domingo, 27 de junho de 2010

Bem-aventurança

Escrito por Dante Alighieri





Pedro Hispano



Eu sou a alma de Boaventura de Bagnoregio
que, no exercício dos mais altos ofícios eclesiásticos,
pospôs sempre as coisas mundanas às espirituais.

Aqui estão Iluminato e Agostinho,
que foram dos primeiros descalços pobres, que
humilde cordão franciscano tornou amigos de Deus.

Vêm em seguida Hugo de S. Vítor
e Pedro Mangiadore e Pedro Hispano, cujo
espírito, na Terra, brilha nos seus doze livros;

o profeta Natan, e o metropolitano
Crisóstomo, e Anselmo, e o famoso Donato,
que, à primeira arte, se dignou pôr mão.

Rabano também está aqui, e ao meu lado brilha
o calavrês Abade Joaquim,
dotado de espírito profético. 

A celebrar um tão grande paladino, eu, Boaventura,
fui levado pela inflamada cortesia de S. Tomás,
que fez o elogio de S. Francisco;

e moveu comigo esta companhia de
bem-aventurados.

(Paraíso, in A Divina Comédia, Canto XII).






sexta-feira, 25 de junho de 2010

Ciência e autoridade

Escrito por Álvaro Ribeiro




Aristóteles


Autoridade quer dizer autoria. A autoridade é assim correlativa com a liberdade. Este significado original e eminente de autoridade mantém-se ainda no domínio literário, onde autor é o escritor que comunica por meio de livro o seu livre pensamento.

Autor de todas as coisas visíveis e invisíveis é Deus, e dizem-se autorizados os sacerdotes que representam a divina autoridade. A autoridade política equivale à liberdade do legislador, pelo que não se deve confundir a autoridade das leis com o poder dos serviços públicos que as fazem cumprir. Ter autoridade é, pois, ter de qualquer forma o dom ou a graça de ser autor.

Autor indiscutível e indiscutido foi, durante séculos, Euclides, cujos Elementos de Geometria regularmente disciplinavam sucessivas gerações de estudantes. Os teoremas euclidianos foram impostos por virtude das demonstrações cogentes e gradativamente encadeadas que os acompanham e, por fim, foram tidos por modelos de simplicidade, de evidência e de intuição. Observe-se, porém, que o método euclidiano é um método de exposição e de demonstração, referido a um saber previamente construído, e não um método de investigação e de invenção.

Aristóteles foi, também, durante séculos, a primeira autoridade em física. Os livros aristotélicos não são, porém, livros de mera exposição e demonstração de doutrinas, mas, pelo contrário, exemplos e exercícios do orgão lógico para a indagação da verdade. Do uso que durante a Idade Média foi feito dos livros aristotélicos, muitas vezes discutidos e comentados sem prévio recurso à observação e experimentação, não há que inculpar o pensamento de Aristóteles.

Em questões que não podiam, ou não podem, ser resolvidas pela observação e pela experimentação, preconizava Aristóteles o método de autoridade. Não há, efectivamente, outro método de estudo senão a recensão das opiniões de vários autores, entre as quais o estudante escolhe a melhor, por preceitos de ordem lógica, e não por preconceitos alheios à indagação da verdade. O uso de citações, corrente em trabalhos universitários, demonstra que continua acima da crítica o método de autoridade.

A citação de autores, a descrição de observações e a narrativa de verificações, em ciência, valem apenas de complementos da indução ou da dedução. O que em ciência interessa é a relação do conceito com a tese, a antítese e a síntese. O que no livro de ciência constitui mensagem original é a estrutura linguística, estilística e lógica, o trivial.



Trivium



Quem escreve e publica não ignora quão difícil é obter do leitor a justa apreciação do que na obra existe de significativa e perene verdade. Todo o estudante universitário está advertido de que as citações e as ilustrações existentes nos livros de homens que passam por doutos, podem ter sido copiadas de livros anteriormente escritos sobre o mesmo tema, e que, por isso, não valem de prova de que o autor haja profundamente estudado o pensamento daqueles que chama em abono da sua tese ou proposição. As citas, ao passarem de livro para livro, são muitas vezes transcritas sem exactidão, sem referência verificável à página donde foram extraídas, e, no caso das frases mais célebres, sem alusão ao escrito onde pela primeira vez foram registadas.

O respeito pela autoridade, que também é o método de autoridade, prescreve que sempre as citações sejam acompanhadas da respectiva informação bibliográfica. Quando oriundas de livros estrangeiros devem as citações ser traduzidas para vulgar para que melhor se aprecie o valor que o escritor atribui ao argumento, se é certo que pela tradução se entende uma forma de assimilação; mas convém ainda que em nota figure o texto original, para que o leitor poliglota possa exercitar as suas faculdades de crítica. Recorrer à leitura do contexto das palavras citadas, afastar comentadores importunos, infiéis e desactualizados, discernir o que magister dixit, tal é o método para evitar pleitos que muitas vezes se dilatam em conversas inúteis e desultórias.

Ao estudante que quiser compreender as características de civilização em que vivemos, se aconselha a leitura imediata das obras de Aristóteles. Grande parte das críticas mais violentas que durante a Idade Média foram dirigidas contra as escolas aristotélicas resultaram improcedentes, não atingiam propriamente a essência da doutrina do Liceu. Os detractores do aristotelismo pretendiam ferir, para além do Filósofo, a verdade oculta nos seus escritos acroáticos.

A autoridade de Aristóteles não foi, durante a Idade Média, incompatível com a livre discussão de teses que caracteriza o ambiente das universidades europeias. S. Tomás de Aquino disse que o estudo da filosofia não tem por fim saber o que os outros pensaram, e afirmou também que em coisas humanas o argumento de autoridade é o mais débil (1). Todos os escritos filosóficos são obras humanas, não podem ser comparados a escrituras sagradas ou canonizadas, pelo que neles é permitido distinguir «o que é vivo e o que é morto», como a propósito de Hegel escreveu seu discípulo Benedetto Croce (2).

Basílica de S. Pedro (Vaticano).


Também a obra de Santo Tomás de Aquino, que o Magistério Eclesiástico manda ler, estudar e seguir no que for possível, está sujeita a adaptações, a alterações e a interpretações que atenuam, enfraquecem e anulam a designação de «filosofia tomista». A cosmologia, a antropologia e a teologia do Doutor Comum da Igreja podem pelos crentes ser discutidas em todos os pontos que não colidam com a fé católica. A obra de Santo Tomás de Aquino é, pois, muito respeitada pelo que significa de mediação cultural, mas por isso mesmo não desobriga do estudo de outros filósofos que, pela sua autoridade, facultaram a adequação do pensamento à realidade (3).

Os textos são letra morta: para ressuscitarem, precisam de ser lidos pela voz humana, e a vida das palavras depende do espírito que as anima. Não podemos esquecer que o Verbo é mediador entre a Letra e o Espírito. Não podemos esquecer que a tríade Letra-Verbo-Espírito corresponde a Espaço-Tempo-Eternidade.

A actualização do tomismo, com elementos de outros sistemas filosóficos que vão surgindo nos vários povos, tem sido trabalho árduo, e por vezes meritório, de escritores católicos. Entre a Encíclica Aeterni Patris /1879) e a Encíclica Humani Generis (1950) poderemos ver que o tomismo passa por um período de apologia perante o positivismo, tomando como linha de referência o trabalho propedêutico a que se dedicou o Cardeal Mercier enquanto esteve no instituto Filosófico de Lovaina (4). A tentativa de relacionar directamente a razão com a fé, de conciliar o pensamento gnósico com o pensamento pístico, sem mediação do pensamento sófico, ensinada por Aristóteles, nunca desenvolveu as virtudes nem suscitou as graças que os crentes esperam da apologética religiosa.

A inteligência humana inclina-se, sim, perante as escrituras que considera sagradas, aquelas em que os crentes lêem a palavra divina ou inspirada por Deus, e inclina-se porque de as interpretar só é digno quem estiver ungido por ordenação sacerdotal. Os estudos positivos de linguística, de estilística e de lógica, que habilitam para o exercício da filologia profana, não bastam para aproximar o estudante do misterioso domínio da teologia revelada. O pensador leigo deve estar liberto da ilusão de que lhe seria possível proceder ao «livre exame» da Escritura Sagrada, deve aceitar a interpretação que lhe for dada por quem se encontra para isso autorizado, ou seja, pelo indirecto ou directo representante do Autor, pelo ministro de Deus.

O exame da Escritura Sagrada, efectuado apenas com o auxílio do senso-comum e das ciências positivas, pode levar à profanação do culto e à derrogação das leis divinas, sem que do processo o examinador tenha consciência. Na ordem do hierárquico, do sagrado, do religioso, os efeitos da profanação não surgem patentes aos olhos de quem os causa: ficam ocultos até se declararem em devido tempo, e por isso na humanidade os filhos expiam os males provocados pelos pais e pelos avós, mas atribuem o erro das gerações antecedentes muito mais à ignorância do que à desobediência. É muito clara a doutrina da transmissão do pecado original que só aparece obscura nas palavras que a deslocam para o campo da hereditariedade biológica, o que repugna por incompatível com a ideia de Natureza.


