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domingo, 6 de outubro de 2013

Aristides de Sousa Mendes: a queda de um mito (iii)

Escrito pelo embaixador Carlos Fernandes








Segundo Avraham Milgram, para o regime ditatorial de Salazar «os refugiados eram, à partida, potenciais inimigos» (op. cit., p. 72). Para o efeito, faz também a caricatura dos costumes morais do Portugal de então como avesso aos padrões da modernidade, personificados pelo progresso e pelas «ideias avançadas que sopravam das democracias ocidentais» (op. cit., pp. 141-142). Mas até aí a caricatura falha redondamente, pois Salazar sabia muito bem o que, na sua essência, tais democracias ocidentais valiam, sobretudo para a destruição do Ocidente em geral, e de Portugal em particular:

«Falamos com inteira franqueza do desconcerto europeu. Heis-de ver nos países pacifistas pregar-se a guerra santa contra os países de ordem, e os que pretendem evitar lutas entre os povos por motivos ideológicos promoverem a união das democracias contra as ditaduras. Vereis em nações que blasonam de livres serem negadas liberdades reconhecidas e praticadas nos Estados autoritários; em nome da independência dos Estados admitida a ingerência, na sua vida interna, de organismos revolucionários estrangeiros, e em nome da igualdade dos povos na comunidade internacional ir-se pouco a pouco substituindo à livre associação dos Estados um super-Estado em que por tal caminho se afundará a real independência dos pequenos países» (Oliveira Salazar, «A Embaixada da Colónia Portuguesa no Brasil e a nossa Política Externa», Discurso proferido no Gabinete do Presidente do Conselho em 15 de Abril de 1937, diante dos comissionados pela colónia portuguesa no Brasil para cumprimentar o Governo, in Discursos e Notas Políticas, II, 1935-1937, Coimbra Editora, 1945, pp. 278-279).

Miguel Bruno Duarte


«Desde o fim do processo disciplinar até quase à morte, Aristides foi inteiramente dominado pela ideia fixa, ou obsessão, de voltar a ser cônsul no estrangeiro, e, a certa altura, mesmo de voltar a sê-lo em Bordéus, chegando a pedir a anulação do decreto pelo qual fora, oficialmente, destituído daquele posto consular. Nunca admitiu que tal nomeação fosse apenas uma linda miragem. Daqui o ódio visceral a Salazar, e a sua adesão ao MUD, etc., o que nada o beneficiou.

(…) Aristides nem sequer era comedido e prudente quanto aos seus insultos contra Salazar. Isso de o apelidar como sendo "o bandido", em conversa pública com um engraxador, parece-me que não revela boa índole, além de uma grande ingratidão para com Salazar, que lhe aplicou a punição mais benévola que poderia ser-lhe aplicada (fugindo às penas criminais e disciplinares), com excepção da proposta por Paula Brito, que o Conselho do MNE não aprovou. 

(…) De facto, além de apelidar Salazar de “o bandido” em conversa com o engraxador do primo Abranches Pinto quando vai à assembleia de voto, creio que em Cabanas, perante o crucifixo e os retratos de Carmona, à direita, e de Salazar, à esquerda, (era na escola local), Aristides diz: o bom e o mau ladrão, por Carmona e Salazar».

Carlos Fernandes (op. cit., pp. 184, 188-189 e 200).





"General Coca-Cola" (Humberto Delgado).




A questão do ódio visceral contra Salazar também foi, por motivações diversas, característica comum a outras figuras previamente conotadas com o regime salazarista, nomeadamente Henrique Galvão e Humberto Delgado. Sobre este último, diz-nos o embaixador Carlos Fernandes que o seu ultra-salazarismo extinguiu-se por questões de ambição pessoal, já que lhe fora sucessivamente recusado o Governo de Angola, a administração dos Caminhos de Ferro e o Banco Nacional Ultramarino. Daí ter-se apresentado, em 1958, como candidato a Presidente da República pela oposição, passando então a apregoar-se como democrata por ressentimento ou simples oportunismo político. E quem «diria que, chegado ao Brasil em 1961, Delgado haveria de proclamar o seu visceral anticolonialismo, aliado ao anti-salazarismo!» (op. cit., pp. 202-204).

De resto, as veleidades teatrais de Humberto Delgado foram tantas, que não nos coibimos de transcrever este trecho deveras caricato no âmbito do assalto ao paquete Santa Maria por Henrique Galvão: 

«Ao anoitecer, a bordo de um pequeno barco de pesca alugado pelos repórteres das revistas Life e Time, Humberto Delgado consegue encontrar o Santa Maria. “Bem-vindo, meu general”, recebe-o Miguel Urbano Rodrigues. Dezenas de turistas fotografam o momento. Mas quando Humberto Delgado sobe a bordo, o gancho de uma grua do navio solta-se, acerta-lhe nas costas e fica preso ao seu cinto elevando-o um pouco e tirando-lhe os pés do chão. O general, vestido de fato e gravata, agarra-se à escada e ameaça cair ao mar. Mas consegue recuperar o equilíbrio, solta um palavrão e põe as culpas no jornalista que o recebe: “Vou destruí-lo!”» (in Pedro Jorge Castro, O Inimigo n.º 1 de Salazar. Henrique Galvão, o líder do assalto ao Santa Maria e do sequestro de um avião da TAP, A Esfera dos Livros, 2010, pp. 175-176).

Humberto Delgado e Henrique Galvão a bordo do paquete "Santa Maria".



Humberto Delgado e Álvaro Cunhal



Mas o caso não ficaria por aqui: 

«Dois dias depois, um jornalista português mandará para Lisboa este episódio descrito como um “pormenor pitoresco”: “Assim mesmo, um pouco pendurado e esperneando, voltou-se para trás exclamando para a sua secretária que o acompanhara na lancha e foi também a bordo: ‘Se eu morrer, diga à minha mulher: Morreu como um herói…’"» (op. cit., p. 175). 

Depois, o episódio que se segue é não menos irrisório, porque permite evidenciar a postura arrogante e a auto-importância que o ex-salazarista atribuía a si próprio: 

«Humberto Delgado começa por falar com Galvão a sós. Apenas duas horas depois manda chamar os dirigentes espanhóis, que se encontravam a beber uísque no bar. Já passa da meia-noite. Como vê que não se levantam, Frias de Oliveira avisa-os: “Sua excelência o general Delgado não gosta que o façam esperar”. “Se o teu general não quer esperar, ele que vá para o caralho”, responde Velo…”» (op. cit., p. 176).

Quanto a Henrique Galvão, o seu ressentimento e revolta contra Salazar nasceu, em grande medida, do facto de se não sentir profissionalmente reconhecido e aproveitado por um ditador que não aparava os seus anseios e ambições surreais. Aliás, o seu estilo bajulador para com Salazar não nos deixa mentir: 

«Nunca tive a fortuna de servir directamente sob o mando de V. Ex.ª, e nada do que fiz de mais visível teve o mérito de interessar V. Ex.ª a ponto de me querer conhecer mais de perto – eu fiquei, perante as circunstâncias que foram mais eloquentes que os meus actos, e perante V. Ex.ª, não como o homem que sou, na realidade das minhas qualidades e dos meus defeitos, mas como a pessoa que os elementos intermediários entre mim e V. Ex.ª querem que eu seja» (op. cit., Apêndice Documental, Anexo 2, p. 316).

Miguel Bruno Duarte







«Exigi-lhe [a Sousa Mendes] que me explicasse tão insólita actuação […] De tudo o que ouvi e do seu aspecto de grande desalinho, fiquei com a impressão de que o homem estava profundamente perturbado e fora do seu estado normal».

Pedro Teotónio Pereira


«(…) uma noite, Aristides e Andrée, tinham convidado os amigos, os que restavam, para jantar. Toda a gente tinha chegado. Andrée, cuja noção do tempo era ainda mais imprecisa do que a do dinheiro, que detestava tudo o que lhe parecesse uma imposição, brilhava pela ausência. Ao verificar que nenhum vestido lhe agradava, desmanchou um cortinado de veludo vermelho, enrolou-se nele e desceu para junto dos convidados. ‘Estava encantadora’, dirá mais tarde Aristides a Maria Rosa».

José-Alain Fralon (op. cit., p. 102).


«(…) o facto de Aristides de Sousa Mendes falecer no hospital da Ordem Terceira de S. Francisco, ao Chiado, não tem, para mim, qualquer significado especial, de riqueza ou pobreza, porque não prova nada do que, agora, pretendem provar – que morreu lá porque morreu na miséria, onde Salazar o tinha lançado. Foi para ali por razões logísticas – era o hospital mais próximo. Porque poderia ter ido, com vantagem, para um hospital público, tal qual foi para um particular. Demais, regressava de uma viagem a França, ele e a mulher, estando hospedados num hotel do Chiado, em Lisboa, o que não se faz quando se está na mais completa miséria».

Carlos Fernandes (op cit., p. 209).


«É uma grande honra e uma grande emoção estar aqui para prestar homenagem a Aristides de Sousa Mendes, este grande português, este português simples, um homem modesto que soube, contra as ordens de Salazar, cumprir os seus deveres de humanidade»

Mário Soares (Homenagem em Bordéus, num Domingo, a 29 de Maio de 1994).


