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terça-feira, 4 de setembro de 2012

Platão (ii)

Escrito por Eduardo Schuré











«Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses».

(Inscrição no Templo de Delfos).



«[A alma da Grécia] acha-se nos templos, nos mistérios, nos seus iniciados. Acha-se no santuário de Júpiter em Olímpia, no de Juno em Argos, no de Ceres em Elêusis. Reina em Atenas com Minerva. Irradia em Delfos com Apolo, que domina e penetra todos os templos com a sua luz. Eis o centro da helénica, o cérebro e o coração da Grécia. Vão lá instruir-se os poetas, que traduzem para as multidões as verdades sublimes em imagens vivas, os sábios que as propagam através de uma dialéctica subtil.

(...) [Pitágoras] é o mestre da Grécia laica como Orfeu o tinha sido da Grécia sacerdotal. Traduz e continua o pensamento religioso do seu predecessor... Embora apareça à luz da História, Pitágoras permaneceu uma personagem quase lendária. Explica-se isso pela perseguição encarniçada de que foi vítima na Sicília, durante a qual morreram muitos pitagóricos. Com dificuldade e por um grande preço, Platão obteve de Arquitas um manuscrito do mestre. Este sempre redigira os seus trabalhos em signos secretos e sob a forma simbólica. A sua influência exercia-se através do ensino oral.

(...)  A ciência dos números era conhecida nos templos do Egipto e da Ásia, sob nomes diferentes. Os algarismos, as letras, as figuras geométricas, as figurações humanas, que tinham o valor de signos nessa álgebra do mundo oculto, só eram entendidas pelo iniciado. Este só revelava o seu significado ao adepto, depois do juramento de silêncio. Sobre esta ciência, Pitágoras escreveu um livro intitulado HIEROS LOGOS (A Palavra Sagrada). Esse livro não chegou até nós. Mas os escritos dos pitagóricos, Filolau, Arquitas, Hiérocles, os diálogos de Platão, os trabalhos de Aristóteles, de Porfírio, de Jâmblico, mencionam os seus princípios».

Eduardo Schuré («Os Grandes Iniciados»).


«Os Pitagóricos acreditam também numa espécie de número - o matemático; só que dizem que ele não está separado, mas que dele se formam as substâncias sensíveis. É que eles constroem todo o universo a partir dos números - só que não são números compostos de unidades abstractas, mas supõem eles que as unidades têm grandeza espacial. Mas como é que a primeira unidade com grandeza se constituiu, é facto que eles parecem ter dificuldade em explicar».

«A doutrina dos Pitagóricos apresenta, por um lado, menos dificuldades que as anteriormente mencionadas, mas, por outro, contém outras que lhe são peculiares. De facto, não conceber o número com capacidade para existir em separado remove muitas das consequências impossíveis; mas que os corpos sejam compostos de números e que este número deva ser matemático, é coisa impossível. Pois não é correcto falar de mudanças espaciais indivisíveis; e por muito que possa haver grandezas deste tipo, as unidades, pelo menos, não têm grandeza; e como é que uma grandeza pode ser constituída por indivisíveis? Mas o número aritmético, pelo menos, consta de unidades abstractas, enquanto estes pensadores identificam o número com coisas reais; em qualquer caso, aplicam as suas proposições aos corpos, como se estes consistissem desses números».

Aristóteles («Metafísica»).


«Referindo-se aos estudos dos platónicos e dos pitagóricos, afirmava Aristóteles, na "Metafísica" (L.1), que não haviam os segundos mostrado como os seres se dão por imitação dos números, nem os primeiros como eles se dão por participação.

Acusava-os, assim, de haverem esquecido tratar de um ponto importantíssimo, do que não os absolvia. Posteriormente, Tomás de Aquino mostrou que essa queixa de Aristóteles era infundada quanto aos platónicos, embora a aceitasse quanto aos pitagóricos.

Nós, por sua vez, mostraremos que ela era infundada também quanto aos pitagóricos, porque a imitação, a mímesis pitagórica, que se dá através do arithmós, processa-se como a participação, e a fundamentação desse processo só era conhecida dos pitagóricos de grau mais elevado, razão por que Aristóteles não a conhecia».

Mário Ferreira dos Santos («Tratado de Simbólica»).