A história relata, é certo, que alguns teólogos, intermediários e intérpretes entre as Sagradas Escrituras e a cultura profana do seu tempo, induziram em erro muitos fiéis; todos foram julgados, uns pelo Magistério Eclesiástico, outros pela crítica dos doutos, condenando-se assim as insubstantes formas de pontificado entre o temporal e o espiritual. Infelizmente, nos países e nas épocas de deficiente instrução teológica, alguns escritores religiosos transgridem a linha de demarcação entre a razão e a , (segundo a nomenclatura escolástica) e citam até a palavra divina em apoio de doutrinas muito contingentes e afastadas da interpretação canónica e autorizada. Na cultura portuguesa também há exemplos desse abuso que atingiu maior acuidade em esquecidos livros de política, mas aparece e reaparece em obras de apologética, escritas por estrangeiros, e traduzidas por portugueses, ou escritas por portugueses e abonadas com citações estrangeiras.

A apologia e a filosofia são processos diferentes de relacionar a cultura com o culto. Assim é que o apologeta da Igreja Católica não se limita a justificar a teologia dogmática, mas também a teologia moral e até a teologia política, fazendo passar a razão humana por todas as argúcias e subtilezas indispensáveis à acção missionária e até à acção militante. O que a Igreja Católica, ou os seus representantes da hierarquia eclesiástica, ou até os fiéis menos esclarecidos, decidiram ou resolveram em certas oportunidades e em certas circunstâncias, é apresentado como passado que o apologeta se vê coagido a defender, a justificar e a explicar. Ora na apologética nem tudo interessa a todas as épocas e a todos os povos, pelo que os livros escritos para os ambientes culturais da Europa Central nem sempre são utilizáveis para edificação religiosa das nações peninsulares e insulares.

Não só nos livros de apologética, mas também nos livros de moral, se nota a explicável mas injustificada preponderância do pensamento francês que ignora, limita e contraria muitos aspectos da portuguesa religiosidade. Importa não esquecer que a articulação da filosofia com a apologia não se tem efectuado pelo mesmo processo na história de todos os povos, e que só violentando a interpretação dos acontecimentos será possível estabelecer paralelo entre a história religiosa de Portugal e a história religiosa da França. Não se justifica, portanto, a real ou aparente subordinação do pensamento português à cultura francesa no que diz respeito à teologia dogmática e muito menos à teologia moral.



Álvaro Ribeiro




A análise da cultura conduz sempre ao reconhecimento de princípios inverificáveis e, de certo modo indiscutíveis, o que não quer dizer que sejam falsos: circunscrevê-los equivale a redigir o estatuto da crítica. Eis porque o estudo da teologia dogmática se nos afigura tão indispensável a quem se dedique à investigação histórica como a quem cultive a especulação filosófica. Habilitados com tais conhecimentos, os pensadores mais livres podem recusar, impugnar e refutar as abusivas interpretações que das misteriosas leis divinas e da imperscrutável vontade de Deus lhes propõem alguns escritores afamados, talvez piedosos, mas imprudentes (in Apologia e Filosofia, Guimarães Editores, 1953, pp. 91-99).


Notas:

(1) Studium philosophiae non est ad hoc quod sciatur quid homines sensirent, sed qualiter se habeat veritas rerum. 1. De Caelo et Mundo. Lest. 22 - Locus ab auctoritate quae fundatur super ratione humana infirmissimus est. Sum. Theol. 1.ª P. q. 1 a 8 ad 2. Citado por P. Pedro Descoqs S. J. Institutiones Metaphysicae - Éléments d'Ontologie - Paris, 1925. T. 1, p. 80.

(2) Benedetto Croce - O que é vivo e o que é morto na filosofia de Hegel. Tradução de Vitorino Nemésio - Coimbra, 1933.

(3) R. P. Jean-Baptiste Raus, C. SS R. - La Doctrine de S. Alphonse sur la vocation et la grace - Paris, 1926. Este livro é muito importante porque elucida o que se deve entender por tomismo e situa a doutrina perante as decisões do Magistério Eclesiástico. É, além disso, digno de especial menção porque se refer a um problema de interesse para a história da teologia em Portugal.

(4) L. de Raeymaeker - Le Cardinal Mercier et l'Institut Supérieur de Philosophie de Louvain, 1952.


quarta-feira, 23 de junho de 2010

Ainda os filósofos

Escrito por Olavo de Carvalho





Honoré de Balzac



Diário do Comércio, 27 de maio de 2009

Expressar a experiência real em palavras é um desafio temível até para grandes escritores. Tão séria é essa dificuldade que para vencê-la foi preciso inventar toda uma gama de gêneros literários, dos quais cada um suprime partes da experiência para realçar as partes restantes. Se, por exemplo, você é Balzac ou Dostoiévski, você encadeia os fatos em ordem narrativa, mas, para que a narrativa seja legível, tem de abdicar dos recursos poéticos que permitiriam expressar toda a riqueza e confusão dos sentimentos envolvidos. Se, em contrapartida, você é Arthur Rimbaud ou Giuseppe Ungaretti, pode comprimir essa riqueza nuns poucos versos, mas eles não terão a inteligibilidade imediata da narrativa.

Essas observações bastam para mostrar que as idéias e crenças surgidas nas discussões públicas e privadas raramente se formam da experiência, pelo menos da experiência pessoal direta. Elas vêm de esquemas verbais prontos, recebidos do ambiente cultural, e formam, em cima da experiência pessoal, um condensado de frases feitas bastante desligado da vida. Se vocês lerem com atenção os diálogos socráticos, verão que a principal ocupação do fundador da tradição filosófica ocidental era dissolver esses compactados verbais, forçando seus interlocutores a raciocinar desde a experiência real, isto é, a falar daquilo que conheciam em vez de repetir o que tinham ouvido dizer. O problema é que, se você repete uma ou duas vezes aquilo que ouviu dizer, não apenas você passa a considerá-lo seu, mas se identifica e se apega àquele fetiche verbal como se fosse um tesouro, uma tábua de salvação ou o símbolo sacrossanto de uma verdade divina.

Para piorar as coisas, as frases feitas vêm muito bem feitas, em linguagem culta e prestigiosa, ao passo que a experiência pessoal, pelas dificuldades acima apontadas, mal consegue se expressar num tatibitate grosseiro e pueril. Há nisso um motivo dos mais sérios para que as pessoas prefiram antes falar elegantemente do que ignoram do que expor-se ao vexame de dizer com palavras ingênuas aquilo que sabem. Um dos resultados dessa hipocrisia quase obrigatória é que, de tanto alimentar-se de símbolos verbais sem substância de vida, a inteligência acaba por descrer de si mesma em segredo ou mesmo por proclamar abertamente a impossibilidade de conhecer a verdade. Como essa impossibilidade, por sua vez, é também um símbolo prestigioso nos dias que correm, ela serve de último e invencível pretexto para a fuga à única atividade mental frutífera, que é a busca da verdade na experiência real.

A própria palavra “experiência” já costuma vir carregada de uma nuance enganosa, pois se refere em geral a “fatos científicos” recortados a partir de métodos convencionais, que encobrem e acabam por substituir a experiência pessoal direta. Nessas condições, a discussão pública ou privada torna-se uma troca de estereótipos nos quais, no fundo, nenhum dos participantes acredita. É esse o sentido da expressão popular “conversa fiada”: o falante compra fiado a atenção dos outros – ou a sua própria – e não paga com palavras substantivas o tempo despendido. (Sempre achei uma injustiça que as leis punissem os delitos pecuniários, mas não o roubo de tempo. O dinheiro perdido pode-se ganhar de novo – o tempo, jamais.)


Heidegger







De Sócrates até hoje, a filosofia desenvolveu uma infinidade de técnicas para furar o balão da conversa estereotipada e trazer os dialogantes de volta à realidade. Zu den Sachen selbst – “ir às coisas mesmas” –, a divisa do grande Edmund Husserl, permanece a mensagem mais urgente da filosofia depois de vinte e quatro séculos. Ninguém mais que o próprio Husserl esteve consciente dos obstáculos lingüísticos e psicológicos que se opunham à realização do seu apelo. Todo o vocabulário técnico da filosofia – e o de Husserl é dos mais pesados – não se destina senão a abrir um caminho de volta desde as ilusões da classe letrada até à experiência efetiva. A conquista desse vocabulário pode ser ela própria uma dificuldade temível, mas decerto não tão temível quanto os riscos de ficar discutindo palavras vazias enquanto o mundo desaba à nossa volta. Ao incorporar-se à cultura ambiente como atividade academicamente respeitável, a própria filosofia tende a perder sua força originária de atividade esclarecedora e a tornar-se mais uma pedra no muro de artificialismos que se ergue entre pensamento e realidade.


segunda-feira, 21 de junho de 2010

A unidade do intelecto

Escrito por S. Tomás de Aquino








Como todos os homens, por natureza, desejam saber a verdade, também neles é natural o desejo de fugir dos erros e de os refutar quando têm essa faculdade. Ora, entre todos os erros, o mais inconveniente parece ser aquele em que se erra sobre o intelecto que naturalmente nos habilita a conhecer a verdade evitando os erros. Há já algum tempo que se implantou entre muita gente um erro acerca do intelecto. Originado nos escritos de Averroes, consiste em defender que o intelecto a que Aristóteles chama "possível", e que Averroes designa impropriamente pelo nome "material", é uma substância separada do corpo segundo o ser, que de modo nenhum se une ao corpo como forma. Mais ainda: Averroes defende que o intelecto possível é único para todos os homens.

Já escrevemos por várias vezes contra este erro. Todavia, dado que que a impudência dos que o defendem não cessa de resistir à verdade, é nossa intenção avançar novos argumentos contra esse erro a fim de o refutarmos com toda a evidência.

