(Inscrição no Templo de Delfos).
«[A alma da Grécia] acha-se nos templos, nos mistérios, nos seus iniciados. Acha-se no santuário de Júpiter em Olímpia, no de Juno em Argos, no de Ceres em Elêusis. Reina em Atenas com Minerva. Irradia em Delfos com Apolo, que domina e penetra todos os templos com a sua luz. Eis o centro da helénica, o cérebro e o coração da Grécia. Vão lá instruir-se os poetas, que traduzem para as multidões as verdades sublimes em imagens vivas, os sábios que as propagam através de uma dialéctica subtil.
(...) [Pitágoras] é o mestre da Grécia laica como Orfeu o tinha sido da Grécia sacerdotal. Traduz e continua o pensamento religioso do seu predecessor... Embora apareça à luz da História, Pitágoras permaneceu uma personagem quase lendária. Explica-se isso pela perseguição encarniçada de que foi vítima na Sicília, durante a qual morreram muitos pitagóricos. Com dificuldade e por um grande preço, Platão obteve de Arquitas um manuscrito do mestre. Este sempre redigira os seus trabalhos em signos secretos e sob a forma simbólica. A sua influência exercia-se através do ensino oral.
(...) A ciência dos números era conhecida nos templos do Egipto e da Ásia, sob nomes diferentes. Os algarismos, as letras, as figuras geométricas, as figurações humanas, que tinham o valor de signos nessa álgebra do mundo oculto, só eram entendidas pelo iniciado. Este só revelava o seu significado ao adepto, depois do juramento de silêncio. Sobre esta ciência, Pitágoras escreveu um livro intitulado HIEROS LOGOS (A Palavra Sagrada). Esse livro não chegou até nós. Mas os escritos dos pitagóricos, Filolau, Arquitas, Hiérocles, os diálogos de Platão, os trabalhos de Aristóteles, de Porfírio, de Jâmblico, mencionam os seus princípios».
Eduardo Schuré («Os Grandes Iniciados»).
«Os Pitagóricos acreditam também numa espécie de número - o matemático; só que dizem que ele não está separado, mas que dele se formam as substâncias sensíveis. É que eles constroem todo o universo a partir dos números - só que não são números compostos de unidades abstractas, mas supõem eles que as unidades têm grandeza espacial. Mas como é que a primeira unidade com grandeza se constituiu, é facto que eles parecem ter dificuldade em explicar».
«A doutrina dos Pitagóricos apresenta, por um lado, menos dificuldades que as anteriormente mencionadas, mas, por outro, contém outras que lhe são peculiares. De facto, não conceber o número com capacidade para existir em separado remove muitas das consequências impossíveis; mas que os corpos sejam compostos de números e que este número deva ser matemático, é coisa impossível. Pois não é correcto falar de mudanças espaciais indivisíveis; e por muito que possa haver grandezas deste tipo, as unidades, pelo menos, não têm grandeza; e como é que uma grandeza pode ser constituída por indivisíveis? Mas o número aritmético, pelo menos, consta de unidades abstractas, enquanto estes pensadores identificam o número com coisas reais; em qualquer caso, aplicam as suas proposições aos corpos, como se estes consistissem desses números».
Aristóteles («Metafísica»).
«Referindo-se aos estudos dos platónicos e dos pitagóricos, afirmava Aristóteles, na "Metafísica" (L.1), que não haviam os segundos mostrado como os seres se dão por imitação dos números, nem os primeiros como eles se dão por participação.
Acusava-os, assim, de haverem esquecido tratar de um ponto importantíssimo, do que não os absolvia. Posteriormente, Tomás de Aquino mostrou que essa queixa de Aristóteles era infundada quanto aos platónicos, embora a aceitasse quanto aos pitagóricos.
Nós, por sua vez, mostraremos que ela era infundada também quanto aos pitagóricos, porque a imitação, a mímesis pitagórica, que se dá através do arithmós, processa-se como a participação, e a fundamentação desse processo só era conhecida dos pitagóricos de grau mais elevado, razão por que Aristóteles não a conhecia».
