sexta-feira, 17 de junho de 2011

Espelho dos Reis

Escrito por Álvaro Pais




Sé Catedral de Silves


«No século XIV foi Bispo de Silves D. Álvaro Pais, clérigo natural de Santarém, que antes exercera o cargo de Secretário do Papa João XXII, em Avinhão. Era homem extremamente culto, autor de vários trabalhos, entre os quais Do Poder Papal e Colírio da Fé contra as Heresias. Defendeu sempre a supremacia do poder papal sobre o dos reis».

Garcia Domingues





A TIRANIA, FORMA DEGENERADA DE PODER

Além disso, se o governo injusto dos tiranos não é exercido por um só, mas por vários, chama-se, em grego, no caso de exercido por poucos, oligarquia, isto é, o principado de poucos, quando, evidentemente, poucos, diferindo do tirano só no número, oprimem a plebe por causa das riquezas.

Se, porém, o reino ou governo iníquio é exercido por muitos, chama-se, em grego, democracia, isto é, poder do povo, quando, evidentemente, o povo dos plebeus oprime com seu poder os ricos e os nobres. Desta maneira, realmente, o povo inteiro é como um só tirano.

Semelhantemente, importa distinguir o reino ou governo justo. Se for bem administrado por alguma multidão, toma o nome comum de politia. E, se for administrado por poucos virtuosos, chama-se em grego aristocracia, isto é, o melhor poder, ou o poder dos melhores, os quais por isso se chamam optimates (nobres) [...].

Se, porém, o governo justo pertencer somente a um, o reino chama-se propriamente monarquia [...]: «o meu servo David reinará sobre eles e será um só pastor de todos eles».

(...) bom governo alguns conseguiram-no por recto caminho, e outros por perverso caminho.

Rectamente chega uma pessoa ao governo, quando é posta à frente das outras por geral e comum consenso da multidão [...], ou por especial mandado do próprio Deus, como sucedeu no povo israelítico [...], ou por instituição daqueles que fazem as vezes de Deus, como deve ser no povo cristão [...].

Perversamente chega uma pessoa ao governo, quando, ou por paixão de dominar, ou pela força, ou por dolo, ou por suborno, ou por qualquer outro meio indevido, usurpa o poder real [...].

Sucede, porém, que, algumas vezes, alguém alcança indevidamente o poder, e, no entanto, se torna, depois, bom e verdadeiro governante, ou por consenso dos súbditos, ou por autoridade do superior [...]. Ora, assim como sucede ser-se recto e perverso no modo de adquirir o poder do rei, assim também o mesmo sucede no uso do poder adquirido. Uns usam rectamente o poder que têm, e outros mal. Daqui provém uma quádrupla distinção.

De facto, o reino de uns é recto, quanto ao modo de aquisição, e quanto ao uso.

De outros, o reino ou governo é perverso, quanto àquelas duas condições.

De outros, o governo é recto, quanto ao modo de aquisição, mas perverso quanto ao uso. Isto, no entanto, raramente acontece, porque dificilmente terão bom fim as coisas que tiveram mau princípio [...].


Por consequência, são justos e legítimos aqueles reinos em que o modo de adquirir o poder, e o uso deste, são rectos. Estes reinos estão sob a Providência de Deus, como bons que são. E são injustos aqueles reinos, em que aquelas duas coisas ou uma delas falta. Estes reinos estão sob a Providência de Deus, como maus que são. Deus, porém, permite tal governo, ou para provação dos bons, ou para castigo dos maus, ou por outras causas que Ele conhece [...]. Segundo este princípio, deve-se dizer que, visto que entre os gentios alguns rectamente alcançaram o poder régio e dele rectamente usaram, por isso, entre eles, houve alguns reinos legítimos e justos a seu modo e segundo o Direito Civil.