Não iremos mostrar aqui que a posição acabada de referir é errónea por contrariar a verdade da fé cristã. Isso será imediatamente evidente seja para quem for. Se, de facto, se subtraísse aos homens, a diversidade do intelecto, a única de todas as partes da alma que se vê bem ser incorruptível e imortal, após a morte nada restaria das almas dos homens excepto a substância única do intelecto; e desta feita se suprimiria a retribuição das recompensas e das penas e a respectiva diversidade. Iremos mostrar outrossim que a posição referida não contraria menos os princípios da filosofia do que os ensinamentos da fé. E dado que nesta matéria alguns, como eles mesmo dizem, não querem saber das palavras dos Latinos e dizem-se seguidores da dos peripatéticos, cujos livros sobre essa matéria nunca viram, à excepção dos de Aristóteles, o fundador da seita peripatética, mostraremos em primeiro lugar que a referida posição vai contra as suas palavras e os seus ensinamentos.


Tomemos, então, a primeira definição da alma dada por Aristóteles no livro II sobre A Alma, onde afirma que ela é «o acto primeiro de um corpo natural organizado». E para que ninguém diga que esta definição não se aplica à alma toda, porque Aristóteles havia dito, no condicional, «se tivermos de afirmar qualquer coisa de comum à alma toda», - que eles interpretam, justamente, como se não pudesse ser o caso -, consideremos as palavras que se seguem no texto. Ei-las: «Dissemos, de facto, em sentido universal, o que a alma era: uma substância segundo a forma, isto é, a quididade de cada corpo», ou de outra maneira: a forma substancial de um corpo natural organizado.

E não se diga que se exclui a parte intelectiva dessa universalidade, o que Aristóteles refuta no que diz a seguir: «Que, portanto, a alma não é separável do corpo, ou, dado que ela é naturalmente divisível, ao menos algumas de suas partes da alma, eis o que é evidente, pois o acto de certas partes da alma é o acto de algumas partes do corpo. Já relativamente a outras partes nada impede a separação, porque não são acto de nenhum corpo». Isto só pode ser interpretado como dizendo respeito à parte intelectiva, a saber, intelecto e vontade. Daqui ressalta com evidência que certas partes desta alma, que antes definira universalmente designando-a como acto de um corpo, são acto de partes precisas do corpo, enquanto que outras não são acto de nenhum corpo. Porque, como mais adiante se verá, não é a mesma coisa a alma ser acto de um corpo e uma das suas partes ser acto de um corpo.



S. Gregório de Nissa



Mas, no que vem a seguir, ainda é mais evidente que ele inclui o intelecto também sob essa definição geral, sobretudo havendo suficientemente provado que a alma é o acto de um corpo, portanto, que a alma separada não vive em acto. Todavia, como se pode dizer que uma coisa vive em acto graças à presença de uma outra, não apenas se for a sua forma, mas também o seu motor - tal como a combustão em acto de um combustível na presença de um comburente e o movimento em acto de qualquer móbil na presença de um motor -, alguém podia duvidar se, estando a alma presente, um corpo vive em acto, como o móbil se move em acto na presença de um motor ou como uma matéria está em acto na presença de uma forma. E, principalmente, porque Platão defendeu que a alma não se une ao corpo como uma forma, mas mais como um motor ou um piloto, como é evidente por Plotino e Gregório de Nissa, que menciono porque não foram Latinos mas Gregos. O Filósofo insinua esta dúvida quando acrescenta, a seguir ao que disse: «Também não se vê se a alma é acto do corpo, como o timoneiro, do navio». E porque a dúvida persiste depois do que disse, conclui «que é metaforicamente que se determina e se descreve assim a alma», pois ainda não era líquido ter demonstrado a verdade.

A fim de tirar a dúvida, avança a seguir para a demonstração do que é mais certo em si e segundo o conceito com base naquilo que é menos certo em si mesmo, mas é mais certo para nós, ou seja, a partir dos efeitos da alma, que são os seus próprios actos. Para tal, distingue imediatamente as operações da alma, dizendo que «o animado distingue-se do inanimado pela vida» e que são muitas as operações que dizem respeito à vida como por exemplo, «a intelecção, a sensação, o movimento local e o repouso» bem como o movimento nutritivo e de crescimento, de maneira que diz-se que vive tudo aquilo que possui uma destas operações da alma. Depois, mostradas as suas relações mútuas, ou seja, como é que uma pode existir sem a outra, conclui com isto que a alma é o princípio de todas as operações e que «é determinada por elas, como pelas suas partes, que são as faculdades vegetativa, sensitiva, intelectiva e o movimento», mas que todas elas se encontram num só indivíduo, o homem.



Aristóteles e Averroes contra a torre da falsidade


Platão defendeu também a existência de diversas almas no homem em conformidade com a diversidade das operações da vida que o integram. Por esta razão, Aristóteles levanta a seguinte dúvida: «cada uma dessas faculdades é a alma» em si mesma ou uma parte da alma? E no caso de serem partes de uma mesma alma, elas diferem segundo o conceito ou também pelo lugar, quer dizer, pelo orgão? Acrescenta que «em relação a algumas não há dificuldade», mas em relação a outras há lugar para dúvida. Prova de imediato que é de facto claro, quanto ao que diz respeito à alma vegetativa e à alma sensitiva, dado que certas plantas e animais, mesmo quando seccionados, continuam a viver, pelo que todas as operações da alma que se dão no todo realizam-se numa qualquer das partes. Mas relativamente às que dão lugar a dúvidas, mostra, acrescentando, que «acerca do intelecto e da potência teorética, nada é ainda evidente». Aristóteles não diz isto querendo mostrar que o intelecto não é alma, conforme o Comentador e seus sequazes explicam de uma maneira ruim, porque é evidente que ele aqui está a responder ao que havia dito antes, «que relativamente a algumas há lugar para a dúvida» Daí dever entender-se: nada disto é ainda evidente, se o intelecto é alma ou se é uma parte da alma, e se for uma parte da alma, se está separada localmente ou apenas conceptualmente.

E mesmo dizendo que "nada é ainda evidente", não deixa de manifestar a primeira hipótese que vem à cabeça, acrescentando: «mas parece que é um outro género de alma». Esta afirmação não deve ser interpretada tal como o Comentador e os seus sequazes a explicam, de uma maneira ruim, que Aristóteles a fez porque é equivocamente que se chama alma ao intelecto ou porque não se lhe pode aplicar a definição referida. A maneira como devemos interpretá-la vem logo a seguir: «e só isto pode ser separado, como o eterno do corruptível». É nisto, portanto, que consiste o outro "género", em parecer que o intelecto é algo de eterno enquanto que as outras partes da alma são corruptíveis. E uma vez que o corruptível e o eterno não parecem ser compatíveis numa substância, parece que, entre todas as partes da alma, só o intelecto é que pode ser separado, não do corpo, evidentemente, tal como de maneira ruim o Comentador explica, mas das outras partes da alma, de forma que não se acham numa só substância da alma.


Torna-se evidente que é assim que se deve entender, a partir do que acrescenta: «Daí ser claro, em relação às outras partes da alma, que elas não são separáveis», quer dizer, segundo a substância da alma ou localmente.



Averroes



Já atrás o tínhamos averiguado, e o que então dissemos chega para provar. Que Aristóteles não está a pensar na separabilidade em relação ao corpo, mas da mútua separabilidade das potências, eis o que se torna evidente pelo que segue: «é claro que se distinguem conceptualmente», ou seja, umas em relação às outras, «o acto de sentir é diferente do de opinar». E, assim, é evidente que aquilo que aqui determina responde à pergunta feita acima. Com efeito, tinha-se perguntado se uma parte da alma se separa de outra apenas conceptualmente ou também segundo o lugar. Pondo de parte aqui esta questão relativa ao intelecto, sobre o qual agora nada determina, relativamente às outras partes da alma Aristóteles diz com clareza que não são separáveis segundo o lugar, mas que o são conceptualmente.

Portanto, posto isto, a saber, que a alma é determinada pela actividade vegetativa, vegetativa, sensitiva, intelectiva e pelo movimento, pretende mostrar de seguida que em todas estas partes a alma não se une ao corpo como o timoneiro ao navio, mas como uma forma. Deste modo certificar-se-á o que é a alma em geral, o que antes havia sido dito apenas metaforicamente. Prova-o com as operações da alma, assim: é, na verdade, evidente que aquilo que opera alguma coisa é em sentido primordial a forma do operador, como quando se diz que é pela alma que se conhece e que é pela ciência que se conhece, mas pela ciência primeiro do que pela alma, porque pela alma só conhecemos o que esta possui por ciência; de igual modo, dizemos que estamos de saúde pelo corpo e pela saúde, mas primeiro pela saúde. Desta maneira se torna evidente que a ciência é a forma da alma e que a saúde é a forma do corpo.

A partir daqui acrescenta: «a alma é em sentido primordial aquilo pelo qual vivemos», que é dito por causa da faculdade vegetativa, «pelo qual sentimos», por causa da sensitiva, «pela qual nos movemos», por causa da faculdade motora, «e pela qual pensamos», por causa da faculdade intelectiva. E conclui: «Por esta razão ela será noção e forma, mas não como uma matéria e um sujeito». Portanto, é evidente que o que disse antes - a alma é o acto de um corpo natural - se conclui aqui, não só em relação à faculdade sensitiva, vegetativa e motora, mas também à intelectiva. A doutrina de Aristóteles foi, portanto, que aquilo pelo qual pensamos é a forma de um corpo natural.

