sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Apologia de Leonardo Coimbra

Escrito por José Marinho




«De facto os aplausos e a admiração que Leonardo Coimbra colhia (como ele não podia deixar de o perceber) eram puramente espectaculares, dirigidos apenas à sua personalidade exterior de tribuno e homem estranho: na realidade, ninguém o compreendia; e o homem de valor o que deseja é que participem das suas preocupações e não que admirem a sua figura, ou timbre de voz, ou facilidade de palavra; o que ele quer, em suma, é que o compreendam e não que o aplaudam. Leonardo Coimbra sentia com nitidez a sua incomunicabilidade, e sofria como todos os homens superiores a têm sofrido, em todos os tempos e lugares, e sofrerão sempre; sob a máscara do tribuno que frequentemente subia aos estrados para falar, falar, falar, dando-se o ar de homem que tinha a satisfação de transferir as suas ideias, havia o rictus secreto, cheio de amargura, do pensador que sabia que as suas obras somente eram vendidas nas feiras do livro a preços irrisórios, para não serem vendidas a peso. Quantas vezes nos últimos anos, quando os amigos lhe perguntavam de longe a longe se andava a pensar algum livro, ele replicava com rápida mordacidade – “ – Mas para quê? Neste país não se pensa: neste país...».

Sant´Anna Dionísio («Leonardo Coimbra»).

 

«A obra filosófica de Leonardo Coimbra, como a de Bruno, carece de estilo clássico, no sentido de uma forma constante, rigorosa e severa. Entretanto, podemos preguntar-nos: ao lado de uma filosofia mais especulativa e noética, não existirá uma filosofia ética ou estética ou religiosa, mais próxima daquelas formas de ser, sentir ou pensar que não são susceptíveis de verificação fácil e geralmente acessível? Pode ser única a forma de filosofias em que é diversa a origem, diversos os caminhos de conceber?

O pensamento de Leonardo Coimbra vale pelo seu contraste fortemente acusado: nenhum outro filósofo português realizou a sua filosofia com consciencialização tão ampla e profunda do saber científico, com tão ampla informação das várias formas de cultura; mas nenhum também considerou tão reflexiva e intensamente o drama de ser, nenhum foi tão profunda e consequentemente caracterizado pela inquietação religiosa. A este contraste importa meditar com atenção, pois tudo depende disso.

Acentuando ainda como a forma do pensamento é adequada ao pensamento que traduz, poderemos atender com proveito às diferenças entre Bruno e Leonardo subsistentes, apesar de todas as afinidades. Bruno pertence, pelo contrário, ao grupo de pensadores que vivem na constante exigência, mais ou menos dolorosa, de exprimirem uma ideia remota e obscura, sempre fugitiva. Nada disto se revela, pelo menos com constância, na obra do pensador que estudamos. O seu pensamento é espontâneo e rápido, e a obra que deixou apresenta sinais disso. Apesar dessa espontaneidade, ou por virtude dela, Leonardo Coimbra, como os pensadores do seu tipo, tem uma unidade na sua obra que ao unilateral critério formalista escapará. Os seus livros têm de uns para os outros relações tão próximas, quer pareçam facilmente apreensíveis, quer mais dificilmente, por mais profundas, que o espanto não pode deixar de surgir em quem, vencidas as dificuldades da forma ou formas de expressão, penetra no âmago especulativo. Tais correlações não se apresentam apenas se atendermos ao pensamento geral e essencial, ao enigma que o suscita e aos problemas propostos, pois são neste caso muito visíveis –, tais correlações surgem-nos também quanto aos problemas tratados em cada escrito e à maneira como são postos noutro, ao tema de cada livro, sempre antecipado, de alguma maneira, no que precede, sempre correlacionado com o anterior ou posterior.»

José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).


«Nas lições e nas conferências, Leonardo Coimbra não se demorava a enunciar o problema nos seus melhores termos, a enumerar as soluções apresentadas, a eliminar pela crítica as hipóteses mais fracas, e a fazer, por fim, o encómio da tese sobrevivente. Nada havia na sua oração que recordasse os métodos escolares, porque perorava de maneira tal que parecia estar criando a própria ciência na presença dos ouvintes admirados. Eis porque, descurando os efeitos práticos, menos se ocupava com o grau de instrução, a capacidade do auditório e parecia por vezes esquecer, perdido, as circunstâncias exteriores do local onde fazia as suas conferências e lições.

De milhares de discursos aventados por Leonardo Coimbra, resistiram ao esquecimento os poucos proferidos na Câmara dos Deputados, entre os quais figura, como obra-prima de eloquência, aquele que ficou conhecido pela designação de A Questão Universitária. A mesma rapidez do orador eloquente se manifestava no modo por que o pensador escrevia artigos para os jornais e revistas e, bem assim, alguns dos trabalhos de menor tomo. Esta facilidade, que por vezes lhe foi condenada como um desleixo, representa, porém, riqueza e fluência de expressão, testemunha uma caridosa resposta a várias solicitações, mas significa também a séria atitude do filósofo que sabe que a sua missão não é escrever.

Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes

A atitude sempre juvenil de Leonardo Coimbra era manifestada pela irreverência perante as hierarquias postiças, especialmente por aquelas de que poderia ser beneficiado, pois temia a sonolência da consideração social como pressão contra a liberdade da inteligência. Desde o anarquismo que se exercitava a inverter paradoxalmente a ordem dos valores consagrados, embora na intimidade da alma se conservasse muito fiel à axiologia cristã. Não se julgava mais sábio por adquirir a mestria de refutar os argumentos dos seus adversários, nem por chegar a posições sociais excessivamente altas para o alcance da crítica, porque não confundia o envelhecimento mundano com o progresso da filosofia. 

