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terça-feira, 20 de novembro de 2012

Uma revolução espiritual (ii)

Escrito por Mircea Eliade








«Mas as finanças do país continuavam a constituir o problema central, e Sinel de Cordes mantinha a sua obsessão de um considerável empréstimo externo. Por desconfiança quanto à situação portuguesa, haviam falhado as sondagens feitas em Paris e sobretudo em Londres: nem o governo britânico, nem o Banco de Inglaterra, nem a casa Baring Brothers, nem os círculos financeiros internacionais estavam dispostos a correr os riscos que viam na operação. Sinel de Cordes retoma então a ideia de se dirigir à Sociedade das Nações. Praticamente, neste particular, todo o ano de 1927 é consumido em contactos e sondagens junto do organismo genebrino, e nos fins daquele ano dir-se-ia que o empréstimo seria efectuado. Falava-se em doze milhões de libras esterlinas. A opinião pública apaixonou-se pelo tema. Em sucessivas entrevistas à imprensa Sinel de Cordes mostrava-se optimista, e procurava esclarecer o país; mas fazia-o com um hermetismo que suscitava dúvidas; e, sem nada elucidar, obscurecia o problema. Delegações técnicas portuguesas deslocavam-se a Genebra. E peritos financeiros internacionais dos mais cotados, ao serviço da Sociedade das Nações, vieram a Lisboa para aprofundarem o exame do estado da tesouraria portuguesa. Do mesmo passo manifestam-se antigos políticos democráticos. Exilados em Paris, constituídos na Liga de Defesa da República, Afonso Costa, Álvaro de Castro, José Domingues dos Santos e Jaime Cortesão procuravam opor-se ao empréstimo, e escreviam à Sociedade das Nações para afirmar, como o haviam feito junto de embaixadas estrangeiras em Lisboa, que uma vez no poder repudiariam todas as responsabilidades pelo empréstimo. Cunha Leal, como Chefe da União Liberal Republicana, continuava a condenar o empréstimo também; mas fazia-o junto do governo português e perante a opinião pública nacional; e verberava os membros da Liga de Paris, que ao apelar para estrangeiros, haviam assumido atitude que considerava antipatriótica. Mas, ao fim e ao cabo, todas as conversas e negociações foram em vão. Os peritos da Sociedade de Genebra puseram as suas condições: consignação de receitas e, sendo Portugal faltoso, fiscalização externa da administração financeira do Estado português. Estremeceu de brio o orgulho ferido da nação: e Sinel de Cordes houve de curvar-se à evidência. Eram "condições de ignomínia", confessava o ministro. Mas exprimia com apego uma esperança de obter, em futuro próximo, a revisão dos termos duros postos pela Sociedade das Nações.

Oliveira Salazar acompanhava muito de perto, e com minúcia, a gestão financeira de Sinel de Cordes. (...) Mas nos começos de 1928 o professor de Coimbra resolveu dar um passo em frente, e entrar num terreno que suscitava a mais áspera celeuma: a questão do empréstimo solicitado à Sociedade das Nações. Efectivamente, a 3 de Janeiro e sempre nas Novidades, Oliveira Salazar publicava um artigo intitulado "Empréstimo externo". Não se pronunciava sobre a sua oportunidade ou conveniência: encarava somente o aspecto financeiro: mas do artigo deduzia-se a sua hostilidade ao empréstimo. Condenava a especulação política em torno do assunto: mas sublinhava a esperança de que não fosse permitida ingerência estranha na vida da Nação e de que os factos não viessem a exceder as intenções do governo».

Franco Nogueira («Salazar», I).