«(...) É de notar que, se Aristides tivesse praticado todos os actos que Rui Afonso e outros, incluindo o filho Sebastião, dizem que ele praticou, teria cometido cinco crimes: desobediência, abuso de poder, concussão, usurpação de funções e roubo de passaportes. Mas o MNE não o acusou de nada disto. Apenas de desobediência disciplinar.

É isto perseguição?!

(...) Depois, concluído o processo, foi proposta ao seu Ministro quer a degradação de categoria quer mesmo a demissão. Salazar ignorou completamente a proposta conclusiva do procedimento disciplinar, porque, a meu ver, compreendeu que Aristides tinha grandes atenuantes. Por isso, em vez de lhe dar qualquer pena disciplinar, e muito menos as propostas, foi para uma solução diferente, que consistia numa faculdade do Ministro (vigente em França, Espanha, Itália e em muitos outros países, para eventual aplicação aos diplomatas ou cônsules que se julgava não estarem em condições de desempenhar convenientemente as suas funções), a disponibilidade fora do serviço por determinado período, podendo, quando o Ministro assim o entendesse, ser o diplomata ou cônsul chamado novamente ao serviço activo. Foi assim que Salazar, sem proposta de ninguém, coloca Aristides fora do serviço por um ano, e aguardando aposentação findo ele, já que Aristides ainda não estava próximo dos 70 anos, para ser aposentado com todo o vencimento. Não o aposentou.




Quer dizer, Aristides não foi punido disciplinarmente. E também não foi excluído da carreira consular. Apenas se lhe interrompeu o seu exercício. E daqui a legitimidade de Aristides requerer o regresso à actividade, que, para quem tiver cinco réis de senso, não pode deixar de concluir que nunca mais poderia ser a colocação como cônsul fosse onde fosse no estrangeiro. Até porque Aristides estava gravemente doente, física e psicologicamente.

Aguardando aposentação, ganhava, não trabalhando, o mesmo que ganhavam os seus colegas (...), trabalhando.

Foi esta uma perseguição quer dos serviços do MNE quer de Salazar?!

(…) No que concerne à indemnização, imposta pelo artigo 3º da Lei 51/88, o processo foi muito complicado e demorado, e, a meu ver, terminou mal.

Primeiro, houve dificuldades nunca superadas quanto ao seu cálculo, todo baseado numa suposta demissão ou aposentação compulsiva.

Ora, nós já vimos que Aristides nunca foi demitido nem aposentado, compulsivamente ou não. Foi, sim, compulsivamente, posto a aguardar aposentação, sem nunca ter sido mandado aposentar. São realidades completamente diferentes, juridicamente.

 Para calcular aquela indemnização, tentou-se saber quanto é que a Caixa Geral de Aposentações lhe teria pago. Esta não conseguiu encontrar rasto dessa aposentação, e, apesar de reiteradíssima insistência do MNE, nada veio a encontrar. É óbvio que nada poderia encontrar, uma vez que Aristides nunca foi aposentado (…).

Porém, toda a argumentação que os diversos serviços do MNE tomaram como base factual da indemnização, sem se darem ao trabalho de investigar, se com razão ou sem ela, já que tinham no MNE elementos para isso, foi a demissão ou a aposentação compulsiva, ambas inexistentes. Fizeram o mesmo que a Assembleia da República.

(…) Finalmente, depois de muitos cálculos e recálculos, chegaram os serviços do MNE à conclusão, provisória, de que a indemnização justa seria de 769.869$00.

Parecendo isto pouco, foram procurar novas bases de cálculo, e chegaram ao montante de 8.585 contos, ou, por outro cálculo mais favorável, a 14.308 contos.











Como a Lei 51/88, com base no disposto no artigo 2º do Decreto-Lei 222/75, de 9 de Maio, aditando um n.º 3 ao artigo 1º no Decreto-Lei 173/74, impôs que a indemnização fosse só para os filhos, os filhos e os netos de Aristides não se entenderam, e, assim, não foram capazes de apresentar no MNE, em tempo útil, documentação válida de habilitação de herdeiros, pelo que, afinal, nada lhes foi dado, directamente. Depois de o MNE andar a empurrar o pagamento da indemnização para o Ministério das Finanças, sem conseguir que este aceitasse o encargo, Jaime Gama, à falta de legal habilitação de herdeiros para receberem a indemnização, terá sugerido, ou aceitado a sugestão, de criar uma fundação, à qual seriam dados não só os 15.000 contos já despachados, mas, ainda, mais 50.000 contos, com 2.000 contos de subsídio anual, fundação que, com a ajuda do MNE, veio a ser constituída por escritura de 23 de Fevereiro de 2000, e reconhecida oficialmente pelo Secretário de Estado da Administração Interna, Luís Manuel dos Santos Silva Patrão, em 21 de Março do mesmo ano [os 65.000 contos, adicionados pelos 2.000 contos anuais então prometidos, vêm confirmados nos documentos anexos que o embaixador Carlos Fernandes reuniu no seu livro].

Mas, como as Finanças não quiseram pagar e não havia verba para isso no orçamento do MNE, Jaime Gama fez todas estas liberalidades extorquindo-as ao FRI (Fundo para as Relações Internacionais), que não é constituído por verbas do Estado mas sim pelas compensações pessoais emolumentarmente cobradas pelos serviços consulares portugueses.

Não é, portanto, verba do orçamento do Estado, de que o MNE é órgão. E assim se dispõe do dinheiro dos outros, ao sabor do arbítrio político do momento. O FRI não é nem pode ser político. Seria o maior abuso dos abusos politizá-lo.

(…) Hoje, francamente não sei do que vive [a Fundação Aristides de Sousa Mendes], esperando que não continue a receber do FRI o correspondente aos 2.000 contos prometidos por Jaime Gama, porque, se os recebe, é um escândalo intolerável.

E conviria saber o destino que os activistas netos de Aristides deram efectivamente à avultada verba que Jaime Gama e Ribeiro Menezes puseram à disposição deles, isto é, utilizaram-na, directa ou indirectamente, em proveito próprio, ou para outras finalidades, e, neste último caso, concretamente quais?»

Carlos Fernandes (op. cit., pp. 33-34, 237, 271-274).




O que é a Disponibilidade?






Como se tem feito, de propósito ou não, grande confusão com a colocação na disponibilidade fora do serviço, talvez valha a pena dar aqui uma explicação amiga sobre o estatuto jurídico da disponibilidade.

Antes de mais, reiteramos que a disponibilidade, mesmo fora do serviço, não é uma pena, quer disciplinar quer de outra natureza. Não vai, por conseguinte, para o registo criminal, nem é, normalmente, uma situação degradante. Mas representa, de facto, uma punição, se não é processada de acordo com o interessado.

No meu entendimento jurídico, quando este substituto jurídico fosse usado sem acordo do visado, seria já inconstitucional segundo a Constituição de 1933, também o sendo, obviamente, segundo a actual, basicamente, de 1976.

No entanto, no MNE, antes do Golpe de 25 de Abril de 1974, eu era dos poucos juristas a ter esta opinião. E até, já no domínio da Constituição actual, um tal Dr. Mário Neves achava, no MNE, que ainda era perfeitamente constitucional. Mas, o problema nunca foi discutido constitucionalmente antes do meu recurso para o STA.

Depois do 25 de Abril, o MNE continuou a prática antiga, que era, pode dizer-se, tradicional, tanto que Melo Antunes me colocou, a mim, nessa situação. Recorri e ganhei o recurso com base na inconstitucionalidade. Daí para diante, o MNE, até porque eu fui Director dos Serviços Jurídicos, aceitou que era inconstitucional, e mais ninguém, que eu saiba, foi colocado na disponibilidade fora do serviço.

Ora bem, o instituto da disponibilidade, como ele era interpretado antes do meu referido recurso, envolvia a disponibilidade em serviço (situação em que, v. g., fui colocado ao sair da Haia, em Agosto de 1974) e a disponibilidade fora de serviço, ou seja, a inactividade, em que o exímio democrata Melo Antunes depois me colocou.

Portanto, disponibilidade:

a) em serviço;
b) fora do serviço.







Ambas abriam vaga no respectivo quadro. E a disponibilidade em serviço era, frequentemente, usada - não sei se ainda é - para abrir uma vaga, e permitir assim uma promoção de alguém que se queira promover sem haver vaga.

Colocava-se na disponibilidade em serviço um diplomata ou um cônsul para poder promover um colega deles, estivesse onde estivesse, em Portugal ou no Estrangeiro, sem o afectar em nada, inclusivamente quanto ao vencimento. O Dr. Humberto Morgado era o perito nestas manobras jurídico-administrativas.

Fazia-se a promoção desejada, quando de acordo com o visado, funcionava como uma licença de mais ou menos longa duração, mas paga. Quer por iniciativa do MNE quer a requerimento do interessado, podia ser-se chamado imediatamente ao serviço, sem mais formalidades.

Porém, quando a colocação era de disponibilidade fora do serviço, apenas por decisão discricionária do Ministro, o funcionário nada podia fazer, a não ser pedir que o chamassem ao serviço, sujeitando-se à decisão descricionária do Ministro. Era assim uma situação muito precária, sendo, por isso, a meu ver, inconstitucional.

No caso de Sousa Mendes, o MNE não quis modificá-la, mantendo-o na inactividade até falecer, aguardando aposentação.