Pitagóricos


«Filolau de Crotona, pitagórico. Foi a ele que Díon foi aconselhado, numa carta, por Platão a comprar os livros pitagóricos... Escreveu um livro. (Hermino diz que, segundo um determinado escritor, o filósofo Platão foi para a Sicília, para a corte de Dionísio, comprou este livro aos parentes de Filolau por 40 minae alexandrinas, e que dele copiou o Timeu. Outros há que afirmam que Platão adquiriu os livros, após ter obtido de Dionísio a libertação do cárcere de um jovem que havia sido um dos discípulos de Filolau)».

Diógenes Laércio




A Iniciação de Platão


Três anos depois de Platão se tornar discípulo de Sócrates, este foi condenado à morte e morreu bebendo cicuta, rodeado dos seus discípulos. Poucos eventos históricos têm sido tão discutidos quanto esse, poucos têm tido as suas causas tão mal compreendidas. Diz-se hoje que o Areópago teve razão em condenar Sócrates, como inimigo da religião do Estado. Negando os deuses, abalava as bases da república ateniense. Vamos demonstrar que nisso há dois erros profundos. Na introdução da APOLOGIA DE SÓCRATES, Victor Cousin ousou escrever: "Ânito - deve-se dizê-lo - era um cidadão recomendável, o Areópago um tribunal equânime e moderado. Se houvesse algo de admirável, seria Sócrates ter sido acusado tão tarde e ser condenado por uma maioria relativa de votos". O filósofo, ministro da Instrução Pública, não viu que se teria de condenar ao mesmo tempo a filosofia e a religião, para glorificar unicamente a política da mentira, da violência, do arbítrio, se ele tivesse razão nas suas palavras. Se a filosofia arruína as bases do estado social, esse estado será uma loucura pomposa. Se a religião só pode subsistir suprimindo a pesquisa da verdade, ela é apenas uma tirania funesta. Sejamos justos para com a religião e a filosofia gregas.

A maioria dos historiadores e filósofos modernos não têm notado que, na Grécia, foram raras as perseguições aos filósofos e que elas jamais saíram dos templos e sim dos meios políticos. A civilização helénica não conheceu a guerra entre os sacerdotes e os filósofos, a qual tem desempenhado um papel na nossa, desde a destruição do esoterismo cristão, no segundo século da nossa era. Tales pôde ensinar, tranquilamente, que o mundo provém da água. Heráclito dizia que o mundo sai do fogo. Anaxágoras afirmava que o Sol é massa de fogo incandescente. Demócrito pretendia que tudo vem dos átomos. Nenhum templo se inquietou com essas afirmativas. Nos templos, os sacerdotes sabiam disso e de mais alguma coisa. Sabiam que os negadores dos deuses não podiam destruí-los na consciência nacional. Os verdadeiros filósofos acreditavam nos deuses, à maneira dos iniciados, e viam neles os símbolos das grandes categorias da hierarquia espiritual, do divino que penetra toda a Natureza, do invisível governando o visível. A doutrina esotérica servia de laço entre a verdadeira filosofia e a verdadeira religião. Esse era o facto profundo, primordial, final, que explica o secreto entendimento entre ambas na civilização helénica.

Quem acusou Sócrates? Os sacerdotes de Elêusis, que tinham amaldiçoado os autores da guerra do Peloponeso, não pronunciaram uma palavra contra ele. Quanto ao templo de Delfos manifestou o mais elevado elogio a um homem. Consultada sobre o que Apolo pensava de Sócrates, a Pítia respondeu: "Não há ninguém mais livre, mais justo, mais sensato" (2).




Eram estes os dois pontos da acusação: corrupção da mocidade e descrença nos deuses. Ambos eram apenas um pretexto. Quanto à descrença nos deuses, disse Sócrates: "Se eu creio no meu espírito familiar, com mais razão devo acreditar nos deuses, que são os grandes espíritos do universo". Então, porquê o ódio implacável ao sábio? Tinha cometido a injustiça, desmascarando a hipocrisia, demonstrando a falsidade de tantas pretensões vãs. Os homens não perdoam aqueles que os desmascararam. Por isso, os verdadeiros ateus, que estavam no Areópago, condenaram o justo e inocente à morte.

Sócrates deu a seguinte explicação com perfeita simplicidade: "Foram as minhas pesquisas infrutíferas, em busca de sábios em Atenas, que excitaram tantas inimizades contra mim. Daí todas as calúnias a meu respeito. Aqueles que me ouvem supõem que eu sei das coisas, a respeito das quais eu desmascaro a ignorância dos outros. Intrigantes, activos, numerosos, falam de mim segundo um plano combinado, com eloquência capaz de seduzir e há muito tempo vêm enchendo os vossos ouvidos com boatos pérfidos, prosseguindo no seu sistema calunioso. Entre eles sobressaem Meleto, Ânito, Lícon. Meleto representa os poetas, Ânito os políticos e artistas, Lícon os oradores".