«Eu sou pelo nacionalismo económico mas este nacionalismo - tão moderado que para nós é condição e base da melhor cooperação internacional - nem quer dizer socialização nem caminha no sentido autárquico (que sempre considerei contrário à verdadeira economia), nem se afirma exclusivista em não aceitar ou achar boa a colaboração, aqui e no Ultramar, do capital estrangeiro. Simplesmente penso que as diferentes produções fazem parte integrante da economia nacional com o fim de serem aproveitadas em harmonia com a sua maior utilidade para a vida da população, e que é pelo menos imprudente deixar em mãos estranhas algumas das posições mestras da economia de um país. Acresce que em muitos casos - e precisamente nos mais importantes - a participação capitalista não usa desinteressar-se dos fins e da direcção do empreendimento. Eu sei que se fala muito de internacionalismo económico e de solidariedade e de cooperação entre as nações, mas não posso esquecer que, se há elementos de riqueza ou de produção que não interessam a uma economia estrangeira senão pelos benefícios do seu rendimento, outros tendem a ocupar, ainda no presente momento, dentro dessa economia, o lugar deixado vago na economia nacional. Um país que preza a independência tem de acautelar-se de criar pontos vulneráveis tanto nas suas finanças como na sua economia» (28 de Março de 1948).

«(...) O plutocrata não é, pois, nem o grande industrial nem o financeiro: é uma espécie híbrida, intermediária entre a economia e a finança; é a "flor do mal" do pior capitalismo. Na produção não lhe interessa a produção, mas a operação financeira a que pode dar lugar; na finança não lhe interessa regular a administração dos seus capitais, mas a sua multiplicação por jogos ousados contra os interesses alheios. O seu campo de acção está fora da produção organizada de qualquer riqueza e fora do giro normal dos capitais em moeda; não conhece os direitos do trabalho, as exigências da moral, as leis da humanidade. Se funda sociedades é para lucrar apports e passá-las a outros; se obtém uma concessão gratuita é para a transferir já como um valor; se se apodera de uma empresa é para que esta lhe tome os prejuízos que sofreu noutras. Para tanto o plutocrata age no meio económico e no meio político sempre pelo mesmo processo - corrompendo. Porque estes indivíduos, a quem alguns também chamam grandes homens de negócios, vivem precisamente de três condições dos nossos dias: a instabilidade das condições económicas; a falta de organização da economia nacional; a corrupção política. - Quem tenha os olhos abertos para o que se passou aqui e para o que passa lá fora não pode duvidar do que afirmei.






Como manter o Estado ao abrigo da corrupção plutocrática e as forças do trabalho ao abrigo das suas prepotências? É evidente e ensinado pela experiência que é fácil a corrupção onde a responsabilidade de poucos é substituída pela irresponsabilidade de muitos; os regimes democráticos prestam-se mais que nenhuns outros a compromissos, entendimentos, cumplicidades abertas ou inconscientes com a plutocracia. A fiscalização da administração pública por parte dos particulares e a existência da imprensa aberta à colaboração dos homens independentes contribuirão para descobrir e tornar estéreis as manobras dos interessados. Mas a forma mais fácil de manter o Estado ao abrigo da corrupção plutocrática é - não ter de ser corrompido. Quando há pouco afirmei, tratando da economia nacional, que é preferível a sua autodirecção à direcção pelo Estado, tinha em mente, além do que disse, a vantagem para a política e a administração pública em que o Estado seja tão estranho aos interesses de cada um, como atento aos interesses de todos. Mal vai quando um grande negócio, lucros avultados, especulações, preços, importações, encomendas, licenças, direitos, dependem por sistema do parecer de uma repartição pública ou da assinatura do Ministro. A simples suspeição dos particulares envenena a administração...» (13 de Janeiro de 1934).

«A Nação é para nós eterna; nela não existem classes privilegiadas, nem classes diminuídas. O povo somos nós todos, mas a igualdade não se opõe e a justiça exige que onde há maiores necessidades aí seja maior a solicitude; não se é justo quando se não é humano» (28 de Abril de 1934).

