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terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Em caso de heresia notória...

Escrito por Álvaro Pais




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[…] Outra heresia diz que o Papa perde a jurisdição quando não está em Roma, o que é contra a Sagrada Escritura, porque onde está o Papa, aí está a Igreja Romana, a Sé Apostólica, a cabeça da Igreja, pois que Pedro significa a Igreja […].

O Papa também é o sucessor de Cristo, em que está a Igreja […].

Item, a Igreja, que é o corpo místico de Cristo […], e que é a congregação dos católicos […], não é o limite das paredes. Está onde estiver a sua cabeça, isto é, o Papa […].

Ora, o Papa não recebe a jurisdição da cidade ou sede de Roma, mas de Deus […]. Tem jurisdição universal ordinária em todas as igrejas do mundo […]. E embora, por humildade, assim se queira chamar, ele é o chefe da Igreja universal […].

Por outro lado, o lugar não santifica os homens, nem Roma o Papa, mas são os homens quem santifica o lugar, e o Papa quem santifica Roma […].

Cristo também não deu a sua jurisdição e o seu poder ao lugar ou a Roma, que é uma coisa inanimada, mas a Pedro e seus sucessores […].

[…] Outro erro há que sustenta que o Papa pode ser julgado e condenado pelos inferiores, mormente por um concílio geral, especialmente em caso de heresia. Este erro é destruído pelos sagrados cânones, pois que ninguém, na terra, julga a primeira Sé Romana […]. Na verdade, o Papa, na terra, não tem por juiz senão a Deus, cujo vigário é […].

Contudo, se o Papa é incorrigível, em caso de heresia notória, vaga o Papado, e a Igreja prover-se-á de outro Papa […].




Bergoglio na "igreja mundialista". Ver aqui e aqui












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sábado, 10 de março de 2012

Colírio da Fé contra as Heresias (ii)

Escrito por Álvaro Pais




O Triunfo de Santo Agostinho, de Claudio Coello


[10] Item, disse o dito Escoto que Santo Agostinho e S. Bernardo foram traidores, e que nada valia o que tinham feito e escrito; e que Santo António, da Ordem dos Frades Menores, que foi canonizado pela Igreja, tivera uma concubina e que, por isso, o Papa o mandara encarcerar.

E assim blasfemou dos santos doutores, aprovados pela Igreja, e contra os seus escritos pela mesma Igreja autenticados […].

Item, blasfemou dos opúsculos de Santo Agostinho, bispo de Hipona, e daqueles cujas regras foram aprovadas pela Igreja […].

E, depois de Paulo, julgo que não houve, na Igreja de Deus, maior luz na ciência do que Agostinho, que a Igreja louva […].

Por consequência, este herege, inimigo da Igreja, reprova o que a Igreja aprova e ataca-a violentamente. […]

E aquele que toca nos santos, toca em Deus que os santificou […].

Este herege odeia Agostinho com razão, porque, segundo Bernardo, Agostinho foi o malho dos hereges.

Se, porém, Santo António tivesse sido imundo como este Tomás, a Igreja não o teria canonizado, mas encarcerado, como este imundo herege o foi em Lisboa. E ter-lhe-ia dito também: «Ficam fora os cães, e os feiticeiros, e os impudicos» (Apocalipse, últ.).

Quanto também ao que disse o mencionado e imundo Tomás Escoto, que S. Bernardo teve uma concubina, e que os seus irmãos a podiam ter, disse com falsidade, e blasfemou contra a Santa Igreja, que o canonizou, como há pouco disse. E os monges prometem castidade, na qual nem o Papa dispensa […].

[11] Item, sustentou nas escolas o dito herege Tomás, na minha presença, que a virtude curativa do pai desce para o filho. O que é erro, visto que, se aquela virtude vem de Deus, não é dada por sucessão […], e a graça do Espírito Santo não é dada por sucessão, mas graciosamente […].

[12] Item, sustentou nas escolas, o dito Tomás, quando eu pessoalmente disputava contra ele acerca das suas heresias, que Cristo não dera a S. Pedro e seus sucessores e bispos o poder que tinha na terra, e tal como ele o tinha. O que é contra Mateus, XVI: «tudo o que ligares, etc…» […].

Porém, já acima extirpei mui largamente esta heresia, na primeira parte desta obra. Nesta heresia teve ele por adjuvantes nas escolas alguns falsos religiosos das Ordens dos Mendicantes, que frequentemente atacam o poder papal, desprezam os decretos e o anátema da Igreja contra eles aprovado, consoante lhes disse […].

[13] Item, disse o dito herege Tomás que, antes de Adão, houve homens, e que por eles Adão fora feito; e assim infere que sempre houve mundo, que sempre nele existiram homens, supondo, com o seu idólatra Aristóteles, o mundo eterno.

Porém, esta heresia é destruída pelo Gén., I e II, porque, como aí se diz, antes de Adão não existiu nenhum homem, e o mundo teve começo.


A Queda da Humanidade, de Hendrik Goltzius

  
[14] Item, disse publicamente em Lisboa, na Igreja dos Santos, que o poder que Cristo dera a S. Pedro e aos Apóstolos não o dera aos sucessores destes. O que é herético, visto que destrói todo o poder da Igreja, tornando nulas a Igreja e suas chaves […].

E esta heresia supõe que, na Igreja de Deus, não há remissão dos pecados nem sacramentos. Pelo que também nisto é herege, pois que determina mal acerca dos sacramentos […].

[15] Item, disse o dito herege Tomás que o mundo não deve ter fim. E isto disse, por isso que supõe, com o filósofo pagão, o mundo eterno […]. E assim nega o Juízo futuro, a ressurreição, e a vida do século futuro, que são artigos de fé, conforme se vê nos símbolos da fé «Creio num só Deus» e «Creio em Deus» […].

E assim deve ser considerado um dos piores hereges […].

Mas esta heresia é expressamente destruída em Mateus, últ.: «Eis que eu estarei convosco todos os dias até à consumação do século». […]

[16] Item, blasfemou este herege Tomás, dizendo que Aristóteles era melhor que Cristo, o qual fora um homem mau, e suspenso [na Cruz] por mor dos seus pecados, e que se isolava a falar com mulheres ordinárias. E assim este herege dos hereges nega Cristo, Senhor e homem, que não pecou, e em cuja boca não se achou dolo algum […]. Foi suspenso, na verdade, por causa dos nossos pecados que levou sobre o madeiro da Cruz, a fim de que, mortos para o pecado, vivamos para a justiça, como ali se diz.

Que, porém, se isolou com a Samaritana junto do poço, é certo […], porque era o seu Salvador e Messias […]. Ora, os Apóstolos, vendo-o ali falar com uma mulher, embora se admirassem por causa da sua extrema honestidade, contudo não lhe disseram «Por quê e o que falas com ela?» […], porque o não tinham por suspeito. Porque é que, então, este imundo herege nota de imundície o Santo dos Santos, o Filho de Deus e da Virgem, e ele próprio virgem que desposou a Igreja virgem? […]

Por que razão também compara o filósofo idólatra ao seu Criador, o Senhor Jesus Cristo […], e, mais ainda, o exalta, blasfemando contra Cristo?

