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segunda-feira, 2 de abril de 2012

Islão e Cristandade (ii)

Escrito por Frithjof Schuon





Maomé



«A existência é realmente "Virgem" e "Mãe", já que, por um lado, nada a determina, a não ser Deus, e, por outro lado, dá à luz o Universo manifesto: Maria é "Virgem-Mãe" pelo Mistério da Encarnação. Maomé é "virgem", "iletrado", porque só de Deus recebe inspiração, nada recebendo dos homens; e "mãe", pelo seu poder intercessor junto de Deus».

Frithjof Schuon («A Unidade Transcendente das Religiões»).



«Muhyi-d-Dîn Ibn 'Arabî, o "maior mestre" (as -sheij al-akbar) da mística islâmica, (...) descreve a Natureza Universal (tabî'at al-kull) como sendo a parte feminina e maternal da criação. Ela é o hálito misericordioso de Deus (nafas arrahmân) que dá omnímoda existência às possibilidades potenciais latentes no "não-ser" (udum)».


Titus Burckhardt («Alquimia»).



«(…) o verdadeiro Esoterismo deve estar além das oposições que se afirmam nos movimentos exteriores que agitam o mundo profano, e se esses movimentos são por vezes suscitados ou dirigidos invisivelmente por poderosas organizações iniciáticas, pode-se dizer que estas os dominam sem se misturarem, de modo a exercerem igualmente a sua influência sobre cada um dos partidos contrários».


René Guénon («O Esoterismo de Dante»).


«Com efeito, poderiam surgir dificuldades pelo facto de, ao sabermos que o esoterismo é – por definição e natureza – reservado a uma elite intelectual, constatarmos que as organizações iniciáticas desde sempre contaram com um número de membros relativamente elevado. Foi esse, por exemplo, o caso dos pitagóricos e continua a ser a fortiori o das ordens iniciáticas que, apesar do seu declínio, ainda subsistem nos nossos dias, como acontece com as confrarias muçulmanas. Tratando-se de organizações muito fechadas, serão quase sempre ramos ou núcleos de confrarias mais vastas, e não confrarias no seu todo, salvo excepções sempre possíveis em condições particulares. A explicação desta participação mais ou menos popular no que a tradição comporta de mais interior – e, como tal, de mais subtil – é que o esoterismo deve integrar-se para poder existir num dado mundo ou numa modalidade desse mundo, o que põe inevitavelmente em causa elementos muito numerosos da sociedade. Daí que, em tais confrarias, haja a distinção entre círculos interiores e exteriores, sendo os membros destes últimos quase impedidos de tomar consciência do verdadeiro carácter da organização a que pertencem, dentro de certo grau, considerando-a simplesmente como uma forma de tradição exterior, a única que lhes é viável. Para retomarmos o exemplo das confrarias muçulmanas, é o que explica a distinção entre o membro que tem simplesmente o grau mutabârik ("abençoado" ou "iniciado"), quase não saindo da perspectiva exotérica que se propõe viver intensamente, e o membro de elite que tem o grau de sâlik ("viajante") e que segue o caminho traçado pela via iniciática. É verdade que, nos nossos dias, os verdadeiros sâlikûn ("viajantes") se acham em número reduzidíssimo, enquanto os mutabârikûn ("abençoados") são muito numerosos dentro das confrarias, contribuindo para abafar a verdadeira espiritualidade, através de incompreensões múltiplas. Em qualquer dos casos, os mutabârikûn, mesmo quando ignorantes da realidade transcendente da sua confraria, não deixam, em condições normais, de tirar grande proveito da barakah ("bênção" ou "influência espiritual") que os cerca e protege, na medida do seu fervor. Pois, a expansão de graças no seio do esoterismo, pela própria universalidade deste, atinge todos os graus da civilização tradicional e não se detém no limite das formas, tal como a luz, que é incolor, não deixa de penetrar num corpo transparente só por ele ser colorido».


Frithjof Schuon («A Unidade Transcendente das Religiões»).