Como já tivemos ocasião de referir a pp. 33, o sub-instituto da disponibilidade fora do serviço tinha por base o entendimento superior de que o diplomata ou cônsul, dado o circunstancialismo existente, não estaria em condições psicológicas ou de outra natureza relevante, adequadas ao desempenho normal das respectivas funções. Daqui a razão por que a suspensão do exercício delas tinha, em princípio, carácter meramente temporário.

Quer dizer, a disponibilidade fora do serviço, fosse por que tempo fosse, desde que não tivesse a anuência do funcionário, era, a meu ver, inconstitucional, mesmo a segundo a Constituição de 1933. Se tivesse anuência do funcionário, era, a meu ver, não só constitucional como, sempre, do seu interesse.






Contudo, parece que a prática do MNE foi, agora, de a pôr de parte, tanto numa hipótese como na outra.

De facto, a disponibilidade fora do serviço sem anuência do funcionário, funcionava como uma punição, sem, no entanto, ser uma pena, quer disciplinar quer criminal.

Aristides sofreu-a como punição, embora muito mais leve do que a pena proposta pelo Conselho do MNE, pelo menos em teoria.

Salazar, que não era tão insensível como dizem, compreendeu a s circunstâncias da atitude de Aristides, as que lhe eram exteriores e as suas internas, do foro psicológico, e recusou-se a despromovê-lo ou a condená-lo formalmente, aplicando-lhe uma pena, mesmo que fosse só disciplinar. Não quis ir por ali. Apenas entendeu que, nas circunstâncias do momento, Sousa Mendes não se encontrava em condições de exercer convenientemente as funções de cônsul de Portugal no estrangeiro. Apesar disso, ninguém lhe agradeceu, ou compreendeu. Ou quis e quer não compreender.

Ah, mas deu-lhe cabo da vida.

Não deu, quem lhe deu cabo da vida, a ele e aos familiares, foi ele mesmo, seja qual tenha sido a motivação do seu actuar, e os méritos ou deméritos desse actuar, então ou ex post facto.

Sousa Mendes foi, praticamente, sempre cônsul no estrangeiro. Nunca serviu na Secretaria de Estado (MNE em Lisboa). César serviu, embora não em lugar de relevo e também por pouco tempo. Aristides foi assim mal habituado, já que, tanto dantes como agora, o serviço diplomático e consular faz-se, alternadamente, e com certo equilíbrio, em Lisboa e no estrangeiro.



Casa do Passal (antiga residência de Aristides em Cabanas de Viriato).



Aristides esqueceu-se disto, e, não sei porquê, parece ter-se convencido - e convencido os filhos - de que o seu lugar era sempre no estrangeiro, quando não era, e que, v. g., o Consulado de Portugal em Bordéus era dele por nomeação vitalícia, tanto que reclamou contra o decreto que o exonerou desse posto. A reintegração que ele reclamava - não pedia - era como cônsul no estrangeiro e não em Lisboa.

Na verdade, Aristides não tinha qualquer interesse, antes o contrário, na sua chamada ao serviço na Secretaria de Estado, porque ganhava o mesmo e teria de lá ir trabalhar. Só o estrangeiro lhe interessava.

Como eu já expliquei oportunamente, os diplomatas e os cônsules vão para o estrangeiro em comissão de serviço por tempo limitado, não são providos definitivamente em qualquer missão diplomática ou consular. Já referi o caso de Maria de Lurdes  Pintasilgo, que também pensava ser senhora do lugar de representante do Governo Português junto da UNESCO, em Paris.

Quanto a ser novamente colocado no estrangeiro, dando o seu passado e o recente processo de Bordéus e Bayonne, aliados ao seu estado físico e psicológico, só um Ministro irresponsável é que o faria.

Mas era só isto o que Aristides queria, por mais incrível que pareça, alegando sempre os seus serviços humanitários e as suas dificuldades financeiras, nunca as suas faltas.

Ora, não é por estes motivos que se nomeiam os funcionários diplomáticos ou consulares no estrangeiro.

Por isso, nem Salazar nem Caeiro da Mata, nem Paulo Cunha, o nomearam.

Como lembrei noutro passo deste livro, entendo que, logo em 26 de Abril de 1940, Aristides deveria ter pedido para ser deslocado para outro posto, sendo imediatamente substituído em Bordéus por cônsul de inteira confiança do MNE, excepcionalmente capaz e de boa saúde.

Não pediu, nem o MNE o transferiu, acontecendo o que aconteceu.




Assim, tornar as culpas a Salazar o bandido e o mau ladrão - das dificuldades, ou até atribulações, financeiras de Aristides, nos últimos 14 anos da sua vida, com sopa dos pobres e outras misérias degradantes, é, a meu ver, manifestamente abusivo, e uma vergonhosa falta de honestidade.

É óbvio que Aristides, mal habituado, com duas famílias e doente, sem preparação para a vida prática em geral - a experiência consular não lhe servia de nada - e sem rendimentos significativos além do seu magro vencimento de cônsul de 1.ª classe em Lisboa, não poderia viver sem grandes dificuldades. Mas isto só a ele se deveu, e parece que é, agora, o motivo da sua glória. Mas é uma glória que lhe saiu muito cara, a ele, às mulheres e aos filhos. E durará? Porque está, basicamente, alicerçada em falácias. E a verdade acaba sempre por triunfar. E mal da Humanidade se assim não fosse.

É necessário notar que este sub-instituto da disponibilidade fora do serviço, a vigorar em Portugal, vinha pelo menos desde a primeira república (como vimos, em 1919, foi aplicado a Aristides de Sousa Mendes com dois anos de inactividade).

(in op. cit., pp. 243-248).



Vincit omnia Veritas («A verdade tudo vence»).



quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Aristides de Sousa Mendes: a queda de um mito (ii)

Escrito pelo embaixador Carlos Fernandes








«Do memorando inglês, datado de 20/6/1940, entre outras coisas, consta o seguinte: “O cônsul de Portugal em Bordéus protela para fora das horas de expediente todos os pedidos de vistos, e cobra por ele taxas extraordinárias”. “Pelo menos num caso foi ainda o interessado convidado a contribuir para um fundo português de caridade antes de ser-lhe concedido o visto”».

Carlos Fernandes (in O cônsul Aristides Sousa Mendes: a Verdade e a Mentira, p. 62).


«(…) em 1923, quando servia em São Francisco, Sousa Mendes entrou em choque com a comunidade portuguesa local ao pedir uma contribuição para uma instituição de caridade portuguesa, que os luso-americanos se negaram a pagar. O assunto, que não foi comunicado ao MNE, chegou à imprensa sob forma de insultos, e aos ouvidos do MNE, que o considerou erro grave…».

Avraham Milgram («Portugal, Salazar e os Judeus», Gradiva, 2010, p. 102).


«Trabalhando 42 horas naqueles três dias, que nem foram dias completos, porque, no dia 18, o Consulado esteve encerrado, não sabemos porquê nem por quanto tempo, isto daria 14 horas de trabalho diário, ou seja, das 9 horas da manhã até às 11 horas da noite, o que não creio que se pudesse manter assim naqueles três dias seguidos, tanto mais que Seabra, não concordando com os vistos irregulares, certamente não estaria com o espírito zeloso de Aristides, prestando-se a trabalhar 14 horas diárias durante três dias seguidos. E sabemos que não esteve. Mas, mesmo que todos cumprissem as 14 horas diárias (das 9 às 11 da noite), teríamos, no máximo, cerca de 630 vistos, no total dos três dias da ira (2.520 minutos, a dividir por 4 minutos por cada visto, em média, teríamos 630 vistos), o que está de harmonia tanto com o testemunho de Seabra como com os registos consulares, que passaram, dos dias 17 inclusive para 19 inclusive, de cerca de 1.900 para cerca de 2.500».

Carlos Fernandes (in op. cit., pp. 110-111).


Na sequência da polémica suscitada pela entrevista realizada no semanário O Diabo (2 de Julho de 2013) ao autor de O cônsul Aristides Sousa Mendes: a Verdade e a Mentira, veio, no número imediatamente seguinte (9 de Julho de 2013), este trecho deveras significativo: 

«O Professor José Hermano Saraiva revela no volume 6.º das suas Memórias, publicadas pelo semanário “Sol”, uma conversa com o Professor Leite Pinto: “Fala, a propósito, na operação de salvamento dos refugiados republicanos espanhóis e dos judeus que, no início da Segunda Guerra Mundial, se acumulavam na fronteira de Irun, na ânsia de salvar as vidas. Vieram embarcados nos vagões da Companhia dos Caminhos de Ferro da Beira Alta, que iam até Irun carregados de Volfrâmio, e voltavam a Vilar Formoso carregados de fugitivos. (…) Segundo um protocolo firmado pelas autoridades ferroviárias dos dois países, os vagões deviam circular selados, quer à ida quer à vinda. Um dos que assim salvaram a vida foi o Barão de Rothschild. O embaixador Teixeira de Sampaio confirmou-me, mais tarde, esses factos. O salvamento de 30.000 refugiados deu-se ao mesmo tempo que o cônsul de Portugal em Bordéus, em cumplicidade com dois funcionários da PIDE, falsificava algumas centenas de vistos, que vendia por bom preço a emigrantes com dinheiro. Um dos que utilizaram esta via supôs que todos os outros vieram do mesmo modo – e assim nasceu a versão, hoje oficialmente consagrada, de que a operação de salvamento se deve ao cônsul de Bordéus, Aristides de Sousa Mendes. Este, homem muito afecto ao Estado Novo, nem sequer foi demitido, mas sim colocado na situação de aguardar aposentação. Os seus cúmplices da PIDE foram julgados, condenados e demitidos”».