Porém, este herege nega todos os artigos que falam de Cristo, e, com os Judeus, fá-lo um malfeitor. […]

[17] Item, [afirmou] o dito herege Tomás que Aristóteles fora mais sábio, mais subtil, e falara mais elevado que Moisés. Não é de admirar que diga isto, porquanto, na heresia acima, que começa «Este ímpio herege Tomás também espalhou» […], disse que Moisés fora enganador dos Judeus. Mas, assim como na outra, também nesta fala falso. Na realidade, a ciência natural de Aristóteles não se pode comparar à ciência espiritual de Moisés, que a recebeu imediatamente do Espírito Santo do qual estava cheio […]. A ciência aristotélica é loucura perante Deus, porque […] o que é loucura em Deus é mais sábio que os homens, e o que é fraqueza em Deus é mais forte que os homens. Ademais, a sabedoria dos filósofos é, não só terrena, como também muitas vezes diabólica; e a de Moisés veio do alto […]. Moisés profetizou de Cristo […]; e o Filósofo ignorou Cristo, sabedoria do Pai […], e, por isso, foi estulto.



Moisés



[18] Adoecendo este herege Escoto, e sendo-lhe dito que se confessasse e comungasse, respondeu que era conveniente crer nas coisas que os clérigos diziam do corpo de Cristo e da absolvição pelas chaves, como dando a entender que não cria, mas por medo fingia crer. E não é de admirar que não creia no corpo de Cristo e nos sacramentos, aquele que não crê em Cristo. Blasfemo como os Judeus, e também apóstata da fé, blasfema […].

[19] Blasfemou também este herege Tomás contra Cristo, dizendo que Ele fazia milagres não por virtude divina, mas por arte mágica e virtude natural. Porém, nesta como em muitas outras heresias sobreditas, judaíza com os Judeus, com os quais de facto conversa noite e dia. […]

Este, pois, infeliz como os Judeus diz que Cristo expulsava os demónios em nome de Belzebu. Mas Ele expulsou os demónios, e opera outras virtudes e curas pelo Espírito de Deus e pelo poder do Espírito Santo, assim como, reunidos os seus discípulos, lhes deu virtude e poder sobre todos os demónios. Na realidade, fazer verdadeiros milagres e curas é próprio só de Deus e daqueles a quem Ele confia esse poder […].

Pelo poder do diabo fazem-se milagres falsos e curas aparentes, não verdadeiras, ou provisórias […]. Por isso, também do anticristo diz o Apóstolo […]: «e a vinda dele é por obra de Satanás com todo o poder, e com sinais e prodígios mentirosos, e com todas as seduções da iniquidade».

Porque este Escoto é feiticeiro e nigromante, e fez falsas curas, lançou a sua raiva contra Cristo, Deus do Céu e da Terra. Se não estivesse possuído do demónio, não diria, como os seus amigos Judeus, que o Filho de Deus expulsava os demónios em nome de Belzebu. Mas, porque nega a Cristo, como acima muitas vezes se provou, contra Ele atira pedras de blasfémias. Segundo Agostinho, tendo Cristo dado aos Apóstolos o poder de curar a natureza […], muito mais ele próprio, Criador da natureza, a reformava e curava, como se vê nos Evangelhos.

[20] Nega também este heresiarca Tomás que há anjos e demónios, judaizando com os Judeus, que estabelecem que não há anjos e que os anjos maus não caíram. Criado o Céu empíreo, logo no princípio ficou cheio de anjos. Lúcifer caiu com os seus sequazes. Isaías, XIV; e Lucas, X: «Eu via – disse – Satanás cair do Céu como um relâmpago». […]

Dos anjos bons e maus fala João em quase todo o Apocalipse, e especialmente nos cap. XII, VIII e IX. […]

O velho e o Novo Testamento estão cheios de anjos bons e maus, demónios, e este pérfido herege nega a sua existência! Oxalá que, por intervenção do Apóstolo, fosse este Tomás apanhado e entregue corporalmente a Satanás, ao menos uma vez, a fim de se salvar no dia do Senhor […], e então este vexame dar-lhe-ia a compreensão de que há demónios, e o conhecimento dos anjos bons e maus, da sua criação e queda, de como se apoderam dos corpos e da sua pessoa e malícia […].


Se este infeliz Tomás não se arrepender sinceramente – o que é difícil -, ouvirá, com os outros ímpios, uma voz dizer-lhe: «Ide malditos para o fogo eterno, que foi preparado para o demónio e para os seus anjos». […]

Como é ele também capaz de negar a existência de demónios, quando a meretriz, sua barregã, juntamente com outros familiares seus, testemunha contra ele que, certas noites, apagada a candeia, pegando na espada, invocando e sentindo com barulho ensurdecedor os demónios, fechada a porta e expulsa a meretriz, caía como morto e ficava por terra, até que ela abria a porta, entrava, o levantava do chão, o punha no leito e se juntava com ele?

Ora, conforme se contém no Livro contra os Demónios, de João Cassiano, os demónios obedecem aos homens de dois modos: ou conjurados por eles em nome do Senhor, se os homens são santos; ou conjurados com seus sacrifícios e adulações, se os homens são pecadores […] (in ob. cit., pp. 213-217).


quarta-feira, 7 de março de 2012

Colírio da Fé contra as Heresias (i)

Escrito por Álvaro Pais








«O imperador católico Constantino fez guerra ao tirano Maxêncio e, muito aflito, levantava amiúde os olhos para o Céu lhe mandar auxílio. Vê então, durante o sono, o sinal da Cruz rutilar, no alto, com brilho de fogo para o lado do oriente, e ouve os anjos, que o cercavam, dizerem: Constantino, neste sinal vencerás. Então Constantino tornou-se alegre, e já seguro da vitória persignou, na fronte, o sinal da Cruz, que vira no céu. Mudou os estandartes militares para a forma desse sinal e transportou, em sua mão direita, que havia munido com o sinal da salvação, a cruz de oiro, triunfando assim do tirano Maxêncio.

Este sacratíssimo sinal da Cruz até os infiéis defende, como narra Gregório no Diálogo. Jazendo, certa noite, um judeu num templo de ídolo, onde se juntaram muitos demónios, atemorizado, persignou-se. Quando isto viram, os demónios puseram-se em fuga, dizendo: "Ai! Vaso oco, mas persignado!"».


Álvaro Pais («Espelho dos Reis», I, 19).






A POLÉMICA CONTRA TOMÁS ESCOTO

Seguem-se as heresias e erros que Tomás Escoto, apóstata dos Frades Menores e Pregadores, publicamente divulgou, nalgumas partes de Espanha e outros lugares. Algumas confessou ele em juízo, e doutras mantém-se convicto, e está encarcerado em Lisboa.

[1] Disse que o número de anos que os antigos viviam, no tempo da natureza, e de que se faz menção em muitos passos do Génesis, não era verdadeiro. Isto é, que não era verdadeiro que os homens vivessem tanto tempo. Ora, isto é herético porque contradiz a Escritura do Velho Testamento, aprovada pela Igreja […].

Na realidade, convinha naquele tempo, por causa da multiplicação do género humano, viver tanto como o Senhor dispusera: Crescei e multiplicai-vos…», etc. (Gén., e IX, no princípio), Se, de facto, a Escritura mente numa coisa, é suspeita em todas […].

[2] Asseverou ainda o dito Escoto, e confessou em juízo, que aquela profecia de Isaías, VII, «Eis que uma virgem conceberá», não a entendia de Santa Maria, tal como os Judeus também o dizem, judaizando com eles […]. De facto, a Igreja muitas vezes canta, nas festas de Santa Maria, nos capítulos, responsórios, orações, sermões dos santos e suas lições: «Eis que uma virgem conceberá».