Leonardo Coimbra escreve sempre como um homem moço, como quem ainda não está ciente das diferenças de memória entre velhas e novas gerações. Todo o mundo do pensamento lhe parece viver em estação primaveril, compreendido e assimilado no instante primeiro da criação, sem as cores amarelentas da história e sem a poeira das antecedências revolvida por cansativo labor de homens decepcionados. Não cura, pois, da ciência ou da ignorância dos seus leitores, inibe-se de apresentar as credenciais de todas as ideias que vai sucessivamente descobrindo, e se, por vezes, desenvolve, descreve ou narra, em súmulas expressivas, assim procede apenas para a sua comodidade de expositor.

É de observar que o erudito Leonardo Coimbra pouco tinha de estilo paleográfico, pois nas páginas dos seus livros raramente aparecem parágrafos transcritos de livros alheios e, muito menos, lugares comuns de citações, frases bíblicas, versos latinos, locuções francesas, enfim, quaisquer vestígios banais daquela cultura de segunda mão com que costumam enfeitar seus textos os escritores facilmente compreendidos e vulgarmente celebrados. Leonardo Coimbra não ignorava a deontologia da citação e bem sabia, portanto, que a citação pressupõe a leitura de todo o livro a que o texto pertence e obriga à indicação da fonte bibliográfica, geralmente omitida nos livros de menor valia. Porque se manteve mais leal para com os leitores do que fiel para com os autores, e sobretudo porque da filosofia não sobrevalorizava os livros, nem sequer os seus, mas o pensamento vivo e influente, limitava as suas referências de erudito apenas ao nome do pensador visado, não se demorando a ir buscar à estante o livro que comprovaria a sua extraordinária erudição.» 

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).


«O pensamento de Leonardo Coimbra não é, entretanto, aquele dinâmico ser do espírito que visa à quietude do absoluto. Nenhuma síntese definitiva o espera, a nenhum conhecimento pode atingir que semelhe o terreno lago de águas plácidas onde se remirasse o céu imóvel. Por isso o pensamento permanece indefinidamente aberto, “avançando na síntese progressiva que é a sua vida e encerrando-se, não no sistema estático do conhecimento, mas nas próprias fecundas entranhas, para se apreender como infinito, eterno e criador.» 

José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).


«O pensamento medieval construía a realidade com as noções dum Aristóteles emagrecido.

Era um coisismo dessas noções. O materialismo é também um coisismo de noções.

(...) Quando o pensamento sossega na ruminação das noções elaboradas, há um período de distinções formais, uma escolástica, que acaba de sentir a impossibilidade dum perpétuo movimento sem novo combustível; surge, então, o grito de regresso à Natureza.»

Leonardo Coimbra («O Criacionismo»).


«Enquanto formos homens, não podemos escapar de ser, em grande medida, aristotélicos, pois... em muitos assuntos, pensar correctamente é pensar como [ou porventura com] Aristóteles; e somos seus discípulos querendo ou não, embora possamos não sabê-lo.»

Cardeal John Henry Newman

  

«Um desses assuntos foi, decerto, a lógica, e o que Aristóteles pensou a respeito é que ela não é nem mesmo uma parte integrante da filosofia, e sim apenas um treinamento preliminar que, uma vez absorvido, pode ser esquecido no fundo e deixar espaço a modalidades menos formalizadas de investigação, mais compatíveis com a natureza esquiva de certas questões. Embora ensinando que a lógica é a forma por excelência da prova científica, Aristóteles adverte que em todas as investigações o problema fundamental não é a exata demonstração lógica, mas a descoberta das premissas, para o que a lógica é absolutamente impotente, devendo ceder lugar à dialética, à retórica e até à imaginação poética. Uma filosofia que pretendesse reduzir-se à lógica, ou mais ainda à lógica das ciências, seria no entender de Aristóteles-Newman a aberração das aberrações.»

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).





«A demonstração retórica da tese consiste em propor um meio adequado aos extremos. Descobrir o conceito mediador ou terceiro termo, enfim, pensar por tríades, é que é verdadeiramente raciocinar.

É nesta altura que convém ao pensador estar ciente da doutrina do silogismo, tal como se encontra apresentada por Aristóteles nos Primeiros Analíticos. Muito menos do que considerar o silogismo constituído por duas premissas e uma conclusão, conforme se diz nos compêndios escolares, convém estudar o problema na própria ordem do progresso retórico. O que é dado, ou apresentado, em primeiro lugar é o logismo da conclusão; o que é postulado, ou exigido, é o elemento capaz de unir os extremos, o conceito mediador da razão. Conforme esse trabalho de pesquisa intelectual se afastar ou se aproximar das regras necessárias, assim teremos o silogismo ou o seu contrário, o paralogismo.

Utilizando o exemplo clássico, diremos que o problema consiste em demonstrar que Sócrates é mortal. S é P. Os extremos são Sócrates-mortal. Há que procurar o conceito mediador, que por extensão abranja o indivíduo Sócrates e que por compreensão inclua a qualidade de mortal. É o conceito de homem. Está virtualmente constituído o silogismo.

A regra de que na conclusão, quer dizer, na tese a defender, a demonstrar, ou a provar não entra o conceito mediador é regra de primordial valor prático. Veremos então que sendo duas as premissas, e cada uma delas constituída por dois termos, não será difícil discernir no termo repetido o verdadeiro ou falso mediador. Todos os homens são mortais, Sócrates é homem. Na conclusão desaparece, por inútil, o intermediário: Sócrates é mortal.

Estudando analiticamente o silogismo, isto é, prestando atenção aos extremos da proposição a demonstrar, e vendo que o problema consiste em procurar o meio adequado para com ele dispor e compor as premissas, ninguém considerará inutilidade retórica a silogística de Aristóteles.