Um, poeta trágico, sem talento. Outro, um homem rico, mau e fanático. O terceiro, um demagogo desavergonhado. Eles conseguiram a condenação à morte do melhor dos homens.

Essa morte imortalizou Sócrates. Ele pôde dizer altivamente aos juízes: "Creio mais nos deuses do que qualquer um dos meus acusadores. Está na hora de nos separarmos; eu para morrer, os senhores para viverem. Quem teve a melhor parte? Ninguém sabe, excepto Deus" (3).

A serena imagem de Sócrates, morrendo pela verdade, na sua última hora conversando com os discípulos sobre a imortalidade, gravou-se no coração de Platão como o mais belo espectáculo e o mais sagrado dos mistérios. Mais tarde, iria estudar a física e a metafísica, sem no entanto deixar de ser o discípulo de Sócrates. Platão recebeu de Sócrates o grande impulso, o princípio activo e masculino da sua vida, a sua fé na justiça e na verdade. Quanto à ciência e à substância das suas ideias, ele recebeu-as na sua iniciação nos Mistérios. A iniciação não lhe foi proporcionada somente em Elêusis. Ele recorreu a outros centros iniciáticos no mundo antigo. Depois da morte de Sócrates, ele viajou. Recebeu lições de vários filósofos da Ásia Menor, esteve no Egipto, entrou em contacto com os seus sacerdotes e com a iniciação de Ísis. Não atingiu, como Pitágoras, o grau de adepto. Ficou no terceiro grau, que confere a perfeita clareza intelectual com a realeza da inteligência, a reger a alma e o corpo. Depois dirigiu-se à Itália meridional. Conversou com os pitagóricos, ficando então ciente de que Pitágoras foi o maior sábio grego. Adquiriu a preço de ouro um manuscrito do mestre. Recebendo a tradição esotérica de Pitágoras, na própria fonte, recebeu dessa tradição as ideias-mãe, a ossatura do seu sistema (4).


Voltando a Atenas, Platão fundou a sua célebre escola: a Academia. Para continuar a obra de Sócrates, ele devia difundir a verdade. Mas Platão não podia ensinar, publicamente, os princípios que os pitagóricos recobriam por um tríplice véu. Os juramentos, a prudência, o seu próprio objectivo, não permitiam isso. É a doutrina esotérica que encontramos nos seus DIÁLOGOS, dissimulada, minimizada, envolta em dialéctica raciocinadora, algo estranha ao conteúdo, mas ela mesma disfarçada em lenda, em mito, em parábola. Não se trata de um conjunto imponente como o de Pitágoras que tratamos de reconstituir, edifício alicerçado numa base imutável, com as partes fortemente cimentadas. Ela apresenta-se em fragmentos analíticos, mundanos, dos reitores, dos sofistas. Combate-os com as próprias armas deles. O seu génio está sempre nos diálogos. De vez em quando rompe como águia a rede da dialéctica, para elevar-se em voo audacioso às verdades sublimes, que são o seu ambiente e pátria.

Nada mais fácil do que encontrar as diferentes partes da doutrina esotérica em Platão e também descobrir as fontes. A doutrina das ideias típicas das coisas, no Fedro, é um corolário da doutrina dos números de PITÁGORAS. Há no Timeu a exposição muito confusa e muito embrulhada da cosmogonia esotérica. Quanto à doutrina da alma, das suas transmigrações, da sua evolução, ela atravessa toda a obra de Platão, mas em nenhuma parte ela transparece tão claramente como n'O Banquete e no Mito de Er, no final desse diálogo.

Já vimos que a chave do cosmos, o segredo da sua constituição, de alto a baixo, encontra-se no princípio dos três mundos, reflectidos pelo microcosmo e pelo macrocosmo, no ternário humano e divino. PITÁGORAS tinha magistralmente formulado e resumido essa doutrina sob o símbolo da Tétrada sagrada. Essa doutrina do Verbo divino, eterno, constituía o grande arcano, a fonte da magia, o templo do diamante no iniciado, a sua cidadela inexpugnável acima do oceano das coisas. Platão não podia nem queria revelar esse arcano no seu ensino público. De início, o juramento dos mistérios fechava-lhe a boca. Depois, não o compreenderiam. O vulgo teria profanado indignamente esse mistério teogónico, que contém a geração das coisas. Para combater a corrupção dos costumes e o desencadeamento das paixões políticas, era necessário outra coisa. Com a grande iniciação, iria fechar-se a porta do além, a porta que aliás só se abre, luminosamente, aos grandes profetas, aos raríssimos, aos verdadeiros iniciados.