Pitagóricos |
Diógenes Laércio
A Iniciação de Platão
Três anos depois de Platão se tornar discípulo de Sócrates, este foi condenado à morte e morreu bebendo cicuta, rodeado dos seus discípulos. Poucos eventos históricos têm sido tão discutidos quanto esse, poucos têm tido as suas causas tão mal compreendidas. Diz-se hoje que o Areópago teve razão em condenar Sócrates, como inimigo da religião do Estado. Negando os deuses, abalava as bases da república ateniense. Vamos demonstrar que nisso há dois erros profundos. Na introdução da APOLOGIA DE SÓCRATES, Victor Cousin ousou escrever: "Ânito - deve-se dizê-lo - era um cidadão recomendável, o Areópago um tribunal equânime e moderado. Se houvesse algo de admirável, seria Sócrates ter sido acusado tão tarde e ser condenado por uma maioria relativa de votos". O filósofo, ministro da Instrução Pública, não viu que se teria de condenar ao mesmo tempo a filosofia e a religião, para glorificar unicamente a política da mentira, da violência, do arbítrio, se ele tivesse razão nas suas palavras. Se a filosofia arruína as bases do estado social, esse estado será uma loucura pomposa. Se a religião só pode subsistir suprimindo a pesquisa da verdade, ela é apenas uma tirania funesta. Sejamos justos para com a religião e a filosofia gregas.
A maioria dos historiadores e filósofos modernos não têm notado que, na Grécia, foram raras as perseguições aos filósofos e que elas jamais saíram dos templos e sim dos meios políticos. A civilização helénica não conheceu a guerra entre os sacerdotes e os filósofos, a qual tem desempenhado um papel na nossa, desde a destruição do esoterismo cristão, no segundo século da nossa era. Tales pôde ensinar, tranquilamente, que o mundo provém da água. Heráclito dizia que o mundo sai do fogo. Anaxágoras afirmava que o Sol é massa de fogo incandescente. Demócrito pretendia que tudo vem dos átomos. Nenhum templo se inquietou com essas afirmativas. Nos templos, os sacerdotes sabiam disso e de mais alguma coisa. Sabiam que os negadores dos deuses não podiam destruí-los na consciência nacional. Os verdadeiros filósofos acreditavam nos deuses, à maneira dos iniciados, e viam neles os símbolos das grandes categorias da hierarquia espiritual, do divino que penetra toda a Natureza, do invisível governando o visível. A doutrina esotérica servia de laço entre a verdadeira filosofia e a verdadeira religião. Esse era o facto profundo, primordial, final, que explica o secreto entendimento entre ambas na civilização helénica.
Eram estes os dois pontos da acusação: corrupção da mocidade e descrença nos deuses. Ambos eram apenas um pretexto. Quanto à descrença nos deuses, disse Sócrates: "Se eu creio no meu espírito familiar, com mais razão devo acreditar nos deuses, que são os grandes espíritos do universo". Então, porquê o ódio implacável ao sábio? Tinha cometido a injustiça, desmascarando a hipocrisia, demonstrando a falsidade de tantas pretensões vãs. Os homens não perdoam aqueles que os desmascararam. Por isso, os verdadeiros ateus, que estavam no Areópago, condenaram o justo e inocente à morte.
Sócrates deu a seguinte explicação com perfeita simplicidade: "Foram as minhas pesquisas infrutíferas, em busca de sábios em Atenas, que excitaram tantas inimizades contra mim. Daí todas as calúnias a meu respeito. Aqueles que me ouvem supõem que eu sei das coisas, a respeito das quais eu desmascaro a ignorância dos outros. Intrigantes, activos, numerosos, falam de mim segundo um plano combinado, com eloquência capaz de seduzir e há muito tempo vêm enchendo os vossos ouvidos com boatos pérfidos, prosseguindo no seu sistema calunioso. Entre eles sobressaem Meleto, Ânito, Lícon. Meleto representa os poetas, Ânito os políticos e artistas, Lícon os oradores".