Assim também todos os tratadistas católicos entenderam aquela profecia como sendo acerca da Virgem Maria. A este sentido, inteligência e interpretação da Igreja nos devemos prender, bem como à verdade da tradição e dos santos, e não ao sentido judaico e herético, que são inimigos ocultos, e muitas vezes inimigos públicos, de Cristo, da Virgem Sua Mãe e da Igreja Católica, e blasfemos do santo nome de Cristo […].






Devemos atender à inteligência do Espírito Santo, que fala na Igreja, e não na sinagoga dos Judeus, nem nos conventículos dos hereges. […] Também é de saber que, no predito lugar de Isaías, onde a nossa tradução tem Ecce virgo, o hebreu tem haalina ou nahara betula ou uthula. Porém, esta palavra haalinus quer dizer santo belo, segundo Rábano. Donde haalina, isto é, santa. Também as glosas que se põem às referidas palavras de Isaías «Eis que uma virgem», dizem que haalina significa somente virgem núbil e jovenzinha; e observe-se que o hebreu haalina se diz em grego apócrifa, e em latim secreta, porque as virgens costumam esconder-se nos cárceres e aí secretamente morar. […]

Portanto, haalina significa virgem escondida e secreta, isto é, não somente virgem, mas, com epítase, virgem escondida, pois que nem toda a virgem é escondida, nem separada de todo o olhar. Assim, rebecha haalina se lê no hebreu, por exemplo, no Gén., XXIV, e, na nossa tradução latina, «virgem linda em extremo, não conhecida por varão algum, secreta, e guardada com demasiada diligência dos pais».

O hebreu também diz que nahara uetula ou uthula vale o mesmo que menina virgem.

De qualquer modo, pois, que a letra hebraica diga (haalina, ou nahara, ou uthula), a nossa tradução «Eis que uma virgem conceberá», é verdadeira, na letra e no espírito.

Portanto, nunca se poderá encontrar, em tradução alguma, que esta palavra haalina ou nahara ou betula ou uthula ou virgo se diga de mulher casada, mas somente da virgem. […]

Quanto a dizer o herege Tomás que as palavras «Eis que uma virgem conceberá», as disse Isaías de uma sua escrava ou concubina, é falso, porque Isaías, exímio profeta, não era concubinário contra a lei de Deus, como este Tomás, imundo concubinário público. Todavia, porque como sinal, isto é, por milagre, o Senhor disse por Isaías, VII, «o Senhor vos dará este sinal: Eis que uma virgem (ou haalina) conceberá…», etc., não era sinal de que concebesse violada, porque todas as mulheres, quando concebem, estão violadas. Este sinal indicava que virgem se chamaria e conceberia intacta. Se Isaías dissesse de concubina sua que conceberia, não seria isso um sinal.

Disputando eu em Lisboa com um embusteiro hebreu semiculto, disse ele que o sinal consistia nisto: que, estando grávida aquela sua concubina, Isaías predisse que ela pariria um filho, e não uma filha. Mas dizia aquele judeu uma falsidade, pois que não é milagre um natural ou um físico dizer que uma mulher grávida parirá um filho ou uma filha. Porém, foi sinal e milagre uma virgem dar à luz, e dar à luz um filho, Emanuel, que quer dizer Deus connosco. Nunca, de facto, houve mulher alguma que desse Deus à luz, senão a Virgem Maria. […]

[3] Este ímpio herege Tomás também espalhou, na Espanha, que no mundo houve três enganadores, a saber: Moisés, que enganara os Judeus; Cristo, que enganara os cristãos; e Maomet, que enganara os Sarracenos.

O que diz de Maomet é verdade, porque enganou o povo árabe, e porque ele veio da Arábia, donde descendem os Sarracenos. Contra este pérfido pseudo-profeta Maomet, escrevi mais acima, na primeira parte desta obra.

Quanto a dizer de Moisés que foi um enganador, disse uma falsidade, e nisto pertence ao grupo dos hereges que condenam os padres do Velho Testamento, que são pedras preciosas. […] Moisés legislador e não enganador foi pedra preciosíssima e lábio da sabedoria, porque, por meio dele, foi dada a lei […].

A Moisés fala Deus em todo o Pentateuco como de amigo para amigo […].

É recomendado nos Números, XII: «Porque Moisés era o homem mais manso que habitava a Terra».


Moisés e a serpente de bronze


Moisés é recomendado por sua tão inestimável caridade, que queria ser riscado do livro da vida, para que Deus perdoasse ao seu povo (Êxodo, XXXII).

Moisés é recomendado pelo Apóstolo por mor da sua disciplina (Epístola aos Hebreus, XI […]).

E aquele que não crê que o mesmo Deus é o criador da Lei e dos profetas e dos evangelistas e dos apóstolos, é herege […].

Quanto a este celerado sedutor dizer que Cristo Jesus foi um sedutor, judaíza com sua heresia. Os Judeus também chamavam, e chamam, sedutor a Cristo Senhor. […]

Porém, Cristo Jesus, Deus e homem, não seduziu, mas salvou o povo […], conforme atesta todo o Testamento, o Novo e o Velho, e o professa a fé católica.

Porém, chamando a Cristo sedutor, este ímpio Tomás, sumo herege dos hereges, nega todos os artigos da fé que falam da Sua divindade e humanidade, e que vêm em ambos os símbolos apostólicos «Creio em Deus» e «Creio num só Deus» […].

[4] Item, este ímpio Tomás dogmatizou em Lisboa, ao falar do anticristo, que era necessário que em qualquer tempo viesse um homem que enganasse o mundo. Este erro, porém, leva à conclusão de que todo o mundo viveu no erro e viveria no engano, e, por consequência, que perecerá. Ora, do anticristo sabe-se que, sendo contrário a Cristo, enganará muitos, muitíssimos. […] Este chama-se abominação […], porque, por meio dele, que será abominável, a Igreja será desolada.

Quantos embusteiros vieram antes de Cristo Senhor, dizendo que eram Cristo, foram salteadores e ladrões, e as ovelhas não os ouviam. Porém, ouviram a Cristo, Filho de Deus, e acreditaram nele, e por ele como por uma porta entraram na vida […], e porque ele é a própria Verdade que não engana […], e que é totalmente alheia ao embuste […].

Contra este erro e o imediatamente anterior, aplico a este Tomás as palavras de João, na 1.ª Canónica, cap. II: «Quem é mentiroso senão aquele que nega que Jesus é o Cristo? Este é um anticristo, que nega o Pai e o Filho»; e depois: «Isto vos escrevi acerca daqueles que vos seduzem». E no princípio do capítulo IV: «Porque muitos falsos profetas vieram para o mundo»; e em seguida: «todo o espírito que divide Jesus Cristo, não é de Deus; mas é um anticristo, do qual vós ouvistes que vem, e agora está já no mundo». E na 2.ª Epístola de João, I: «muitos sedutores se têm levantado no mundo, que não confessam que Jesus Cristo tenha vindo em carne; e este tal é o sedutor e anticristo», como Escoto sedutor e anticristo.

[5] Item, disse o sedutor Tomás publicamente, nas escolas de decretais em Lisboa, que nas palavras de Isaías, IX, «Deus Forte, Pai do século, futuro…», etc., aquele Deus Forte era um nome próprio, e que não fora dito por causa de Jesus Cristo – o que é herético dizer, é perverter o entendimento da letra […].

Deve-se recorrer à inteligência comum da palavra […]. Por outro lado, os precedentes declaram os subsequentes […]. Ora, nas profecias havia precedentes, Isaías, IX: «Porquanto um menino nasceu para vós, e um filho nos foi dado»; e continua: «e será chamado Admirável, Conselheiro, Deus, Forte…», etc. Isto toda a Igreja dos Santos o entende, sem a menor dúvida, do meu Senhor Jesus Cristo que nasceu para nós, isto é, para nossa salvação, como um menino filho de homem, do ventre virginal. E ele próprio, Filho de Deus e Deus, nasceu para nós, do Pai, para nossa salvação. O qual Filho se chama Deus forte, porque é Deus, Filho do pai Deus Pai […].