Oliveira Salazar




Uma revolução espiritual


O problema político do regime era então o seguinte: lançar as novas instituições nacionais de modo que as minorias que, até aí, em virtude da política dos partidos, resumiam pela sua actividade e as suas opiniões a vida pública de Portugal, se limitassem ao seu papel natural - permitindo à maioria da população escolher os seus próprios instrumentos de governo. Salazar sabia muito bem que os homens do velho regime continuariam a recriminar e sabotar a obra da revolução nacional, não importava quantas realizações ela somasse. Contra os seus actos de sabotagem, o regime defendia-se com a ditadura, pois: "a força é absolutamente indispensável à reconstrução de Portugal" (28 de Maio de 1922). Contra os críticos e os detractores nada havia para fazer - e nem era necessário fazer alguma coisa. A única preocupação de Salazar era que essa "opinião pública" e contínua oposição se fosse juntando aos poucos e crescentemente à voz daqueles "grupos naturais" que até aí não tinham conseguido abrir caminho, nem fazer-se ouvir. Salazar sabia muito bem que a "opinião pública" de um país não representa os sentimentos autênticos do povo. São as vozes de algumas pessoas que falam só em nome de si próprias, mas que, pelo simples facto de que as vozes dos outros não se fazem sentir, podem ser abusivamente consideradas como representando a maioria. Por isso, não lhe interessavam as objecções e os protestos daqueles que alimentavam a oposição ao regime, não porque tivessem algumas objecções a fazer, mas simplesmente porque desejavam expressamente recuperar os seus privilégios e o direito ao caos que tinham conquistado nos regimes passados. Tentou, pois, através da nova ordem do Estado, dar possibilidades de expressão a cada vez maior número de "grupos naturais" da sociedade portuguesa. Salazar sabia, em função da sua longa experiência nos círculos católicos, que havia consideráveis núcleos sociais que não contribuíam para a chamada "opinião pública". Sabia de tantas e tantas famílias trabalhadoras, de tantas associações modestas, de pessoas que cuidam do seu trabalho, de sociedades que se ocupam com a educação da juventude, de grupos profissionais, de obras de beneficência - onde dezenas de milhares de portugueses continuavam a trabalhar sem interrupção, sem que "a sua opinião" fosse registada até então pelos cafés e as redacções da Capital. Portugal é um país de agricultores e pescadores - e a voz desses agricultores e pescadores não tinha sido ouvida até aí, nas cidades, nas praças públicas. Dezenas de milhares de portugueses percorriam os oceanos, trocando mercadorias, fazendo florescer regiões novas, juntando riquezas nas colónias - mas a voz dessas pessoas laboriosas não tinha colaborado na formação da "opinião pública" portuguesa. Nessas pessoas se baseava Salazar e delas esperava a dinamização e o crescimento da revolução nacional. Mas, ao mesmo tempo, sabia que não se podiam ter muitas ilusões. Deveriam passar muitos anos até que tais grupos esquecessem os seus complexos de inferioridade semeados e alimentados por um século de liberalismo, e apreendessem a nova ordem, e ganhassem coragem, para articular os seus desejos e administrar o seu Estado.






Falando sobre a revolução mental e moral dos contemporâneos e sobre a preparação das gerações de amanhã, Salazar confessava mais uma vez a sua coerência para consigo mesmo. É verdade que essas duas preocupações - a revolução espiritual e a importância da juventude - se encontram em todo o lado no mundo contemporâneo, elas constituem a dominante do momento histórico. Mas, ao mesmo tempo, elas correspondem à vocação de sempre de Salazar. Salazar sempre acreditou na primazia do espírito, e toda a sua vida se dedicara à educação, à preparação moral e mental da juventude. Este homem que tinha sonhado ser sacerdote em Santa Comba e se tinha tornado professor em Coimbra porque se convencera que a função de pedagogo era mais urgente para o mundo moderno e mais difícil que a do sacerdote, tinha agora a oportunidade de cumprir a sua vocação na qualidade de dirigente da vida pública. É evidente que a ditadura militar não tinha apelado para ele como representante do espiritual - mas como um especialista em economia. Mas Salazar teve génio político bastante para se tornar indispensável e convencer os seus colaboradores da necessidade de uma revolução total. Sabendo muito bem o que queria e para onde ia, não se apressava em confiscar o poder nas suas mãos. Sabia que ele seria dado sem o pedir. Sabia que, construindo sempre sobre a verdade e sinceridade, trabalhando à luz do dia, se tornaria cada vez mais necessário e lhe seriam entregues cada vez mais as rédeas do comando. Mas não era isso que lhe interessava - o poder em si - mas o campo de actividade cada vez mais amplo que ganhava para realizar o seu ideal político, que era, como já vimos, um ideal espiritual.