Pitágoras de Samos



Platão substituiu a doutrina dos três mundos por três conceitos. Na falta de iniciação organizada, eles ficaram sendo durante dois mil anos os três caminhos abertos para o objectivo supremo. Esses três conceitos relacionam-se igualmente com o mundo humano e com o mundo divino. Há vantagem, de algum modo, em uni-los, embora de maneira abstracta. Aqui exibe-se o génio de Platão. Lançou torrentes de luz sobre o mundo, colocando na mesma linha as ideias do verdadeiro, do belo e do bem. Demonstrou que são três os raios que partem do mesmo centro e que se reúnem nesse mesmo centro, ou seja, em Deus.

A alma purifica-se na busca do bem, isto é do justo, preparando-se assim para conhecer a verdade, primeira e indispensável condição do seu progresso. Prosseguindo, alargando a ideia de belo, ela atinge o belo intelectual, a luz inteligente, mãe das coisas, animadora das formas, substância e orgão de Deus. Mergulhando na alma do mundo, a alma humana sente nascerem-lhe asas. Prosseguindo na ideia do verdadeiro, ela atinge a pura essência, os princípios contidos no espírito puro. Reconhece a sua imortalidade, pela identidade do seu princípio com o princípio divino. Perfeição: epifania da alma.

Abrindo essas grandes vias do espírito humano, fora dos sistemas estreitos e das religiões particulares, Platão criou a categoria do ideal, que durante séculos e ainda hoje, devia substituir a iniciação orgânica e completa. Abriu as três vias sagradas, que conduzem a Deus, como a via sagrada de Atenas conduzia a Elêusis pela porta do Cerâmico. O conhecimento da iniciação dá-nos a justificativa do ser do idealismo.

O idealismo é a afirmação ousada pela alma das verdades divinas, quando se interroga na solidão e forma um juízo a respeito das realidades celestes, mediante as suas faculdades íntimas e as suas vozes interiores. A iniciação é a penetração dessas mesmas verdades pela experiência da alma, pela visão directa do espírito, pela ressurreição interior. No grau supremo, é a comunicação da alma com o mundo divino.

O ideal é uma moral, uma poesia, uma filosofia. A iniciação é uma acção, uma visão, uma sublime presença da verdade. O ideal é o sonho e a saudade do mundo divino. A iniciação, templo dos eleitos, é a lembrança clara, a própria posse.


Construindo a categoria do ideal, o iniciado Platão criou um refúgio, abriu o caminho da salvação a milhões de almas, que nesta existência não podem alcançar a iniciação directa, mas dolorosamente aspiram à verdade. Assim, Platão fez da filosofia o vestíbulo de um santuário futuro, para o qual convidou todos os homens de boa vontade. O idealismo dos seus numerosos filhos, pagãos ou cristãos, aparece como a sala de espera da grande iniciação.

Isso explica a imensa popularidade e a força irradiante das ideias platónicas. Essa força está no seu fundo esotérico. Por isso, a Academia de Atenas, fundada por Platão, durou séculos, prolongando-se na grande escola de Alexandria. Por isso, os primeiros padres da Igreja renderam homenagem a Platão. Por isso, Santo Agostinho tomou dois terços da sua teologia. Dois mil anos decorreram desde que o discípulo de Sócrates soltou o último suspiro, à sombra da Acrópole. O cristianismo, as invasões bárbaras, a Idade Média, tinham passado pelo mundo. Mas a Antiguidade renascia das suas cinzas. Em Florença, os Médicis quiseram fundar uma academia. Para organizá-la, chamaram um sábio grego, exilado de Constantinopla. Que nome lhe deu Marcílio Ficino? Chamou-a academia platónica. Hoje, estão desfeitos em poeira muitos sistemas filosóficos. Hoje, a ciência investigou a matéria nas suas últimas transformações, mas está em face do inexplicado e do invisível. E Platão volta para nós. Sempre simples e modesto, mas irradiando mocidade eterna, ele oferece-nos o sagrado ramo dos Mistérios, o ramo de mirto e cipreste, como o narciso, a flor da alma, que promete o divino renascimento numa nova Elêusis... (in ob. cit., pp. 282-287).


Notas:

(2) Xenofonte, Apologia de Sócrates.