José Hermano Saraiva


«“(…) Maurice Sachs, um judeu que criticava esses fuyards, disse que causavam riso, ao darem-se uma suposta grande importância, anunciando que tinham a vida em perigo perante o avanço rápido dos alemães pela França fora, como se Hitler estivesse preocupado em os encontrar para os meter num campo de concentração ou fuzilá-los imediatamente. Não sou eu que digo isto, é Sachs!”. Isto é: o “que se passou em França, a partir de 1942, é outra história (…). Era o futuro; não foi o presente em 1940…».

Carlos Fernandes (in op. cit., pp. 36-37).


«Hjalmar Schacht, no pós-guerra, desafiou os inquiridores de Nuremberga ao dizer que o programa da Nova Ordem de Hitler correspondia ao programa do New Deal de Roosevelt nos Estados Unidos. Os inquiridores, naturalmente, rejeitaram, com ar de bazófia, uma tal afirmação. Contudo, a mais pequena investigação diz-nos que os dois programas são não só bastante similares, como também revela que os alemães não tiveram nenhuma dificuldade em mostrar a respectiva similitude...».

Antony Sutton («Wall Street and the Rise of Hitler», Clairview, 2010, p. 120).











«É sabido que F. D. Roosevelt procurara resolver os problemas dos refugiados judeus mediante a criação de uma entidade política judaica em Angola. Contudo, um tal empreendimento só indica que os americanos ignoravam de todo que Salazar jamais permitiria a venda ou a transferência de uma parte do Império Português para o devido efeito. Assim, apostavam "na criação de uma espécie de protectorado que traria a Portugal benefícios" de utilidade financeira, económica e comercial que seria muito superior "aos lucros que o país teria se continuasse a manter Angola sozinho" (in Avraham Milgram, op. cit., pp. 123-124).

Realmente, os americanos não compreendiam verdadeiramente com quem estavam a lidar, na medida em que sempre revelaram enorme dificuldade em apreender outras culturas, povos e nações do mundo. E daí a razão por que Oliveira Salazar não confiava nos americanos e na sua nação tipicamente moderna. Por conseguinte, o plano americano caíra em saco roto, até porque a Inglaterra, cuja política externa procurava apaziguar os árabes e reduzir as suas forças no Mediterrâneo Oriental, queria "continuar de boas relações com Portugal e não abalar o status quo na Península Ibérica"» (ibidem, pp. 124-125).

Quase um triénio depois, Salazar, na qualidade de titular da pasta dos Negócios Estrangeiros, entre outras pastas de que então se ocupava com grande sacrifício e abnegação pessoal, deparava-se com o começo da mais brutal, violenta e destrutiva guerra mundial do século XX. E nisto, perante a onda de refugiados vindos da Europa Central e Oriental, eis senão o "messianismo salvífico" do cônsul Sousa Mendes personificado num acto de loucura delirante: "Vou salvá-los todos". Todavia, as consequências desse acto foram, precisamente ao contrário do que os panegiristas de Sousa Mendes apregoam, atenuadas por quem mais se tem atacado na campanha interna e internacional em voga: António de Oliveira Salazar».

Miguel Bruno Duarte


«O desconhecimento das coisas portuguesas está sem dúvida na base da expansão de notícias falsas e da credulidade geral; mas quem cria e alimenta os boatos é perfeitamente conhecedor das situações e dos problemas, e sabe como deve actuar. A situação de Portugal na Península hispânica, a sua posição política e moral contra o comunismo, os seus vastos interesses e direitos coloniais, bem alicerçados e definidos, a maneira como entende conduzir os seus destinos, dão-nos neste momento preciso, relevo entre as Potências. E não é que pretensiosamente nos ponhamos em bicos de pés para nos verem; outros se sentem obrigados a atribuir-nos importância real. E por isso alguns nos consideram importunos e incómodos, e nos acusam perante o mundo, e nos promoveram a revolta dos marujos, e nos presentearam com explosão de bombas, e maquinam incessantemente contra nós, e sem cessar nos agridem e levantam boatos sobre as nossas colónias que, a traduzirem a verdade dos factos, só demonstrariam impotência ou insensibilidade patriótica.



Oliveira Salazar



Mas tudo é inútil. Alheios a todos os conluios, não vendemos, não cedemos, não arrendamos, não partilhamos as nossas colónias, com reserva ou sem ela de qualquer parcela de soberania nominal para satisfação dos nossos brios patrióticos. Não no-lo permitem as nossas leis constitucionais; e, na ausência desses textos, não no-lo permitiria a consciência nacional».

Oliveira Salazar («O suposto arrendamento de Angola à Alemanha», nota oficiosa publicada nos jornais de 29 de Janeiro de 1937, in Discursos e Notas Políticas, II, 1935-1937, Coimbra Editora, 1945, pp. 257-259).


«Depois (...), penso ser conveniente, para que se veja a ignorância e a ligeireza dos deputados, evidenciar aqui o fundamental das suas intervenções, que, obviamente, não os honram nem honram a A. da República.

(...) Jaime Gama, que iniciou o debate (e é o agente de toda esta trapalhada reintegradora e pseudo-indemnizatória de Sousa Mendes), embora já tivesse sido Ministro dos Estrangeiros, demonstrou não saber, ou já ter esquecido que a carreira diplomática e a consular não são a mesma coisa (até a transferência de uma para a outra se faz, ou fazia, por decreto individual), e, portanto, Sousa Mendes nunca fôra diplomata mas sim cônsul, e o mais a que, teoricamente, poderia chegar seria a cônsul-geral, mas ele, legalmente, nem a isso.

Depois, Gama diz que Aristides fôra condenado à pena ilegal de ser colocado na disponibilidade aguardando aposentação, situação em que permaneceu por 14 anos, até à sua morte (menos o ilegal, tudo bem).

E, obviamente, sem o menor estudo ou exame crítico, repete a atoarda de que aquela iníqua decisão resultara de haver concedido vistos de entrada e de trânsito a milhares de refugiados judeus que escaparam ao holocausto e muitos outros resistentes ao nazismo cujas vidas se encontravam em perigo e procuravam em outros países a salvaguarda plena da sua integridade física. E propunha a reintegração de Aristides na carreira diplomática, a que nunca pertencera (aqui, nada é verdadeiro).






José Manuel Mendes diz uma série de excentricidades bem escusadas, acentuando que Bordéus seria uma cidade ocupada pelas tropas de Hitler (o que é completamente mentira) e, quase a terminar, elogia a condecoração dada a Aristides, "valorando o seu perfil de perseguido pelo escalracho salazarista" (quem é aqui o escalracho?!, um ditador moderado e legalista ou um totalitário estalinista, que, agora, toda a gente renega?).

Por sua vez, Isabel Espada qualifica Aristides de diplomata de carreira, que teria dado "milhares de vistos a judeus e outros refugiados da Alemanha nazi (mais uma descoberta), os quais desta forma escaparam à morte em campos de concentração" (quais e onde?).

Isto ter-lhe-á valido "a expulsão da carreira diplomática, situação em que se manteve até à sua morte" (como sabemos, é uma completa mentira), donde advieram as suas dificuldades económicas.

E, depois, "pensa-se que terá salvaguardado a segurança e integridade física de cerca de 30.000 refugiados", para terminar dizendo: "Pensar que Portugal proibiu a atribuição de vistos àqueles que, sem eles e por motivos de discriminação racial, estariam condenados à morte, enche-nos de vergonha, por essa parte da nossa história" (vergonha é mentir ou ser ignorante).

Narana Coissoró falou, tal como os outros, suponho que por ignorância indesculpável, não sabendo, portanto, o que disse, começando assim: "Este ilustre português e cabanense notabilizou-se no furor do nazismo, em 1940... ao possibilitar a fuga de cerca de 30.000 refugiados, na sua maior parte judeus, que assim escaparam à morte em campos de concentração e extermínio".

E, "isto valeu ao funcionário a expulsão da carreira diplomática", sendo um herói português (isto é mesmo à Narana, como se dizia no CDS; pobre Coissoró!).

Leonardo Ribeiro de Almeida, que foi o relator da famosa lei, também sem qualquer estudo ou exame crítico, disse: "O cônsul Sousa Mendes emitiu milhares de vistos em benefício de outros tantos cidadãos, na sua maioria judeus, que puderam, por essa via, alcançar a liberdade e fugir à deportação e à morte" (não carece de comentários, tal é a mentira e a insensatez de tudo isto).

Ora bem, a chamada solução do caso Sousa Mendes é o paradigma da ligeireza e completa politização com que se tem conduzido a res publica em Portugal.





De facto, depois de vermos a nossa A. da República e com que argumentos, por unanimidade e grande aplauso, orquestrados previamente entre os partidos, alegando as mesmas falácias e demonstrando, sobretudo os quatro deputados intervenientes no debate, completa falta de estudo e de espírito crítico - e admitimos que não tenham agido de má-fé, o que, apesar de tudo, os não desculpa -, admiram-se alguns do estado a que o Estado chegou, e onde, infelizmente, nos encontramos, sem se saber como nem quando poderemos sair do pântano em que nos meteram por incompetência e mendacidade.