Salazar tinha o grande privilégio de poder falar sobre a primazia do espírito depois de se ter mostrado a todo o mundo como um financeiro completo e como um homem político de grande categoria. Não falava, aliás, sobre um vago clima espiritual, sobre certas nostalgias pessoais, mas reivindicava a tradição espiritual de Portugal, que era cristã, latina e europeia. A educação religiosa não o tinha afastado do mundo, pelo contrário, ajudou-o a descobrir o valor sagrado da vida associativa. Estrutura antimística, Salazar não vacilou em afirmar que também "o Estado participa de um certo modo do absoluto", e mais tarde definirá o Estado como "um pensamento em acção". A reintegração da nação portuguesa na linha do seu destino histórico implicava não somente o regresso às unidades orgânicas (famílias) e sociais (corporações), mas também a valorização da vida no espírito cristão. Várias vezes voltava Salazar, nos seus discursos, a referir-se a esse tema fundamental: somente uma vida espiritual autêntica e fértil garantia a ordem pública, o equilíbrio social e o progresso económico. Não se acanhava em afirmar que mesmo as corporações não possuem uma finalidade exclusivamente económica mas também espiritual. Não pode ser duradouro, em qualquer nível da realidade social, se o espírito não estiver presente e activo. Falando em 27 de Abril de 1935 sobre as realizações do Governo, disse: "A garantia suprema da estabilidade da obra empreendida estava precisamente na reforma moral, intelectual e política, sem as quais os melhoramentos materiais, o equilíbrio financeiro, a ordem administrativa ou não se podiam realizar ou não perdurariam". "Se tudo se decompõe no mundo moderno, se ninguém mais acredita na palavra do vizinho, isso deve-se à mentira", escreveu Salazar. "(...) a moral deve informar toda a acção humana". "Nós podemos culpar o Estado que nos precedeu dos crimes graves - obliterar nas consciências o sentimento nacional; separar da função do governo a política, e de uma e outra a moral: ficou-se, em tais circunstâncias, sem norte e sem limitações a todos os desregramentos da vontade" (10 de Fevereiro de 1935).

Essa sede de espiritualidade não tinha, na concepção de Salazar, nada de excepcional. Ela correspondia a uma necessidade fundamental do ser humano, à necessidade da fé, "fonte inesgotável da vida espiritual". Salazar não vacilava em falar num discurso político sobre Deus e sobre a fé, porque, antes de tudo, queria ser sincero consigo mesmo - e ele era um filósofo que acreditava em Deus - e o seu discurso dirigia-se aos portugueses como tais, não à humanidade em geral, e para Salazar, os portugueses são eles mesmos quando levam em consideração a sua estrutura espiritual e a sua tradição por excelência cristã.


Evidentemente, confessando sempre a verdade, não escondendo as dificuldades e obstáculos, lembrando que o homem real é totalmente diferente do cidadão das ideologias liberais, pedindo sempre esforços e sacrifícios, nunca encorajando a comodidade ou o compromisso - a obra de Salazar não poderia ser sempre agradável para todos. "Não escondo nem diminuo as dificuldades desta política que não explora paixões e se dirige às qualidades mais nobres dos homens" (27 de Abril de 1935). Mas ele não tinha a vocação de um ditador que sabe animar as massas e constrangê-las desencadeando paixões fortes. Não apelava aos sentimentos veementes. Os seus discursos mais perturbadores eram sempre longamente meditados, escritos com dignidade e lidos com a mesma voz de professor. "Professor desterrado na política, tendo feito do governo sobretudo e apesar de tudo um pouco de magistério, tendo feito constante apelo sobretudo e apesar de tudo à força e à nobreza do espírito (...)", confessou ele em 28 de Janeiro de 1934, dirigindo-se a uma Associação Escolar (Associação Escolar Vanguarda).