(3) [Na tradução de Pinharanda Gomes: «Chegado é o tempo de partirmos. Eu para a morte, vós para a vida. Qual dos destinos é o melhor, a não ser o deus, ninguém o sabe» (in Apologia de Sócrates, Guimarães Editores, Lisboa, 5.ª edição, 2002, p. 94)].

(4) Segundo Proclo, o que Orfeu afirmou em obscuras alegorias Pitágoras ensinou, depois, de iniciado nos mistérios órficos, e Platão conheceu através dos escritos órficos e pitagóricos. Esta opinião da escola alexandrina sobre a filiação das ideias platónicas está confirmada pelo estudo comparativo das tradições órficas e pitagóricas com os escritos de Platão. A filiação, mantida em segredo durante séculos, só foi revelada pelos filósofos alexandrinos, os primeiros a publicar o sentido esotérico dos mistérios.



Orpheus



sábado, 1 de setembro de 2012

Platão (i)

Escrito por Eduardo Schuré






«No céu, aprender é ver
Na terra, é lembrar-se.

Feliz quem atravessou os Mistérios
E conhece a origem e o fim da vida».

Píndaro


Depois da tentativa de mostrar, mediante a personalidade e a obra de Pitágoras, o maior iniciado da Grécia, o fundo primordial e universal da verdade religiosa e filosófica, poderíamos deixar de falar de Platão, pois este apenas deu a essa verdade uma forma mais fantasista e mais popular. Eis a razão de nos determos um momento diante da nobre figura do filósofo ateniense.

Sim, há uma doutrina-mãe e síntese das religiões e das filosofias. Ela desenvolve-se e aprofunda-se no decorrer das idades. Mas o fundo e o centro permanecem os mesmos. Já encontrámos as suas grandes linhas. Deve-se ainda mostrar a razão providencial das suas diversas formas, segundo as raças e as idades. Deve-se restabelecer a cadeia dos grandes iniciados, que foram os verdadeiros iniciadores da humanidade. Então, a força de cada um deles se multiplicará pela de todos os outros e a unidade da verdade aparecerá na diversidade da sua expressão. Como tudo o mais, a Grécia teve a sua aurora, o seu apogeu e o seu declínio.

É a lei dos dias, dos homens, dos povos, das terras, dos céus. Orfeu foi o iniciado da aurora. Pitágoras foi o do apogeu do meio. Platão o do declínio, o ocaso de púrpura ardente, que será a claridade rósea de uma nova aurora, a da humanidade. Platão segue Pitágoras como nos mistérios de Elêusis o porta-estandarte acompanhava o grande hierofante. Com ele vamos entrar mais uma vez por um novo caminho, através das avenidas do santuário, até ao coração do templo, para contemplação do grande arcano.

Mas, antes de ir a Elêusis, ouçamos um instante o nosso guia, o divino Platão. Que ele nos deixe ver o seu horizonte natal, nos conte a história da sua alma e nos conduza até ao seu mestre bem-amado.


A mocidade de Platão


Platão nasceu em Atenas, a cidade do Belo e da Humanidade. Não havia limitações aos seus jovens olhares. Aberta a todos os ventos, a Ática avança como a proa de um navio no mar Egeu. Prepondera como rainha sobre os arquipélagos, ilhas que parecem sereias brancas, sentadas no azul-escuro das ondas. Ele cresceu aos pés da Acrópole, sob a guarda de Palas-Atenas, naquela extensa planície, rodeada de montanhas violentas, envoltas em azul luminoso, entre o Pentélico de flancos de mármore, o Himeto coroado de pinheiros odoríferos, onde esvoaçam as abelhas, e a tranquila baía de Elêusis.






A mãe de Platão deve ter contado ao filho uma cena de que ela teria sido testemunha, dois anos antes do nascimento do filósofo. Os Espartanos tinham invadido a Ática. Atenas, ameaçada na sua existência nacional, lutara durante um Inverno inteiro e Péricles era a alma da defesa. Naquele ano sombrio, houve uma cerimónia imponente no Cerâmico. Os ataúdes dos guerreiros mortos pela Pátria foram colocados em carros fúnebres. Convocou-se o povo para ficar em frente do túmulo monumental destinado a reunir aqueles corpos. O mausoléu parecia o símbolo magnífico e sinistro do túmulo que a Grécia estava cavando para ela na sua luta criminosa. Então Péricles pronunciou o mais belo discurso que a Antiguidade nos legou. Tucídides transcreveu-o em placas de bronze. Aquela peroração brilha como um escudo no frontão de um templo. "O túmulo dos heróis é o universo inteiro e não se apoia em colunas ornadas de faustosas inscrições". Não respira nesta frase a consciência da Grécia e da sua imortalidade?