E que este Filho de Deus é o Deus que nasceu da Virgem vê-se no mesmo Isaías, VII […].



Anunciação da Santíssima Virgem Maria pelo Arcanjo S. Gabriel



Item, Baruch, notário de Jeremias, ou Jeremias por intermédio dele, diz (Baruch, III, no fim): «Este é o nosso Deus, e nenhum outro lhe é comparável»; e abaixo: «Depois disto foi visto sobre a terra, e viveu com os homens».

[6] Tomás afirmou ainda que as almas, depois da morte, são reduzidas ao nada. Contra isto diz o Gén., II: «E o homem tornou-se alma vivente». E, porque ele é a imagem de Deus […], assim como Deus não morre, também ele não morre […].

Este miserável, que a sua inane filosofia cegou, dizendo assim, nega a ressurreição do homem, que é composto de alma e corpo […], assim como Deus não morre, também ele não morre […].

[7] Item, afirmou o dito Escoto, perante mim e muitos outros, em Lisboa, que Cristo era filho adoptivo de Deus, e não próprio ou natural, e é assim um herege bonosiano e arriano […].

[8] Item, disse esse imundo concubinário e herege Tomás que Santa Maria fora virgem até uma certa altura em que foi violada. E assim nega a virgindade da Virgem Maria, e assim é daqueles hereges chamados antidicomaritas, que contradizem a virgindade de Maria. […]

[9] Item, disse, perante mim e muitos escolares, nas escolas de decretais, que a fé melhor se prova pela filosofia do que pelo decreto, pelas decretais e pelo Novo e Velho Testamento - afirmação que é herética por muitos motivos.

Primeiro, porque a fé não se prova. Na verdade, segundo o Apóstolo, a fé é o fundamento das coisas que se esperam e a demonstração das coisas que não se vêem [...]. Donde, magistralmente, é assim definida: a fé a certeza voluntária das coisas ausentes, isto é, a certeza constituída acima da opinião e abaixo da ciência. Com efeito, a ciência tem o conhecimento, a fé não.

De modo que, se alguma coisa se pode dizer prova de fé, é somente pela autoridade da Sacrossanta Escritura e não pela razão natural, visto que os artigos de fé estão acima desta. Aquele, porém, que tem verdadeira fé cativa a inteligência a favor de Cristo e Sua fé. Donde Gregório: «Não tem merecimento a fé daquele a quem a razão humana oferece uma experiência». Que razão natural pode induzir que do nada alguma coisa se forma? Daqui o Filósofo dizer, naturalmente falando: Do nada, nada se faz, e por isso disse que o mundo é eterno, mas como que caiu em heresia, porque não teve fé. De facto, Deus omnipotente produziu do nada todas as coisas criadas na essência, pois que Ele próprio é o sumo ente e o primeiro incriado, do qual todos os seres existem por criação, de modo que ele próprio existe por si, e todos os seres por ele. De maneira que assim o primeiro ente difere dos outros entes, e todos os seres criados glorificam o primeiro ente incriado, do qual procedem e no qual subsistem, não podendo por isso o ser criado glorificar-se perante o Criador. [...]

Quem poderá provar pela natureza [...] que uma virgem dá à luz, que os mortos ressurgem, que a àgua consagrada no baptismo apaga os pecados, que Deus sofre na carne e outros artigos de fé que se provam pela Sagrada Escritura, porque se crê neles? Por isso, a verdadeira fé prova-se a si mesma, porque se crê [...]. Crer de outra maneira, isto é, provar a fé pela natureza, é falhar na prova. Ceda, portanto, a natureza ao milagre, e realize-se a virtude sobre o costume [...].

Item, como será possível que a fé seja provada por filósofos descrentes e idólatras, que, embora tenham tido sobre Deus conhecimento enigmático e mediante as criaturas, contudo não o glorificaram como Deus, e não serviram o Criador, mas a criatura [...]? Aquele que não tem fé, como a pode dar a outrem? [...] E Agostinho, no livro Contra Fausto Maniqueu: «Se se diz que Sibila, ou Orfeu, ou outros vaticinantes e filósofos dos gentios predisseram algo de verdadeiro acerca de Deus, isso vale, na verdade, alguma coisa, para confundir a vaidade dos pagãos e não para abraçarmos a sua autoridade. Acerca do advento de Cristo, há tanta diferença entre a autoridade dos profetas e a curiosidade dos sacrílegos, como entre a pregação dos anjos e a confissão dos demónios». [...]

Por consequência, a fé provada e sustentada pelas autoridades da Sagrada Escritura, pelos decretos, e pelas decretais, isto é, por aqueles elementos com que a Santa Igreja Romana transmite, corrobora e declara a fé. A eles nos devemos ater, e não à filosofia e à disputa dialéctica, que nutre as heresias e diminui e enfraquece a simplicidade da fé.

Quanto ao que diz o dito herege, vãmente envaidecido na sua filosofia, que o mundo seria mais bem regido pela filosofia do que pelos decretos, decretais e outros direitos, é heresia da mesma espécie. Isto é falsíssimo, porque os direitos canónicos e civis, promulgados de fonte divina [...], regem o mundo, conforme, de facto, se colhe do princípio dos digestos, do código, dos decretos e das decretais do Livro Sexto e das Clementinas.






Em vão, pois, teria Deus dado a lei por meio de Moisés, dos profetas, dos Evangelhos e de seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de cujas leis os corpos e almas são regidos, os maus castigados e os bons recompensados [...], a fim de que o mundo viva em paz [...].

E naquilo que os filósofos disseram de verdadeiro, falaram teórica e não praticamente. Assim os direitos que praticam todos os casos. Pelos direitos, faz-se mais evidente a determinação, a disputa e, muitas vezes, a corrupção da fé (in Álvaro Pais, Editorial Verbo, 2001, pp. 208-213).

Continua


domingo, 28 de agosto de 2011

Estado e Pranto da Igreja

Escrito por Álvaro Pais 




Sé Catedral de Silves


«No século XIV foi Bispo de Silves D. Álvaro Pais, clérigo natural de Santarém, que antes exercera o cargo de Secretário do Papa João XXI, em Avinhão. Era homem extremamente culto, autor de vários trabalhos, entre os quais Do Poder Papal e Colírio da Fé contra as Heresias. Defendeu sempre a supremacia do poder papal sobre o dos reis. 

Em Silves malquistou-se com a população pelo facto desta se manter em erros e vícios como a poligamia, que muito atacou, e com o Comendador de Mértola. Por esse motivo, vítima de ameaças tremendas e de perseguição, teve de fugir da cidade. Diz uma tradição que, ao abandonar Silves, amaldiçoou a cidade do alto do Monte da Jóia e que, por isso, Silves começou desde logo a decair.

Em virtude de um conflito com o Rei D. Afonso IV, que o queria submeter às suas justiças, D. Álvaro Pais refugiou-se em Sevilha, onde morreu».