Um, poeta trágico, sem talento. Outro, um homem rico, mau e fanático. O terceiro, um demagogo desavergonhado. Eles conseguiram a condenação à morte do melhor dos homens.
Essa morte imortalizou Sócrates. Ele pôde dizer altivamente aos juízes: "Creio mais nos deuses do que qualquer um dos meus acusadores. Está na hora de nos separarmos; eu para morrer, os senhores para viverem. Quem teve a melhor parte? Ninguém sabe, excepto Deus" (3).
A serena imagem de Sócrates, morrendo pela verdade, na sua última hora conversando com os discípulos sobre a imortalidade, gravou-se no coração de Platão como o mais belo espectáculo e o mais sagrado dos mistérios. Mais tarde, iria estudar a física e a metafísica, sem no entanto deixar de ser o discípulo de Sócrates. Platão recebeu de Sócrates o grande impulso, o princípio activo e masculino da sua vida, a sua fé na justiça e na verdade. Quanto à ciência e à substância das suas ideias, ele recebeu-as na sua iniciação nos Mistérios. A iniciação não lhe foi proporcionada somente em Elêusis. Ele recorreu a outros centros iniciáticos no mundo antigo. Depois da morte de Sócrates, ele viajou. Recebeu lições de vários filósofos da Ásia Menor, esteve no Egipto, entrou em contacto com os seus sacerdotes e com a iniciação de Ísis. Não atingiu, como Pitágoras, o grau de adepto. Ficou no terceiro grau, que confere a perfeita clareza intelectual com a realeza da inteligência, a reger a alma e o corpo. Depois dirigiu-se à Itália meridional. Conversou com os pitagóricos, ficando então ciente de que Pitágoras foi o maior sábio grego. Adquiriu a preço de ouro um manuscrito do mestre. Recebendo a tradição esotérica de Pitágoras, na própria fonte, recebeu dessa tradição as ideias-mãe, a ossatura do seu sistema (4).
Voltando a Atenas, Platão fundou a sua célebre escola: a Academia. Para continuar a obra de Sócrates, ele devia difundir a verdade. Mas Platão não podia ensinar, publicamente, os princípios que os pitagóricos recobriam por um tríplice véu. Os juramentos, a prudência, o seu próprio objectivo, não permitiam isso. É a doutrina esotérica que encontramos nos seus DIÁLOGOS, dissimulada, minimizada, envolta em dialéctica raciocinadora, algo estranha ao conteúdo, mas ela mesma disfarçada em lenda, em mito, em parábola. Não se trata de um conjunto imponente como o de Pitágoras que tratamos de reconstituir, edifício alicerçado numa base imutável, com as partes fortemente cimentadas. Ela apresenta-se em fragmentos analíticos, mundanos, dos reitores, dos sofistas. Combate-os com as próprias armas deles. O seu génio está sempre nos diálogos. De vez em quando rompe como águia a rede da dialéctica, para elevar-se em voo audacioso às verdades sublimes, que são o seu ambiente e pátria.
Nada mais fácil do que encontrar as diferentes partes da doutrina esotérica em Platão e também descobrir as fontes. A doutrina das ideias típicas das coisas, no Fedro, é um corolário da doutrina dos números de PITÁGORAS. Há no Timeu a exposição muito confusa e muito embrulhada da cosmogonia esotérica. Quanto à doutrina da alma, das suas transmigrações, da sua evolução, ela atravessa toda a obra de Platão, mas em nenhuma parte ela transparece tão claramente como n'O Banquete e no Mito de Er, no final desse diálogo.