(...) Todo o Organon de Aristóteles é digno de estudo actual. O silogismo é objecto de minuciosa elucidação nos livros Analíticos. Se é certo que nos primeiros, o silogismo figura apenas como elementar processo de retórica, indiferente à verdade da tese que convém demonstrar, já nos segundos livros o silogismo aparece tratado como um processo de investigação científica, segundo a doutrina propriamente aristotélica.

A disposição do silogismo, com duas premissas seguidas de conclusão, tal como costuma ser apresentada nos livros escolares, representa já o segundo estádio da retórica, quando o orador e o escritor pretendem mais convencer do que persuadir. Assim, admitida a primeira premissa, quase sempre a maior, e admitida também a segunda, o ouvinte, ou o leitor não poderá deixar de admitir também a conclusão, que será de consequência necessária se o silogismo for composto segundo as regras. É neste carácter de necessidade, muito mais do que na verdade de uma ou duas premissas, que reside a força (vis formae) do constrangimento silogístico.»

Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).



Apologia de Leonardo Coimbra

A compreensão do pensamento de Leonardo Coimbra não depende apenas de nos interrogarmos sobre o que é a filosofia. Só isso não seria já certamente fácil, pois nem filosofar é dado a quantos de filosofia se ocupam, nem tão-pouco a interrogação séria admite resposta definitiva e rígida. O conceito de filosofia desloca-se com o mesmo filosofar na mutante série dos conceitos; por outro lado, como Leonardo Coimbra de vários modos mostrou, aquele sério pensamento ao qual move o amor autêntico e imperioso da verdade não pode contentar-se de deambular na rasa planura uniforme do mundo natural, social e cultural, ou do pensar que nasce e morre, mas ascende, pelo contrário, e necessariamente, dos planos mais baixos da vida para os mais altos.



Assim, ler o filósofo responsável é acompanhar um espírito que sugestiva e imperiosamente interroga, ler o filósofo responsável não é apenas receber a luz útil, mas resolver um enigma e situar-se, sem ilusões, perante o Mistério. Por isto mesmo se ignorar, tantos juízos vãos têm sido proferidos sobre Leonardo Coimbra, como sobre os filósofos mais antigos e mais modernos da longa e nobre tradição europeia. E não cabe duvidar de que ler um filósofo não é apenas receber luz de útil candeia como implacável e sagrada perante a ignorância atrevida que acaba sempre por tornar-se perigosamente dominadora nas épocas de homens «diligentes e adormecidos», desatentos e incapazes de séria reflexão. Como os seus pares, Sampaio Bruno, Junqueiro e Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra pagou pesado tributo às circunstâncias terríveis em que surgiu. Mas, é bem verdade, os caminhos por ele abertos e o melhor sentido da sua mensagem, as imagens inabituais, a expressão multímoda e as ideias subtis – tudo seria demasiado difícil, e até mesmo em época mais propícia e compreensiva. Ser poeta ou filósofo com alto, inquietante e original sentido religioso da vida, é coisa anómala e paga-se sempre caro.

Quantos tentaram já inventariar a obra escrita de Leonardo Coimbra procurando ter em conta os dispersos e também os discursos que proferiu, tentando o aproximado cômputo das lições dadas durante uma vida activíssima e num labor gigantesco, sem hiatos, suspendem-se e regressam atónitos perante a vastidão de formas que ficaram, ou passaram, jorrando, do poderoso caudal. Assim também a vida que ante nós decorreu, e só por ângulos parciais apreendemos, na multiplicidade das formas assumidas, quando evocada em horas de meditação solitária, ao tentarmos penetrar-lhe o enigmático sentido – também essa, a vida riquíssima e complexíssima, nos deixa perturbados, também aí a multiplicidade parece irresolúvel; se preferimos um caminho de compreensão, a breve trecho advertimos que outros começam a ficar para trás, mas se passarmos, com novo critério, a seguir caminho diferente, logo nos escapa alguma coisa que no primeiro começáramos a explorar. Ora, para um filósofo e um Mestre como Leonardo Coimbra, pertencente à cada vez mais rara família dos espíritos universais, não está tudo em seguir a linha de luz, nem vida tão significativa em todos os momentos pode alcançar-se, num deles sequer, sem penetrar-lhe todo o sentido. Onde haveremos, porém, de situar-nos para a ver plenamente sem injustiça ou falsidade, desde onde haveremos nós de considerá-la? Qualquer visão se revela afinal inadequada, por mais cuidadosa e fiel que se tenha esforçado por ser. Talvez metodologicamente a visão simplificadora, nos quadros da filosofia tradicional ou da ética comum, seja requerida para começar, pois de algum modo é forçoso começar; mas tal limitação metodológica não é aceitável se acaso se insiste em mantê-la como definitiva. Aliás, seria isso renegar o próprio espírito patente do magistério e da obra de um homem assim. Ensinou sempre Leonardo Coimbra, mostrou sempre e escreveu sempre de modo a não sacrificar a verdade divina no humano sistema e a não encerrar a vida infinita em qualquer fóssil fórmula, por mais bela ou nobre que parecesse, por mais alta tradição que apresentasse. Muitas vezes disso nos advertiu, muitas vezes o comunicou em palavra e exemplo; e no seu livro sem dúvida alguma mais original, A Alegria, a Dor e a Graça, advertiu como importa não apenas considerar no estudo da realidade e do homem “a fanerogâmica rútil de sol, mas também a criptogâmica das sombras».