Garcia Domingues 





Estado e Pranto da Igreja


E que ninguém na terra pode apelar, salvo para Deus, do seu [Papa] juízo e sentença pronunciada de ciência certa […], porque apela-se do menor para o maior […]. Ora, o Papa só tem Deus como superior […]. Creio, no entanto, que se poderia apelar do Papa mal informado para o informar bem. […] Com efeito, podendo o Papa pecar e ser enganado como homem […], não deve ele, que foi posto para corrigir os erros dos outros, envergonhar-se se corrigir o erro próprio, a fim de não nascerem injustiças da fonte donde manam os direitos […] Também fez em favor disto o que se lê de Alexandre Magno, monarca do Oriente, quando uma vez cheio de fúria condenou à morte um seu soldado. Como apelou da sentença para o imperador, este perguntou-lhe: «Acaso não sou eu o imperador?» Ao que observou o soldado: «Não, porque o imperador não se enfurece». Devido a isto, o imperador Alexandre revogou a sentença, dizendo: «Dizes a verdade».

[…] Também em razão da jurisdição, que é boa, o Senhor determina se obedeça mesmo aos maus superiores. Causa I, q. I, cap. Non quales: «Portanto, considera, imperador: se ele disse para serem ouvidos os que se sentavam na cadeira de Moisés, quanto mais julgas que devem ser obedecidos os que se sentam na cadeira de Pedro?».

[…] E que a Igreja universal não pode errar senão em seus membros corruptos […], porque Cristo, que é a sua cabeça, ora pela fé dela […]. O Pai sempre ouve e atende a oração do Filho.

[…] E que, naquilo que não vai contra os artigos da fé e coisas a eles adjacentes e contra os sacramentos, o Papa pode mais sozinho que toda a Igreja Católica e os concílios […], porque toda a jurisdição vem dele; ele, porém, recebe-a imediatamente de Deus […].


Vaticano


[…] E que, salvo em certas coisas mínimas, ninguém, nem mesmo o colégio dos cardeais, vagando o papado sucede ao Papa na jurisdição. Todavia, durante a vacatura do Papado, parece que a assembleia dos cardeais pode excomungar ou anatematizar […].

[…] E que, mesmo que nesta vida o Papa faça ofensa ou injustiça a alguém, não tem juiz sobre si, nem é obrigado a escolher juízes ou árbitros a cuja sentença se sujeite, se não quer. […]

E não se diga: assim, o Papa, às vezes, agravará uma pessoa, esta não encontrará justiça sobre a terra, e deste modo perecerá a justiça. Confesso que pode acontecer que o Papa proceda contra a justiça ou peque […] e que a justiça algumas vezes seja banida. Mas não admira, porque muitas coisas, que ficam impunes neste mundo, estão reservadas para o juízo divino […], mormente os actos do Papa […]. E note-se que, se o Papa delinquir, será punido junto de Deus mais severamente que outrem.

Também não é obrigado a eleger árbitros, porque então seria coagido, ao menos por medo da pena, a cumprir a sentença deles […]. Mesmo que entre as partes se estabelecesse ou dissesse que o cumprimento da pena ficava ao arbítrio do Papa, a verdade é que este seria condenado pela arbitragem […]. E, assim, o Papa, que não pode ser condenado por via ordinária, seria condenado por via arbitral, o que não deve fazer-se, pois aquilo que se proíbe por uma via não deve regularmente admitir-se por outra […].

Ora, o Papa nem directa nem indirectamente pode ser condenado, nem dar a ninguém o poder de o julgar, embora, por humildade, o tenha feito algumas vezes […].

E não obsta o que se nota à dist. LXIII, cap. in synodo, na glosa sed numquid, porque não é verdade o que João [André] aí observa: que o Papa, em caso de heresia, pode dar ao imperador o poder de o depor com o consenso dos cardeais. Sendo o Papa constituído pelo Senhor, príncipe e juiz de tudo […], e pelos Apóstolos […], é impossível pelo direito que o próprio Papa possa constituir sobre si outro príncipe ou juiz superior, ou um arquipapa ou um Papa igual a si, tal como também Deus Trindade não poderia constituir outro Deus superior ou igual a si. […]

Portanto, se o Papa permanecesse incorrigível em heresia já notoriamente condenada, e, podendo, não quisesse renunciar ao Papado […], então os cardeais poderiam e deveriam afastar-se dele e escolher outro, porque foi privado por sentença de direito […].

Note-se também que o Papa herético é inferior a qualquer católico, caso em que eu creria que o sínodo universal, que é a cabeça da Igreja em lugar de Deus, visto que a Igreja nunca fica de tal modo vaga que não tenha cabeça, Cristo […] o poderia condenar, assim como o Papa católico pode condenar o Papa não católico […]. E até nesse caso não é necessária sentença, porque a primeira heresia pertinaz priva pelo próprio direito qualquer um do benefício; sim, é privado pelo direito, como acabo de dizer e está expresso nas decretais do livro 6º De Haereticis, cap. VI commissi, § Priuandi, onde diz «[concedemos a faculdade] de privar ou declarar privados das dignidades e outros benefícios eclesiásticos», e no § Sunt autem, onde diz «declarar privados».


[…] E que o Papa tem jurisdição universal em todo o mundo, não só nas coisas espirituais, mas também nas temporais. No entanto, deve exercer a execução do gládio e jurisdição temporal por meio do seu filho o imperador legítimo, quando o haja, como advogado e defensor da Igreja, e por meio de outros reis e príncipes do mundo, como acontece no património da Igreja […], e noutras terras da Igreja por meio de seus governadores. Porque, assim como há um só Cristo, sacerdote e rei, senhor de todas as coisas, assim também há um só vigário-geral seu na terra e em tudo. Para isto, Jeremias, I: «Eis que te constituí hoje sobre os povos e sobre os reinos…», etc. Ora, Jeremias sacerdote foi a figura do Papa, como argumenta Inocêncio III, decretais, De maioritate et obedientia, cap. Solitae, §. Nos autem, onde diz: «para mostrar como alheio ao seu ovil aquele que não reconhecesse como mestres e pastores a Pedro e seus sucessores». Os pastores são tomados por Cristo como senhores das ovelhas. […] Item, invocando o nome do Senhor, Samuel, que, embora não seja sacerdote, figura o Papa, julgou e governou o povo de Israel em todos os seus dias […]. Item, Melquisedech, sacerdote de Deus Altíssimo, foi rei de Salém, isto é, de Jerusalém […], e teve a figura de Cristo […], e, assim, do Papa, vigário de Cristo […]. Item Moisés sacerdote […] representou a pessoa de Cristo […], e governou em toda a sua vida o povo de Israel. […]

Item, o gládio de Pedro é gládio temporal. Mateus, XXVI, diz: «Mete a tua espada na bainha», e causa XXIII, q., I, § I. Item, na família de Cristo, havia dois gládios. Lucas, XXII: «Eis aqui duas espadas», nas quais, segundo o doutores, se entende a dupla jurisdição […]. A favor disto fazem a dist. X, cap. Suscipitis, onde diz «a lei de Cristo submete-vos ao poder sacerdotal e sujeita-vos a estes tribunais» a causa I, q. IV, cap. Quia praesulatus: «Porque o magistério do nosso governo, que, bem sabeis, deve ser solícito, não só com os interesses dos sacerdotes, mas também com os dos seculares». Dist. XXII, cap. Omnes: «o qual (Cristo) confiou ao santo clavígero da vida eterna os direitos do império terreno e os do império celeste simultaneamente» quando disse «Apascenta as minhas ovelhas» […], palavras estas com que Cristo fez a Pedro pastor e prelado do mundo […], não distinguindo nessas palavras entre estas e outras ovelhas, clérigos ou seculares.

Item, o Papa priva os reis dos seus reinos e o imperador do seu império […].

Item, o imperador presta juramento de fidelidade ao Papa […].