Mas para que ninguém diga aqui que Aristóteles não afirma que aquilo pelo qual pensamos é o intelecto possível, mas outra coisa qualquer, excluímos manifestamente essa hipótese atendendo ao que diz no livro III sobre A Alma, falando acerca do intelecto possível: «Chamo, então, intelecto àquilo pelo qual a alma opina e pensa» (in A Unidade do Intelecto, Edições 70, 1999, pp. 45-55).



A Escola de Atenas, de Rafael (Vaticano).


sábado, 19 de junho de 2010

Do Aquinense

Escrito por Dante Alighieri





Triunfo de São Tomás de Aquino sobre os Heréticos, de Filippino Lippi.




Eu fui frade da ordem dos Pregadores, fundada por
S. Domingos com uma santa Regra, a qual bem
observada conduz à perfeição cristã.

O que está mais próximo, à minha direita,
foi meu irmão e meu mestre: Alberto é de
Colónia, e eu Tomás d'Aquino.

(...) Esta alma [Ricardo de S. Vítor] de quem tua vista se afasta, a mim
voltando, é a luz dum espírito, que, gravemente
meditando, desejou morrer para se subtrair
aos enganos do mundo

essa é a luz eterna de Sigieri,
que ensinando na Rua de Fouarre,
fez silogismos de importunas verdades.

(O Paraíso, in A Divina Comédia, Canto X).


quinta-feira, 17 de junho de 2010

Deuses, demónios e homens

Escrito por Santo Agostinho





Agostinho sacrificando a ídolos maniqueístas. Atribuído a Aert van den Bossche.




Definição dada pelo platónico Apuleio, dos deuses celestes, demónios aéreos e homens terrestres

Mas quê? Merecerá alguma atenção a definição que ele dá dos demónios (cujos termos a todos se aplicam) em que diz:

Os demónios são - quanto ao género, seres animados; passíveis, quanto ao ânimo; quanto à mente, racionais; aéreos, quanto ao corpo; quanto ao tempo, eternos.


Nestas cinco propriedades, nada, absolutamente nada, referiu em que os demónios parecessem ter de comum exclusivamente com os homens bons alguma coisa que não tivessem em comum com os maus. Efectivamente, descreve um pouco mais pormenorizadamente, no seu lugar próprio, homens, deles falando como de seres ínfimos e terrestres, depois de ter falado dos deuses do Céu; e, uma vez evocados os dois extremos, inferior e superior, trata em último lugar dos demónios, que ocupam o meio. Escreve ele:


Portanto, os homens, - orgulhosos pela razão, poderosos pela palavra, dotados de alma imortal, de membros votados à morte, de espírito ágil e inquieto, de corpos pesados e débeis, de costumes dessemelhantes e erros parecidos, de audácia obstinada e de esperança firme, de actividade estéril e de fortuna instável, individualmente mortais, todos, porém, no seu género, perpétuos porque se sucedem na renovação das gerações, de existência fugitiva, de tardia sabedoria, de morte rápida, de vida lastimosa -, habitam na terra.


Lúcifer



Ao mencionar tantas coisas que se referem à maior parte dos homens, acaso se calou acerca desse pormenor que sabia pertencer a um pequeno número - a tardia sabedoria? Se o tivesse omitido, a sua descrição do género humano, apesar de tão atento, ficaria na verdade incompleta. Pois bem - quando põe em relevo a excelência dos deuses, frisou bem que ela consistia nessa beatitude a que os homens pretendem chegar por meio da sabedoria. Por conseguinte, se a sua intenção fosse a de dar a entender que há bons demónios, teria juntado à sua descrição alguma propriedade donde parecesse que eles possuem, em comum com os deuses, uma certa beatitude, ou, com os homens, alguma sabedoria.

Ora ele não lhes pôs em relevo qualquer destas boas qualidades que permitem distinguir os bons dos maus. E, embora se tenha abstido de fazer ressaltar demasiado livremente a sua malícia, fê-lo, não para os ofender a eles, mas antes para não ofender os seus adoradores, a quem se dirigia. Todavia permitiu que os seus leitores precavidos compreendessem o que deviam pensar desses demónios: assim, aos deuses, no seu entender todos bons e felizes, pô-los absolutamente a salvo das paixões e, como ele mesmo confessa, das tempestades que agitam os demónios, e só os relacionou pela eternidade dos corpos; todavia, em relação à alma, declarou abertamente que os demónios se assemelham, não aos deuses, mas aos homens. E, mesmo esta semelhança, respeita não à sabedoria, bem de que os próprios homens podem participar, mas à perturbação das paixões que dominam os insensatos e os maus, que os sábios e os bons dominam, preferindo não as ter, a ter de as vencer. Se Apuleio quisesse dar a entender que os demónios têm de comum com os deuses, não a eternidade do corpo mas a da alma, não teria de certo excluído os homens deste comum privilégio porque, como platónico que é, pensa sem dúvida que também os homens têm alma imortal. Por isso é que, ao descrever esta espécie de seres animados, ele diz que os homens são dotados


de alma imortal, de membros votados à morte. (...)


Se o homem pode obter a amizade dos deuses por intercessão dos demónios

De que raça são então esses mediadores entre os deuses e os homens, por intermédio dos quais poderão os homens aspirar à amizade com os deuses - se o que há de melhor nos seres animados, a alma, é o que neles, como nos homens, há de pior; e se o que há de pior nos seres animados, o corpo, é o a que neles, como nos deuses, há de melhor? Efectivamente, o ser animado ou animal é composto de alma e corpo. Destes dois, o melhor é, sem dúvida, a alma, mesmo que viciosa e doente seja ela, e perfeitamente são e vigoroso o corpo. É que a sua natureza é de ordem mais elevada; a mácula dos vícios não a faz descer abaixo do corpo. É assim como o ouro, que, mesmo impuro, tem maior valor do que a prata e o chumbo mais puros. Estes mediadores entre os deuses e os homens têm como os deuses um corpo eterno e, como os homens, uma alma viciosa - como se a religião, pela qual pretendem que os homens se unem aos deuses por intermédio dos demónios, tivesse o seu fundamento mais no corpo do que na alma!



Arcanjo S. Miguel



Enfim, que malícia, que castigo suspendeu estes falsos e falazes mediadores, como se, por assim dizer, estivessem de cabeça para baixo? É que a parte inferior do seu ser animado, isto é, o corpo, têm-na eles em comum com os seres superiores; mas a parte superior, isto é, a alma, têm-na em comum com os seres inferiores. Estão unidos aos deuses celestes pela parte que é escrava e, desgraçados, estão unidos aos homens terrestres pela parte que domina. Realmente, o corpo é escravo, como diz Salústio:


Usamos do espírito preferentemente para mandar e do corpo para servir,

e acrescenta:


Uma qualidade é comum a nós e aos deuses, e outra a nós e aos brutos,


ao falar dos homens que têm, como os brutos, um corpo mortal. Mas estes, que os filósofos nos propuseram como mediadores entre nós e os deuses, bem podem dizer do seu corpo e da sua alma: esta é comum a nós e aos homens, e aquele é comum a nós e aos deuses. Com a diferença, como disse, de que estão ligados e suspensos às avessas, tendo o corpo escravo comum com os deuses bem-aventurados e a alma suspensa, com os desgraçados dos homens, ou seja: exaltados pela parte inferior e rebaixados pela parte superior. Donde se conclui: ainda que alguém julgue que eles têm de comum com os deuses a eternidade, porque morte nenhuma poderá, como acontece nos seres terrestres, separar o seu espírito do seu corpo como veículo eterno de um corpo de seres dignos de honra, mas antes como eterno veículo de condenados.


Na opinião de Plotino, são menos desgraçados os homens num corpo mortal do que os demónios num corpo eterno

Plotino é justamente louvado por ter, nos tempos mais recentes, compreendido Platão melhor que os seus outros discípulos. Diz ele, ao tratar das almas humanas:


O Pai, na sua misericórdia, preparava-lhes vínculos (vincla) mortais.


Assim, o facto de os homens terem um corpo mortal, pensou ele atribuí-lo à misericórdia de um Deus-Pai, que não quis mantê-los sempre na miséria desta vida. Desta misericórdia considerou indigna a iniquidade dos demónios, que, na miséria duma alma sujeita às paixões, receberam, não um corpo mortal como o dos homens, mas sim um corpo eterno. De certo que seriam mais felizes do que os homens se, como estes, tivessem um corpo mortal e, como os deuses, uma alma bem-aventurada. E seriam iguais aos homens se, com uma alma atribulada, tivessem ao menos merecido, como eles, um corpo mortal - contanto que, evidentemente, pudessem repousar, pelo menos depois da morte, das suas tribulações. Mas eles, devido à miséria da sua alma, não são mais felizes do que os homens, e, devido à perpétua prisão que é o seu corpo, são até mais infelizes do que os homens. Ao afirmar que eles são eternos, quis dar a entender que eles não poderiam transformar-se em deuses, porque os demónios não são capazes de progredir na prática da piedade e da sabedoria.



Arcanjo S. Miguel



(...) Sendo mortais, poderão os homens gozar da verdadeira felicidade?

Se o homem poderá ser simultaneamente feliz e mortal - é a grande questão que entre os homens se põe. Alguns, olhando para a sua condição com demasiada modéstia, negaram ao homem a capacidade de ser feliz enquanto vive sujeito à mortalidade. Outros, considerando-se superiores, ousam dizer que os mortais poderão ser felizes desde que estejam de posse da sabedoria. Se assim é, porque é que se não colocam estes como intermediários entre os homens miseráveis e os felizes imortais, pois têm de comum com os imortais felizes a felicidade e com os mortais miseráveis a mortalidade? Com certeza que, se são felizes, a ninguém invejam (haverá realmente algo de mais miserável que a inveja), e ajudam, na medida que lhes é possível, os mortais infelizes a obterem a felicidade para que possam também ser imortais depois da morte e possam unir-se aos anjos imortais e felizes.