Então, perguntar-se-á, e eu também me pergunto, não foi Leonardo Coimbra um pensador solar, não foi ele, como eu próprio tentei mostrar, a estupenda excepção num povo e numa região espiritual cuja vida religiosa e cuja filosofia são sombrias, intermitentes e nocturnas, estupenda, inesperada e magnífica excepção nesta Ibéria pressurosa de renegar o dia do Renascimento como se não fosse sequer madrugada? Quantas coisas sérias e fundas desdenhadas pelos nossos críticos e pelos historiadores da nossa cultura, sempre desatentos ao autêntico sentido universal da vida, bem diferente do mero universalismo abstracto, construção do intelecto sem fundas raízes no seio do Universo e no âmago do espírito! Também neste ponto hoje escapa todo o sentido do magistério e da obra de Leonardo Coimbra, como antes da sua vinda escapara já o mais oculto, obscuro e nocturno sentido da obra de Sampaio Bruno, os dois homens que com os poetas significativos do nosso país e da nossa época, procuraram dizer-nos que a autêntica vida de espírito só vale quando radicada no originário amor da verdade e no sentido fundo deste homem e desta terra, não em métodos ou resultados que se importam da sábia Europa. Quantos se aperceberam de que na sublime poesia de Pascoais estão solidários a árvore e o céu? A equivocada geração de Antero continua a dominar e a absorver a mente. E assim, o sentido da mensagem de Leonardo Coimbra e dos que imediatamente o precedem ou acompanham está injusta e gravemente desatendido ou deturpado.



Dotado daquele imperioso amor da verdade, tão raro, que move e abrasa a alma inteira, e como tal filósofo primacial, para tal sagrado naquele sem distância onde não chegam os juízos dos homens, Leonardo Coimbra foi portador da raríssima forma do Logos à qual os gregos sábios chamaram logos genesíaco: foi, como tal, Mestre, e no mais nobre sentido da palavra. Ora, quem de mestres alguma coisa sabe, e não só por ter tido a graça de receber a lição de um deles, mas por ter estudado longamente os admiráveis diálogos platónicos, e neles ter surpreendido tudo quanto a ideal sabedoria calou ou transmutou, esse e esses sabe e sabem como é raro um Mestre e quanto é absurdo julgar em nome do pensamento filosófico escrito, metodizado e sistematizado, aquela viva fonte que o torna possível. E se o dizem e o repetem, é por verem quanto estão cegos e surdos aqueles mesmos que deviam ver e ouvir.

Leonardo Coimbra surge, pois, como um Mestre no mais nobre sentido da palavra. Isto quer dizer que jamais transmitiu saber feito, nem método para o alcançar. Tendo dado testemunho da verdade, falou-nos não só da primeira, a que ilumina subitamente a alma, mas também da que surge depois, pelos longos e tenazes combates interiores. A sua exigência racional existia num grau que não vemos em qualquer outro pensador da sua pátria, e este contraste entre os subtis caminhos da fé, ou da intuição que a semelha, e a exigência da razão, tal contraste, digo, explicaria só por si os difíceis caminhos do seu pensamento. Como todos os homens da rara estirpe, sabia ele desde início que a verdade vem aos homens e neles se implanta por uma forma de fé autêntica e subtil, e que filosofia só da razão ou da intuição sem fé é coisa que dá glória humana ou gloríola terrestre, mas jamais abriu as cerradas portas do Templo sem materiais formas que se encontra a todo o momento submerso sob o caudal da vida fictícia, insignificativa e passageira.

Considerado em seu conjunto, perscrutado em sua activa essência, seu pensamento, e a vida e a obra que exemplarmente o exprimiram, fundem-se em harmoniosa ideia, viva e fecunda. Quem pudera não só tê-la sugerido, mas dado por completo! Foram maiores nalguns dos seus próximos os dons estéticos, outros (mas quantas vezes para apurarem insignificantes ninharias) raciocinaram mais rigoroso, nenhum entreabriu mais extraordinárias perspectivas ao espírito, nem deu tão admirável exemplo de inquieta e incessante busca da verdade. Até ao fim, até à conversão, e na mesma conversão, seu pensamento e sua vida perseguem um fim rigoroso e desenvolvem-se com harmonia sem par. Deveria saber-se que, em todo o tempo, de excesso de razões e formal logicismo adoeceu e morreu o pensamento sem originárias garantias e sério intento.

Três sinais, que nunca mentem, distinguiram sua alma profunda, assinalaram sua vida, se exprimiram em sua fisionomia, seu gesto, seu magistério poderoso, seu juízo implacável, sua imaginação alada, seu verbo fecundo e inolvidável: a exigência de verdade, o sentido da liberdade e a dádiva de amor espiritual aos discípulos, aos amigos, a qualquer classe, turma ou assembleia que o ouvisse, por mais impreparada ou ignara, fluindo através desses, para aqueles mesmos seus detractores, inocentes colaboradores e indirectos arautos da sua glória, que foram, e são, à direita e à esquerda, seus e nossos contemporâneos triunfantes.

Tal como a de todos os desdenhados pensadores portugueses do passado mais remoto e do século XIX, carece a obra de Leonardo Coimbra de leitura e interpretação completa, de estudo longo e compreensivo. No seu caso, é a obra, e mormente se nela incluirmos os dispersos, decisiva para nós, porque formula em nossa língua, e em termos mais próximos da tradição portuguesa, as frementes questões desta perturbada época e põe em linguagem actual, os eternos problemas. Todo o seu significado tornou-se-me mais evidente desde que estudei as suas relações com o pensamento de outro e desdenhado filósofo português, ao qual já antes aludi: Sampaio Bruno. Mas a obscura e profunda obra de Bruno, qualquer que seja o seu valor, e eu próprio tentei demonstrá-lo, não tem certamente par com a obra luminosa, imperiosa e decisiva de Leonardo Coimbra.