Item, o Papa intromete-se na herança temporal […].

Item, como as almas são mais preciosas que os corpos, e as coisas espirituais mais dignas que as temporais […], àquele a quem foram confinadas as almas e as coisas espirituais, muito mais se devem confiar os corpos e as coisas materiais […].

Item, Cristo usou os dois gládios, como se lê e nota na dist. X, cap. Quoniam. Ora, Cristo, constituindo Pedro seu vigário, não lhe dividiu a jurisdição que tinha; entende-se que lha concedeu completamente como a tinha […].

Item, o Papa é vigário não dum puro homem, mas de Deus […]; logo, também pertencem ao Papa a terra e a sua plenitude.

Item, assim como há um só Deus, uma só fé, como acima se disse, um só vigário de Deus, assim também há uma só jurisdição.

Item, os imperadores pagãos e idólatras nunca possuíram justamente, tomando-se a justiça no sentido teológico ou divino […], porque quem não está verdadeiramente com Deus Senhor de tudo, mas contra ele por idolatria ou heresia, nada pode verdadeiramente possuir sob Ele […]; logo, os reinos dos idólatras e pagãos que não prestam verdadeiro culto a Deus, embora por eles ocupados, voltaram com razão para a Igreja, à qual, aliás, antes pertenciam, conforme se lê na causa XXIII, q., cap. I, onde diz «segundo o direito divino pelo qual todas as coisas são dos justos» e abaixo, «por isso falsamente chamais vossas às coisas que não possuís justamente», e depois «já que ledes que está escrito: Os justos comerão os trabalhos dos ímpios». E no predito cap. Si de rebus: «Para todos os ímpios e iníquos vale aquela voz do Senhor: Ser-vos-á tirado o reino de Deus e dado a um povo que faça justiça (Mateus, XXI, no fim)». Eclesiástico, X: «Um reino é transferido dum povo para outro por causa das diversas injustiças, violências, ultrajes e enganos»; e abaixo: «Deus destruiu os tronos dos príncipes soberbos e em seu lugar fez sentar os humildes». Item, no cap. Si de rebus: «Os justos comerão os trabalhos dos ímpios»; e abaixo, no V, Aliquim: «Aliás, também os próprios Judeus, a quem foi, segundo as palavras do Senhor em Mateus, XI, tirado o reino e dado a um povo que faz justiça, podem objectar com a concupiscência da coisa alheia, visto que a Igreja de Cristo possui os lugares onde antes reinavam os perseguidores de Cristo.» […]

Item, uma razão de João [André] pela qual o imperador não pode revogar a doação feita à Igreja pelos seus predecessores é a de que ele deu à Igreja coisas que antes eram dela […].



São Pedro



Item, observa Lourenço à dist. X, cap. Quoniam, que o Papa tem ambos os gládios, e que se faz mister conceder que nenhum imperador, se não recebeu o gládio das mãos da Igreja Romana, o aplicou ilegitimamente, sobretudo depois que Cristo concedeu os direitos dos dois poderes a S. Pedro. Foi por entender assim que Constantino, na resignação das insígnias reais, entregou o gládio a S. Silvestre, mostrando desta maneira que não usara legitimamente do poder da espada, nem legitimamente o possuíra, visto não o ter recebido da Igreja, conforme vem nas crónicas […].

Item, sustenta o Ostiense que, embora as jurisdições sejam distintas quanto à execução, todavia o imperador transferiu o império dos Gregos para os Germanos por concessão da Igreja Romana na pessoa de Carlos Magno, e o Papa confirma, unge, coroa, aprova, reprova e depõe o imperador, como está patente no cap. Venerabilem, § Verum, V, Praesertim, visto tal direito e poder terem ido da Sé Apostólica para eles. […] Além de que, vagando o império, sucede-lhe a Igreja […].

Item, afirma o Ostiense que, quando o Senhor disse a Pedro «Dar-te-ei as chaves do reino dos céus», não disse a chave, mas as chaves, isto é, duas, uma para fechar e abrir, e ligar e absolver quanto às coisas espirituais, e outra para usar quanto às coisas temporais […]. De facto, sendo nós um só corpo e um só espírito em Cristo, e uma só esperança da nossa vocação, e havendo um só Senhor e uma só fé, um só baptismo, e um só Deus […], seria monstruoso que tivéssemos duas cabeças […].

Item, em Mateus, últ., diz Cristo: «Foi-me dado todo o poder no céu e na terra»; ora o Papa, ainda que seja vigário do verdadeiro Deus na terra […], não tem, todavia, senão a vigararia de Deus homem, porque Cristo, enquanto Deus, está sempre na terra, pois Deus enche todas as coisas […], e não precisava de vigário; mas, enquanto verdadeiro homem que havia de subir ao Pai, deixou a Pedro e seus sucessores o cuidado do seu rebanho, para não o deixar sem pastor […]. Porém, nas preditas palavras «Foi-me dado, etc…» o Filho de Deus fala como verdadeiro homem, porque, enquanto Deus, teve sempre o mesmo poder que o Pai. Daí Atanásio dizer: «Omnipotente é o Pai, omnipotente é o Filho, etc…» […]. Item, diz todo; portanto, não exceptua nada […]. Item, diz na terra; poder que Cristo teve, não só como verdadeiro Deus, mas também como verdadeiro homem. […] Com efeito, o Papa é, nisto, o sucessor do primeiro homem, Adão, pois antonomástica e tipicamente Deus Filho formou o Papa seu vigário à sua imagem e semelhança (Gén., I). De facto, o Papa representa verdadeiramente Cristo na terra, por forma que aquele que o vê com olhos contemplativos e fiéis vê também a Cristo. […]

Item, Cristo, mesmo enquanto homem, foi rei. Assim, de facto, foi dito a seu respeito (Zacarias, IX): «Eis o teu rei, etc…», e assim se vê em Mateus, XXI e XXVII, em Lucas, XXIV, e no título de rei posto por Pilatos «Jesus Nazareno, rei dos Judeus» (João, XIX). Salmos, LXXI: «Ó Deus, dá a tua equidade ao rei». Lucas, I: «e reinará na casa de Jacob». Daniel, II, para o fim: «Nos dias, porém, daqueles reinos suscitará o Deus do céu um reino, etc…». Ora, o imperador deste reino universal não é vigário de Cristo, visto que não há dois vigários, como mais acima se provou; logo, o Papa é vigário, porque não há outro vigário e o reino do mundo não existe sem vigário de Deus.

Esta verdade de que o Papa tem ambos os poderes, embora seja obrigado a cometer a outrem a execução do gládio temporal, é sustentada, como comum, na glosa ordinária às decretais, Qui filii sint legitimi, cap. Causam quae II, e De iudiciis, cap. Nouit (Estado e Pranto da Igreja, in Álvaro Pais, Editorial Verbo, 2001, pp. 89-92; 96-101).


Sé Catedral de Silves


sexta-feira, 17 de junho de 2011

Espelho dos Reis

Escrito por Álvaro Pais




Sé Catedral de Silves


«No século XIV foi Bispo de Silves D. Álvaro Pais, clérigo natural de Santarém, que antes exercera o cargo de Secretário do Papa João XXII, em Avinhão. Era homem extremamente culto, autor de vários trabalhos, entre os quais Do Poder Papal e Colírio da Fé contra as Heresias. Defendeu sempre a supremacia do poder papal sobre o dos reis».