O homem Jesus Cristo mediador entre Deus e os homens

Mas, se, segundo a opinião mais aceitável e mais provável, todos os homens são necessariamente infelizes por serem mortais, tem que se procurar um intermediário que seja, além de homem, também Deus - para, por mediação da sua bem-aventurada imortalidade, encaminhar os homens da sua miserável mortalidade à imortalidade bem-aventurada. Era necessário que nem fosse excluído da mortalidade nem constrangido a permanecer mortal. Tornou-se, de facto, mortal, não por enfraquecimento da divindade do Verbo, mas por assunção da fraqueza da carne. Mas não permaneceu mortal na carne, que Ele ressuscitou dos mortos. O fruto da sua mediação é precisamente este: que aqueles para cuja libertação se fez mediador não permaneçam mais na morte perpétua da carne. Foi, pois, necessário que o mediador entre Deus e nós possuísse uma mortalidade transitória e uma felicidade permanente, para se poder acomodar aos mortais no passageiro e levá-los de entre os mortos ao que permanece.


Ressurreição de Jesus Cristo



Os anjos bons não podem, portanto, ocupar uma posição intermediária entre os infelizes mortais e os imortais bem-aventurados. Contrário a eles está o bom mediador que, contra a imortalidade e desgraça dos anjos maus, quis tornar-se mortal por algum tempo e pôde permanecer bem-aventurado na eternidade. Assim, para impedir que os maus anjos, imortais orgulhosos e infelizes criminosos, seduzissem os homens, valendo-se da sua imortalidade para os conduzir à infelicidade, - o bom mediador, pela humildade da sua morte e a suavidade da sua beatitude destruiu o domínio daqueles nos corações que pela fé purificou da sua imundíssima tirania.

Assim, o homem mortal e infeliz, muito afastado dos seres imortais e felizes, que mediador poderá escolher que o conduza à imortalidade e à beatitude? O que poderia deleitá-lo na imortalidade dos demónios, é miséria; o que poderia chocá-lo na mortalidade de Cristo, já não existe. Naquele caso, tem que se precaver contra a desgraça sem fim, - neste caso, já não tem que temer a morte que não pôde ser eterna, mas amar a felicidade sempiterna. Se se interpusesse um mediador imortal e infeliz, seria para fechar a passagem à imortalidade feliz, porque o que impede de lá chegar - a própria infelicidade - persiste sempre. Mas, ao contrário, o que era mortal e feliz interpôs-se, uma vez passada a mortalidade, para dar aos que morreram a imortalidade - o que ele mostrou em si próprio ressuscitando e conferindo aos que são infelizes a beatitude de que jamais foi privado.

Há, pois, um mediador mau que separa os amigos - e há um mediador bom que congraça os inimigos. São muitos os mediadores que separam, porque, se a multidão dos anjos bons tira a sua beatitude da participação no Deus único, a desgraçada multidão dos anjos maus, privada desta participação, faz oposição mais para impedir do que para facilitar a nossa felicidade. A sua própria multidão de certo modo nos ensurdece com a sua vozearia, para nos tornar impossível o acesso ao bem único e beatificante. Para o conseguirmos, não são precisos muitos mediadores: basta um - precisamente aquele cuja participação nos torna felizes, o Verbo de Deus incriado, por quem tudo foi criado. Todavia, não é enquanto Verbo que ele é mediador, porque o Verbo, soberanamente imortal e soberanamente feliz, está longe dos imortais infelizes. Ele é mediador enquanto homem, mostrando por isso mesmo que, para atingir aquele que é, não somente o Bem feliz (beatum) mas também beatificante (beatificum) não é preciso procurar outros mediadores que julguemos encarregados de dispor os degraus da nossa ascensão - pois foi o próprio Deus bem-aventurado (beatus) e beatificante (beatificus), tornado partícipe da nossa humanidade, quem nos forneceu um meio rápido de participarmos na sua divindade. Realmente, ao libertar-nos da mortalidade e da miséria, não foi para os anjos imortais e felizes que nos encaminhou, para nos alcançar uma felicidade e uma imortalidade deles recebida: foi sim para aquela Trindade cuja participação faz a felicidade dos próprios anjos. Por isso, quando quis, para ser mediador, pôs-se abaixo dos anjos na forma de escravo, manteve-se acima deles na sua forma de Deus, fazendo-se caminho da vida entre os inferiores, Ele mesmo que é a vida entre os superiores (in A Cidade de Deus, Fundação Calouste Gulbenkian,1993, Vol. II, pp. 837-44 e 853-857).




Conversão de Santo Agostinho, por Charles-Antoine Coypel.



Agostinho ensinando em Roma



Agostinho na Universidade de Cartago



Túmulo de Santo Agostinho, em San Pietro in Ciel d'Oro, em Pavia.


Triunfo da Igreja, por Peter Paul Rubens


terça-feira, 15 de junho de 2010

Quem é filósofo e quem não é

Escrito por Olavo de Carvalho





Machado de Assis (1839-1908).










Diário do Comércio, 7 de maio de 2009

À medida que se espalha a consciência da debacle total das nossas universidades públicas e privadas, cresce o número de brasileiros que, valentemente, buscam estudar em casa e adquirir por esforço próprio aquilo que já compraram de um governo ladrão – ou de ladrões empresários de ensino – e jamais receberam.

Quase dez anos atrás a Fundação Odebrecht – no mais, uma instituição admirável – me perguntou o que eu achava de uma campanha para cobrar do governo um ensino de melhor qualidade. Respondi que era inútil. De vigaristas nada se pede nem se exige. O melhor a fazer com o sistema de ensino era ignorá-lo. Se queriam prestar ao público um bom serviço, acrescentei, que tratassem de ajudar os autodidatas, aquela parcela heróica da nossa população que, de Machado de Assis a Mário Ferreira dos Santos, criou o melhor da nossa cultura superior. O meio de ajudá-los era colocar ao seu alcance os recursos essenciais para a auto-educação, que é, no fim das contas, a única educação que existe. Cheguei a conceber, para isso, uma coleção de livros e DVDs que davam, para cada domínio especializado do conhecimento, não só os elementos introdutórios indispensáveis, mas as fontes para o prosseguimento dos estudos até um nível que superava de muito o que qualquer universidade brasileira poderia não só oferecer, mas até mesmo imaginar.

Minha sugestão foi gentilmente engavetada, e, com ou sem campanha de cobrança, o ensino nacional continuou declinando até tornar-se aquilo que é hoje: abuso intelectual de menores, exploração da boa-fé popular, crime organizado ou desorganizado.

Na mesma medida, o número de cartas desesperadas que me chegam pedindo ajuda pedagógica multiplicou-se por dez, por cem e por mil, transcendendo minha capacidade de resposta, forçando-me a inventar coisas como o programa True Outspeak, o Seminário de Filosofia Online e outros projetos em andamento. E ainda não dou conta da demanda. As cartas continuam vindo, e o pedido que mais se repete é o de uma bibliografia filosófica essencial. É pedido impossível. O primeiro passo nessa ordem de estudos não é receber uma lista de livros, mas formá-la por iniciativa própria, na base de tentativa e erro, até que o estudante desenvolva uma espécie de instinto seletivo capaz de orientá-lo no labirinto das bibliotecas filosóficas. O que posso fazer, isto sim, é fornecer um critério básico para você aprender a discernir à primeira vista, entre os autores que falam em nome da filosofia, quais merecem atenção e quais seria melhor esquecer.

Tive a sorte de adquirir esse critério pelo exemplo vivo do meu professor, Pe. Stanislavs Ladusãns. Quando ele atacava um novo problema filosófico – novo para os alunos, não para ele –, a primeira coisa que fazia era analisá-lo segundo os métodos e pontos de vista dos filósofos que tinham tratado do assunto, em ordem cronológica, incorporando o espírito de cada um e falando como se fosse um discípulo fiel, sem contestar ou criticar nada. Feito isso com duas dúzias de filósofos, as contradições e dificuldades apareciam por si mesmas, sem a menor intenção polêmica. Em seguida ele colocava em ordem essas dificuldades, analisando cada uma e por fim articulando, com os elementos mais sólidos fornecidos pelos vários pensadores estudados, a solução que lhe parecia a melhor.

A coisa era uma delícia, para dizer o mínimo. Num relance, compreendíamos o sentido vivo daquilo que Aristóteles pretendera ao afirmar que o exame dialético tem de começar pelo recenseamento das “opiniões dos sábios” e tentar articular esse material como se fosse uma teoria única. Cada filósofo tem de pensar com as cabeças de seus antecessores, para poder compreender o status quaestionis – o estado em que a questão chegou a ele. Fora disso, toda discussão é puro abstratismo bocó, opinionismo gratuito, amadorismo presunçoso.






A conclusão imediata era a seguinte: a filosofia é uma tradição e a filosofia é uma técnica. Chega-se ao domínio da técnica pela absorção ativa da tradição e absorve-se a tradição praticando a técnica segundo as várias etapas do seu desenvolvimento histórico.