Sob certo aspecto exprime essa obra um mundo que morre, exprime-o na maneira de pôr os problemas, na forma de expressão, nos conceitos; sob outro aspecto, nas imagens mais raras e nas ideias mais fundas, assinala o mundo que alvorece. Para além do que se derruba ou do que desponta na linha incerta do horizonte, propõe significativamente, como nenhuma outra nossa, relações pensadas e meditadas com a vida profunda e sempiterna. E certamente, dado o plano a que ascendeu a sua fé e com ela o seu pensamento, o influxo espiritual de Leonardo Coimbra não depende já da vária sorte da filosofia, da cultura, da política ou mesmo da religião, na parte ou no aspecto em que esta permanece ligada e encadeada ainda nas formas da ignorância e da pequenez dos homens. O influxo do magistério e da obra ampla e multímoda, mas constante e consequente de Leonardo Coimbra, seguramente depende daquilo que é mais fundo e subtil na alma dos homens e, para além disso, do que excede o homem.

(In Obras de José Marinho, Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo, Biblioteca Nacional, Lisboa, Gráfica Eme Silva, Travessa do Fala-Só, 1981, pp. 105-109).

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

O espírito da filosofia

Escrito por Olavo de Carvalho



«SE HÁ UM DADO histórico do qual não se pode duvidar, é que a filosofia nasceu na Grécia e adquiriu sua forma clássica, de uma vez por todas, com Platão e Aristóteles (ambos sob a inspiração original de Sócrates). Você pode chegar a ser filósofo ignorando Sartre, Husserl, Nietzsche, até mesmo Hegel, Leibniz ou Sto. Tomás de Aquino. Mas quem não tomou um banho de imersão nos ensinamentos dos dois pais fundadores permanecerá eternamente alheio ao espírito da filosofia.»

Olavo de Carvalho (1947-2022).




As minhas sentidas condolências à Família e Amigos do admirável Mestre e Professor Olavo de Carvalho. Recorrendo ao supracitado, dedico assim a minha singela, profunda e sincera homenagem à valorosa Vida, Magistério inabalável e entranhado Amor pela Verdade do inigualável Filósofo Olavo de Carvalho. Infinitamente Grato e um Bem-Haja para todo o Sempre!

Miguel Bruno Duarte


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quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Dois humanismos – duas liberdades

Escrito por Leonardo Coimbra

 

«Nada mais objectivo que a ciência moderna, diz-se.

Se objectivo é coincidência da representação com o objecto, pode dizer-se com muitas restrições ainda; mas se objectivo é acordo de todo o saber com toda a realidade, nada menos objectivo que a ciência.»

Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).


«Se (...) a doutrina das categorias perdura na filosofia moderna, temos de reconhecer que tal perduração pouco ou nada tem a ver, em rigor, com o pensamento categorial. Ainda admitiríamos que representasse uma involuntária homenagem à filosofia clássica se ela não se explicasse pela desesperada verificação de que as ciências modernas não possuem fundamento, nem razão de si, nem finalidade positiva. E desde o seu já remoto início, a filosofia que lhes deu origem sofre essa desesperada verificação. O que as caracteriza é a recusa do real como uma totalidade incindível, dividindo-o em tantos sectores quantas as ciências que de cada um deles fazem seu objecto. Ora as categorias residem no ponto de encontro de todo o real com todo o pensamento, entendendo por todo o real que nada é real se não o implicar, e por todo o pensamento que nada é pensamento se não o implicar. O que a filosofia moderna pretendeu foi que cada ciência e respectivo sector da realidade sejam o que são sem implicarem a totalidade do pensamento e do real e, apesar disso, lhes correspondam suas próprias e exclusivas categorias. Pretendeu escapar à primeira conclusão extraída da necessidade das categorias que há pouco enunciámos: a de que não há predicados exclusivos de um único ser ou coisa. O derradeiro filósofo moderno, M. Heidegger, ainda defendeu esta pretensão. Disse ele: “As ciências particulares estudam diversos campos objectivos (...). Em nosso entender, reconhece-se que cada um destes campos objectivos pertence a determinados sectores da realidade. A estes correspondem, segundo a sua objectividade, uma estrutura e uma constituição determinadas. Vemo-nos assim perante uma tarefa que geralmente se designa pelo nome de doutrina das categorias” (M. Heidegger, “Traité des Catégories et de la Signification chez Duns Scott”, trad. Francesa, ed. Gallimard, Paris, 1970, p. 42).

Mais adiante, percorrida a descrição desta tarefa, Heidegger conclui: “Uma conclusão necessária nos parece: as dez categorias aristotélicas e uma doutrina que nelas se fundamente, revelam-se, não só incompletas, mas também hesitantes nas suas determinações e inexactas porque lhes escapa a consciência de uma distinção entre os sectores da realidade”.

Esta tarefa de encontrar categorias próprias de cada ciência, e só dela, que Heidegger faz remontar a Duns Escoto, no início da filosofia moderna, não tem lugar na filosofia clássica. O que não significa que, aí, as ciências que dela derivaram, ou tal como dela derivaram, se não distingam entre si. Distinguem-se, sem dúvida, mas mantendo-se em cada uma, incindível, a totalidade do real, pois todas estão igualmente suspensas da categorias lógicas, lugares de encontro de todo o real e todo o pensamento. E quando, na filosofia clássica, se fala das categorias próprias de cada ciência, do que se fala é das modalidades das categorias lógicas que convêm ao distinto conhecimento e à distinta manifestação da totalidade do real próprios de cada ciência. É o caso da ciência económica. Suas categorias dizemos serem a propriedade, o mercado e o dinheiro. Não figuram elas entre as dez categorias lógicas mas são modalidades de três dessas categorias: a propriedade é um modo da substância, o mercado um modo da acção, o dinheiro um modo da relação 

Orlando Vitorino («Exaltação da Filosofia Derrotada»).

 


«A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre é o mais significativo dos escritos extensos do período da transmutação. Obra vária e por vezes complexa, não é sempre fácil seguir através dela o essencial pensamento. A primeira parte é, especulativamente, do mais alto interesse; consiste a segunda numa aplicação e comentário da primeira.

