quarta-feira, 7 de março de 2012

Colírio da Fé contra as Heresias (i)

Escrito por Álvaro Pais








«O imperador católico Constantino fez guerra ao tirano Maxêncio e, muito aflito, levantava amiúde os olhos para o Céu lhe mandar auxílio. Vê então, durante o sono, o sinal da Cruz rutilar, no alto, com brilho de fogo para o lado do oriente, e ouve os anjos, que o cercavam, dizerem: Constantino, neste sinal vencerás. Então Constantino tornou-se alegre, e já seguro da vitória persignou, na fronte, o sinal da Cruz, que vira no céu. Mudou os estandartes militares para a forma desse sinal e transportou, em sua mão direita, que havia munido com o sinal da salvação, a cruz de oiro, triunfando assim do tirano Maxêncio.

Este sacratíssimo sinal da Cruz até os infiéis defende, como narra Gregório no Diálogo. Jazendo, certa noite, um judeu num templo de ídolo, onde se juntaram muitos demónios, atemorizado, persignou-se. Quando isto viram, os demónios puseram-se em fuga, dizendo: "Ai! Vaso oco, mas persignado!"».


Álvaro Pais («Espelho dos Reis», I, 19).






A POLÉMICA CONTRA TOMÁS ESCOTO

Seguem-se as heresias e erros que Tomás Escoto, apóstata dos Frades Menores e Pregadores, publicamente divulgou, nalgumas partes de Espanha e outros lugares. Algumas confessou ele em juízo, e doutras mantém-se convicto, e está encarcerado em Lisboa.

[1] Disse que o número de anos que os antigos viviam, no tempo da natureza, e de que se faz menção em muitos passos do Génesis, não era verdadeiro. Isto é, que não era verdadeiro que os homens vivessem tanto tempo. Ora, isto é herético porque contradiz a Escritura do Velho Testamento, aprovada pela Igreja […].

Na realidade, convinha naquele tempo, por causa da multiplicação do género humano, viver tanto como o Senhor dispusera: Crescei e multiplicai-vos…», etc. (Gén., e IX, no princípio), Se, de facto, a Escritura mente numa coisa, é suspeita em todas […].

[2] Asseverou ainda o dito Escoto, e confessou em juízo, que aquela profecia de Isaías, VII, «Eis que uma virgem conceberá», não a entendia de Santa Maria, tal como os Judeus também o dizem, judaizando com eles […]. De facto, a Igreja muitas vezes canta, nas festas de Santa Maria, nos capítulos, responsórios, orações, sermões dos santos e suas lições: «Eis que uma virgem conceberá».

Assim também todos os tratadistas católicos entenderam aquela profecia como sendo acerca da Virgem Maria. A este sentido, inteligência e interpretação da Igreja nos devemos prender, bem como à verdade da tradição e dos santos, e não ao sentido judaico e herético, que são inimigos ocultos, e muitas vezes inimigos públicos, de Cristo, da Virgem Sua Mãe e da Igreja Católica, e blasfemos do santo nome de Cristo […].






Devemos atender à inteligência do Espírito Santo, que fala na Igreja, e não na sinagoga dos Judeus, nem nos conventículos dos hereges. […] Também é de saber que, no predito lugar de Isaías, onde a nossa tradução tem Ecce virgo, o hebreu tem haalina ou nahara betula ou uthula. Porém, esta palavra haalinus quer dizer santo belo, segundo Rábano. Donde haalina, isto é, santa. Também as glosas que se põem às referidas palavras de Isaías «Eis que uma virgem», dizem que haalina significa somente virgem núbil e jovenzinha; e observe-se que o hebreu haalina se diz em grego apócrifa, e em latim secreta, porque as virgens costumam esconder-se nos cárceres e aí secretamente morar. […]

Portanto, haalina significa virgem escondida e secreta, isto é, não somente virgem, mas, com epítase, virgem escondida, pois que nem toda a virgem é escondida, nem separada de todo o olhar. Assim, rebecha haalina se lê no hebreu, por exemplo, no Gén., XXIV, e, na nossa tradução latina, «virgem linda em extremo, não conhecida por varão algum, secreta, e guardada com demasiada diligência dos pais».