Jesus Cristo caminhando sobre as águas



Todas as posições que acabámos de enunciar fundamentam-se em dogmas ou, a um nível mais profundo, nas perspectivas metafísicas que estes exprimem, logo, num dado «ponto de vista» quanto ao sujeito e num dado «aspecto» quanto ao objecto. Uma vez que o Cristianismo se fundamenta na divindade de um fenómeno terreno – o Cristão não é terreno em si mesmo, é-o apenas na medida em que se move no espaço e no tempo -, esse mesmo Cristianismo, consequentemente, vê-se na contingência de introduzir a relatividade no seio do Absoluto, melhor dizendo, de considerar o Absoluto num grau ainda algo relativo, o da Trindade (4). Ora, uma vez que semelhante «relativo» é encarado enquanto absoluto, torna-se indispensável que o Absoluto contenha em si uma parte de relatividade, além de que, visto a Encarnação ser um dado do domínio da Misericórdia ou do Amor, torna-se de imediato indispensável que Deus seja encarado sob este aspecto e o homem sob o aspecto correspondente, o da vontade e da afeição. Deste modo, a via espiritual tem igualmente de ser uma realidade de amor. O «voluntarismo» cristão é solidário da concepção cristã do Absoluto, a qual vem a ser como que determinada pela «historicidade» de Deus, se assim se nos podemos exprimir.

Analogamente, e uma vez que se fundamenta no carácter absoluto de Deus, o Islão, por conseguinte, vê-se na contingência – já que, pela sua forma, acaba por ser um dogmatismo semita (5) – de excluir a terrenidade do Absoluto, tendo, pois, de negar, pelo menos no plano das palavras, a divindade de Cristo. É claro que não é obrigado a negar que, muito embora a título secundário, exista em Deus uma dimensão de relativo – uma vez que, forçosamente, admite os atributos divinos, caso contrário estaria a negar a totalidade de Deus e toda e qualquer possibilidade de relação entre Deus e o mundo -, mas tem de negar, isso sim, a existência de qualquer carácter directamente divino à margem do único Princípio real. Os sufis são os primeiros a reconhecer que nada pode situar-se à margem da Realidade suprema, pois afirmar que a Unidade tudo exclui equivale a dizer que, de um outro ponto de vista – o da realidade do mundo -, ela tudo inclui. Contudo, esta verdade não é passível de formulação dogmática, achando-se antes logicamente compreendida no Lâ ilaha illâ ‘Llâh.






Quando o Corão afirma que o Messias não é Deus, pretende dizer que o Messias não é «um deus» diverso de Deus, ou, por outras palavras, que ele não é Deus enquanto Messias terreno (6). E, do mesmo modo, quando o Corão rejeita o dogma trinitário, pretende com isso dizer que não existe qualquer ternário em «Deus enquanto tal», isto é, no Absoluto, o qual está além de todas as distinções. Finalmente, quando o Corão dá a sensação de negar a morte de Cristo, isso não impede a compreensão de que Jesus, na realidade, venceu de facto a morte, isto enquanto os judeus julgavam ter morto Cristo na sua própria essência. A verdade do símbolo sobrepõe-se aqui à verdade do facto, designadamente no sentido de que uma negação espiritual vem a revestir a forma de uma negação material (7). Mas, por outro lado, com uma tal negação – ou com esta aparência de negação -, o Islão elimina a vida crística no que lhe diz directamente respeito, sendo lógico que o faça uma vez que a sua via é outra e que assim sendo, não tem nada que reivindicar os meios da graça próprios do Cristianismo.

No plano da verdade total, logo, abarcando todos os pontos de vista, aspectos e modos possíveis, todo e qualquer recurso à razão pura e simples é, evidentemente, inoperante. Por conseguinte, torna-se inútil, por exemplo, pretender valorizar contra um dado dogma de uma religião estrangeira o facto de que um erro denunciado pela razão não se pode tornar uma verdade num outro plano, isto porque tal equivale a esquecer que a razão opera de uma forma indirecta, por reflexos, digamos assim, e que, deste modo, os seus axiomas são insuficientes, na medida em que invade o terreno do intelecto puro. A razão é formal na sua natureza e formalista nas suas operações, vindo a proceder por «coagulações», por alternativas e exclusões, ou, se se preferir, por verdades parciais. Ao contrário do intelecto puro, ela não é luz informal e «fluída». É certo que tira a sua implacabilidade, ou a sua validade genérica, do intelecto, porém, não atinge as essências por visões directas, apenas por conclusões. Assim sendo, e embora indispensável para a formulação verbal, não traz consigo o conhecimento imediato.