A falsificação seja do que for, é a negação da verdade, e, como tal, aberrante, sendo a falsificação da história uma das mais aberrantes. E, se a falsificação for feita por diploma legislativo, estaremos perante a mais completa destruição de uma ordem social baseada no Direito e na Moral, que são os pilares da democracia.

A história não se faz por lei ou decreto-lei, que são sempre instrumentos políticos manuseáveis e manuseados por quem tem o poder de fazer a lei.


Ora, isto foi apanágio dos estalinismos, mas não pode sê-lo dos Estados de Direito».

Carlos Fernandes (in op. cit., pp. 256-259).





A Invenção dos 30.000 Vistos dos quais 10.000 para Judeus (ii)


Segundo os relatos generalizados, a 17 de Junho, mal saído da cama, Aristides proclamou que dava visto a quem o desejasse, mandando arautos junto da sinagoga em Bordéus, onde, naturalmente, havia muitos judeus, que nos parece que ele discriminava favoravelmente.

Sebastião Mendes fala em vistos gratuitos. No entanto, ou o secretário do Consulado, José Seabra, não aceitou que se dessem vistos gratuitos, ou Aristides não o terá tentado em Bordéus, já que todos os vistos ali dados, e que conhecemos, foram pagos, quer os dados regularmente quer irregularmente.

Eu, repito, ainda não consegui ver um visto dado por Sousa Mendes gratuitamente, parecendo que, quer em Bordéus quer em Bayonne, até que o cônsul Simeão o expulsou deste Consulado, todos os vistos, regulares ou irregulares, foram também pagos, e portanto registados.

Segundo dizem e Rui Afonso insinua, depois de expulso do Consulado em Bayonne e destituído em 23 de Junho, Aristides, que não regressou, oficialmente, a Bordéus, para partir imediatamente para Portugal, até, pelo menos, 26 de Junho, terá andado pela fronteira a dar vistos gratuitos a quem os quisesse, quer sobre documentos de viagem quer sobre qualquer papel (não há a certeza que ele tenha regressado a 26 a Bordéus).

Quantos terá assim dado, de forma completamente fora do normal e já destituído das funções de cônsul de Portugal em Bordéus?, ninguém sabe.






Porém, sabe-se, e Rui Afonso di-lo claramente, que os espanhóis recusaram reconhecer esses vistos, dados de forma tão estapafúrdia. Portanto, estes vistos, dados talvez com a melhor das intenções, foram completamente inúteis. Com eles, Aristides não pôde salvar ninguém, perdendo o seu tempo e criando aos refugiados mais problemas do que aqueles que já tinham.

Os refugiados que por lá ficaram foram, mais tarde, transportados gratuitamente para Portugal, no Sud Express, clandestinamente, às ordens de Leite Pinto. Mas Rui Afonso não quis dar projecção a esta importante acção humanitária de Portugal, pois não é de admitir que a desconhecesse, já que fala de tudo quanto há relativamente aos refugiados, incluído o seu mau transporte. Ou só lhe interessam os que contactaram Aristides?

Já dissemos, e reiteramo-lo agora, que Aristides, até deixar Bordéus, não poderia ter dado sequer 2.500 vistos. Cremos que tudo ficou provado e mais que provado supra. Isto demonstra a sem vergonha com que se inventam números fantásticos de judeus, a quem Aristides teria salvo da morte.

Daí que não tenham aparecido a ajudá-lo quando vivia na miséria.

No entanto, como dissemos, mesmo que isso não estivesse provadíssimo, como está, pelo número, que era materialmente impossível dar tantos vistos em três dias, vamos fazer um exercício de matemática para demonstrar tal impossibilidade, repetindo quase tudo o que já demonstrámos no capítulo anterior.

Quem dava os vistos? Aristides, um dos filhos e José Seabra, ou seja, três pessoas (o genro, que antes ajudara no Consulado, estava a caminho de Lisboa, chegando a Cabanas de Viriato a 22 de Junho, acompanhado de alguns refugiados, como Rui Afonso relata).

Ora, 3 dias perfazem 72 horas. Mesmo que só tirassem 10 horas para dormir, comer, toilette, etc.,, ficam 42 horas livres, ou seja 2.520 minutos.

Um visto, pago e registado, não se processa em menos de 5 minutos. Mas, admitamos que o zêlo (não de Seabra) e a destreza eram tais que tudo se faria em 4 minutos.

Ora, 2.520 minutos a dividir por quatro, dá 630 vistos. Daqui, para 30.000, Rui Afonso, vai uma pequena diferença!

Como se pode ser tão levianamente crente?!

Obviamente, como acima ficou provado, nem esse número deram, já que o visto dado a Torberg, em 19 de Junho de 1940 (último dia de Aristides como cônsul efectivo em Bordéus), tem o número de 2.245.






Assim, é evidente que Aristides salvou muito pouca gente, já que, como Seabra declarou, apenas de deram, naqueles três dias, umas centenas de vistos.

A razão alegada por Rui Afonso para José Seabra mentir não tem sentido, por vários motivos:

a) se o Governo entendesse que ele estava comprometido com os vistos irregulares, não lhe teria confiado o Consulado após a destituição de Aristides, em 23 de Junho;

b) quando foi ouvido no MNE disse que teriam emitido apenas algumas centenas de vistos, sabendo que a sua afirmação ia contra o que os panegiristas de Aristides andavam propalando, não se vendo razão para mentir;

c) os crimes de desobediência e abuso de poder (só praticados pelo cônsul Aristides) e outro praticado  eventualmente por ambos, já tinham prescrito há mais de 35 anos, e Seabra sabia o que é isso de prescrição de um crime, sendo isto outra razão para não mentir;

d) depois, estava velho, tendo sido sempre homem de bem, não se vendo o seu menor interesse em mentir.

Mentiria por gosto? Que patetice (...).

Mas alguém mente, e de que maneira!

Por isso, talvez venha a propósito lembrar o dito latino, que já consta dos salmos bíblicos, e nos diz que omnis homo mendax.

É uma grande vergonha a tentativa de fazer de José Seabra um mentiroso, simplesmente porque não corroborou a aldrabice, do tamanho do Everest, dos 30.000 vistos, dos quais 10.000 a judeus. Mesmo quando esta aldrabice é incompatível com os registos consulares e com a possibilidade material de se efectivar no condicionalismo a que é referida.



Aristides de Sousa Mendes e o rabino Kruger.




Mas, mais vergonhoso é ainda o facto de ser difícil encontrar uma verdade em tudo o que, sem qualquer pudor, se tem propalado, supostamente a favor de Sousa Mendes, interna e internacionalmente, contando com a prática de não fazer contas.

Já vimos estar provado que Aristides, em nome de Portugal, e dele exclusivamente, não chegou a dar em Bordéus, em todo o ano de 1940, 2.500 vistos, até sair para Bayonne, em 20 de Junho, e ser destituído em 23 do mesmo mês. Alguns destes vistos, não se sabe quantos, foram por ele dados irregularmente a quem Lisboa antes os negara (v.g. ao rabino Kruger) ou, pura e simplesmente, para quem nem sequer se pedira autorização a Lisboa.

Portanto, serão estes (os irregulares), e só estes, os que corresponderiam às pessoas que, segundo os panegiristas de Aristides, este salvaria da morte. Todos os outros terão sido salvos por Portugal e não por Aristides, individualmente.

Mas, que nós saibamos, Aristides nem sequer salvou ninguém da morte, tal como Portugal em França, porque naquela altura, ninguém ali estava em perigo de vida. Apenas deu uma série de vistos irregularmente, e parece que só, ou, sobretudo, a judeus, discriminando estes positivamente. Esta é a verdade.

Mas então, porque é que se tem deixado chegar tudo isto ao estado actual de quase mitificação? Porque os portugueses são um povo estranho, inconstante, muito moody, e tão ingrato como os deuses. Reparem que, sendo, no tempo de Salazar, quase toda a gente salazarista, como muitos milhares de políticos a ele favoráveis, depois de morto e mudado o regime 180 graus, salvo Franco Nogueira, Veiga de Macedo, e poucos mais, pode dizer-se que ninguém apareceu a defendê-lo, mesmo quanto às mais evidentes mentiras, e ainda ninguém o fez quanto às monstruosas atoardas do caso A. de Sousa Mendes, em que Salazar é persistentemente muito mal tratado - é o pendant do bom (Aristides) contra o mau (Salazar).

Não deixa de ser curioso, por estranho, que tenha sido preciso que alguém independente, sem a menor ligação política a Salazar, e até olhando com simpatia para Sousa Mendes, movido apenas pelo amor à verdade, e, porque, além de cansado de ouvir e ler tanta despudorada aldrabice, foi provocado, concretamente, para o fazer, decidisse vir a público enfrentar um lobby político e de interesses poderosíssimo, para repor as coisas nos seus devidos termos.

Como temos dito, e o reiteramos, A. de Sousa Mendes merece-nos simpatia, porque foi uma vítima, de si mesmo e do sistema de vistos sob que teve de trabalhar - e, em meu parecer, do estranho rabino Kruger, que parece tê-lo transformado numa marionnette messiânica a favor dos judeus, pois, como declarou o cônsul Simeão, e já referimos supra, encontrou-o obcecado por eles.