Note-se a imensa diferença que existe entre adquirir pura informação, por mais erudita que seja, sobre as idéias de um filósofo, e levá-las à prática fielmente, como se fossem nossas, no exame de problemas pelos quais sentimos um interesse genuíno e urgente. A primeira alternativa mata os filósofos e os enterra num sepulcro elegante. A segunda os revive e os incorpora à nossa consciência como se fossem papéis que representamos pessoalmente no grande teatro do conhecimento. É a diferença entre museologia e tradição. Num museu pode-se conservar muitas peças estranhas, relíquias de um passado incompreensível. Tradição vem do latim traditio, que significa “trazer”, “entregar”. Tradição significa tornar o passado presente através da revivescência das experiências interiores que lhe deram sentido. A tradição filosófica é a história das lutas pela claridade do conhecimento, mas como o conhecimento é intrinsecamente temporal e histórico, não se pode avançar nessa luta senão revivenciando as batalhas anteriores e trazendo-as para os conflitos da atualidade.

Muitas pessoas, levadas por um amor exagerado à sua independência de opiniões (como se qualquer porcaria saída das suas cabeças fosse um tesouro), têm medo de deixar-se influenciar pelos filósofos, e começam a discutir com eles desde a primeira linha, isto quando já não entram na leitura armadas de uma impenetrável carapaça de prevenções.

Com o Pe. Ladusãns aprendíamos que, no conjunto, as influências se melhoram umas às outras e até as más se tornam boas. Incorporadas à rede dialética, mesmo as cretinices filosóficas mais imperdoáveis em aparência acabam se revelando úteis, como erros naturais que a inteligência tem de percorrer se quer chegar a uma verdade densa, viva, e não apenas acertar a esmo generalidades vazias.

Algumas regras práticas decorrem dessas observações:

1. Quando você se defrontar com um filósofo, em pessoa ou por escrito, verifique se ele se sente à vontade para raciocinar junto com os filósofos do passado, mesmo aqueles dos quais “discorda”. A flexibilidade para incorporar mentalmente os capítulos anteriores da evolução filosófica é a marca do filósofo genuíno, herdeiro de Sócrates, Platão e Aristóteles. Quem não tem isso, mesmo que emita aqui e ali uma opinião valiosa, não é um membro do grêmio: é um amador, na melhor das hipóteses um palpiteiro de talento. Muitos se deixam aprisionar nesse estado atrofiado da inteligência por preguiça de estudar. Outros, porque na juventude aderiram a tal ou qual corrente de pensamento e se tornaram incapazes de absorver em profundidade todas as outras, até o ponto em que já nada podem compreender nem mesmo da sua própria. Uma dessas doenças, ou ambas, eis tudo o que você pode adquirir numa universidade brasileira.




2. Não estude filosofia por autores, mas por problemas. Escolha os problemas que verdadeiramente lhe interessam, que lhe parecem vitais para a sua orientação na vida, e vasculhe os dicionários e guias bibliográficos de filosofia em busca dos textos clássicos que trataram do assunto. A formulação do problema vai mudar muitas vezes no curso da pesquisa, mas isso é bom. Quando tiver selecionado uma quantidade razoável de textos pertinentes, leia-os em ordem cronológica, buscando reconstituir mentalmente a história das discussões a respeito. Se houver lacunas, volte à pesquisa e acrescente novos títulos à sua lista, até compor um desenvolvimento histórico suficientemente contínuo. Depois classifique as várias opiniões segundo seus pontos de concordância e discordância, procurando sempre averiguar onde uma discordância aparente esconde um acordo profundo quanto às categorias essenciais em discussão. Feito isso, monte tudo de novo, já não em ordem histórica, mas lógica, como se fosse uma hipótese filosófica única, ainda que insatisfatória e repleta de contradições internas. Então você estará equipado para examinar o problema tal como ele aparece na sua experiência pessoal e, confrontando-o com o legado da tradição, dar, se possível, sua própria contribuição original ao debate.

É assim que se faz, é assim que se estuda filosofia. O mais é amadorismo, beletrismo, propaganda política, vaidade organizada, exploração do consumidor ou gasto ilícito de verbas públicas.


domingo, 13 de junho de 2010

A Grande Deturpação (iv)

Escrito por Orlando Vitorino






C. Excertos de uma entrevista em que se descrevem os tristes resultados do que anteriormente foi testemunhado

O entrevistado é (...) Orlando Vitorino, o entrevistador é o jornalista Martins Gaspar, o jornal onde a entrevista foi publicada é O Dia de 5 de Janeiro de 1980.

Pergunta - A que atribui a quebra de qualidade da literatura portuguesa quer quanto aos temas, quer quanto ao próprio espírito e afirmação da nossa língua?

Resposta - Não houve, depois do 25 de Abril, isto é, depois da proclamação constitucional do socialismo, qualquer quebra de qualidade da literatura portuguesa. A literatura portuguesa tem, neste século, o seu período culminante, reunindo nele três dos seus maiores poetas - Pascoaes, Pessoa e Régio - e os seu três maiores pensadores: Leonardo Coimbra, José Marinho e Álvaro Ribeiro. Pascoaes pode, sem grandes possibilidades de séria contestação, figurar entre os génios artísticos da humanidade, sendo, na linhagem de Homero, Virgílio, Dante e Shakespeare, o poeta da idade que vivemos agora. Por Leonardo, Marinho e Álvaro Ribeiro terá de passar todo o pensamento filosófico que não queira aceitar, como não pode aceitar, a demissão da filosofia anunciada pelos alemães posteriores a Hegel, expressamente por Heidegger no seu testamento filosófico.

Aquilo a que V. se refere, ao afirmar uma "quebra de qualidade na literatura portuguesa", é uma infraliteratura que, durante os últimos quarenta anos, foi motivada, alimentada e celebrizada pela sua oposição ao salazarismo, portanto pelo salazarismo, e constituiu, para os chamados políticos de esquerda um instrumento preciso das tácticas e estratégias a que reduzem a política.

Pergunta - Quer V. dizer, portanto...?

Resposta - Quero dizer que com a derrota do salazarismo, essa infraliteratura perdeu a razão da existência e deixou efectivamente de existir. Falta-lhe o regime, o establishment, a matéria onde ia buscar seus motivos. Por outro lado, isso pôs a nu o mínimo ou nenhum valor dos livros que, durante os seus findos anos de existência, produziu.



Pergunta - Poderia V. explicar essa análise aparentemente cruel?

Resposta - Sem dúvida alguma. Por um fenómeno facilmente explicável, embora à primeira vista paradoxal, essa espécie de literatura satisfazia igualmente a mentalidade do establishment salazarista e a mentalidade da sua oposição política, correspondia à imagem que ambas tinham da literatura como servil instrumento dos políticos, beneficiava do igual interesse de ambas em fazer ignorar a literatura portuguesa, desde Leonardo a Pascoaes, desde Marinho a Pessoa, desde Álvaro Ribeiro a José Régio e, até, desde Camões aos nossos dias. Por isso as suas obras - ensaios superficiais, como hoje claramente se vê que são até os de A. Sérgio, poemas de gazetilha como os de J. Gomes Ferreira, e novelas de magazine negro como as de Alves Redol e Pereira Gomes - se viam editadas, lançadas, exaltadas e premiadas pelos poderes, instituições e empresas do regime, coligidas nas selectas escolares oficiais, adaptadas ao cinema e ao teatro subsidiados pelo Estado fascista, instaladas com seus autores e panegiristas nos liceus e universidades. Organizou-se deste modo um tão eficaz ludíbrio da opinião que ela ficava impedida de observar como essa infraliteratura que se dava por perseguida, vitimada e censurada pelo regime político era também a única literatura reconhecida e protegida por esse regime. Naturalmente, menos se observava ainda que a literatura portuguesa, essa que era todos os dias silenciada, tinha de recorrer aos editores marginais ou fora das grandes redes de distribuição, escondida pelos livreiros, segregada do ensino e, até, a única verdadeiramente proibida pela censura.

Pergunta - Não haverá exagero nessa descrição?

Resposta - Oiça, meu caro. Quando foi extinta a famigerada instituição, uma sociedade de direitos de autor subitamente convertida ao socialismo triunfante, organizou uma exposição dos livros que a censura havia proibido. Depressa teve que a encerrar e tornar inacessível o seu catálogo por se verificar que os autores mais censurados não eram os que fazem profissão de esquerdismo, mas sim novelistas como Domingos Monteiro e dramaturgos como José Régio. Este acontecimento mostra bem como a infraliteratura tentou prolongar o ludíbrio que lhe mantivera a existência até para além de todos os limites da verosimilhança.

Pergunta - Há muitos exemplos de tudo isso. Mas tem havido pouca coragem para os mostrar.

Resposta - Exactamente. O exemplo que lhe dei é, porém, o de um caso demasiado ingénuo e tolo. Um deles é-nos oferecido por Eduardo Lourenço que, em livro recente, ainda veio repetir o chavão neo-realista de que pensadores como Álvaro Ribeiro, José Marinho, Afonso Botelho, António Quadros, António Telmo, eu próprio, formavam uma corrente de pensamento de apoio ao salazarismo. E. Lourenço tem memória curta. Esqueceu, entre outras coisas, que era ele, e seus parceiros de opinião e organização, quem desempenhava cargos, como os de professor universitário, que não podiam deixar de ser da confiança do Governo, então o salazarista.






Pergunta - Bem... e depois?

Resposta - Desaparecido o salazarismo, desapareceu a infraliteratura que dele se alimentava. Os ambientes que a tomavam a sério, forjados pela imprensa dirigida e pelo ensino marxizado da universidade, ficaram efectivamente sem literatura, pois só aquela lhes era acessível, e substituíram-na pela televisão e algum cinema, nada tendo perdido com a troca, embora também não tenham ganho grande coisa. Mas os políticos que nela tinham a sua "literatura própria", esses é que, ao passarem da oposição para o poder, ficaram sem o que seria a sua "literatura oficial".