“A tragédia do homem – começa o autor – está na ignorância de si e do Universo em que vive, ou antes, convive. A sua vida é uma relação, antes, um sistema de relações com esse Universo. A felicidade seria o acordo e a harmonia dessas relações, de modo que ao crescimento do homem em conhecimento e amor correspondesse o alargamento totalizante dessas relações e o seu aprofundamento significativo.”

Todas as formas de pensamento pelas quais o homem pretende conhecer-se e estabelecer ligações com o Universo, podem receber a designação de “humanismo”, visto que, antes de alguma coisa exprimirem, exprimem ao próprio homem e à sua situação cósmica e religiosa. O autor classifica as várias formas de humanismo sob as seguintes designações: humanismo idealista; humanismo cristão, humanismo antropolátrico, humanismo exaustivo.

O primeiro, que com Platão e Aristóteles precede o humanismo cristão, é apresentado no seu alto valor especulativo, mas também nos seus limites para a redenção eficaz e total. O humanismo antropolátrico e o humanismo exaustivo são apresentados, respectivamente, como consequência do cristianismo e como sua degenerescência.

O humanismo exaustivo é o último estádio do antropolátrico, estádio que o homem europeu está actualmente atingindo. Nele se encontram ténues e quase obliteradas as relações entre Deus e o homem e, consequentemente, entre o homem e a autêntica natureza. Já o filósofo não vê nesta, como via na forma anterior, o homem em suas profundas relações, deificando-se a si mesmo e aos seus mais altos atributos, mas exaurindo suas relações cósmicas e religiosas, deificando a mais extrínseca forma do seu ser, da sua acção e das suas obras. “Este humanismo de conquista, exaustivo de tudo o que não é homem ou humano serviço, é a forma de vontade do cientismo técnico, como o foi do homem essencialmente mágico”.

A segunda parte do livro, mais complexa, apresenta-nos a Rússia contemporânea como extrema e apocalíptica realização do humanismo exaustivo com suas titânicas seduções. Para esta realização se encontrava a Rússia mais predisposta por virtude de uma concepção transcendentalista vaga e pouco eficaz da religião. – O estudo do pensamento e da literatura profética russa vem a seguir como confirmativo da visão anterior. Profundamente atento às implicações metafísicas e religiosas que sempre a política supõe, Leonardo Coimbra mostra como a pequena influência da religião cristã na visão e no conceito de natureza, como também no direito e nas instituições sociais da Rússia, condiciona a dessacratização da natureza e do homem da estepe, sobre os quais, em sua desqualificada nudez, vai agir, com ingenuidade heróica e sombria, a técnica política cujo originário condicionalismo, por um grandioso paradoxo, como já dissera no livro sobre S. Francisco de Assis, Visão Franciscana da Vida, fora ainda o amor cristão.

O autor conclui, mostrando que as minoradas virtudes do homem social e o cientismo técnico jamais poderão constituir substituto eficaz da “caridade, que é o verdadeiro coração da justiça” e que o unanimismo social e a estatolatria jamais poderão constituir um final para o homem.»

José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).



«Leonardo Coimbra efectivamente abusa da pontuação, surpreendendo inesperadamente o leitor com a colocação de pontos finais. Muitas da suas frases, que parecem complementares e subordinadas às outras, mais bem ficariam ligadas por outros sinais de pontuação. Esta forçada separação representa, contudo, que a frase que nos parece dividida não foi apreendida em pura iluminação de receptividade interior mas por tentativas, num adejar especulativo, até à formulação completa. A intuição mística, que se atinge pela tripla via, pelo trivial, e que se transforma em ciência pelo quadrivial, ainda estava distante.»

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).

 

Dois humanismos – duas liberdades 

O que é o humanismo?

Não interessa saber o que seja sob o ponto de vista histórico o humanismo, pois isso nada resolveria a não ser que a noção de humanismo assim exposta fosse inequívoca e bem determinada.

Ora, claro está, que a noção genética de humanismo será a referência a uma certa forma de cultura dum certo agrupamento humano.

No nosso caso histórica era a referência à cultura clássica, uma concepção da vida de origem greco-latina.

Ora não só há impossibilidade de fusão real entre o grego e o latino, mas entre as interpretações gregas encontramos marcadas as mais diversas tendências de pensamento. E, sobretudo, a consciência intelectual aparece em vários níveis de aprofundamento, mais ou menos livre e mais ou menos consciente da directriz e essência da sua actividade.

Deixemos, pois, a referência histórica do humanismo para o estudarmos no campo das suas possibilidades como síntese interpretativa da experiência.

O humanismo é uma referência ao homem.

Se o homem é tomado como uma realidade bem definida e, permita-se a expressão, como realidade planificável, não é difícil encontrar no homem o sistema de referência a que terá de obedecer toda a realidade.

Mas, se o homem é ele mesmo contradição e luta, terá de haver uma valorização das suas possibilidades para referir o negativo ao positivo, o menos ao mais, o insignificante ou pouco significativo à significação que caracteriza e é norma.

Ou o homem é o solitário do Universo ou ele é, pela consciência intelectual, moral e religiosa, o próprio centro do Universo, onde passam os fios de luz da sua significação, ondem batem frementes as palpitações cardíacas da vida universal.

Os dois pólos extremos do humanismo: um humanismo de conquista, servindo o Universo escravo à vontade omnipotente do homem; um humanismo de amor, fazendo da consciência humana o lar onde adquirem luminoso verbo as taciturnas ansiedades das coisas e dos seres, lar onde a luz e o calor são a libertação alada, a recordação saudosa do beijo originário da Criação.



Pólos extremos, dinamizando correntes opostas, cujas águas, no entanto, se misturam na experiência humana, que é um turbilhão dos seus choques, separações e reencontros, mais que a pureza das polarizações originárias.