No Cristianismo, a linha de demarcação entre o relativo e o Absoluto passa por Cristo. No Islão, ela separa o mundo de Deus, ou até mesmo – no domínio do esoterismo – os atributos divinos da Essência, diferença cuja explicação reside no facto de o exoterismo partir sempre forçosamente do relativo, enquanto que o esoterismo parte do Absoluto, conferindo-lhe uma acepção mais rigorosa, inclusive a mais rigorosa possível. Em termos de sufismo, diz-se também que os atributos divinos só se afirmam enquanto tal relativamente ao mundo, pois, em si mesmos, são indistintos e inefáveis. Deste modo, não se pode dizer de Deus que é «misericordioso» ou «vingador» num sentido absoluto, abstracção feita aqui do facto de ser misericordioso «antes» de ser vingador. Quanto aos atributos de essência, tais como a «santidade» ou a «sabedoria», estes só se materializam, no plano das distinções, por comparação com o nosso espírito distintivo, sem nada perderem por isso, no âmbito do seu ser específico, bem pelo contrário, da sua infinita realidade.

al-ka'ba (Meca).

Afirmar que a perspectiva islâmica é possível equivale a dizer que ela é necessária e que, por conseguinte, ela não pode deixar de existir, não pode deixar de ser, pois os seus receptáculos humanos providenciais acabam por exigi-la. No entanto, as perspectivas enquanto tal nada têm de absoluto, pois a Verdade é apenas uma, uma e una. Assim sendo, as suas diferenças perante Deus são meramente relativas, vindo os valores de uma a encontrar-se sempre, sob uma qualquer forma, integrados na outra. Não existe apenas um Cristianismo de «calor», de amor emocional, de actividade sacrificial, existe também, enquadrado pelo anterior, um Cristianismo de «luz», de gnose, de pura contemplação, de «paz». Do mesmo modo, o Islão «seco» - quer seja legalista, quer seja metafísico – enquadra um Islão «húmido» (8), isto é, arrebatado de beleza, de amor e de sacrifício. E é necessário que assim seja por via da unidade, não apenas da Verdade, mas também do género humano. Unidade relativa, é certo, pois as diferenças existem, mas, não obstante, unidade suficientemente real para permitir ou impor reciprocidade – ou a ubiquidade espiritual – em causa (in ob. cit., pp. 26-29).


Notas:

(4) Quem diz distinção, diz relatividade. O próprio termo «relações trinitárias» prova que o ponto de vista adoptado – providencial e necessariamente – se vem a situar ao nível metafísico próprio de toda a bhakti. A gnose irá permitir ultrapassar este plano ao atribuir o carácter absoluto à «Divindade», tomada aqui no sentido eckhartiano do termo, ou ao «Pai», isto quando a Trindade é encarada no «sentido vertical», correspondendo então o «Filho» ao Ser – primeira relatividade «no Absoluto» - e o Espírito Santo ao Acto.

(5) O dogmatismo caracteriza-se pelo acto de conferir um alcance absoluto e um sentido exclusivo a um dado «ponto de vista» ou a um dado «aspecto». Em metafísica pura, toda a antinomia conceptual vem a fundir-se na verdade total, facto que não deve ser confundido com um nivelamento de negação das verdadeiras oposições existentes.

(6) Em termos cristãos: a natureza humana não é a natureza divina. Se o Islão, como de facto sucede, insiste tanto neste ponto, fazendo-o de uma dada forma e não de outra, isso deriva do seu ângulo de visão particular.