Pergunta - Não quereria, Orlando Vitorino, clarificar esse ponto de vista?

Resposta - Pois sim. Sabendo eles, esses políticos, que os valores, princípios, pensamentos e sentimentos de toda a verdadeira literatura (ao contrário do que o bem-pensantismo ainda julga, os intelectuais não são da esquerda) têm efeitos nefastos e destruidores para o socialismo, vêem-se obrigados, como o salazarismo, a fazê-los ignorar. Ficam, assim, sem nenhuma literatura. Para lavarem daí as mãos declaram toda a literatura em crise, fazem constar coisas como essa de haver uma "quebra de qualidade na literatura portuguesa actual". Você, meu caro amigo, fez-se eco dessa balela, deixou-se levar.

Pergunta - Não o creia. Fiz-lhe essa pergunta sabendo o que ela significa e pensando de certo modo como V. bastará ler alguns dos meus trabalhos, em jornal e até em livro. Mais adiante. O meu caso não interessa e o entrevistado é V. e não eu.

Resposta - Eu sei, eu sei... E repare agora que não é só a actual literatura que eles pretendem englobar na balela. É toda a literatura portuguesa, desde a clássica até à contemporânea. Observe o que tem sido a acção das autoridades socialistas desde que assumiram o poder político: fizeram a campanha contra Camões, dizendo-o poeta militarista, colonialista e racista, cantor de uma história com "cinco séculos de fascismo"; comemoraram o centenário de Herculano, mas tendo o cuidado de deixar sepultados os seus inéditos e por reeditar a sua obra (os salazaristas tinham feito o mesmo com Junqueiro); congelaram, nas mãos dos universitários, a obra de Pascoaes e Camilo; prolongaram a campanha, que já vinha do regime anterior (como quase tudo), contra José Régio, campanha que há quem diga ter sido a responsável pela sua morte, para depois, numa sinistra macacada comicieira, lhe chamarem "o nosso camarada socialista"; fizeram comprar pelo Estado o espólio de Fernando Pessoa para o entregarem, com os seus 26 000 inéditos às mãos servis dos professores universitários que dele vão extraindo, sem qualquer garantia da verídica autoria (já chegaram a publicar, como sendo um inédito de Pessoa, uma versalhada do antiquário Kamersky à Greta Garbo) aqueles textos que julgam poder servir para a deturpação do pensamento do grande poeta; cercam de sinistro silêncio e obstáculos editoriais as obras de Leonardo e José Marinho, de seus epígonos e seus companheiros; enchem as selectas escolares de textos que esterilizam para sempre a capacidade de compreensão intelectual e estética de sucessivas gerações de estudantes; fazem do ensino da língua portuguesa o ensino de uma técnica de comunicação na qual o homem se não distingue do animal.

Tudo isto são factos. Factos pontuais, dirá V. utilizando a linguagem corrente...






Pergunta - Talvez...

Resposta - Sim, respondo eu. Mas é unindo os pontos que se aprende na escola a desenhar as figuras...

Pergunta - Como é que, perante tal situação, pode sobreviver a literatura portuguesa que, sem quebras, continua a existir?

Resposta - Como sempre sobreviveu: em guetos.

Pergunta - Não sente profundamente a necessidade de uma como que purificação da língua portuguesa?

Resposta - A língua portuguesa - que foi a primeira das línguas românicas a adquirir virtualidades de expressão descritiva, com Fernão Lopes, e de expressão conceptual (o que é muito mais importante) com D. Duarte - parece ser também a primeira delas a passar, como o latim e o grego, a "língua morta". A maneira como se fala nos meios escolares de todos os graus e nos jornalísticos, radiofónicos e políticos, a maneira como está redigida a Constituição, são um espectáculo em que facilmente se diagnostica a doença mortal. E são um espectáculo tão generalizado, consentido e até aplaudido - sobretudo quando se fala nos "novos países de expressão portuguesa" - que é difícil esperar que o doente encontre remédio. Dela ficará, mais uma vez confirmando a antiquíssima sabedoria de que "o pássaro de Minerva levanta voo ao anoitecer", a literatura que nos nossos dias alcança, com essa língua já moribunda, as suas mais perfeitas expressões designadamente no domínio conceptual. Daqui resulta que os nossos escritores, sendo ainda operantes, são já escritores clássicos, no sentido em que se diz que os romanos e os gregos, com seus livros escritos numa língua há muito morta, são clássicos. Trata-se de uma situação análoga àquela que Fernando Pessoa alegorizou no poema dos "Jogadores de Xadrez", uma situação talvez única na história: escritores a escreverem numa língua que lhes é natural mas se debate, já moribunda, nas convulsões e no tumulto da morte. Nada se pode fazer contra isto. Durante mais alguns anos, durante ainda uma ou duas gerações, assistir-se-á, nas escolas, na imprensa, na rádio e na política, agora também nas igrejas, que aboliram o latim, à degenerescência cada vez mais acelerada, mais grosseira e mais vil de uma língua que alguns raros homens, os escritores que Pessoa via na figura dos jogadores de xadrez, continuaram a utilizar com uma perfeição que ela nunca antes teve.

Pergunta - Qual deve ser a posição do escritor na época actual, não apenas em Portugal como no mundo?

Resposta - Amar a verdade.

Pergunta - Face a uma Pátria em perigo, o escritor, que também é cidadão, em que sentido deve orientar a sua missão intelectual, responsável dentro de uma sociedade?

Resposta - Dizer a verdade.



QUINTA ILUSTRAÇÃO

que mostra como a grande deturpação está internacionalizada

com três notícias: Pablo Neruda e o Diário de Notícias, Ionesco e o Observer, M. Elliade e a Gallimard

A. Pablo Neruda e o Diário de Notícias





Pablo Neruda




André Coyné é um escritor e professor francês, minucioso e profundo conhecedor da literatura da América do Sul, onde viveu largos anos. Em 1973, habitando em Lisboa, escreveu, provocado, um artigo sobre Pablo Neruda, um mês depois de este poeta ter morrido. A provocação que o levou a escrever o artigo foi o coro de elogios a Neruda que, a pretexto agora da sua morte, mais uma vez se fazia ouvir na imprensa de todo o mundo. O artigo de Coyné começa assim: "Lamento discordar do coro."

Aí nos diz Coyné que tudo que de valioso, significativo e autenticamente poético Pablo Neruda escreveu, está na obra elegíaca que publicou antes de 1935. Vinte Poemas de Amor y un Cancion Desperada e as Residencias en la Tierra. De tal modo é assim que quando, depois dos seguintes vinte anos de "verborreia, incontinências e diatribes", ainda uma vez se salva é com um regresso à elegia nos Cem Poemas de Amor. Isso o leva a concluir:"Um livro basta para assegurar a perpetuidade de um poeta e Neruda podia ter morrido em 1935."

O que André Coyné nos descreve é, efectivamente, uma impressionante carreira de aviltamento perante a política, a publicidade, o dinheiro e a lisonja que Neruda percorre desde 1936 até à sua morte em 1973, desde que adere ao comunismo, escreve o Nuevo Canto de Amor a Staline e obtém, para toda a vida, os serviços da "máquina propagandística, à escala mundial, da Terceira Internacional". A poesia deixa de valer para ele e chega a anunciar, em 1941: "Passo a dedicar-me à política e à minha colecção de conchas." O que daí em diante faz já não é efectivamente poesia, mas um "alinhar de vocábulos descompostos" onde se amontoa "a confusão e a chateza imaginativas mal disfarçadas pelo ribombar da litania": España en el Corazon, Canto General, Alturas de Macchu Picchu. Repudia a obra elegíaca, declarando que é "perniciosa, que não deve ser lida pela juventude, que são poemas empapados de pessimismo, que não ajudam a viver mas a morrer". Todavia, acrescenta Coyné, "não suspende a sua venda nem proíbe as suas reedições as quais, obtendo mais procura com o repúdio anunciado, convertem Neruda no único poeta a quem a poesia permite rivalizar, em sibaratismo, com as estrelas de Hollywood". Observando a verborreia que passam a ser os seus poemas, um outro poeta sul-americano, César Moro, "cuja voz crescerá à medida que a de Neruda irá enfraquecendo", dirá que "a poesia não perdoa".


Em todo este processo, a degradação de Neruda chega a atingir as vilezas mais baixas: ao poeta peruano César Vallejo, comunista como ele mas caído na pobreza e na doença, faz desaparecer os escritos para, depois de o ver morto, lhe dedicar um poema dizendo-se seu "amigo para lá da vida e da morte"; cantando Estaline quando Estaline manda, logo canta o que o substitui ("Malenkov agora continuará a sua obra") e logo o repudia: "bigodudo deus com botas postas/e aquelas calças impecáveis/engomadas pelo servilismo realista"; a espreitar o Nobel, namora a luxuosa propaganda do capitalismo americano que, entre outras coisas, lhe dedica um número de "Life"; troca, na reedição de velhos poemas panfletários, os nomes de Trujillo, Somoza e Carias, escritos em 1948, pelos de Nixon, Frei e Pinochet, escritos em 1973, sem alterar os versificados atributos: "hienas vorazes da nossa história". À medida que os anos avançam, a impudicícia e a avidez da lisonja não diminuem. Em 1967, faz encomendar a uma sua secretária, Margarita Aguirre, um ensaio sobre ele próprio no qual os elogios mergulham no grotesco: desde dizer-se, em cada frase ou gesta, "0 maior poeta do mundo" até se descrever que, sendo ele de grande corpulência, mas de pés e mãos minúsculos, e gostando de bailar, que "a sua falta de graça quando baila é a graça mesma". A máquina propagandística da grande deturpação acompanha até ao fim todo este delírio grotesco. Quando este mediano poeta morre, em 1973, "o tradutor oficial de Neruda para francês, Jean Marcenac, não hesita em dizê-lo poeta tal que é muito possível que não tenha havido dez como ele desde que foi outorgado ao homem o poder da palavra".