Péricles morto, que restava da antiga Grécia, que vivia nos seus homens de acção? No interior de Atenas, havia uma demagogia ululante, provocadora de discórdias. No exterior, a invasão lacedemónia iminente, a guerra no mar e em terra. O ouro do rei da Pérsia circulava como veneno corruptor nas mãos dos tribunos e dos magistrados. Alcibíades substituíra Péricles, no prestígio público. Aquele tipo de moço de uma classe privilegiada tornara-se "o homem do dia". Político aventureiro, intrigante sedutor, levou a Pátria à sua perda. Platão observara-o bem. Mais tarde traçou-lhe com mão de mestre o perfil psicológico. Compara o furioso desejo de poder, na alma de Alcibíades, a um grande besouro, "em torno de quem as paixões, coroadas de flores, perfumadas de essências, embriagadas de vinho e de todos os prazeres desenfreados, vêm zumbir, alimentando-o, nutrindo-o, armando-o enfim com o aguilhão da ambição. Então, esse tirano da alma, escoltado pela demência, agita-se, furioso. Se ele encontra em torno pensamentos e sentimentos honestos, que possam fazê-lo enrubescer, ele mata-os, expulsa-os, até que tenha extirpado da alma toda a moderação, enchendo-a com o furor que traz consigo".

Durante a mocidade de Platão, foi sombrio o céu de Atenas. Aos vinte e cinco anos, ele assistiu à tomada de Atenas pelos Espartanos, depois da desastrosa batalha naval de Aigos Pótamos. Depois viu a entrada de Lisandro, na terra natal, o que significava o fim da independência ateniense. Viu a demolição das extensas muralhas, mandadas construir por Temístocles. A demolição foi feita aos sons de música festiva. O inimigo, vencedor literalmente, dançava sobre as ruínas da Pátria. Depois vieram os trinta tiranos e as suas proscrições.

Templo de Zeus


Esses espectáculos entristeceram a alma do jovem Platão, sem contudo perturbá-la. Platão era de estatura elevada, tinha os ombros largos, era grave, discreto, quase sempre silencioso. Quando falava, emanava das suas palavras uma doçura encantadora, uma sensibilidade delicada. Não era excessivo nas acções. As suas atitudes variadas fundiam-se na harmonia superior do seu ser. Uma graça alada, uma modéstia natural, ocultavam a seriedade do seu espírito.

Uma ternura quase feminina escondia a firmeza do seu carácter. Nele a virtude revestia-se do sorriso e o prazer de uma castidade ingénua. A marca dominante e extraordinária da sua alma era que nela parecia haver um pacto misterioso com a Eternidade. No fundo dos seus grandes olhos, pareciam vivas as coisas eternas. Tudo o mais se passava neles como vãs aparências num espelho profundo. Por trás das formas visíveis, mutáveis, imperfeitas, do mundo e dos seres, apareciam-lhe as formas invisíveis, perfeitas, para sempre radiantes desses mesmos seres, vistas pelo espírito, e que são os seus modelos eternos. Por isso, o jovem Platão, sem ter formulado a sua doutrina, sem saber mesmo que seria filósofo, tinha já consciência da realidade divina do ideal e da sua omnipresença. Por isso, vendo as mulheres com os seus meneios, os carros fúnebres, os exércitos, as festas, os lutos, o seu olhar parecia ver outras coisas e dizer: "Porque choram? Porque soltam gritos de alegria? Pensam ser e não são. Porque não posso apegar-me ao que nasce e ao que morre? Porque só posso amar o invisível, que não nasce nem morre nunca, mas que é sempre?"