Como exemplos extremos teríamos, dum lado, o mecanismo tecnológico das divagações do purismo bolchevique, de outro lado, o puro cristianismo de certas almas capazes de todo o amor compreensivo, de todo o aprofundamento intelectual da vida e das cousas até à alma que as anima ou à ideia que as informa. 

O humanismo conquistador 

O homem é tudo, o resto nada mais que matéria oferecida à sua ambição e conquista.

(...) Apresentamos os aspectos mais extremistas deste pensamento, que olha o Universo como um curso do Acaso, onde só tem significado a consciência e a vontade do homem.

Este extremismo é, com efeito, a máscara do cientismo contemporâneo, chamando cientismo ao conhecimento exterior da ciência pelo seu conteúdo já constituído ou, menos ainda, pelas maravilhas do seu poder de aplicação.

Como o pensamento científico é, mesmo quando desinteressado, voltado para a acção material, claro está que uma degradação utilitarista deste pensamento, como é o cientismo, será sempre a epopeia do domínio universal do homem.

É a contraposição ocidentalista ao recolhimento de certas formas do negativismo oriental.

O que no orientalizado Schopenhauer é a descoberta da consciência crítica, é, nestes humanistas, a formação da consciência técnica.

A ciência dá ao homem o poder de humanizar o Universo, de insculpir o seu autógrafo no grande Acaso da existência; para Schopenhauer, Kant deu aos homens a consciência crítica capaz de lhes revelar a fantasmagoria que é o Universo dos fenómenos.

Os primeiros modelam o Universo pelas normas do seu querer; os segundos negam em si mesmo esse querer e o Universo, que é um simples fantasma desse querer, apaga-se como no anteparo a imagem a que de repente faltou a luz projectora.

Tese e antítese, expressão do mesmo humanismo absorvente, fazendo do ser um simples comentário, insignificante acompanhamento da autêntica realidade humana: nos técnicos o homem fenómeno, em Schopenhauer o homem numenal; mas sempre o homem e só o homem.

Um incendeia o Universo para nele acender a luz única do humanismo; outro apaga o Universo para adormecer no silêncio dessa noite a solitária consciência do homem.

E a passagem do homem fenómeno para o homem númeno é ainda um simples progresso do humanismo, a simples transposição da consciência espontânea para a consciência crítica.

É ainda o homem o único ser significativo do Universo, unicamente se mudou o sentido do seu esforço: da vigília para o sono, da acção heróica que unifica os plurais pela assimilação conquistadora, para o repouso das conquistas realizadas sem a emergência de novas pluralizações a conquistar.

O homem fenómeno canta a epopeia do trabalho da realização do universal Império do Homem; o homem númeno vê a inutilidade desse trabalho pois o Império é realizado pela objectivação duma Vontade, que se exerceria sem fim e sem destino, só por se exercer.

O primeiro projecta a luz do seu esforço num remoto além e vai-se contente a olhar a esteira do caminho; o segundo engloba caminho, anteparo e projector na mesma realidade, que é a sua consciência negadora da vontade.

Arthur Schopenhauer

Kant tinha guardado a pessoa espiritual da terrificante fusão panteísta nos abismos da matéria; mas Schopenhauer entrega essa mesma pessoa à dissolução universal, de onde apenas poderá salvar-se não um espírito possuindo-se na reflexão unificante da verdade e do amor, mas uma Energia, una, invisível, informe, anterior às suas ilusórias objectivações pluralizantes.

Kant preserva ainda a pessoa moral da sua idolatria cientista, Schopenhauer navega, por ambivalência, em plena idolatria científica, limitando-se a apor um sinal algébrico negativo às valorizações da ciência e à vontade que as anima.

A afirmação muda-se em negação, e, por uma estranha ironia, o filósofo vibra em dialéctica hegeliana no ritmo tese-antítese, mostrando mais uma vez que o ódio também une e que o seu inimigo Hegel apreendeu bem o processo do movimento pendular das opiniões de superfície.

Kant é um filósofo do Espírito, Schopenhauer é um filósofo da Natureza: o pessimismo do primeiro resulta das dificuldades de inserção do Espírito nos fenómenos, pode acabar na heróica afirmação dum reino dos fins; o pessimismo do segundo é o reconhecimento da guerra universal da natureza e acaba no optimismo da dissolução dessa natureza no grande sono do não-querer.

Para um e outro é, no entanto, a ciência um conhecimento certo, um absoluto que vai pesar sobre toda a valorização da realidade.

Para Kant o seu absoluto é meramente formal e fora das suas formas podem ficar outras realidades, como, por exemplo, a da vida espiritual.

Para Schopenhauer reincidindo no cientismo, a crítica de Kant serve para mostrar que o formalismo científico é um puro construtivismo duma actividade mais profunda, que, por intuição, encontramos na vontade.

O cientismo vulgar parte dessa vontade de domínio de que os determinismos científicos são instrumentos de acção.

Essa vontade espalha-se sobre toda a natureza, invade todo o real até à integral humanização.

Para Schopenhauer esses determinismos são malhas ilusórias dum ilusório tecido, que é o fenómeno.

A realidade é, já e de pronto, aquela mesma vontade que parte à conquista; mas aqui a conquista é inglória, porque as terras conquistadas são sonhos, fantasmas da própria ambição conquistadora.

Por isso não interessa a conquista, não vale espalhar a vontade, corporizar os sonhos, pois o Universo é já conquistado, como fantasia da vontade criadora.

Recolhe-se a vontade, viva da ilusão universal, e nada mais fica que o repouso dessa mesma vontade adormecida...

Kant olha o magnífico desenvolvimento da ciência moderna das eminências da física de Newton.

É o problema da existência de tal maravilha que ele se propõe resolver.

Encontra a solução numa separação do real em representado ou representável e incognoscível, ou cousa para nós e cousa em si.