Transfiguração de Jesus Cristo



(7) Idêntica observação aplica-se ao Cristianismo quando, por exemplo, os santos do Antigo Testamento – caso de Enoch, Abraão, Moisés e Elias – são supostos permanecer fora do Céu até que Cristo tenha «descido aos infernos». Contudo, já antes desta descida Cristo surgira entre Moisés e Elias na luz da Transfiguração, além de ser mencionado numa parábola o «seio de Abraão». Evidentemente que estes factos são susceptíveis das mais diversas interpretações, mas os conceitos cristãos não deixam por isso de ser incompatíveis com a tradição judaica. Aquilo que permite justificá-los é o seu simbolismo espiritual e, portanto, a sua verdade: a salvação passa necessariamente pelo Logos, o qual, muito embora se tenha manifestado no tempo sob uma dada forma, se acha além de toda a condição temporal. Assinale-se igualmente a contradição aparente entre S. João Baptista, negando ser Elias, e Cristo, afirmando o contrário: se uma tal contradição – que se dissipa em função da diferença de relações encaradas – tivesse ocorrido entre uma religião e outra, teria sido sem dúvida explorada a fundo, isto sob pretexto de que «Deus não se pode contradizer».

(8) Referimo-nos aqui em termos alquímicos.


sexta-feira, 30 de março de 2012

Islão e Cristandade (i)

Escrito por Frithjof Schuon




Frithjof Schuon


«(…) o modo racional de conhecimento jamais ultrapassa o domínio das generalidades, nunca chegando a atingir qualquer verdade transcendente. Pode, porém, servir de modo de expressão a um conhecimento supra-racional, como foi o caso da ontologia aristotélica e escolástica, mas sempre ocorrerá em detrimento da integridade intelectual da doutrina. Alguns talvez objectem que a metafísica mais pura se distingue por vezes pouco da filosofia; que, como esta, faz recursos a argumentos e parece chegar a conclusões. Mas tal semelhança só se apoia no facto de que todo o conceito, desde que é expresso, se reveste forçosamente dos modos do pensamento humano, que é racional e dialéctico. O que distingue aqui essencialmente a proposição metafísica da proposição filosófica é que a primeira é simbólica e descritiva – no sentido em que se serve dos modos racionais como de símbolos para descrever ou traduzir conhecimentos que comportam mais certeza do que qualquer outro conhecimento de ordem sensível -, enquanto a filosofia, a que não foi em vão que se chamou ancilla theologiae, nunca é mais do que aquilo que exprime».

Frithjof Schuon («A Unidade Transcendente das Religiões»).


«As palavras faladas são símbolos das afecções de alma, e as palavras escritas são símbolos das palavras faladas. E como a escrita não é igual em toda a parte, também as palavras faladas não são as mesmas em toda a parte, ainda que as afecções de alma de que as palavras são signos primeiros, sejam idênticas, tal como são idênticas as coisas de que as afecções referidas são imagens».


Aristóteles («Periérmeneias»).


«(...) mesmo nas coisas que são intuídas pela mente, em vão todo aquele que as não pode intuir, ouve as palavras do que as intui, à parte ser útil acreditá-las enquanto se ignoram. Todo aquele porém que as pode intuir, esse interiormente é discípulo da Verdade, e exteriormente é juiz daquele que fala, ou melhor, da mesma locução, pois ele muitas vezes sabe as coisas que se disseram, quando as ignora aquele mesmo que as disse.




Santo Agostinho e o mistério da Santíssima Trindade



Suponhamos por exemplo que alguém, acreditando nos epicuristas, e julgando que a alma é mortal, expõe os argumentos que sobre a sua imortalidade foram elaborados por homens mais sábios, e que o está a ouvir uma pessoa capaz de intuir coisas espirituais. Esta pessoa julga que o tal epicurista diz coisas verdadeiras, mas o que as diz ignora se diz coisas verdadeiras, ou até as julga falsíssimas. Dever-se-á então pensar que ele ensina o que não conhece? Entretanto, usa das mesmas palavras de que também poderia usar, se fosse conhecedor...».

Santo Agostinho («O Mestre»).


«O mundo da natureza consiste em múltiplas formas reflectidas num único espelho. Não, melhor dizendo, é antes uma única forma reflectida em múltiplos espelhos».