Pelo que diz o Filósofo [Aristóteles] que, entre os governos que curam do seu bem próprio, o tirano é o pior, porque procura mais o próprio e despreza o mais comum. Ora, assim como o reino do rei é óptimo, assim o reino do tirano é péssimo. Convém, pois, para que o reino seja justo, que pertença a um só, pois que assim é mais forte; mas se faz declinar o regime para a injustiça, convém que pertença a muitos, para que seja mais fraco e mutuamente se eliminem. Donde Salomão (Provérbios, XIII): «Entre os soberbos há sempre contendas». Por conseguinte, entre os regimes injustos, o mais intolerável é a democracia, isto é, o poder do povo, visto que todo o povo é como um tirano, conforme acima disse e se torna evidente para quem considera os males provenientes dos tiranos. Ora, o tirano é, segundo Gregório e Isidoro, aquele que não possui justamente o poder, mas o usurpa, e quer ser temido e busca os interesses pessoais. E, porque o tirano só cuida de si, desprezando Deus e o bem comum, segue-se que oprime de diversos modos, conforme as diversas paixões a que está submetido para obter alguns bens. De facto, porque domina com a paixão da ambição, rouba os bens dos súbditos. Por isso, Salomão: «O rei justo levanta o seu país; o homem avaro destrói-o» (Provérbios, XXIX, no princípio). Se está submetido à paixão da ira, por uma insignificância faz derramar sangue. Pelo que em Ezequiel, XXII: «Os seus príncipes, no meio dela, eram como lobos que arrebatam a presa, para derramar o sangue».

Por consequência, o Sábio aconselha que se evite este regime, dizendo (Eclesiástico, IX): «Conserva-te longe daquele homem que tem o poder de matar», isto é, daquele que matará não pela justiça mas pelo poder, conforme a vontade da sua paixão. Assim, pois, nenhuma segurança pode existir, antes tudo é incerto, quando há abandono do direito.

E o tirano não só oprime os súbditos nas coisas corporais, como também lhes impede os bens espirituais. De facto, aquele que ambiciona mais ser superior aos outros do que ser-lhes útil impede todo o proveito [...]. Receando a elevação de todos os súbditos como um prejuízo para a sua iníqua soberania [...] esforçam-se os tiranos para que os seus súbditos, tornados valorosos, não concebam o sentimento da magnanimidade e suportem o seu iníquo governo. Esforçam-se ainda para que eles não tenham paz entre si, a fim de que, desconfiando uns dos outros, não possam planear alguma coisa contra o seu domínio. Procuram, efectivamente, os tiranos que os seus súbditos não se tornem poderosos e ricos, para que isto não venha a prejudicá-los, e para que vivendo sem a caridade possam dizer contra si: «Folgamos com a iniquidade, não folgamos com a verdade» [...].

Daqui advém que, devendo oss governantes levar os súbditos à prática das virtudes, perversamente invejam as suas virtudes, e de propósito as impedem, para que poucos virtuosos se encontrem sob a sua tirania. Portanto, diz bem o Papa Leão: «A integridade dos chefes é a saúde dos vassalos» [...]. E, segundo Aristóteles, encontram-se homens fortes junto daqueles em que os mais fortes são honrados. E Túlio: «Jazem na humildade, e pouco progridem, as coisas que são por alguns reprovadas». É também natural que os homens criados debaixo do medo degenerem em ânimos servis [...] e se tornem pusilânimes para toda a obra útil e corajosa, como se vê nas províncias, por exemplo na Itália, muito tempo sujeitas a tiranos (...).

Cruz de Portugal (Silves).