Tal é o artigo em que André Coyné desmascara uma exemplificativa montagem da grande deturpação. O autor leva-o à direcção do Diário de Notícias que não era, então, a que é hoje. O artigo foi recusado. André Coyné publicou-o agora em apêndice ao primeiro volume do livro Sobre Portugal Nestes Tempos do Fim.


B. Ionesco e o Observer




Eugène Ionesco




Quando se representaram em Londres as primeiras peças de Ionesco - As Cadeiras e A Lição - o crítico Kenneth Tynan, do celebrado, influente e esquerdista Observer, escreveu um artigo representativo das posições políticas de obediência ideológica, no qual afirmou:

"Os aplausos entuasistas do público tiveram uma intensidade ensurdecedora, uma espécie de frenesim que é sintomático de um novo culto. O culto é Ionesco. E eu farejo aí um perigo [...] O perigo começa quando se apresenta como exemplar, como único caminho aberto ao teatro do futuro, esse lúgubre mundo do qual serão excluídas para sempre as heresias humanas de fé na lógica e de fé no homem. [...] O teatro de Ionesco é picante, é excitante. Mas não passa de um divertimento marginal. Não avança pela estrada larga, e os que pretendem que é nela que ele se encontra, não servem Ionesco nem servem o teatro".

Este artigo provocou uma resposta de Ionesco. Vale a pena transcrever os seguintes trechos:


o artista não é um Messias:

"Trazer uma mensagem aos homens, pretender dirigir os destinos do mundo, ou salvá-lo, é o que se propõem os fundadores de religiões, os moralistas e o políticos, e todos nós temos pago bem caro essas pretensões."


a arte não é ideologia:

"Uma obra de arte nada tem que ver com as doutrinas. já uma vez escrevi que uma obra de arte que não fosse senão ideológica, seria uma total inutilidade, uma tautologia, inferior à doutrina que se propusesse representar e que terá sempre uma melhor expressão na linguagem demonstrativa e discursiva. A obra de arte possui um sistema de expressão que lhe é próprio, tem meios próprios para apreender directamente o real".


a arte não é realista:

"Quanto à noção de realidade, o Sr. Tynan parece já conhecer um modo do real: o modo chamado social que é, a meus olhos, o mais superficial, o menos objectivo, pois está sempre sujeito às interpretações passionais."




Ionesco




a política é o mal:

"Creio que o que nos separa uns dos outros é esta política que ergue muralhas entre os homens e constitui uma origem permanente de mal-entendidos. Se me fosse permitida a expressão paradoxal, direi que a verdadeira sociedade, a autêntica comunidade humana é extra-social. É uma sociedade mais vasta e mais profunda, que se revela nas angústias comuns, nos desejos e secretas nostalgias e essas angústias, que a acção política se limita a reflectir e a interpretar muito imperfeitamente. Nenhuma sociedade conseguiu jamais abolir a tristeza humana, nenhum sistema político pôde alguma vez libertar-nos da dor de viver, do meio de morrer, da sede de absoluto. É a condição humana que governa a condição social, não o contrário."


as ideologias são álibis dos poderosos:

"Se alguma coisa existe que deva ser desmistificada, são as ideologias que oferecem soluções acabadas. Constituem elas álibis provisórios dos partidos que chegam ao poder. A linguagem cristaliza-as, fixa-as. Tudo deve ser continuamente reexaminado à luz das nossas angústias e dos nossos sonhos, e a linguagem anquilosada das revoluções instaladas deve, sem cessar, ser sujeita a um descongelamento, a fim de não se perder a fonte original, a verdade primeira".


a obra de arte não é redutível:

"Poderia eu agarrar numas tantas obras de arte, numas tantas peças de teatro, não importa quais, e aposto que seria possível atribuir a cada uma delas, sucessivamente, um carácter marxista, budista, cristão, existencialista, psicanalítico; provar como a obra assim sujeita a todas estas interpretações e atribuições e confirma, de modo exclusivo, tanto uma ideologia como a ideologia contrária. Tal possibilidade só demonstra, quanto a mim, que toda a obra de arte está fora das ideologias, não é redutível a uma ideologia".


arte e comunicação:

"A questão de saber se a obra se encontra, ou não, na estrada larga, se é não conforme com aquilo que nós quereríamos que ela fosse, resulta de um juízo preestabelecido, juízo portanto exterior, insignificante e falso. Uma obra de arte é a expressão de uma realidade incomunicável que se tenta comunicar e que, às vezes, se consegue comunicar. Esse é o seu paradoxo e a sua verdade."

Com esta resposta de Ionesco, abriu-se, nas páginas do Observer, uma polémica que marcou data na história do teatro contemporânea. Nela intervieram, entre outros, Orson Welles e Philip Toynbee. Um dos intervenientes considerou a resposta de Ionesco "a mais lúcida refutação da actual teoria do realismo social".

Entretanto, K. Tynan replicou com um novo artigo intitulado "Ionesco e o Fantasma". Ionesco envia ao Observer uma segunda resposta sua. Generoso, o famoso semanário comprou-lhe os direitos de publicação em Inglaterra dessa resposta, mas não a publicou. O autor veio a incluí-la, anos mais tarde, no livro Notes et Contre-Notes.



SÉTIMA ILUSTRAÇÃO

que mostra como a grande deturpação ilude até aqueles que estão mais avisados

com uma recensão do livro Le Cinquième Empire



Dominique de Roux à esquerda


O livro simultaneamente mais interessante e mais valioso entre tantos que, depois de Abril de 1974, se escreveram sobre Portugal, é sem dúvida o de Dominique de Roux, Le Cinquième Empire (Ed. Belfont, Paris).

A tese do autor é a seguinte: Portugal foi o último dos impérios e seu termo, agora dado, abre a história da humanidade para o Quinto Império, aquele que, anunciado nos livros da tradição mais sagrada e mais secreta, será o império da universalidade. Em termos mais correctos: encerrado o longo ciclo do imperialismo, a humanidade vai entrar no ciclo do universalismo. Ao poder na terra e no tempo, sucederá o poder do uno e do espírito. A dissolução do último império terrenal, equivale à putrefacção, ou saturnificação, onde germinará a flor.

No que tem de narrativo (toda a história da preparação e execução do golpe do 25 de Abril), o livro de Dominique de Roux é uma minuciosa descrição de um povo putrefacto. A famosa lamentação shakespereana de que "alguma coisa está podre no reino da Dinamarca", pode completar-se agora com a exultação de que "tudo está podre no reino de Portugal". Isso explica que, sendo este livro o mais interessante e valioso de quantos se publicaram sobre Portugal, seja também o mais silenciado, o que "ninguém leu", o que nenhum jornal noticiou. Com efeito, todos ali figuram mergulhados na podridão, desde os campeões militares e os caudilhos políticos que executaram o golpe até aos homens e mulheres mais em evidência na velha e na nova sociedade familiar portuguesa. Todos são descritos "en su tinta"; os campeões militares, por exemplo, surgem em ambientes e actos, em que o autor também participou, vividos na guerra do ultramar de cuja realidade e sentido todos foram igualmente ignorantes, moscas saturninas e tontas.

Dominique de Roux era uma personalidade enigmática: jornalista de celebridade mundial, era também "intelectual", de um tipo que os jornalistas nunca são; nos campos de guerra em África, entrevistava, antes do 25 de Abril, Kaúlza, Spínola e Otelo, e, depois do 25 de Abril, Jonas Sawimbi, mas ao mesmo tempo fundava e dirigia a colecção "10-18", que todos nós conhecemos, e organizava os sucessivos números da revista Exil. Nos primeiros dias que se seguiram ao golpe de Abril, três diários comunistas publicavam a várias colunas da 1.ª página o seu retrato com a legenda: "Á solta em Portugal um dos principais agentes da reacção internacional..." Tinha preocupações de aristocrática elegância e havia quem dissesse que era um dirigente da polícia secreta francesa, o que este seu livro permite confirmar. Morreu de repente, quando acabava de publicar o Le Cinquième Empire e dias depois da invasão do Congo pelos comunistas de Angola. Há quem diga que foi assassinado.

Ao lermos o Le Cinquième Empire, mais uma vez evocámos o antiquíssimo mito de como tantas vezes se vai procurar longe o que se tem à mão. Procurando a "flor azul" na "distância impossível de percorrer", Dominique de Roux só pôde conhecer, do último império, a putrefacção. Nunca foi aonde o mito do império do espírito é todos os anos celebrado, embora ponha em epígrafe do seu livro um poema de Natália Correia, e não mostra conhecer (exceptuada uma apressada alusão a António Telmo) aqueles que, como Agostinho da Silva, melhor lhe poderiam falar. O jornalista atraiçoou o intelectual. Ofuscado pelas vedetas, passou ao lado do que buscava e não o viu. Condenou-se a só ver a podridão (in ob. cit., pp. 166-179).


Kaúlza de Arriaga e Dominique de Roux