Muhy-d-Dîn Ibn'Arabî



«Chamado Muhyî al-Dîn, isto é , Vivificador da Religião - para opor às eventuais mortificações derivadas que o averroísmo causara - Ibn Arabí deve definir-se em primeiro lugar pelo que não foi: nem um pensador do kalâm, nem um faylasûf ao modo aristotélico. O termo omisso define o que foi, um místico que, à prática, aditou a teoria da mística. (...) Ibn Arabí parte de um cepticismo acerca do entendimento humano para conhecer o que mais importa. O princípio do conhecimento consiste em negar a capacidade humana para o conhecimento divino só por humanos meios. O conhecimento é, porém, aquisitivo, destinado a conhecer as duas categorias do Ser: o Ser em si mesmo, e o ser criado».

Pinharanda Gomes («A Filosofia Arábigo-Portuguesa»).





Ibn Arabí









Islão e Cristandade


Indo ao fundo do problema, é-se obrigado a constatar – posta de parte toda e qualquer questão dogmática – que a causa da incompreensão intrínseca entre cristãos e muçulmanos reside no seguinte facto: o cristão vê sempre diante si a sua própria vontade. Essa vontade a que ele vem praticamente a reduzir-se -; acha-se, pois, perante um espaço vocacional indeterminado, espaço no qual ele se pode lançar dando largas à sua fé e ao seu heroísmo. Deste modo, o sistema islâmico de prescrições «externas», devidamente ponderadas e calculadas, surge a seus olhos enquanto expressão de uma mediocridade disposta a todas as concessões e incapaz de qualquer espontaneidade, de todo e qualquer impulso próprio ou voo espiritual. Em teoria – pois, na prática, ignora-se em absoluto -, a virtude muçulmana parece-lhe assim coisa superficial e vã. A perspectiva do muçulmano é radicalmente outra: ele tem perante si, perante a sua inteligência – inteligência que tomou uma opção, que escolheu o Único -, não um espaço volitivo, espaço que surgiria a seus olhos como uma tentação de aventura individualista, mas sim toda uma rede de canais divinamente predispostos com vista ao equilíbrio da sua vida volitiva. Este equilíbrio, longe de ser um fim em si, contrariamente ao que o cristão costuma pressupor habituado que está a um idealismo voluntarista mais ou menos exclusivo, não passa, em última análise, de uma base destinada a permitir-lhe evitar, no âmbito da contemplação pacificadora do Imutável, símbolo de serenidade e libertação, as incertezas e a turbulência do ego. Resumindo: se a atitude de equilíbrio que o Islão busca e concretiza surge aos olhos dos cristãos como mais não sendo que mediocridade calculista, incapaz de sobrenatural, também o idealismo sacrificial do Cristianismo corre o risco de ser mal interpretado pelo muçulmano, de ser por ele encarado enquanto individualismo egoístico, desdenhoso desse dom divino que a inteligência é. E, caso nos objectem que o muçulmano comum pouco se preocupa com contemplação, responderemos que o cristão médio também não se incomoda por aí além com a questão do sacrifício. A verdade é que, tal como todo o cristão acalenta no fundo da sua alma um impulso sacrificial, impulso que talvez nunca venha a assumir, também todo o muçulmano possui, por via da sua própria fé, uma predisposição para a contemplação, muito embora uma tal contemplação talvez nunca chegue a manifestar-se dentro de si, a despontar no seu coração. Mas, para lá disso, alguns poderiam contrapor que os místicos cristãos e muçulmanos, longe de serem tipos opostos, apresentam, bem pelo contrário, analogias de tal modo flagrantes que já se julgou pertinente concluir pela ocorrência de adopções, tanto unilaterais como recíprocas. A isso responderemos que, se se supõe que o ponto de partida dos sufis foi o mesmo do dos místicos cristãos, coloca-se então a questão de saber porque é que eles permaneceram muçulmanos e como é que suportaram continuar a sê-lo. Na realidade, eles não eram santos «apesar» da sua religião, mas sim «por via» dessa mesma religião. Longe de terem sido cristãos disfarçados, os Hallâj e os Ibn Arabi mais não fizeram, pelo contrário, que levar possibilidades latentes do Islão ao seu auge, tal como o tinham feito, aliás, os seus grandes predecessores. A despeito de determinadas aparências, como seja a ausência do monaquismo enquanto instituição social, o Islão, preconizando a pobreza, o jejum, a solidão e o silêncio, comporta em si todas as primícias de uma ascese contemplativa.