O amor e a harmonia, eis o fundo da alma de Platão. Mas, que amor, que harmonia! O amor da beleza eterna e a harmonia que envolve o Universo. Quanto mais a alma é grande e profunda, mais demora a conhecer-se a si mesma. O seu primeiro entusiasmo dirigiu-se às artes. Ele era de origem nobre, pois o seu pai pretendia descender do rei Codro, a sua mãe de Sólon. A sua mocidade foi a de um ateniense rico, rodeado de todos os luxos, de todas as seduções da época de decadência. Entregou-se aos gozos, vivendo como os seus companheiros, gozando de uma bela herança, rodeado e festejado por numerosos amigos. No Fedro, descreveu muito bem a paixão do amor, sem ter sentido os êxtases e as decepções cruéis. Dele resta apenas um verso, tão apaixonado como os de Safo, tão cheio de luz como uma noite estrelada no mar das Cíclades: "Eu quisera ser o céu, para ser todo olhos para te olhar". Buscando o belo, em todas as suas modalidades, cultivou a pintura, a música e a poesia. Esta parecia corresponder aos seus anseios. Platão dispunha de maravilhosa facilidade para todos os géneros. Sentia com igual intensidade a poesia amorosa e ditirâmbica, a epopeia, a tragédia, a própria comédia com o seu mais fino sal ático. Que lhe faltava para ser um outro Sófocles e evitar a decadência iminente do teatro ateniense? Essa ambição tentou-o e os amigos animaram-no. Aos vinte e sete anos, tinha já composto várias tragédias e apresentou um dos originais em concurso. Nessa época, encontrou-se com Sócrates, que discutia com os rapazes nos jardins da Academia. Aquele filósofo falava do justo e do injusto, do belo, do bom, do verdadeiro. O poeta aproximou-se do filósofo, ouviu-o e voltou nos dias subsequentes.

Depois de algumas semanas, ocorrera uma revolução completa no seu espírito. Não se reconhecia mais o rapaz feliz, o poeta cheio de ilusões. Tinha mudado o curso dos seus pensamentos. Dentro dele nascera outro Platão, ao ouvir a palavra daquele que se denominava "parteiro de almas". O que houve? Aquele raciocinador de face de sátiro afastara do luxo, dos prazeres, da poesia, do belo, o genial Platão, convertendo-o à grande renúncia da sabedoria.


Sócrates


Sócrates era um homem muito simples, mas muito original. Filho de um escultor, chegou a esculpir um grupo das três Graças, quando adolescente. Depois deixou o cinzel, dizendo que preferia esculpir a sua alma. Desde então, consagrou-se à pesquisa da sabedoria. Viam-no nos ginásios, nas praças públicas, nos teatros, conversando com os jovens, os artistas, os filósofos, perguntando a cada um que justificasse o que estava a dizer. Desde alguns anos, os sofistas eram muitos em Atenas. O sofista é a falsificação do homem de Estado, o hipócrita é o oposto do sacerdote, o mago negro a oposição infernal do verdadeiro iniciado. O tipo grego de sofista é mais subtil, mais raciocinador, mais corrosivo do que os outros, embora o género pertença a todas as civilizações decadentes. Pululam nelas como os vermes num corpo em decomposição. Chamem-se ateus, niilistas, pessimistas, os sofistas de todos os tempos assemelham-se. Negam sempre Deus e a alma, quer dizer a verdade e a vida supremas. Os do tempo de Sócrates, os Górgias, os Pródicos, os Protágoras, diziam que não há diferença entre a verdade e o erro. Faziam questão de provar qualquer ideia e a sua oposta, afirmando que só há uma justiça, a força, uma só verdade, a opinião do indivíduo. Satisfeitos deles mesmos, vivendo bem, cobravam caro as suas lições e induziam os jovens ao deboche, à intriga, à tirania.

Sócrates, com a sua bonomia, a sua doçura insinuante, aproximava-se dos sofistas como um ignorante que procurava instruir-se. De pergunta em pergunta, ele forçava-os a dizerem o contrário daquilo que tinham antes afirmado, obrigando-os a confessarem que não sabiam aquilo de que estavam a falar. Depois, Sócrates demonstrava que eles ignoravam a causa e o princípio de tudo. No final, sorridente, ele agradecia-lhes por lhe terem ensinado com as suas respostas, acrescentando que saber que não se sabe é o começo da verdadeira sabedoria. Mas Sócrates, em que é que ele acreditava? Ele não negava os deuses, prestando-lhes o mesmo culto que os demais cidadãos. Dizia que era impenetrável a natureza deles. Confessava não compreender a física e a metafísica, ensinadas nas escolas. Segundo ele, o importante é acreditar no justo e no verdadeiro, aplicando-os na vida.

Assim a táctica da educação moral muda segundo os tempos e os meios. Diante dos seus iniciados, Pitágoras trazia a moral das alturas da cosmogonia. Em Atenas, na praça pública, entre os Cleos e os Górgias, Sócrates falava do sentimento inato do justo e do verdadeiro, para reconstruir o mundo e o estado social abalado. Mas, ambos, um na ordem descendente dos princípios, outro na ordem ascendente, afirmavam a  mesma verdade. Para não deixar o seu papel de divulgador, recusou iniciar-se em Elêusis. Nem por isso deixava de possuir a verdade total e suprema de que falavam os grandes mistérios.