"Professor desterrado na política", continuando, porém, a ser professor, recusando-se a trair a sua vocação de ensinar os outros, de criar e de educar. Salazar nunca abdicou da seriedade e da honestidade do professor. Continuou a falar a verdade com a mesma probidade, não renunciou a qualquer uma das suas convicções fundamentais, não se apropriou de nenhuma das superstições do homem político. O milagre não era que um tal professor, que não queria abandonar qualquer uma das asperezas da sua carreira, tivesse sucesso no campo político - o milagre era que se permitisse a um tal professor actuar, com poderes de ditador, na política. No fundo, tal como várias vezes Salazar confessou, as suas ideias políticas nada tinham de extraordinário, muitas delas já tinham sido formuladas, algumas já aplicadas em outros países. Extraordinário era o facto de uma pessoa que confessa a sua convicção em tais ideias ser chamado, mesmo assim, a tornar-se o ditador de um País: sem ter em seu redor uma multidão e um mito que o impusessem, sem dispor de qualquer atributo de dominador de massas, sem voz de tribuno, sem gestos sublimes, sem inspiração profética. Realmente, o que são os discursos de Salazar - textos longamente meditados, escritos com calma, falados moderadamente - ao lado da inesgotável oratória de um António José de Almeida? Como se atrevia esse sábio a falar às massas com o mesmo vocabulário e o mesmo timbre de voz com que falava aos estudantes de Coimbra, às massas histéricas pelo verbo frenético de António José de Almeida?!...

Apesar de tudo, Salazar ousava permanecer ele mesmo: um ditador que não esquecia que era português, cristão e professor, um ditador que considerava a sua ditadura como um "sacrifício" feito pela nação: "Uns após outros os anos vão passando e sempre nos ombros frágeis de alguns homens a mesma cruz pesada (...)". Não sabia fazer política de outra maneira a não ser como lhe ditava a sua consciência. Colocou sempre à frente as realidades em que acreditava: Deus, primazia do espírito, Portugal, família. Ditador sem querer, fez da ditadura o que tinha feito até aí do magistério: um instrumento de aperfeiçoamento moral e intelectual das jovens gerações. Era revolucionário não porque se tinha tornado o chefe de um regime político, mas porque sempre tinha sido revolucionário. Sempre, desde que tinha descoberto a família como elemento indissolúvel da Sociedade, e não o indivíduo; desde que se tinha convencido que as ideologias liberais ou socialistas são ineficazes porque não são verdadeiras e são construídas em cima de abstracções; desde que tinha ousado falar sobre o sentido da fé cristã, num País cujos dirigentes tinham prometido "exterminar" o cristianismo em duas gerações; desde que teve a ousadia de afirmar que as coisas pequenas e bem feitas são as únicas que podem mudar a face do mundo; desde que não se acanhou em aparecer com o manuscrito da sua conferência diante do auditório, começando a falar um português simples, forte, por vezes áspero, mas sempre preciso, levando até ao excesso o respeito pela matriz exacta. Esta linguagem de Salazar, é ela mesma um acto de "reintegração" na tradição clássica de Portugal, porque, sem cair em preciosismos, é uma língua que os contemporâneos tinham deixado de escutar há muito tempo, desde que intervieram na vida pública os oradores e os jornalistas. Salazar volta à prosa forte do início do século XIX, que escrevia e falava às pessoas acostumadas ao respeito pela palavra, pessoas que se esforçavam sempre por expressar o que pensavam. Sem dúvida que a prosa de Salazar provocou no início perplexidade, tal como tinham produzido as suas ideias, o seu estilo de vida, a sua sobriedade, os seus silêncios, a falta de floreados, de ênfase e de ironia. Um homem que não brincava, não podia ser inteligente; um homem que não falava, não podia ser simpático: um ditador que pedia economias, não podia ter génio político. Confundia, exasperava - mas ele continuava a ocupar-se do seu trabalho. Sabia o que queria e para onde ia: ou seja, sabia que, no fim, as realidades se tornariam evidentes para todos. A revolução precisava, antes de mais nada, da continuidade do regime, por isso Salazar continuou a acreditar na ditadura e a sustentá-la. E não somente por não ter dúvidas de que a continuidade que a ditadura garantia permitiria ao processo histórico desenvolver-se à vontade, tornando evidentes a todos as realidades vislumbradas e anunciadas por ele.