Quando o cristão ouve a palavra «verdade», pensa de imediato no facto de que «o Verbo se fez carne», ao passo que o muçulmano, ao ouvir esta mesma palavra, pensa a priori que «não existe qualquer divindade à margem da própria Divindade», algo que, consoante o seu grau de conhecimento, interpretará ou em termos literais, ou em termos metafísicos. O Cristianismo baseia-se num «acontecimento», o Islão num «ser», numa «natureza das coisas». Aquilo que no Cristianismo surge como um facto único, designadamente a Revelação, tornar-se-á no Islão a manifestação ritmada de um Princípio (1). Se, para os cristãos, a verdade está no facto de Cristo se ter deixado crucificar, já para os muçulmanos – para quem a verdade está no facto de apenas existir um só Deus – a crucificação de Cristo não pode, pela sua própria natureza, ser «a Verdade», consistindo a rejeição muçulmana da cruz numa forma de expressar semelhante convicção. O «anti-historicismo» muçulmano – que, por analogia, poderíamos qualificar de «platónico» ou de «gnóstico» - culmina precisamente numa tal rejeição, no fundo meramente externa, até mesmo duvidosa, pelo menos para alguns, em termos de intenção (2).

A atitude reservada do Islão, não perante o milagre, antes perante o apriorismo judaico-cristão – e sobretudo cristão – do milagre, explica-se pela predominância do pólo «inteligência». Com efeito, o Islão entende fundamentar-se na evidência espiritual, no sentimento de Absoluto, e isto em conformidade com a própria natureza do homem, a qual é aqui encarada enquanto inteligência teomorfa, não enquanto vontade que apenas espera a vir seduzida no bom ou no mau sentido, logo, por milagres ou por tentações. Se o Islão, a última das recém-chegadas na série das grandes Revelações, não se fundamenta no milagre – muito embora tenha necessariamente de o admitir, sob pena de deixar de ser uma religião -, isso deve-se igualmente ao facto de que o Anticristo «a muitos reduzirá pelos seus prodígios» (3). Ora, acontece que a certeza espiritual, achando-se nos antípodas da «inversão» produzida pelo milagre – e que o Islão oferece sob a forma de uma lancinante fé unitária, de um agudo sentido do Absoluto -, é um elemento inacessível ao demónio. Este pode imitar um milagre, mas não uma evidência intelectual, pode imitar um fenómeno, mas não o Espírito Santo, excepção feita no caso daqueles que desejam ser enganados, e que, de qualquer das formas, não possuem nem o sentido da verdade, nem o do sagrado.






Aludimos mais atrás ao carácter não histórico da perspectiva do Islão. Um tal carácter permite explicar, não só a intenção de mais não ser que mera repetição de uma realidade intemporal ou simples fase de um ritmo anónimo, logo, uma «reforma» - porém, isto apenas no sentido estritamente ortodoxo e tradicional do termo, inclusive num sentido de transposição, visto que uma autêntica Revelação é forçosamente espontânea, proveniente apenas de Deus como de facto é, sejam quais forem as aparências -, mas também noções como a da criação contínua, pois se Deus não fosse sempre Criador, autor de uma criação a cada instante renovada, o mundo desmoronar-se-ia. Ora, visto Deus ser sempre Criador, criador contínuo e permanente, é Ele quem intervém em todos os fenómenos, não havendo, pois, causas segundas, princípios intermédios, leis naturais que possam interpor-se entre Deus e o facto cósmico, salvo no caso do homem que, sendo o representante (imâm) de Deus na Terra, possui os dons miraculosos que a inteligência e a liberdade representam. Contudo, em última análise estas também não escapam à determinação divina: assim, o homem escolhe livremente obedecer ou não àquilo que Deus quer, mas «livremente» apenas porque Deus assim o quer, e isto já que Deus não pode deixar de manifestar, no âmbito da ordem contingente, a Sua absoluta Liberdade. A nossa liberdade é assim real, porém, de uma realidade tão ilusória quanto a relatividade em que se vem a manifestar, relatividade na qual não passa de um mero reflexo d’Aquilo que existe, d’Aquilo que é.