E terminamos este capítulo com um esclarecimento que ainda não vimos que fosse feito em qualquer das publicações que conhecemos relativamente à concessão de vistos por A. de Sousa Mendes: os vistos registados, numerados e taxados, quer dados regularmente quer irregularmente, foram dados em nome de Portugal, e são juridicamente válidos; os vistos revolucionários que Aristides terá dado em Bordéus e na fronteira franco-espanhola, sem registo ou numeração, ou taxação (se os deu), são juridicamente nulos, e, portanto, como diz a lei, de nenhum efeito.






Aristides, licenciado em Direito, sabia isto tão bem como qualquer outro jurista. Então, porque é que os deu? Só ele o sabe. Porque não creio que fosse para iludir aqueles a quem os terá dado.

É por isso que eu duvido, legitimamente, que ele assim tenha procedido, porque, além disso, teria usurpado funções, que é um crime grave. E, sem pretender ser senhor da verdade, entendo, que, se os deu, foi tresloucadamente, levado também pela ira.

Eu até chamo àqueles três dias 17, 18 e 19 de Junho) os dias da ira, como temos reiterado.

Falando com várias pessoas, cheguei à conclusão de que há quem não perceba bem esta trapalhada dos vistos consulares em Bordéus.

Por isso, peço aos que sabem que me perdoem este esclarecimento.

Salvo, agora, na UE, entre os Estados membros do acordo de Schengen, ou quando haja outros acordos bilaterais ou multilaterais sobre isenção de vistos consulares, em geral, não se entra em país estrangeiro sem um visto consular dado por esse país, a permitir essa entrada.

Por vezes é complicado, como actualmente com Angola.

E tem de ser, obviamente, um visto válido, dado em documento de viagem válido (normalmente, passaporte). Quando isto não acontece, ao viajante não é permitido entrar nesse país que detectou quer a falsidade quer a não existência ou inviabilidade do visto exibido.

Por isso, os vistos que Sousa Mendes deu com carácter revolucionário, como já referimos supra, não salvaram ninguém, poque não foram aceites pelas autoridades espanholas da fronteira-espanhola, sendo juridicamente nulos, e até assim classificados por Portugal, e, consequentemente, de nenhum valor.

Esta gente terá por isso ficado retida na fronteira, tal como muitos outros, só vindo para Portugal, clandestinamente, através da operação Leite Pinto, que, por ser secreta e até clandestina, não foi dela dado conhecimento público logo na altura da sua efectivação.

Para se ver até onde chega a crendice, atente-se no que o Embaixador dos USA escreveu no Diário de Notícias de 27 de Janeiro de 2012, propagandeando que A. de Sousa Mendes, «desafiando ordens do seu governo, emitiu, numa só semana, mais de dez mil vistos a judeus e outros refugiados, ajudando-os a sair de França».

No entanto, é caso para perguntar a este embaixador, que suponho político e judeu, se os serviços consulares da sua embaixada poderiam emitir numa só semana, dez mil vistos, apenas com um funcionário consular e dois ajudantes.






Demais, a rebeldia de Aristides não durou uma semana em Bordéus, mas apenas três dias incompletos.

E, como comprovámos, Aristides não deu então dez mil vistos, mas apenas pouco mais de seiscentos.

E Neill Lochery, no seu livro, agora editado pela Presença, "Lisboa. A Guerra das Sombras na Cidade da Luz (1936-1945)", aventa que Aristides teria concedido 2.862 vistos nos dia da sua rebelião pública contra o MNE. É óbvio tratar-se de um número psicologicamente fabricado, para dar a impressão de que é exacto e comprovado?, quando já vimos que Aristides, em todo o meio ano de 1940 em que foi cônsul em Bordéus, até ser destituído dessa função consular em 23 de Junho, não chegou a registar 2.500 vistos entre regulares e irregulares.

Quer dizer, cada um inventa e aventa o número de vistos que lhe apetece. Em todo o caso, tanto o embaixador americano como Lochery, não aceitaram a aldrabice dos 30.000 vistos dos quais 10.000 a judeus que tanto agradaram a Rui Afonso como à nossa Assembleia da República (...).

Para terminar, é necessário reiterar e realçar que o cônsul Aristides não só nunca referiu ter dado tal número de vistos consulares como também nunca quantificou os vistos que dera a judeus e não judeus. Foi a partir do filho Sebastião e dos mitificadores acríticos de Sousa Mendes que, posteriormente, se inventaram estes números teratológicos, e, obviamente, falsos, como acabámos de provar.

Como já observámos, há muito boa gente que, sem saber o que se passou com Aristides em fins de Maio e meados de 1940, em Bordéus e Bayonne, quer ser tão salvadora de judeus como lhe contam, mentindo, que Aristides foi. Agem por outiva, sem se preocuparem com a mais elementar crítica. Isto resulta de, até hoje, ninguém ter aparecido a repor a verdade contra uma corrente avassaladora de falácias, motivadas por razões políticas e económicas, desde o congressista democrático americano Tony Coelho, passando pelos filhos de Sousa Mendes, até Rui Afonso, Jaime Gama, e outros deputados e políticos portugueses... (in op. cit., pp. 125-133).

Continua


segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Aristides de Sousa Mendes: a queda de um mito (i)

Escrito pelo embaixador Carlos Fernandes





Veio finalmente a lume, numa edição de autor, o livro intitulado O cônsul Aristides Sousa Mendes: a Verdade e a Mentira (2013), assinado pelo embaixador Carlos Fernandes. Trata-se, na sua essência, de uma desmitificação da figura de Sousa Mendes enquanto herói salvador de milhares de refugiados no eclodir da Segunda Guerra Mundial, entre os quais um grande número de judeus, bem como da reposição da verdade histórica falsificada no plano de uma campanha interna e internacional que não poupa a pessoa impoluta e aristocrática de Oliveira Salazar, assim como membros do Ministério dos Negócios Estrangeiros e outras figuras no contexto afim.

Na verdade, não foram os judeus que iniciaram o movimento de mitificação de Sousa Mendes, mas sim os políticos portugueses e americanos com Bessa Lopes, Rui Afonso, Tony Coelho e Jaime Gama à cabeça.

Ainda assim, a mitificação de Sousa Mendes começou por ter o apoio das autoridades israelitas com base numa suposta investigação levada a cabo pelo Centro Vashem de Jerusálem, que concede, em casos alegadamente estudados e provados, «o título de Gentio Justo a todos os não judeus que salvaram judeus durante a guerra» (cf. José-Alain Fralon, Aristides de Sousa Mendes: Um Herói Português, Editorial Presença, 1999, p. 108). Ora, nós não sabemos que investigação foi verdadeiramente realizada para que, a 21 de Fevereiro de 1961, fosse plantada uma árvore no Museu de Yad Vashem – mais particularmente na Álea dos Justos – em memória de Aristides de Sousa Mendes. E também não compreendemos como se poderá sustentar uma campanha internacional que na actualidade se destina a angariar 2000 vistos concedidos por Aristides enquanto cônsul em Antuérpia, visto que, como reconhece o embaixador Carlos Fernandes, tudo aponta para mais uma descarada mentira que oculta o facto de o cônsul de Portugal ter saído «de Antuérpia em meados de 1938, dois anos antes do começo da 2.ª grande guerra no Ocidente, com a invasão da Holanda, Bélgica, Luxemburgo e França, em 10 de Maio de 1940, pelas tropas de Hitler» (cf. Carlos Fernandes, op. cit., 1.ª edição, 2013, p. 323).

Em Portugal, a mitificação de Aristides parece ter começado em 1976 com um diplomata de cinquenta e nove anos, Nuno Álvares Adrião de Bessa Lopes, que teria proposto a reabilitação do cônsul a uma comissão para a reintegração de funcionários do Estado, que a recusou . E é então que entra em cena Melo Antunes que terá ordenado que se estudasse o caso com vista à criação de uma campanha anti-salazarista pós-abrilina. E nisto, o testemunho do embaixador Carlos Fernandes não deixa margem para dúvidas, uma vez que, na qualidade de dirigente dos Serviços Jurídicos do MNE [Ministério dos Negócios Estrangeiros] no Verão de 1981, deu com Bessa Lopes no seu gabinete nas circunstâncias por ele próprio descritas:

«Trazia o Dr. Bessa Lopes na mão, sem qualquer processo, um papel de informação, em que fazia considerações laudatórias hiperbólicas sobre Aristides, acusando Salazar de o perseguir e de o ter privado de vencimentos, atirando-o para a miséria. Fiquei perplexo, pois isto não condizia com os conhecimentos que eu tinha de Sousa Mendes e do seu último processo, adquiridos muitos anos antes, em 1948. Bessa Lopes não me disse então que o embaixador Medina se tinha recusado a homologar a sua pseudo-informação, mas queria que eu a homologasse. Omitia-me um facto muito importante.





