, o que se deve entender
por isto.
Considere-se um pedaço de madeira. O
carpinteiro pode fazer dela uma mesa ou uma estátua. Dir-se-á que, no pedaço de
madeira, existem «em potência» a mesa ou a estátua. Se o carpinteiro realiza o
seu trabalho, a mesa ou a estátua estarão então «em acto». Tomemos um outro
exemplo. Uma criança vai à sua primeira lição de violino. Possivelmente, a
criança praticará, um dia, na perfeição, a arte que se prepara para estudar.
Será então «violinista em acto». Por agora, é «violinista em potência». Não se
diga que se trata dum jogo de palavras: existir «em potência» é verdadeiramente
existir. O pedaço de madeira nunca será violinista, nem em potência nem em
acto. Esta capacidade de perfeição em relação à arte de violinista, que a
criança possui e de que o pedaço de madeira está desprovido, é qualquer coisa
de muito positivo, pertence verdadeiramente ao ser, mas ao «ser em potência».
Dois princípios fundamentais regem as
relações do acto e da potência: I – Nenhum ser passa da potência ao acto sem a intervenção dum ser que esteja já em acto II – O acto
só é finito e multiplicado se for recebido numa potência. A estes princípios
deparam-se inúmeras aplicações. Não podemos enumerá-las todas. A título de
exemplo, mostraremos como o primeiro princípio tem o seu emprego na doutrina do
conhecimento. Quanto ao segundo princípio, é de uma importância soberana: pode
ver-se nele o eixo em volta do qual gravita o universo metafísico de S. Tomás
de Aquino.
Para evocar a doutrina tomista do
conhecimento, vamos partir de uma imagem, a que Rafael pintou num fresco
célebre do Vaticano, a Escola de Atenas.
No centro do fresco, Rafael colocou os dois gigantes da filosofia antiga:
Platão e Aristóteles. Ora, enquanto Platão levanta o dedo para o céu (lugar
suposto das Ideias), Aristóteles dirige uma mão para a terra. Trata-se, sem
dúvida, de servir ao nosso propósito. Não vem a propósito descrever aqui, com
todos os matizes que um historiador da filosofia grega poderia apresentar, as
posições respectivas de Platão e de Aristóteles. Bastar-nos-á representar a
opinião que os contemporâneos de Tomás de Aquino fariam. Ora, estes teriam
provavelmente reconhecido, no fresco de Rafael, a imagem familiar que os
dominava quando procuravam definir a oposição entre Platão e Aristóteles.
Dito isto, S. Tomás optou francamente por
Aristóteles. Recusa-se a procurar as Ideias fora dos limites do mundo sensível.
Como Aristóteles, pensa que a única fonte do nosso conhecimento, mesmo o mais
elevado, é a realidade sensível. Mas, nas coisas sensíveis, encontra-se um
elemento inteligível, a forma, que é
como a ideia divina realizada nas coisas, mas é o inteligível «em potência». E
é então que aparece o primeiro dos dois princípios acima anunciados. Para que o
inteligível «em potência» se torne inteligível «em acto», é preciso que
intervenha uma faculdade activa, aquela que precisamente se designa por
«intelecto agente». De facto, o intelecto agente opera não directamente sobre a
coisa mas sobre os dados, antecipadamente adquiridos, do conhecimento sensível.
Este realiza-se a dois níveis: ao nível do sentido externo pela sensação, ao nível do sentido interno
graças à imagem (ou «fantasma»),
elaborada igualmente a partir da sensação. Trabalhando sobre as imagens (ou
«fantasmas»), o intelecto agente descobre, se assim se pode dizer, o nó
inteligível. E é este núcleo inteligível (ou ideia) que o «intelecto paciente»
assimila.
Scuola di Atenas, por Rafaello |
O segundo dos princípios formulados mais
acima dizia: «O acto só é limitado e multiplicado desde que seja recebido numa
potência.» Este princípio permite abarcar nas suas linhas essenciais toda a
arquitectura do universo tomista. No cume está Deus, «Acto puro», que, não
estando limitado por nenhum poder, é infinito e único. No extremo oposto, está
a matéria, potência pura. Entre os dois, tudo é composto de acto e de potência.
Enquanto em Deus a existência (acto)
não é limitada por nenhuma essência (potência),
em toda a criatura existe composição e distinção reais entre essência e existência.
Se só existe esta composição (essência-potência), temos o espírito puro, quer
dizer, o anjo. Mas, mesmo ao nível da essência, é concebível uma outra
composição: a de matéria (potência)
e de forma (acto). Imerjamos de algum
modo a forma na matéria: obteremos toda a variedade dos seres corporais,
animais, vegetais, minerais. Tal é a doutrina que recebeu o nome de “hilemorfismo»:
ela defende que todo o ser corporal é composto de matéria e forma. No mais alto
grau da escala dos seres corporais encontra-se o homem composto de uma alma e
um corpo. No homem, como nos outros animais, a alma é «a forma do corpo». Mas,
no homem, a alma está suficientemente desprendida das servidões da matéria para
poder sobreviver à dissolução do corpo.
A moral tomista é igualmente uma adaptação
da ética de Aristóteles. Este último havia assinalado como fim da actividade
humana a beatitude. E colocara a beatitude no exercício mais elevado da
faculdade humana suprema, a inteligência. Ora, o acto mais elevado da
inteligência é a contemplação do divino. Tal é, pois, a beatitude: contemplar o
divino. S. Tomás adopta estes argumentos. Mas introduz neles uma modificação
importante. Para Aristóteles, a beatitude devia realizar-se dentro dos limites
da existência terrena, quer dizer, em condições muito precárias. Tomás de
Aquino declara-a acessível a todos, mas reserva-a para a outra vida. A beatitude
será ainda a contemplação de Deus: em linguagem teológica denomina-se «visão
beatífica».
Por aqui vemos – mas os exemplos abundam – com que liberdade S. Tomás adapta aos seus fins o pensamento de Aristóteles. Professa pelo Filósofo a admiração mais sincera. Mas, não é um arqueólogo, cuja única ambição se limitasse à restauração dum glorioso passado. Pensa para o seu tempo, com uma constante preocupação de actualidade. Há mesmo qualquer coisa de revolucionário no seu empreendimento. Os contemporâneos não se enganaram. E se certos admiradores de S. Tomás propuseram fazer do tomismo um relicário ideal dos conservantismos de toda a espécie, poderão ter retido a letra; mas não penetraram seguramente o espírito.
(In Édouard Jeauneau, A Filosofia Medieval, Edições 70, pp. 76-85).
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