O hebreu também diz que nahara uetula ou uthula vale o mesmo que menina virgem.

De qualquer modo, pois, que a letra hebraica diga (haalina, ou nahara, ou uthula), a nossa tradução «Eis que uma virgem conceberá», é verdadeira, na letra e no espírito.

Portanto, nunca se poderá encontrar, em tradução alguma, que esta palavra haalina ou nahara ou betula ou uthula ou virgo se diga de mulher casada, mas somente da virgem. […]

Quanto a dizer o herege Tomás que as palavras «Eis que uma virgem conceberá», as disse Isaías de uma sua escrava ou concubina, é falso, porque Isaías, exímio profeta, não era concubinário contra a lei de Deus, como este Tomás, imundo concubinário público. Todavia, porque como sinal, isto é, por milagre, o Senhor disse por Isaías, VII, «o Senhor vos dará este sinal: Eis que uma virgem (ou haalina) conceberá…», etc., não era sinal de que concebesse violada, porque todas as mulheres, quando concebem, estão violadas. Este sinal indicava que virgem se chamaria e conceberia intacta. Se Isaías dissesse de concubina sua que conceberia, não seria isso um sinal.

Disputando eu em Lisboa com um embusteiro hebreu semiculto, disse ele que o sinal consistia nisto: que, estando grávida aquela sua concubina, Isaías predisse que ela pariria um filho, e não uma filha. Mas dizia aquele judeu uma falsidade, pois que não é milagre um natural ou um físico dizer que uma mulher grávida parirá um filho ou uma filha. Porém, foi sinal e milagre uma virgem dar à luz, e dar à luz um filho, Emanuel, que quer dizer Deus connosco. Nunca, de facto, houve mulher alguma que desse Deus à luz, senão a Virgem Maria. […]

[3] Este ímpio herege Tomás também espalhou, na Espanha, que no mundo houve três enganadores, a saber: Moisés, que enganara os Judeus; Cristo, que enganara os cristãos; e Maomet, que enganara os Sarracenos.

O que diz de Maomet é verdade, porque enganou o povo árabe, e porque ele veio da Arábia, donde descendem os Sarracenos. Contra este pérfido pseudo-profeta Maomet, escrevi mais acima, na primeira parte desta obra.

Quanto a dizer de Moisés que foi um enganador, disse uma falsidade, e nisto pertence ao grupo dos hereges que condenam os padres do Velho Testamento, que são pedras preciosas. […] Moisés legislador e não enganador foi pedra preciosíssima e lábio da sabedoria, porque, por meio dele, foi dada a lei […].

A Moisés fala Deus em todo o Pentateuco como de amigo para amigo […].

É recomendado nos Números, XII: «Porque Moisés era o homem mais manso que habitava a Terra».


Moisés e a serpente de bronze


Moisés é recomendado por sua tão inestimável caridade, que queria ser riscado do livro da vida, para que Deus perdoasse ao seu povo (Êxodo, XXXII).

Moisés é recomendado pelo Apóstolo por mor da sua disciplina (Epístola aos Hebreus, XI […]).

E aquele que não crê que o mesmo Deus é o criador da Lei e dos profetas e dos evangelistas e dos apóstolos, é herege […].

Quanto a este celerado sedutor dizer que Cristo Jesus foi um sedutor, judaíza com sua heresia. Os Judeus também chamavam, e chamam, sedutor a Cristo Senhor. […]

Porém, Cristo Jesus, Deus e homem, não seduziu, mas salvou o povo […], conforme atesta todo o Testamento, o Novo e o Velho, e o professa a fé católica.

Porém, chamando a Cristo sedutor, este ímpio Tomás, sumo herege dos hereges, nega todos os artigos da fé que falam da Sua divindade e humanidade, e que vêm em ambos os símbolos apostólicos «Creio em Deus» e «Creio num só Deus» […].

[4] Item, este ímpio Tomás dogmatizou em Lisboa, ao falar do anticristo, que era necessário que em qualquer tempo viesse um homem que enganasse o mundo. Este erro, porém, leva à conclusão de que todo o mundo viveu no erro e viveria no engano, e, por consequência, que perecerá. Ora, do anticristo sabe-se que, sendo contrário a Cristo, enganará muitos, muitíssimos. […] Este chama-se abominação […], porque, por meio dele, que será abominável, a Igreja será desolada.