O Dr. Bessa Lopes nunca conhecera nem lidara com Sousa Mendes – pelo menos foi o que então me disseram –, e era considerado no MNE por ser da extrema-direita, sem carreira brilhante mas com boa classificação em Ciências Jurídicas da Universidade de Coimbra. Tinha até apresentado como estudo para o seu concurso de acesso a ministro plenipotenciário, que já era, um trabalho sobre o apartheid na República da África do Sul, onde estivera como cônsul, defendendo esse apartheid, ao contrário da política tradicional do MNE, que era e é contrária à discriminação racial.

Disse-lhe que a sua proposta de informação, que ninguém lhe mandara fazer, sendo assim da sua exclusiva iniciativa – o que não era normal no MNE – me surpreendia de tal maneira que eu iria estudar o processo Sousa Mendes, que não conhecia, e depois o chamaria.

Pedi logo o processo. Estudei-o, verificando que já lhe faltavam algumas peças, e conclui que a proposta de informação de Bessa Lopes era, sobretudo, um tremendo ataque a Salazar, o que voltou a surpreender-me profundamente, vindo de quem sempre me constara ser direitista, e um embuste pretensamente a favor de Sousa Mendes.

Alguns dias depois, chamei Bessa Lopes, e disse-lhe que não lhe homologaria a informação, por considerá-la desonesta, e que o dispensaria imediatamente de trabalhar nos serviços que eu dirigia – vim então a saber que o meu colega Medina já tinha recusado homologar-lhe aquela proposta de informação. Não o despediria formalmente, dado o nosso anterior relacionamento – eu até os tinha recebido na minha Embaixada no México, a ele e à mulher –, mas impunha-lhe que fosse falar de urgência com o Secretário-Geral e lhe pedisse para mudar de serviço, o que aconteceu.

Bessa Lopes, após o 25 de Abril, ele, e mais alguém da sua família, teriam virado comunistas – não sei se assim foi ou não; do que não há dúvida é que mudou radicalmente de orientação política. Terá o ataque a Salazar sido a prova de admissão, ou de confirmação, de Bessa Lopes no partido político extremista de Álvaro Cunhal? Houve no MNE quem me garantisse que sim. Eu, contudo, não sei. Mas, se isto corresponder à verdade, que miséria humana, meu Deus! Como é possível que se baixe tão baixo?

Eu só menciono esta hipótese porque não encontro explicação racional, ou moralmente aceitável, para o que Bessa Lopes fez, e quer tenha sido ele ou não quem voltou a pôr o seu papel no dossier. Do que também não há dúvida é que alguém o colocou lá, de forma irregular e sub-reptícia.

Teve azar em dar com o embaixador Medina e comigo. De contrário, teríamos um documento oficial do MNE a consagrar as maiores barbaridades a respeito de Salazar, de quem é legítimo gostar ou não gostar, concordar ou não com a sua política, mas já não é legítimo atacá-lo injustamente.

Mandei retirar o papel do processo (dossier), porém, ou não o retiraram, o que duvido, dada a confiança que os meus colaboradores administrativos me mereciam, designadamente, a arquivista, a competente e moralmente impecável Alice, ou alguém voltou a colocá-lo lá, pois assisti, há anos, à invocação dessa pseudo-informação por um dos netos de Aristides, como fundamento indiscutível do martírio sofrido por este cônsul às mãos ditatoriais de Salazar.

E assim se faz a história!» (Carlos Fernandes, op. cit., pp. 64-67).




Tony Coelho



Mas há mais: esta campanha interna e internacional em prol de Aristides não somente teve e continua a ter motivações de índole política, mas também de ordem económico-financeira. Temos, pois, o caso da filha Joana, que tentou, durante mais de 20 anos, «obter uma indemnização, por causa da injustiça que Salazar teria praticado contra o pai, e, o que é certo é que, depois de mover céus e terra, conseguiu-a, embora não a viesse a receber directamente» (ibidem, p. 263). Há também o caso de um dos filhos mais novos de Aristides, João Paulo, que «acabou por ser o factor decisivo do início internacional de apoio à tese da salvação dos judeus, levando Tony Coelho, que então dominava a Câmara dos Representantes nos USA, a encabeçar, a sério, ali, uma campanha entusiasta a favor do protector, se não salvador, de milhares de judeus, em perigo de vida.

E porquê este apoio delirante de Tony Coelho?

Porque queria o suporte do poderosíssimo lobby judaico nos USA para as suas ambições políticas, que terminaram na Câmara dos Representantes porque, politicamente, morreu cedo. Meteu-se em aventuras financeiras, e, como consequência, morreu politicamente, embora continue fisicamente vivo» (ibidem, p. 263).

E como se não bastasse, uma vaga de procedimentos maioritariamente ilegais se sucederiam para estabelecer uma das maiores mentiras impostas ao mundo em geral, e ao povo português em particular, a saber:

1. A primeira cerimónia oficial de reabilitação de Aristides levada a cabo por Mário Soares, então Presidente da República Portuguesa, na Embaixada de Portugal em Washington (24 de Maio de 1987), condecorando-o, a título póstumo, com a Ordem da Liberdade. E tudo sob a pressão dos «lobbies políticos, português e americano (Tony Coelho e as suas delegações do Congresso Americano)» (ibidem, p. 253);

2. A reintegração de Sousa Mendes como ministro plenipotenciário de 2.ª classe que a Assembleia da República votou por unanimidade a 13 de Março de 1988;

3. A homenagem em Bordéus, num Domingo, a 29 de Maio de 1994, rendida a Sousa Mendes pelo Presidente da República, Mário Soares, e pela esposa Maria Barroso em conjunto com as autoridades da cidade: o prefeito Landouzy, Claudine Geissmann, co-presidente do B’nay Brith na capital girondina, Alexis Banayan, presidente do consistório, Dmitri Lavroff, adjunto do presidente da Câmara, e os embaixadores de Portugal e de Israel (cf. José-Alain Fralon, op. cit., p. 113);

4. A indemnização aos filhos de Aristides baseada numa suposta demissão ou aposentação compulsiva. No fundo, um falso humanitarismo destinado a encobrir interesses particulares à custa de uma substancial verba obtida pelo Estado a título de indemnização, quando, na realidade, «o Governo de Salazar agiu na mais perfeita legalidade» (cf. Carlos Fernandes, op. cit., p. 252).






Consequentemente, a mentira é tão vasta e traiçoeira que até foi criada uma banda desenhada – Bordeaux dans la tourmente, de Jocelyn Gille – com várias páginas consagradas a Aristides de Sousa Mendes . Por outro lado, em Outubro de 1996, a companhia do Teatro de Portalegre foi ao ponto de representar em Bordéus a peça Aristides, O Cônsul que Desobedeceu, da autoria de António de Moncada de Sousa Mendes, neto de Aristides. E «no Neguev, há uma mata com 10 000 árvores [alusão ao número de judeus supostamente salvos pelo cônsul] que tem o nome de Sousa Mendes, o mesmo acontecendo com uma praça em Telavive. Em Portugal há agora oito ruas Sousa Mendes e uma escola secundária, na Póvoa de Santa Iria, nos arredores de Lisboa. Parece até que se pensou em dar o seu nome à nova ponte sobre o Tejo [Ponte Vasco da Gama], inaugurada em 1998. Em Montreal, num parque infantil, há uma placa que conta a história deste grande homem» (cf. José-Alain Fralon, op. cit., p. 112).

Neste contexto assaz delirante, até o universitário Adriano Moreira, em entrevista directa a José-Alain Fralon, afirmou que Sousa Mendes «atacou um princípio até então absoluto: a legitimidade de origem tem de ser obedecida. O Tribunal de Nuremberga estabeleceu que somos responsáveis perante os princípios e que não podemos ir contra os valores humanos. A grandeza de Sousa Mendes foi ter obedecido aos valores da humanidade» (cf. José-Alain Fralon, op. cit., p. 116). E não menos delirante foi o facto de José Miguel Júdice ter propalado uma grandíssima atoarda, para não dizer uma inaudita judiaria quando entendeu, no âmbito do programa televisivo da RTP1 - «Os Grandes Portugueses» (2006/2007) –, defender levianamente o «Wallenberg português» sem apresentar as documentadas provas dos supostos factos aventados. Logo, caso nos venham dizer que o Grande Português escolhido se explica com base num protesto da maioria dos Portugueses quanto à situação de calamidade a que os políticos do pós-25 de Abril conduziram Portugal, diremos, por contrapartida, que a principal razão encontra-se plenamente explícita nas palavras do embaixador Carlos Fernandes: «EleOliveira Salazarvia as consequências das consequências das consequências» (cf. Carlos Fernandes, op. cit., p. 290).

Miguel Bruno Duarte





A Invenção dos 30.000 Vistos dos quais 10.000 para Judeus (i)


Os textos que ora apresentamos - extraídos do livro do embaixador Carlos Fernandes - são apenas um aperitivo sobre o assunto em questão. Por conseguinte, aconselha-se vivamente a aquisição e a leitura do livro.


No visto a Spett, que vem reproduzido na capa do livro de Rui Afonso que estamos comentando, e que foi concedido em 18 de Junho de 1940 - num dos dias da ira -, e com a taxa de 180.80 francos, não se vê o respectivo número. Pelo menos eu não consigo descortiná-lo. O número que lá se vê (630 e tal) é certamente do Consulado do Haiti, que primeiro lhe dera visto. Não pode ser o do português porque, já em 17 de Maio de 1940, Aristides dera, com os números, respectivamente, de 816 e 817, vistos a Jacques Osterreicher e à mulher Kaethe (...).