Garcia Domingues





A TIRANIA, FORMA DEGENERADA DE PODER

Além disso, se o governo injusto dos tiranos não é exercido por um só, mas por vários, chama-se, em grego, no caso de exercido por poucos, oligarquia, isto é, o principado de poucos, quando, evidentemente, poucos, diferindo do tirano só no número, oprimem a plebe por causa das riquezas.

Se, porém, o reino ou governo iníquio é exercido por muitos, chama-se, em grego, democracia, isto é, poder do povo, quando, evidentemente, o povo dos plebeus oprime com seu poder os ricos e os nobres. Desta maneira, realmente, o povo inteiro é como um só tirano.

Semelhantemente, importa distinguir o reino ou governo justo. Se for bem administrado por alguma multidão, toma o nome comum de politia. E, se for administrado por poucos virtuosos, chama-se em grego aristocracia, isto é, o melhor poder, ou o poder dos melhores, os quais por isso se chamam optimates (nobres) [...].

Se, porém, o governo justo pertencer somente a um, o reino chama-se propriamente monarquia [...]: «o meu servo David reinará sobre eles e será um só pastor de todos eles».

(...) bom governo alguns conseguiram-no por recto caminho, e outros por perverso caminho.

Rectamente chega uma pessoa ao governo, quando é posta à frente das outras por geral e comum consenso da multidão [...], ou por especial mandado do próprio Deus, como sucedeu no povo israelítico [...], ou por instituição daqueles que fazem as vezes de Deus, como deve ser no povo cristão [...].

Perversamente chega uma pessoa ao governo, quando, ou por paixão de dominar, ou pela força, ou por dolo, ou por suborno, ou por qualquer outro meio indevido, usurpa o poder real [...].

Sucede, porém, que, algumas vezes, alguém alcança indevidamente o poder, e, no entanto, se torna, depois, bom e verdadeiro governante, ou por consenso dos súbditos, ou por autoridade do superior [...]. Ora, assim como sucede ser-se recto e perverso no modo de adquirir o poder do rei, assim também o mesmo sucede no uso do poder adquirido. Uns usam rectamente o poder que têm, e outros mal. Daqui provém uma quádrupla distinção.

De facto, o reino de uns é recto, quanto ao modo de aquisição, e quanto ao uso.

De outros, o reino ou governo é perverso, quanto àquelas duas condições.

De outros, o governo é recto, quanto ao modo de aquisição, mas perverso quanto ao uso. Isto, no entanto, raramente acontece, porque dificilmente terão bom fim as coisas que tiveram mau princípio [...].


Por consequência, são justos e legítimos aqueles reinos em que o modo de adquirir o poder, e o uso deste, são rectos. Estes reinos estão sob a Providência de Deus, como bons que são. E são injustos aqueles reinos, em que aquelas duas coisas ou uma delas falta. Estes reinos estão sob a Providência de Deus, como maus que são. Deus, porém, permite tal governo, ou para provação dos bons, ou para castigo dos maus, ou por outras causas que Ele conhece [...]. Segundo este princípio, deve-se dizer que, visto que entre os gentios alguns rectamente alcançaram o poder régio e dele rectamente usaram, por isso, entre eles, houve alguns reinos legítimos e justos a seu modo e segundo o Direito Civil.

Pelo que diz o Filósofo [Aristóteles] que, entre os governos que curam do seu bem próprio, o tirano é o pior, porque procura mais o próprio e despreza o mais comum. Ora, assim como o reino do rei é óptimo, assim o reino do tirano é péssimo. Convém, pois, para que o reino seja justo, que pertença a um só, pois que assim é mais forte; mas se faz declinar o regime para a injustiça, convém que pertença a muitos, para que seja mais fraco e mutuamente se eliminem. Donde Salomão (Provérbios, XIII): «Entre os soberbos há sempre contendas». Por conseguinte, entre os regimes injustos, o mais intolerável é a democracia, isto é, o poder do povo, visto que todo o povo é como um tirano, conforme acima disse e se torna evidente para quem considera os males provenientes dos tiranos. Ora, o tirano é, segundo Gregório e Isidoro, aquele que não possui justamente o poder, mas o usurpa, e quer ser temido e busca os interesses pessoais. E, porque o tirano só cuida de si, desprezando Deus e o bem comum, segue-se que oprime de diversos modos, conforme as diversas paixões a que está submetido para obter alguns bens. De facto, porque domina com a paixão da ambição, rouba os bens dos súbditos. Por isso, Salomão: «O rei justo levanta o seu país; o homem avaro destrói-o» (Provérbios, XXIX, no princípio). Se está submetido à paixão da ira, por uma insignificância faz derramar sangue. Pelo que em Ezequiel, XXII: «Os seus príncipes, no meio dela, eram como lobos que arrebatam a presa, para derramar o sangue».

Por consequência, o Sábio aconselha que se evite este regime, dizendo (Eclesiástico, IX): «Conserva-te longe daquele homem que tem o poder de matar», isto é, daquele que matará não pela justiça mas pelo poder, conforme a vontade da sua paixão. Assim, pois, nenhuma segurança pode existir, antes tudo é incerto, quando há abandono do direito.

E o tirano não só oprime os súbditos nas coisas corporais, como também lhes impede os bens espirituais. De facto, aquele que ambiciona mais ser superior aos outros do que ser-lhes útil impede todo o proveito [...]. Receando a elevação de todos os súbditos como um prejuízo para a sua iníqua soberania [...] esforçam-se os tiranos para que os seus súbditos, tornados valorosos, não concebam o sentimento da magnanimidade e suportem o seu iníquo governo. Esforçam-se ainda para que eles não tenham paz entre si, a fim de que, desconfiando uns dos outros, não possam planear alguma coisa contra o seu domínio. Procuram, efectivamente, os tiranos que os seus súbditos não se tornem poderosos e ricos, para que isto não venha a prejudicá-los, e para que vivendo sem a caridade possam dizer contra si: «Folgamos com a iniquidade, não folgamos com a verdade» [...].

Daqui advém que, devendo oss governantes levar os súbditos à prática das virtudes, perversamente invejam as suas virtudes, e de propósito as impedem, para que poucos virtuosos se encontrem sob a sua tirania. Portanto, diz bem o Papa Leão: «A integridade dos chefes é a saúde dos vassalos» [...]. E, segundo Aristóteles, encontram-se homens fortes junto daqueles em que os mais fortes são honrados. E Túlio: «Jazem na humildade, e pouco progridem, as coisas que são por alguns reprovadas». É também natural que os homens criados debaixo do medo degenerem em ânimos servis [...] e se tornem pusilânimes para toda a obra útil e corajosa, como se vê nas províncias, por exemplo na Itália, muito tempo sujeitas a tiranos (...).

Cruz de Portugal (Silves).