Quantos embusteiros vieram antes de Cristo Senhor, dizendo que eram Cristo, foram salteadores e ladrões, e as ovelhas não os ouviam. Porém, ouviram a Cristo, Filho de Deus, e acreditaram nele, e por ele como por uma porta entraram na vida […], e porque ele é a própria Verdade que não engana […], e que é totalmente alheia ao embuste […].

Contra este erro e o imediatamente anterior, aplico a este Tomás as palavras de João, na 1.ª Canónica, cap. II: «Quem é mentiroso senão aquele que nega que Jesus é o Cristo? Este é um anticristo, que nega o Pai e o Filho»; e depois: «Isto vos escrevi acerca daqueles que vos seduzem». E no princípio do capítulo IV: «Porque muitos falsos profetas vieram para o mundo»; e em seguida: «todo o espírito que divide Jesus Cristo, não é de Deus; mas é um anticristo, do qual vós ouvistes que vem, e agora está já no mundo». E na 2.ª Epístola de João, I: «muitos sedutores se têm levantado no mundo, que não confessam que Jesus Cristo tenha vindo em carne; e este tal é o sedutor e anticristo», como Escoto sedutor e anticristo.

[5] Item, disse o sedutor Tomás publicamente, nas escolas de decretais em Lisboa, que nas palavras de Isaías, IX, «Deus Forte, Pai do século, futuro…», etc., aquele Deus Forte era um nome próprio, e que não fora dito por causa de Jesus Cristo – o que é herético dizer, é perverter o entendimento da letra […].

Deve-se recorrer à inteligência comum da palavra […]. Por outro lado, os precedentes declaram os subsequentes […]. Ora, nas profecias havia precedentes, Isaías, IX: «Porquanto um menino nasceu para vós, e um filho nos foi dado»; e continua: «e será chamado Admirável, Conselheiro, Deus, Forte…», etc. Isto toda a Igreja dos Santos o entende, sem a menor dúvida, do meu Senhor Jesus Cristo que nasceu para nós, isto é, para nossa salvação, como um menino filho de homem, do ventre virginal. E ele próprio, Filho de Deus e Deus, nasceu para nós, do Pai, para nossa salvação. O qual Filho se chama Deus forte, porque é Deus, Filho do pai Deus Pai […].

E que este Filho de Deus é o Deus que nasceu da Virgem vê-se no mesmo Isaías, VII […].



Anunciação da Santíssima Virgem Maria pelo Arcanjo S. Gabriel



Item, Baruch, notário de Jeremias, ou Jeremias por intermédio dele, diz (Baruch, III, no fim): «Este é o nosso Deus, e nenhum outro lhe é comparável»; e abaixo: «Depois disto foi visto sobre a terra, e viveu com os homens».

[6] Tomás afirmou ainda que as almas, depois da morte, são reduzidas ao nada. Contra isto diz o Gén., II: «E o homem tornou-se alma vivente». E, porque ele é a imagem de Deus […], assim como Deus não morre, também ele não morre […].

Este miserável, que a sua inane filosofia cegou, dizendo assim, nega a ressurreição do homem, que é composto de alma e corpo […], assim como Deus não morre, também ele não morre […].

[7] Item, afirmou o dito Escoto, perante mim e muitos outros, em Lisboa, que Cristo era filho adoptivo de Deus, e não próprio ou natural, e é assim um herege bonosiano e arriano […].

[8] Item, disse esse imundo concubinário e herege Tomás que Santa Maria fora virgem até uma certa altura em que foi violada. E assim nega a virgindade da Virgem Maria, e assim é daqueles hereges chamados antidicomaritas, que contradizem a virgindade de Maria. […]

[9] Item, disse, perante mim e muitos escolares, nas escolas de decretais, que a fé melhor se prova pela filosofia do que pelo decreto, pelas decretais e pelo Novo e Velho Testamento - afirmação que é herética por muitos motivos.