E não há que admirar, porque o homem, governando sem a razão e segundo as paixões da sua alma, em nada difere das alimárias. [...] Por isso, os homens escondem-se e fogem do tirano como das feras cruéis. Porque o melhor e o pior governo consiste na monarquia, isto é, no principado de um só, a dignidade régia, devido à malícia dos tiranos, torna-se a muitos odiosa. Alguns, de facto, ambicionando o reino caem em sevícias de tiranos, e muitos regentes exercem a tirania, sob pretexto da dignidade real. Disto temos claros exemplos na república romana. Na verdade, expulsos os reis pelo povo, porque não podia suportar o seu governo, ou melhor, o seu fausto e tirania, os Romanos instituíram os cônsules [...], e outros magistrados, pelos quais começaram a ser governados e dirigidos. [...] E, como refere Salústio, é incrível lembrar quanto, depois de alcançar a liberdade, a cidade romana em pouco tempo cresceu. De facto, quase sempre acontece que os homens vivendo sob o poder dos reis mais lentamente se esforçam pelo bem comum, por julgarem que a sua aplicação ao bem comum não traz utilidade a eles próprios, mas a outrem, sob cujo poder vêem que estão os bens comuns. Quando, porém, não vêem que o bem comum está em poder de um só, não se dirigem para ele como coisa de outrem, antes qualquer um se aproxima dele como coisa sua. Donde mostra a experiência que uma cidade administrada por bons governantes tem mais poder, algumas vezes, do que um rei com três ou quatro cidades, como sucede na Itália; e que pequenos serviços exgidos pelos reis são mais dificilmente suportados do que grandes encargos impostos pela comunidade dos cidadãos - o que se verificou na república romana. De facto, como escreve Tito Lívio por toda a Primeira Década, a plebe era alistada para o serviço militar e pagava o estipêndio aos soldados, e, quando o erário não tinha dinheiro para isto, os recursos privados acudiam às necessidades públicas, a ponto de oferecerem os anéis de ouro e colares de adorno, que eram as insígnias da sua dignidade, para fundirem muito ouro na república romana. Mas, porque se cansavam com as contínuas dissensões que chegaram a transformar-se em guerras civis, com as quais lhes foi tirada das mãos a liberdade para que muitos haviam trabalhado, começaram a submeter-se ao poder dos imperadores, que não quiseram chamar-se reis, por ser este um nome odioso aos Romanos.

Ora, alguns destes procuraram exercer fielmente segundo o costume real, vinda a república romana a ser aumentada e mantida com a sua dedicação. Mas a maior parte deles, tornando-se tirana para com os súbditos, e ociosa e fraca perante o inimigo, reduziu a república ao nada.

Semelhante evolução também se deu no povo dos judeus. Primeiramente, enquanto eram governados por juízes, os inimigos roubavam-nos por todos os lados, e cada um fazia o que a seus olhos parecia bem, como se diz por todo o Livro dos Juízes, e no fim do último capítulo. Porém, tendo-lhes Deus dado reis, a instâncias suas, e não por vontade d'Ele [...], desviaram-se, por maldade dos reis, do culto de um só Deus, e acabaram por ser reduzidos ao cativeiro [...].

Por conseguinte, os perigos de uma e outra coisa são iminentes, quer dominem os tiranos e se evite o óptimo governo do rei, quer, enquanto se deseja o poder real, este se converta na maldade tirânica. Portanto, visto que é preferível o governo de um só, que é o melhor, e visto que acontece que este se converte em tirania, que é o pior, conforme se colhe do que fica dito, deve-se diligentemente trabalhar para que o rei não se transforme em tirano. Donde importa que aqueles que têm o encargo de eleger o rei ou o imperador, provejam para que não seja provável o rei desviar-se para a tirania. Por isso, o Senhor procurou [...] um homem segundo o seu coração e ordenou-lhe que fosse o chefe do seu povo. [...].

Em seguida, deve-se dispor a governação do reino, de maneira a subtrair-se o ensejo de tirania ao rei já substituído. Tempere-se de tal modo o seu poder, que não possa facilmente cair na tirania.


A MONARQUIA, MELHOR FORMA DE GOVERNO


Castelo de Silves




... é da essência de um reino que seja um só a governar, e que este seja pastor e rei que procure o bem comum da multidão, e não o seu. Ora, porque há muitas comunidades (a saber: de casas, aldeias, cidades e reinos), aquele que governa uma comunidade perfeita, isto é, uma cidade ou uma província, chama-se rei por antonomásia [...], e aquele que governa uma casa, pai de família [...].

Do que fica dito, vê-se que o rei é aquele que governa a multidão de uma cidade ou província para o bem comum. Por isso, diz Salomão (Eclesiastes, V): «e há além disso um rei que impera sobre toda a terra que lhe está sujeita».

Isto visto, há que inquirir o que mais convém a uma província ou a uma cidade: se vários, se um só.