Ao fim e ao cabo, a diferença intrínseca entre o Cristianismo e o Islão surge de forma bastante clara naquilo que cristãos e muçulmanos respectivamente detestam. No caso cristão, revela-se odioso, primeiro, a rejeição da divindade de Cristo e da Igreja, depois, todas as morais que sejam menos ascéticas do que a sua, isto sem falar já da luxúria. Quanto ao muçulmano, odeia a rejeição de Alá e do Islão, pois a Unidade suprema, assim como o carácter absoluto e a transcendência desta, surgem a seus olhos fulgurantes de evidência e de majestade, além de que o Islão, a Lei, representa para si a própria Vontade divina, a emanação lógica – em termos de equilíbrio – dessa Unidade. Ora, a Vontade divina – e é sobretudo aí que nos surge toda a diferença – não coincide forçosamente com o aspecto sacrificial, podendo mesmo, conforme os casos, «aliar o útil ao agradável». Por conseguinte, o muçulmano dirá: «É bom aquilo que Deus quer» e não: «O doloroso é aquilo que Deus quer». Logicamente, o cristão é da mesma opinião que o muçulmano, só que a sua sensibilidade e imaginação tendem mais para a segunda fórmula. No âmbito do islamismo, a Vontade divina tem em vista, não a priori o sacrifício e o sofrimento enquanto penhores de amor, mas sim o desenvolvimento da inteligência deiforme (min Rûhî, «do Meu Espírito»), inteligência determinada pelo Imutável, inteligência que, consequentemente, engloba em si todo o nosso ser, caso contrário incorrer-se-ia em «hipocrisia» (nifâq), visto que conhecer é existir, conhecer é ser. Na realidade, as aparentes «facilidades» do Islão tendem para um equilíbrio – já antes o dissemos -, um equilíbrio cuja razão suficiente reside, em última análise, no esforço «vertical», na contemplação, na gnose. Numa dada óptica, devemos fazer o contrário daquilo que Deus faz, enquanto, numa outra, devemos agir como Ele: é que, por um lado, assemelhamo-nos a Deus porque existimos, mas, por outro, somos-lhe opostos porque, dado existirmos, nos achamos separados d’Ele. Por exemplo, Deus é amor, logo, por um lado, e precisamente porque somos semelhantes a Ele, devemos amar, mas, por outro, Ele também julga e tira vingança, algo que nós, precisamente porque somos diferentes d’Ele, não podemos fazer. No entanto, dado estas posições serem meras aproximações, as morais podem e devem diferir, pois há sempre lugar em nós – pelo menos, em princípio – para um amor culpado e uma justa vingança. Neste ponto, é tudo uma questão de acento tónico e de delimitação, pelo que a escolha depende de uma dada perspectiva -, antes uma perspectiva conforme à natureza das coisas ou a este ou àquele aspecto preciso dessa mesma natureza (in Compreender o Islão, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 21-25).




Notas:

(1) Também a queda – e não só a Encarnação – é um «acontecimento que é suposto poder determinar de uma forma absoluta um «ser», nomeadamente o ser do homem. Para o Islão, a queda de Adão é uma manifestação necessária do mal, e isto apesar de o mal não poder determinar o ser específico do homem, pois este jamais pode perder a sua deiformidade. No Cristianismo, o «agir» divino parece, de certa forma, suplantar o «ser» divino, designadamente no sentido de que o «agir» vem a recair sobre a própria definição de Deus. Uma tal forma de ver pode parecer algo expedita; contudo, existe aí um distinguo extremamente subtil, facto que não é possível negligenciar quando se trata de comparar duas teologias.

(2) Tal é o caso de Abû Hâtim, citado por Louis Massignon em Le Christ dans les Évangiles selon Al-Ghazzâlî.

(3) Um autor católico da «belle époque» poderia muito bem exclamar: «Precisamos de signos, de sinais, de factos concretos!» Semelhante frase seria inconcebível da parte de um muçulmano, pois, na óptica do Islão, ela surgiria enquanto infidelidade, até mesmo enquanto apelo ao diabo ou ao Anticristo, e, em qualquer dos casos, enquanto uma extravagância das mais censuráveis.

Continua