Primeiro, porque a fé não se prova. Na verdade, segundo o Apóstolo, a fé é o fundamento das coisas que se esperam e a demonstração das coisas que não se vêem [...]. Donde, magistralmente, é assim definida: a fé a certeza voluntária das coisas ausentes, isto é, a certeza constituída acima da opinião e abaixo da ciência. Com efeito, a ciência tem o conhecimento, a fé não.

De modo que, se alguma coisa se pode dizer prova de fé, é somente pela autoridade da Sacrossanta Escritura e não pela razão natural, visto que os artigos de fé estão acima desta. Aquele, porém, que tem verdadeira fé cativa a inteligência a favor de Cristo e Sua fé. Donde Gregório: «Não tem merecimento a fé daquele a quem a razão humana oferece uma experiência». Que razão natural pode induzir que do nada alguma coisa se forma? Daqui o Filósofo dizer, naturalmente falando: Do nada, nada se faz, e por isso disse que o mundo é eterno, mas como que caiu em heresia, porque não teve fé. De facto, Deus omnipotente produziu do nada todas as coisas criadas na essência, pois que Ele próprio é o sumo ente e o primeiro incriado, do qual todos os seres existem por criação, de modo que ele próprio existe por si, e todos os seres por ele. De maneira que assim o primeiro ente difere dos outros entes, e todos os seres criados glorificam o primeiro ente incriado, do qual procedem e no qual subsistem, não podendo por isso o ser criado glorificar-se perante o Criador. [...]

Quem poderá provar pela natureza [...] que uma virgem dá à luz, que os mortos ressurgem, que a àgua consagrada no baptismo apaga os pecados, que Deus sofre na carne e outros artigos de fé que se provam pela Sagrada Escritura, porque se crê neles? Por isso, a verdadeira fé prova-se a si mesma, porque se crê [...]. Crer de outra maneira, isto é, provar a fé pela natureza, é falhar na prova. Ceda, portanto, a natureza ao milagre, e realize-se a virtude sobre o costume [...].

Item, como será possível que a fé seja provada por filósofos descrentes e idólatras, que, embora tenham tido sobre Deus conhecimento enigmático e mediante as criaturas, contudo não o glorificaram como Deus, e não serviram o Criador, mas a criatura [...]? Aquele que não tem fé, como a pode dar a outrem? [...] E Agostinho, no livro Contra Fausto Maniqueu: «Se se diz que Sibila, ou Orfeu, ou outros vaticinantes e filósofos dos gentios predisseram algo de verdadeiro acerca de Deus, isso vale, na verdade, alguma coisa, para confundir a vaidade dos pagãos e não para abraçarmos a sua autoridade. Acerca do advento de Cristo, há tanta diferença entre a autoridade dos profetas e a curiosidade dos sacrílegos, como entre a pregação dos anjos e a confissão dos demónios». [...]

Por consequência, a fé provada e sustentada pelas autoridades da Sagrada Escritura, pelos decretos, e pelas decretais, isto é, por aqueles elementos com que a Santa Igreja Romana transmite, corrobora e declara a fé. A eles nos devemos ater, e não à filosofia e à disputa dialéctica, que nutre as heresias e diminui e enfraquece a simplicidade da fé.

Quanto ao que diz o dito herege, vãmente envaidecido na sua filosofia, que o mundo seria mais bem regido pela filosofia do que pelos decretos, decretais e outros direitos, é heresia da mesma espécie. Isto é falsíssimo, porque os direitos canónicos e civis, promulgados de fonte divina [...], regem o mundo, conforme, de facto, se colhe do princípio dos digestos, do código, dos decretos e das decretais do Livro Sexto e das Clementinas.






Em vão, pois, teria Deus dado a lei por meio de Moisés, dos profetas, dos Evangelhos e de seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de cujas leis os corpos e almas são regidos, os maus castigados e os bons recompensados [...], a fim de que o mundo viva em paz [...].

E naquilo que os filósofos disseram de verdadeiro, falaram teórica e não praticamente. Assim os direitos que praticam todos os casos. Pelos direitos, faz-se mais evidente a determinação, a disputa e, muitas vezes, a corrupção da fé (in Álvaro Pais, Editorial Verbo, 2001, pp. 208-213).

Continua


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