Ora, importa considerar este problema em função do fim do regente. A intenção de todo aquele que governa bem deve ser a de procurar a felicidade dos súbditos. Porém, o bem e felicidade de uma sociedade está na conservação da sua unidade, que se chama paz. Não existindo esta, desaparece a utilidade da vida social [...]. Além disso, uma multidão em discórdia torna-se prejudicial a si mesma, e nada de honroso realiza [...].

Por isso, o Apóstolo, depois de recomendar a unidade da multidão dos fiéis, diz na Epístola aos Efésios, IV: «Sede solícitos em manter a unidade do espírito pelo vínculo da paz». E o Salmo [CXXXII]: «Eis quão bom e quão suave é viverem os irmãos em união» [...].

Ora, é evidente que mais pode realizar a unidade aquele que é uno em si do que vários, tal como a causa mais eficaz do aquecimento é aquilo que é quente de per si. Logo, é mais útil o governo de um só que o de vários. Item, diz-se que muitas coisas se unem por aproximação à unidade. Logo, um só é melhor que dois ou vários, por isso que mais se aproxima da unidade.


Ponte Romana de Silves



Além disso, aquelas coisas que são segundo a natureza optimamente se comportam. Todo o reino natural é governado por um só. E na pluralidade dos membros há um, isto é, o coração que comanda o movimento dos outros; e nas partes da alma há uma força natural que governa as demais, a saber, a razão. As abelhas têm um só rei. E no universo há um só Deus, criador e regedor de todas as coisas. [...]

Com efeito, toda a multidão deriva de um só, e o número começa em um, e, depois, multiplica-se [...]. E um só foi o primeiro homem criado, de que vieram todos os da mesma natureza [...].

Isto prova-se pela experiência. As províncias ou cidades, que não são governadas por um só, debatem-se em dissenções e flutuam sem paz, para que se veja realizar aquilo de que o Senhor se queixa pelo Profeta (Jeremias, XII): «Numerosos pastores destruíram a minha vinha». Esses tais, antes se devem chamar lobos.

Ao contrário, as províncias e cidades que são governadas por um só rei gozam de paz geral, florescem em justiça, e alegram-se na abundância das coisas. Por isso, o Senhor, por meio de seus profetas, promete, como grande dádiva, que lhes dará um só chefe, e que um só príncipe haverá no meio deles (Ezequiel, XXXVII).

Item, segundo o Profeta, a virtude única é mais forte que a dispersa. Porém, vários governantes sobre a mesma multidão não mantêm a paz da multidão, se não forem unidos e concordes. Segundo o Filósofo, se um deseja isto, outro deseja mais aquilo. Porém, um único governante, seguindo a virtude, poderá conservar melhor a paz dos cidadãos, e não poderá tão facilmente perturbá-la, pois que mais facilmente concorda um consigo mesmo do que muitos uns com os outros, segundo esta setença «com ninguém concordará aquele que consigo mesmo está em desacordo», pois que onde há multidão, reina a confusão e a divisão. [...]

Por outro lado, a diversidade das almas segue a diversidade dos corpos [...], porque tantas as cabeças, quantas as sentenças [...], e as vontades dos homens são várias [...] E o Moralista: «É próprio de cada uma buscar o que é seu, e não se vive com uma única opinião». E Ovídio: «São tantos os caracteres nos peitos humanos, quantas as figuras existentes no mundo». E também porque um só príncipe que se aplica ao bem comum olha mais por este, do que se forem muitos a dominar; e também segundo a virtude, porque quantos mais forem tirados da comunidade, tanto o resto é menos comum, e quantos menos forem, tanto menor é o comum (in Álvaro Pais, Editorial Verbo, 1992, pp. 78-86).




2 comentários:

  1. Olá, gostaria que me informa-se se tem o livro O espelho dos Reis, sou estudante de direito e necessito de o ler para fazer um trabalho de investigação, procuro quem mo empreste.
    Obrigada pelo seu trabalho está muito bom.

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  2. Caro leitor: tenho o livro, mas não em Miraflores. De qualquer modo, sugiro que o consulte na Biblioteca Nacional. Ou tente encontrá-lo em bibliotecas municipais.

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