De resto este subjectivismo de representação é um novo aspecto do prolongamento do subjectivismo das qualidades segundas, claramente afirmado por Leonardo da Vinci e já alargado por Berkeley até às qualidades primeiras.


Kant pressupõe, no entanto, na cousa em si articulações oferecidas à presa das formas da representação.

O mundo da ciência é, por este pressuposto, um mundo real.

O universo moral da liberdade, responsabilidade e mérito fica possível pois que a cousa em si pode exceder a cousa para nós e é real pois que, embora o não apreendamos na representação, o apreendemos no imperativo da lei moral.

Fenómeno e númeno, cousa e espírito são em Kant as formas em que se revela a dualidade que a ciência newtoniana implicava: o universo silencioso das cousas inertes, a actividade do espírito que desarticulando os complexos do conhecimento percepcional, atinge e apreende as linhas estruturais daquelas mesmas cousas.

Schopenhauer que não é um homem de ciência sofre o conhecimento científico que lhe expõe um Cosmos incolor e emudecido.

Para este Cosmos desvalorizado encontra Kant um significado dando-o com[o] um produto da Representação.

Mas Schopenhauer, que esquece o pressuposto kantista das articulações da cousa em si oferecendo-se à informação do nosso conhecimento, vê toda a Representação como uma pura fantasmagoria de lendários contos de Fada.

O Universo físico oferecido à vontade conquistadora dos cientistas materialistas aparece a Schopenhauer como inútil fantasia duma produtividade criadora. Mas uma vez desvalorizado este mecânico Universo na inércia surge a voz da actividade produtora desta fantasia uivando a ferocidade da sua fome.

E o espectáculo da inércia muda-se na guerra sem tréguas dos seres vivos devorando-se uns aos outros.

O pessimismo byroniano é agora a visão duma natureza de perpétua guerra, destruição e morte.

A vida, que já em Kant se apresentara como uma complicação da matéria e um prenúncio simbólico da finalidade moral, canta alto as ilíadas da mútua chacina e dos seres, as odisseias das suas insídias e manhosas torpezas.

E a vida reintroduz a realidade, que a ciência apagara na inércia, pois que as aparências deixam de ser puras criações da Representação desinteressada para serem objectivações da cousa em si, que é a Vontade apreendida em nós antes da deformação da representatividade.

Por uma reversão romântica a realidade faz-se movimento, animação e vida.

Mas este movimento é choque de mundos nas órbitas, cruzamento feroz de mandíbulas, sulco sangrento de garra; mas esta vida é guerra de todos contra todos, cego sacrifício do indivíduo ao doloso génio da espécie...

Nem podia deixar de ser, visto que a harmonia do espírito que unifica e a liberdade do amor que une são impossíveis num Universo físico, mera representação duma Vontade sem luz, feita apenas duma insaciável fome de querer.

Em relação às tendências cientistas do humanismo de conquista fez-se o salto da tese à antítese: da inércia patente dum Universo planificado à magia e ocultismo dum pluralismo de seres, digesta membra[1] duma universal Vontade.



Quintus Horatius Flaccus, por Anton von Verner


Tese e antítese, aliás no mesmo plano de puros humanismos de conquista.

Os determinismos da ciência servidos a uma vontade de domínio ou o poder mágico duma vontade absorvente obrigando tudo o que existe às exigências últimas do seu querer de afirmação ou de negação.

A magia e o cientismo são assim dois aspectos da mesma ambição de tudo reduzir ao humano: espalhando a face humana nos longes de todos os mundos, absorvendo a vastidão do ser no seu centro criador, que é a vontade humana.

O cientismo pinta todo o Universo com as cores humanas, o magismo escraviza todas as vontades à vontade do homem.

Quando todas as vontades são apenas múltiplas na sua objectivação pluralizante e em si uma e só vontade, claro é que todas as manifestações da vontade se devem subsumir na direcção da vontade humana, consciente de si e do universal ludíbrio.

O ocultismo é realmente em Schopenhauer tão claramente como em seus cultores de hoje uma expansão da universal vontade do humanismo conquistador.

O espiritismo contemporâneo ocupa um lugar intermédio entre o ocultismo mágico da vontade conquistadora de instrumentação anticientista e a vontade de conquista de instrumentação de mecanicismo cientista.

A teosofia faz apelo a uma ascética naturalista do querer, dinamizando a vontade como uma energia vitalizante. O esforço do pensamento garante-se pela energia fluídica do próprio pensamento, criando elementais, forças-pensamentos, que actuam de fora, com a relativa independência de seres quase autonomizados.

Os sábios orientais, os misteriosos magos do Tibete, dirigem as forças planetárias por meio de correntes de pensamentos e, no Ocidente, qualquer de nós tem recebido cadeias da sorte, geradoras, pela força-pensamento, que acumulam, do bem ou do mal, conforme as apoiamos do nosso bem-querer energético ou lhe subtraímos a energia cortando-lhe o curso da sorte pela recusa da força do nosso concordante pensamento.

O espiritismo, por vezes aliado do ocultismo teosófico, tende, nas correntes científicas que estudam a fenomenologia, para as explicações de humanismo de conquista de moldes cientistas, como já vimos nos sonhos um pouco ridículos dos que seriam amanhã os agentes da Ressurreição pela consolidação das fugazes manifestações ectoplásmicas do medianismo moderno.

"Nascer, morrer, renascer ainda e progredir sem cessar, tal é a lei", inscrição traduzida do francês no túmulo de Allan Kardec. Ver aqui


Cemitério de Père-Lachaise, em Paris.



In «DISPERSOS, IV - FILOSOFIA E RELIGIÃO», Editorial VERBO, 1991, pp. 34-41.


[1] Deve ser disjecta membra. Cf. Horácio, Sátiras, I, 4, 42. [Nota do Padre Dias de Magalhães].