Pitágoras de Samos |
A alma purifica-se na busca do bem, isto é do justo, preparando-se assim para conhecer a verdade, primeira e indispensável condição do seu progresso. Prosseguindo, alargando a ideia de belo, ela atinge o belo intelectual, a luz inteligente, mãe das coisas, animadora das formas, substância e orgão de Deus. Mergulhando na alma do mundo, a alma humana sente nascerem-lhe asas. Prosseguindo na ideia do verdadeiro, ela atinge a pura essência, os princípios contidos no espírito puro. Reconhece a sua imortalidade, pela identidade do seu princípio com o princípio divino. Perfeição: epifania da alma.
Abrindo essas grandes vias do espírito humano, fora dos sistemas estreitos e das religiões particulares, Platão criou a categoria do ideal, que durante séculos e ainda hoje, devia substituir a iniciação orgânica e completa. Abriu as três vias sagradas, que conduzem a Deus, como a via sagrada de Atenas conduzia a Elêusis pela porta do Cerâmico. O conhecimento da iniciação dá-nos a justificativa do ser do idealismo.
O idealismo é a afirmação ousada pela alma das verdades divinas, quando se interroga na solidão e forma um juízo a respeito das realidades celestes, mediante as suas faculdades íntimas e as suas vozes interiores. A iniciação é a penetração dessas mesmas verdades pela experiência da alma, pela visão directa do espírito, pela ressurreição interior. No grau supremo, é a comunicação da alma com o mundo divino.
Construindo a categoria do ideal, o iniciado Platão criou um refúgio, abriu o caminho da salvação a milhões de almas, que nesta existência não podem alcançar a iniciação directa, mas dolorosamente aspiram à verdade. Assim, Platão fez da filosofia o vestíbulo de um santuário futuro, para o qual convidou todos os homens de boa vontade. O idealismo dos seus numerosos filhos, pagãos ou cristãos, aparece como a sala de espera da grande iniciação.
Isso explica a imensa popularidade e a força irradiante das ideias platónicas. Essa força está no seu fundo esotérico. Por isso, a Academia de Atenas, fundada por Platão, durou séculos, prolongando-se na grande escola de Alexandria. Por isso, os primeiros padres da Igreja renderam homenagem a Platão. Por isso, Santo Agostinho tomou dois terços da sua teologia. Dois mil anos decorreram desde que o discípulo de Sócrates soltou o último suspiro, à sombra da Acrópole. O cristianismo, as invasões bárbaras, a Idade Média, tinham passado pelo mundo. Mas a Antiguidade renascia das suas cinzas. Em Florença, os Médicis quiseram fundar uma academia. Para organizá-la, chamaram um sábio grego, exilado de Constantinopla. Que nome lhe deu Marcílio Ficino? Chamou-a academia platónica. Hoje, estão desfeitos em poeira muitos sistemas filosóficos. Hoje, a ciência investigou a matéria nas suas últimas transformações, mas está em face do inexplicado e do invisível. E Platão volta para nós. Sempre simples e modesto, mas irradiando mocidade eterna, ele oferece-nos o sagrado ramo dos Mistérios, o ramo de mirto e cipreste, como o narciso, a flor da alma, que promete o divino renascimento numa nova Elêusis... (in ob. cit., pp. 282-287).
Notas:
(2) Xenofonte, Apologia de Sócrates.
(3) [Na tradução de Pinharanda Gomes: «Chegado é o tempo de partirmos. Eu para a morte, vós para a vida. Qual dos destinos é o melhor, a não ser o deus, ninguém o sabe» (in Apologia de Sócrates, Guimarães Editores, Lisboa, 5.ª edição, 2002, p. 94)].
(4) Segundo Proclo, o que Orfeu afirmou em obscuras alegorias Pitágoras ensinou, depois, de iniciado nos mistérios órficos, e Platão conheceu através dos escritos órficos e pitagóricos. Esta opinião da escola alexandrina sobre a filiação das ideias platónicas está confirmada pelo estudo comparativo das tradições órficas e pitagóricas com os escritos de Platão. A filiação, mantida em segredo durante séculos, só foi revelada pelos filósofos alexandrinos, os primeiros a publicar o sentido esotérico dos mistérios.
Orpheus
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