Porque Platão foi irresistivelmente encantado e subjugado por esse homem? Vendo-o, compreendeu a superioridade do bem sobre o belo. O belo só realiza o verdadeiro na miragem da arte, ao passo que o bem executa-o no fundo das almas. Rara e poderosa fascinação, pois os sentidos não participam dela. Esse homem mostrou-lhe a inferioridade da beleza e da glória, tais como Platão as concebera até então, em face da beleza e da glória da alma em acção, atraindo outras almas à sua verdade, para sempre, ao passo que as pompas de arte conseguem apenas espelhar um instante a verdade enganadora sob um véu decepcionante. Essa beleza irradiante, eterna, que é o "esplendor do verdadeiro", matou a beleza mutável e enganadora na alma de Platão. Por isso, Platão, esquecendo e deixando tudo o que amara até então, dedicou-se a Sócrates, na flor da mocidade, com toda a poesia da sua alma. Grande vitória da verdade sobre a beleza, que teve incalculáveis consequências para a história do espírito humano.



Eros



Enquanto isso, os amigos de Platão vêem-no estrear na cena trágica. Ele convidou-os para um grande almoço na sua casa e todos estranharam que ele quisesse dar essa festa naquela ocasião. A praxe era dar essa festa depois de a peça ter sido premiada e representada. Mas ninguém recusava o convite do rico filho-família, em sua casa onde se encontravam as Musas e as Graças em companhia de Eros. Desde muito tempo, a casa de Platão gastou uma fortuna para aquele banquete. Prepararam a mesa no jardim. Criados segurando fachos iluminavam o local. As três mais belas heteras de Atenas participavam no festim. Cantaram hinos ao amor e a Baco. Houve bailados voluptuosos ao som das flautas. Afinal, pediram a Platão que declamasse um dos seus ditirambos. E ele, levantando-se, declarou:

- Este é o último festim que vos ofereço. A partir de hoje, renuncio aos prazeres da existência para consagrar-me à sabedoria e seguir os ensinamentos de Sócrates. Saibam todos: renuncio até à poesia. Reconheci a sua incapacidade para exprimir a verdade que estou a procurar. Não farei mais versos e vou queimar, diante de vós todos, os que compus.

De todos os pontos da mesa, elevou-se um brado de espanto e de protesto. Todos estavam sentados em leitos sumptuosos. Os convivas, coroados de rosas, faces enrubescidas pelo vinho, trocavam ditos alegres, alguns exprimiam surpresa, outros indignação. Ouviu risos de incredulidade e de desprezo, disseram que a intenção de Platão era loucura e sacrilégio. Intimaram-no a desistir da sua intenção. Mas ele, calmo e resoluto, afirmou:

- Agradeço a todos os que participaram desta festa de despedida. Só manterei ao meu lado aqueles que quiserem participar da minha nova vida. Os amigos de Sócrates serão agora os meus amigos.

Estas palavras foram como uma geada sobre um campo de flores. Ouvindo-as, todos ficaram tristes como pessoas que assistem a um enterro. As cortesãs levantaram-se, retiraram-se nas suas liteiras, lançando um olhar de desprezo para o dono da casa. Os sofistas e os elegantes afastaram-se, dizendo palavras irónicas e gracejos.

- Adeus, Platão. Sê feliz! Tu voltarás para a nossa companhia! Adeus!

Dois moços sérios ficaram a seu lado. Platão tomou-lhes as mãos e conduziu-os para o interior da sua casa, deixando as ânforas de vinho meio esvaziadas, as rosas sem pétalas, as liras e flautas atiradas ao chão, entre as taças ainda cheias de vinho. No pátio interno, eles viram, sobre um pequeno altar, uma pirâmide de rolos de papiro. Eram todas as obras poéticas de Platão. O poeta tomou um facho e lançou fogo aos papéis com um sorriso, dizendo: "Vulcano, vem! Platão necessita de ti" (1).

Quando a chama se apagou, os dois amigos sentiram lágrimas nos olhos e, silenciosamente, disseram adeus ao seu futuro mestre. Platão ficou sozinho. Não chorava. sentiu no íntimo uma paz, uma serenidade maravilhosa. Pensava em Sócrates, com quem iria encontrar-se. A alvorada já iluminava os terraços das casas, as colunas, os frontões dos templos. Logo, o primeiro raio do Sol faria brilhar o capacete de Minerva na ponta da Acrópole  (in «Os Grandes Iniciados», Vega, 1998, pp. 273-281).






(1) Fragmento das obras completas de Platão com este título: "Platão queimando as suas poesias".


Continua