Cristão, bom português e professor, do mesmo modo que o era quando foi chamado para equilibrar o orçamento do País, do mesmo modo entendeu fazer a revolução nacional: sob a primazia da espiritualidade, sob a tradição latina e lusitana. A ajudá-lo, estava, como já vimos, o momento histórico, que tinha acabado com as diversas formas do demoliberalismo e apenas permitia duas orientações: o comunismo ou a reintegração na tradição nacional. Mas a estrutura moral de Salazar contribuía muito, além do seu génio político, para a valorização desse momento histórico. Porque Salazar tinha uma estrutura moral que não admitia qualquer compromisso espiritual com o mundo velho. Era um homem acostumado a falar verdade, e da sua parte ninguém podia esperar qualquer transigência. O mundo velho encontrava-se em decomposição, e não se justificava conservar alguma coisa dele: nem as agradáveis ilusões, nem as comodidades teóricas, nem a atitude irónica diante da vida, nem o pessimismo elegante, nem a esterilidade moral. "Tenho-me esforçado quanto posso por arrancar a vida nacional a preocupações mesquinhas, a pequeninas coisas sem real valor, para dar-lhe horizontes largos, dignidade, elevação, nobreza. Tenho trabalhado por substituir à tristeza da decadência, ao espírito das lutas intestinas, às guerras do "alecrim e mangerona", o amor da terra e da gente, a alegria da vida sã, o ideal do progresso pátrio, do brio português, da grandeza da Nação" (29 de Julho de 1933). A tristeza da decadência era o clima moral de Portugal do início do século, quando tinham frutificado todos os desesperos e as autoflagelações dos poetas, todas as visões sombrias dos novelistas, todas as apologias do pessimismo e do niilismo que tinham sido urdidas pela geração de Coimbra e os outros centros de fosforescência inventiva da segunda metade do século passado. Mas todas essas coisas bonitas, tristes e inúteis - eram agora coisas mortas, pertencendo a ciclo concluído. Portugal vivia agora um outro momento, uma outra revolução, que começava por um regresso às coisas vivas, simples e fundamentais. Num País de devaneios preguiçosos, musical perda de tempo - Salazar trabalhava dezasseis horas por dia e incentivava, forçava os seus contemporâneos a trabalhar. "Fez-nos a Providência o dom de tornar o trabalho necessário e felizmente, por mais que se progrida e se acumule, sempre há-de ser preciso trabalhar para viver; se não os homens morreriam de tédio numa atmosfera de vício" (26 de Maio de 1936). "A vida é séria", lembrava-lhes uma vez (28 de Abril de 1934). Isto não quer dizer, evidentemente, "o luto da tristeza, o pessimismo, o desânimo". Significa, simplesmente, que "as coisas sérias devem ser tratadas com seriedade". E a revolução é um caso sério. "Eis porque as pequenas conspirações de passeio, os planos de revolucionários desempregados, os projectos que dão a felicidade e a abastança quando forem publicados no "Diário", e os ministérios dos amigos, e as combinações de parentela, e a partilha dos lugares, e a criação do caos donde sairão depois, espontâneas, a ordem e a luz, deixam à margem as profundas realidades nacionais e não passam em geral de jogos infantis, de pequeninas tragédias familiares, sob o olhar vigilante dos pais". Salazar exigia seriedade até dos seus adversários políticos, que acreditavam que podiam derrubar um regime revolucionário por simples conjuração de café concerto...

"Temos de olhar com calma, mas com firmeza, para a desorientação do momento, e pôr na defesa do interesse de toda a colectividade pelo menos a energia e a decisão com que outros pretendem impor-nos o interesse do seu grupo, do seu partido, da sua classe, ou simplesmente os triunfos das suas ideologias desvairadas", aconselhava em certa época Salazar (30 de Dezembro de 1930). Esse estímulo de calma e firmeza aparece como tema principal nos seus discursos. São virtudes viris, latinas. São, especialmente, virtudes da juventude. "A negação, a indiferença, a dúvida, não podem ser fontes da acção - e a vida é acção", dirigiu-se Salazar à juventude (em 28 de Janeiro de 1934). A escola deve cultivar nas novas gerações "o orgulho e a glória de sofrer". E, com a sua costumeira franqueza, acrescentou: "Os tempos vão excessivamente duros. Quando, ao considerar as tempestades presentes e as que ensombram o futuro próximo, eu vos digo que sois a geração sacrificada, a geração do resgate, alguns de ânimo menos valoroso ou menos preparado sentem que alguma coisa rasga a delicadeza da sua alma e não se furtam a repetir a frase do Evangelho. São duras estas expressões. Sem dúvida, mas são verdadeiras.