E não há que admirar, porque o homem, governando sem a razão e segundo as paixões da sua alma, em nada difere das alimárias. [...] Por isso, os homens escondem-se e fogem do tirano como das feras cruéis. Porque o melhor e o pior governo consiste na monarquia, isto é, no principado de um só, a dignidade régia, devido à malícia dos tiranos, torna-se a muitos odiosa. Alguns, de facto, ambicionando o reino caem em sevícias de tiranos, e muitos regentes exercem a tirania, sob pretexto da dignidade real. Disto temos claros exemplos na república romana. Na verdade, expulsos os reis pelo povo, porque não podia suportar o seu governo, ou melhor, o seu fausto e tirania, os Romanos instituíram os cônsules [...], e outros magistrados, pelos quais começaram a ser governados e dirigidos. [...] E, como refere Salústio, é incrível lembrar quanto, depois de alcançar a liberdade, a cidade romana em pouco tempo cresceu. De facto, quase sempre acontece que os homens vivendo sob o poder dos reis mais lentamente se esforçam pelo bem comum, por julgarem que a sua aplicação ao bem comum não traz utilidade a eles próprios, mas a outrem, sob cujo poder vêem que estão os bens comuns. Quando, porém, não vêem que o bem comum está em poder de um só, não se dirigem para ele como coisa de outrem, antes qualquer um se aproxima dele como coisa sua. Donde mostra a experiência que uma cidade administrada por bons governantes tem mais poder, algumas vezes, do que um rei com três ou quatro cidades, como sucede na Itália; e que pequenos serviços exgidos pelos reis são mais dificilmente suportados do que grandes encargos impostos pela comunidade dos cidadãos - o que se verificou na república romana. De facto, como escreve Tito Lívio por toda a Primeira Década, a plebe era alistada para o serviço militar e pagava o estipêndio aos soldados, e, quando o erário não tinha dinheiro para isto, os recursos privados acudiam às necessidades públicas, a ponto de oferecerem os anéis de ouro e colares de adorno, que eram as insígnias da sua dignidade, para fundirem muito ouro na república romana. Mas, porque se cansavam com as contínuas dissensões que chegaram a transformar-se em guerras civis, com as quais lhes foi tirada das mãos a liberdade para que muitos haviam trabalhado, começaram a submeter-se ao poder dos imperadores, que não quiseram chamar-se reis, por ser este um nome odioso aos Romanos.

Ora, alguns destes procuraram exercer fielmente segundo o costume real, vinda a república romana a ser aumentada e mantida com a sua dedicação. Mas a maior parte deles, tornando-se tirana para com os súbditos, e ociosa e fraca perante o inimigo, reduziu a república ao nada.

Semelhante evolução também se deu no povo dos judeus. Primeiramente, enquanto eram governados por juízes, os inimigos roubavam-nos por todos os lados, e cada um fazia o que a seus olhos parecia bem, como se diz por todo o Livro dos Juízes, e no fim do último capítulo. Porém, tendo-lhes Deus dado reis, a instâncias suas, e não por vontade d'Ele [...], desviaram-se, por maldade dos reis, do culto de um só Deus, e acabaram por ser reduzidos ao cativeiro [...].

Por conseguinte, os perigos de uma e outra coisa são iminentes, quer dominem os tiranos e se evite o óptimo governo do rei, quer, enquanto se deseja o poder real, este se converta na maldade tirânica. Portanto, visto que é preferível o governo de um só, que é o melhor, e visto que acontece que este se converte em tirania, que é o pior, conforme se colhe do que fica dito, deve-se diligentemente trabalhar para que o rei não se transforme em tirano. Donde importa que aqueles que têm o encargo de eleger o rei ou o imperador, provejam para que não seja provável o rei desviar-se para a tirania. Por isso, o Senhor procurou [...] um homem segundo o seu coração e ordenou-lhe que fosse o chefe do seu povo. [...].

Em seguida, deve-se dispor a governação do reino, de maneira a subtrair-se o ensejo de tirania ao rei já substituído. Tempere-se de tal modo o seu poder, que não possa facilmente cair na tirania.


A MONARQUIA, MELHOR FORMA DE GOVERNO


Castelo de Silves




... é da essência de um reino que seja um só a governar, e que este seja pastor e rei que procure o bem comum da multidão, e não o seu. Ora, porque há muitas comunidades (a saber: de casas, aldeias, cidades e reinos), aquele que governa uma comunidade perfeita, isto é, uma cidade ou uma província, chama-se rei por antonomásia [...], e aquele que governa uma casa, pai de família [...].

Do que fica dito, vê-se que o rei é aquele que governa a multidão de uma cidade ou província para o bem comum. Por isso, diz Salomão (Eclesiastes, V): «e há além disso um rei que impera sobre toda a terra que lhe está sujeita».

Isto visto, há que inquirir o que mais convém a uma província ou a uma cidade: se vários, se um só.

Ora, importa considerar este problema em função do fim do regente. A intenção de todo aquele que governa bem deve ser a de procurar a felicidade dos súbditos. Porém, o bem e felicidade de uma sociedade está na conservação da sua unidade, que se chama paz. Não existindo esta, desaparece a utilidade da vida social [...]. Além disso, uma multidão em discórdia torna-se prejudicial a si mesma, e nada de honroso realiza [...].

Por isso, o Apóstolo, depois de recomendar a unidade da multidão dos fiéis, diz na Epístola aos Efésios, IV: «Sede solícitos em manter a unidade do espírito pelo vínculo da paz». E o Salmo [CXXXII]: «Eis quão bom e quão suave é viverem os irmãos em união» [...].

Ora, é evidente que mais pode realizar a unidade aquele que é uno em si do que vários, tal como a causa mais eficaz do aquecimento é aquilo que é quente de per si. Logo, é mais útil o governo de um só que o de vários. Item, diz-se que muitas coisas se unem por aproximação à unidade. Logo, um só é melhor que dois ou vários, por isso que mais se aproxima da unidade.


Ponte Romana de Silves



Além disso, aquelas coisas que são segundo a natureza optimamente se comportam. Todo o reino natural é governado por um só. E na pluralidade dos membros há um, isto é, o coração que comanda o movimento dos outros; e nas partes da alma há uma força natural que governa as demais, a saber, a razão. As abelhas têm um só rei. E no universo há um só Deus, criador e regedor de todas as coisas. [...]

Com efeito, toda a multidão deriva de um só, e o número começa em um, e, depois, multiplica-se [...]. E um só foi o primeiro homem criado, de que vieram todos os da mesma natureza [...].

Isto prova-se pela experiência. As províncias ou cidades, que não são governadas por um só, debatem-se em dissenções e flutuam sem paz, para que se veja realizar aquilo de que o Senhor se queixa pelo Profeta (Jeremias, XII): «Numerosos pastores destruíram a minha vinha». Esses tais, antes se devem chamar lobos.

Ao contrário, as províncias e cidades que são governadas por um só rei gozam de paz geral, florescem em justiça, e alegram-se na abundância das coisas. Por isso, o Senhor, por meio de seus profetas, promete, como grande dádiva, que lhes dará um só chefe, e que um só príncipe haverá no meio deles (Ezequiel, XXXVII).

Item, segundo o Profeta, a virtude única é mais forte que a dispersa. Porém, vários governantes sobre a mesma multidão não mantêm a paz da multidão, se não forem unidos e concordes. Segundo o Filósofo, se um deseja isto, outro deseja mais aquilo. Porém, um único governante, seguindo a virtude, poderá conservar melhor a paz dos cidadãos, e não poderá tão facilmente perturbá-la, pois que mais facilmente concorda um consigo mesmo do que muitos uns com os outros, segundo esta setença «com ninguém concordará aquele que consigo mesmo está em desacordo», pois que onde há multidão, reina a confusão e a divisão. [...]

Por outro lado, a diversidade das almas segue a diversidade dos corpos [...], porque tantas as cabeças, quantas as sentenças [...], e as vontades dos homens são várias [...] E o Moralista: «É próprio de cada uma buscar o que é seu, e não se vive com uma única opinião». E Ovídio: «São tantos os caracteres nos peitos humanos, quantas as figuras existentes no mundo». E também porque um só príncipe que se aplica ao bem comum olha mais por este, do que se forem muitos a dominar; e também segundo a virtude, porque quantos mais forem tirados da comunidade, tanto o resto é menos comum, e quantos menos forem, tanto menor é o comum (in Álvaro Pais, Editorial Verbo, 1992, pp. 78-86).