E, com o número 2.245, temos o visto a Fredrich (Kantor) Torberg em 19 de Junho, portanto, no último dia de Aristides como cônsul efectivo em Bordéus, e último dos três dias da ira em Bordéus.

Assim, o número do visto dado a Spett, regularmente pago, tem de estar entre 2.000 e 2.100, mais ou menos. Não precisou de consulta a Lisboa, porque já tinha visto do Haiti.

Quer dizer que, desde o princípio do ano até ao fim do dia 19 de Junho, não se chegaram a dar 2.500 vistos no Consulado de Bordéus.






Quem só ler Rui Afonso e acreditar em tudo o que ele diz ou insinua, ficará provavelmente com a ideia de que só Bordéus e, depois, Bayonne, é que deram vistos consulares para Portugal nos começos da 2.ª grande guerra.

Ora, isto é completamente errado, estando muitíssimo longe de ser assim.

De facto, no caminho do avanço das tropas alemãs, nós tínhamos em funcionamento ( e ainda temos), entre outros em França, os seguintes postos consulares:

a) dois na Holanda: um em Roterdão, e outro na Secção Consular da Legação da Haia;
b) um na Bélgica, em Antuérpia;
c) um em Paris.

Tudo isto muito antes de se chegar a Bordéus ou Bayonne. Todos estes postos consulares deram muitos vistos, como qualquer pessoa normal perceberá que terão de ter dado, pois não há qualquer razão para os refugiados só estarem à espera de obterem vistos em Bordéus e Bayonne (ainda não se sabia que Aristides facilitava vistos).

Portanto, a grande vaga de refugiados que procura Portugal através da França não engloba apenas os que obtiveram vistos em Bordéus e Bayonne, longe disso.

Por outro lado, se atendermos ao número de telegramas do MNE para Bayonne (1.999 até 25 de Junho de 1940), concluiremos que também aproximadamente esse número de vistos sob consulta a Lisboa ali foi dado. Isto é, um número muito próximo dos vistos dados em Bordéus em igual período (cerca de 2.500, entre regulares e irregulares).

Os números avançados pelos panegiristas de Aristides, e não por ele, não só são impossíveis materialmente como não têm nada que ver com o número de vistos dados até ao de Torberg, em 19 de Junho de 1940, com o número de 2.245, último dos três dias da ira, em Bordéus, como já referimos.

Portanto, e resumindo, a 17 de Maio de 1940, Bordéus ainda só ia no número 847. Em 18 de Junho concede-se visto a Spett, de que não sabemos o número exacto. E, em 19 de Junho, dá-se visto a Torberg, com o número 2.245. Estamos apenas a repetir a situação já analisada no capítulo anterior, porque é um ponto muito importante, relativamente à aldrabice dos 30.000 vistos.

Então, como se explica o mito dos supostos 30.000 vistos dos quais 10.000 a judeus, uma vez que Aristides nunca os mencionou?

Muito simplesmente, como vamos ver.

O mito dos 10.000 judeus tem por base uma carta do judeu Ilja Dijour, e nasceu em 1960, 20 anos depois dos factos ocorridos em Bordéus. Os mitos são assim. Levam tempo a nascer.




Como temos reiterado, quanto ao caso Sousa Mendes, tem-se praticado o método de transpor o futuro para o passado, sem o menor pudor, o que, além de ser manifestamente abusivo, induz em erro, o que, antes de mais, é vergonhoso. O que Hitler fez dois anos depois, Aristides já o sabia e vivia em Junho de 1940!

Rui Afonso diz-nos que Ilja Dijour e a mulher terão recebido vistos de Aristides em Bordéus, não indicando a data, mas admitamos que sim. Ora, numa carta de Ilja para Robert Magidoff, datada de 19 de Maio de 1960, aquele dirá que 10.000 judeus terão assim obtido refúgio em Portugal. Parece querer insinuar~se que Aristides teria dado este número de vistos a judeus. Mas isto não é verdade. Nem poderia sê-lo.

Esta carta virá reproduzida na edição de 1968 do livro de Sebastião Mendes, Flight Through Hell (v. RA., p. 199 e nota a esta página). Claro, tinha que ser Sebastião!

Parte daqui, e sobretudo de Sebastião, o aproveitamento do número de 10.000 judeus, salvos por Sousa Mendes! É que eu conheci Sebastião, e posso avaliá-lo.

Ora nós já vimos estar provado que Aristides, em Bordéus, nem sequer chegou aos 2.500 vistos durante todo o meio ano de 1940, até ser destituído em 23 de Junho, incluindo os três dias da ira.

Eu não vi a carta nem o livro de Sebastião Mendes, nem posso ver, e, por isso, não sei se Dijour mente descaradamente, ou se, mais ou menos correctamente, se refere aos judeus que, procedentes de França, chegaram a Portugal em 1940.

Nesta tarefa de mitificação de Sousa Mendes, toda a gente se esquece de provar a veracidade do que diz, dando lugar a uma dúvida razoável quanto a tudo o que a seu respeito se propala. Por exemplo, o número de 30.000 vistos em Bordéus, além de ser uma impossibilidade material e estar completamente desmentido pelo número de vistos registados até à destituição de Aristides, continua a propalar-se como axioma. São persistentes, e a mentira não os impressiona. Mentem descaradamente.

Mas, então, como nasceu esta magna falácia? Vamos dizê-lo, desde já.







O Prof. Francisco Leite Pinto introduziu em Portugal, através de Espanha, pelo Sud Express, com a conivência dos espanhóis, cerca de 30.000 refugiados, provindo da fronteira franco-espanhola.

Ouvi-lhe contar esta linda peripécia da segunda grande guerra várias vezes, uma delas na presença de Sam Levy, durante um dos nossos almoços das 4.ªs feiras no Círculo Eça de Queiroz.

Ora bem, o que é que aconteceu?

Francisco Leite Pinto era Presidente da Companhia de Caminhos de Ferro da Beira Alta, onde circulava o Sud Express, a cujo conselho de administração também pertencia o Doutor Mário de Figueiredo.

A certa altura, havia elevado número de refugiados na fronteira franco-espanhola a quererem chegar a Portugal através de Espanha.

Os espanhóis, por razão política, não queriam dar-lhes passagem pública, e muito menos vistos para o fazerem tranquilamente por qualquer meio de transporte, à vontade de cada um, por onde quisesse.

Perante isto, como estavam fortemente pressionados na fronteira franco-espanhola e não se importavam nada que toda aquela pobre gente viesse para Portugal, ponto de partida eventual para outros destinos, os espanhóis abordaram o Governo português, a fim de saberem se aqueles refugiados poderiam viajar clandestinamente no Sud Express até Portugal. O Governo português, não precisando de Aristides para o fazer, concordou, passando o problema e a sua resolução prática a Leite Pinto, de quem Salazar gostava muito. Este, casado com uma russa que conhecera em Paris quando ali se especializava, e que era refugiada da URSS comunista, era particularmente sensível a estas misérias humanas.

Foi assim como ele combinou com os seus colegas espanhóis o transporte clandestino de toda aquela gente no Sud Express, a qual não podia sequer exibir-se nas estações de caminho de ferro espanholas. Viajavam mesmo clandestinamente.

Como o número redondo destes refugiados se aproximava dos 30.000, logo os mitologistas de Aristides, quando o conheceram, se aproveitaram dele, sem sequer se darem ao trabalho de verificar se tal número era compatível com o número de vistos registados por Aristides (já vimos que esse número nem a 2.500 chegou).


(...) É provável, se não mesmo certo, que as críticas duras que alguns refugiados fizeram ao transporte de comboio para Portugal, e que Rui Afonso refere, tenham por base a forma clandestina e certamente muito espartana, não em 1.ª classe com cama, como Leite Pinto, gratuitamente, os transportou até Portugal (v. RA., p. 196).

É de notar que na fronteira franco-espanhola se juntara gente vinda da Holanda, Bélgica, Luxemburgo, e sobretudo de França. Os que viajavam normalmente tinham as boas comodidades habituais, como é óbvio.

Leite Pinto, um dos meus melhores amigos, que visitei no Estoril quase até morrer, alegrando-me com a sua conversação, era um homem de altíssimo gabarito intelectual, cultural e moral. Lia e lia tudo quanto há, e até achava gosto em ler as minhas deduções jurídicas! Não era homem de boatos ou de vaidadezinhas. tinha um pensamento robusto e uma cultura invulgar, de carácter humanista. Era a nossa alegria no Círculo Eça de Queiroz, tendo sempre coisas curiosas e agradáveis para contar. Senti muito a sua morte, mesmo muito.

Nunca quis averiguar quem era judeu dentre a multidão de refugiados que transportou para Portugal, e, portanto, nunca soube qual a percentagem de judeus e não judeus incluída naquelas cerca de 30.000 pessoas, de cujo número os panegiristas de Sousa Mendes se apropriaram logo que o conheceram, inventando também, como vimos, 10.000 judeus.

A história tem coisas muito curiosas e esta é uma delas. Como se faz perdurar uma mentira do tamanho do Everest?!

Como é difícil ater-se à verdade histórica! (in O cônsul Aristides Sousa Mendes: a Verdade e a Mentira, edição de autor, 2013, pp. 117-124).

Continua