Constantinopla


"Quando Roma foi tomada pelos bárbaros e com ela caiu o Império do Ocidente, muitos dos mais altos espíritos não puderam formar a ideia da vida no futuro que começava e não foram superiores à impressão de que findar o Império Romano era acabar a sua civilização e que o fim desta era o ocaso do mundo. Quando os turcos tomaram Constantinopla e puseram ponto final ao Império Romano do Oriente; quando o fortalecimento do poder real provocou a queda do feudalismo e os reis, apoiados no povo e na pequena burguesia, travaram batalha decisiva contra os poderes políticos da nobreza; quando mais modernamente ainda se libertou grande parte do trabalho manual pela abolição da escravatura; sempre enfim que fortes abalos na marcha do mundo produzem alterações fundamentais ou substituem inteiramente certos conceitos básicos da vida política, económica e social, muitos são os que vaticinam a vida efémera das coisas novas ou, a durarem, o fim do mundo. É, de facto, o mundo que desaba, não o mundo exterior - os homens e o planeta - mas o mundo das nossas ilusões, dos nossos desejos, dos nossos interesses, das nossas posições, das nossas ideias, das nossas relações com o semelhante.

"Tem-se dito e repetido que assistimos a uma das grandes viragens da história: estamos presenciando, estamos realizando as transformações sociais de que há-de nascer o mundo novo. Fazêmo-lo por nossas mãos, não contrariando o sentido geral da corrente, mas todos vêem que a obra é amassada em lágrimas, em sacrifícios, em sofrimentos de toda a ordem, mas sobretudo morais. Os tempos tranquilos da vida fácil, de ideias incontestáveis, de ordem imperturbada, de negócios correntes, de trabalho assegurado - e até de ócio assegurado - são findos".

Admirável página de filosofia da história e de ética viril. Nunca Salazar falou com tanta ênfase como neste discurso dirigido à juventude. Adivinha-se a emoção do educador decidido a nunca e nada esconder àqueles que estava a preparar para a vida, falando-lhes abertamente sobre a difícil luta de resgate que o destino lhes tinha reservado nesta "grande transformação da história". Salazar evita, como sempre, falar sobre as alegrias da vitória, sobre as recompensas da revolução vitoriosa. Como de costume, apelava às virtudes viris, à alegria de vencer os grandes obstáculos, aos contentamentos severos do trabalho bem feito. Era uma concepção máscula, militar, romana da existência; a paixão calma de estar a cumprir o seu dever, de viver na vertical, de aceitar com serenidade o destino, sem pedir recompensas, sem esperar o descanso. Essas virtudes devem ser cultivadas e promovidas entre a juventude, não só para a preparar mais eficazmente para o momento histórico que lhe foi destinado, mas também para assegurar a realização total da revolução. "Hoje como então se exige espírito novo para fazer a revolução nacional (...) e espírito novo é mais fácil encontrá-lo em novos que em velhos", afirmou Salazar em outra ocasião aos estudantes portugueses (14 de Agosto de 1935).



Oliveira Salazar e Óscar Carmona



Embora seja assim, há velhos com espírito mais jovem que muitos jovens, acrescentou Salazar; ao fazê-lo, não esqueceu que a revolução era devida ao General Carmona, que sempre assumira todas as responsabilidades e não vacilou, quando as circunstâncias o pediram, em lhe confiar o poder (in ob. cit., pp. 166-172).


sábado, 17 de novembro de 2012

Uma revolução espiritual (i)

Escrito por Mircea Eliade




Marechal Carmona e Oliveira Salazar


«Dentro das linhas gerais da nossa ordem constitucional está este pensamento: juntar-se ao progresso económico indispensável a restauração e desenvolvimento de valores espirituais.

Durante longas décadas, que abrangem as primeiras do presente século, o materialismo teórico ou prático pôs a política, a administração, a ciência, os inventos, a escola, a vida individual e colectiva preferentemente ao serviço das preocupações ligadas às riquezas e às sensações. Se não pôde eliminar toda a influência das preocupações que tradicionalmente prendiam a evolução do indivíduo, da família e da sociedade aos bens do espírito e à solidariedade de fins superiores, não foi porque não tendesse à sua destruição, hostilizando-as e desviando todas as atenções para o que exclusivamente se refere à existência física. Mostrou a experiência, dolorosamente, ser esse caminho o melhor para fazer surgir multidões de egoísmos mais fortes que a providência de governos normais, para desencadear lutas internas e externas, convulsões de violência nunca vista, que ameaçam sepultar os homens em nova barbaria.

(...) Temos de trabalhar e de favorecer a acção dos que trabalham para a justa compreensão da vida humana com os deveres, sentimentos e esperanças derivados dos seus fins superiores, com todas as forças de coesão e de progresso que nascem do sacrifício, da dedicação desinteressada, da fraternidade, da arte, da ciência, da moral, libertando-nos definitivamente duma filosofia materialista condenada pelos próprios males que desencadeou. É aí que está a verdade, o belo e o bem - vida do espírito. Não só isso: está aí a garantia suprema da ordem política, do equilíbrio social e do progresso digno deste nome» (26 de Maio de 1934).

«Não nos seduz nem satisfaz a riqueza, nem o luxo da técnica, nem a aparelhagem que diminua o homem, nem o delírio da mecânica, nem o colossal, o imenso, o único, a força bruta, se a asa do espírito os não toca e submete ao serviço de uma vida cada vez mais bela, mais elevada e nobre. Sem nos distrair da actividade que a todos proporcione maior porção de bens e com eles mais conforto material, o ideal é fugir ao materialismo do tempo: levar a ser mais fecundo o campo, sem emudecer nele as alegres canções das raparigas; tecer o algodão ou a lã no mais moderno tear, sem entrelaçar no fio o ódio das classes nem expulsar da oficina ou da fábrica o nosso velho espírito patriarcal.

Duma civilização que regressa cientificamente à selva separa-nos sem remissão o espiritualismo - fonte, alma, vida da nossa História. Fugimos a alimentar os pobres de ilusões, mas queremos a todo o transe preservar da onda que cresce no mundo a simplicidade da vida, a pureza dos costumes, a doçura dos sentimentos, o equilíbrio das relações sociais, esse ar familiar, modesto mas digno da vida portuguesa - e, através dessas conquistas ou reconquistas das nossas tradições, a paz social» (15 de Abril de 1937).

Oliveira Salazar






«Não podiam já ser disfarçados os sintomas de desagregação geral. Era exacerbado o descontentamento de todas as classes sociais. A grande burguesia, a alta finança, os homens de negócios, as pequenas e médias empresas, não confiavam nas instituições e nos políticos. Retraíam-se os investimentos; fechavam-se os circuitos económicos; e os capitais procuravam salvar-se na fuga para o estrangeiro. Estava também em crise a classe média. Multiplicavam-se as falências; a constante quebra da ordem pública e os assaltos a estabelecimentos constituíam pesadelo permanente; e a paralisia do comércio afectava todos os sectores. Clamavam de insatisfação o operário, o camponês, o modesto funcionalismo. Era generalizada a escassez de subsistências; subiam os preços; novas doutrinas sociais alimentavam a revolta dos espíritos; muitas indústrias limitavam a sua laboração a 2 ou 3 dias por semana; e a administração, de emperrada e inepta e corrupta, era impotente para resolver os problemas individuais e gerais. Parecia que se presenciava o desfazer de uma sociedade.

No plano político, estava desautorizado o parlamento. Além de morosos, dir-se-ia serem incompetentes os deputados; degradavam-se os debates até ao insulto pessoal, ao pugilato, ao bater das carteiras; e grupos revolucionários enchiam as galerias para coagir os representantes do povo. Em plena câmara, um deputado dizia para outro: "V. Ex.ª está a berrar mais do que eu!" Ramada Curto, espírito chistoso e bem-humorado, lançou um aparte expressivo aos colegas: "Os senhores não executam as partes cantantes. Fazem o acompanhamento! Aqui não se admite o rabecão grande. Acabou-se a brincadeira!". E noutro momento, numa síntese séria: "é necessário que se faça a urgente revisão da constituição para que se não continue na esterilidade que tem caracterizado estes 15 anos de República, que se não recomendam nem pela obra administrativa nem pela obra legislativa". Estavam desprestigiados os homens públicos. Era vasta a distância a que se encontravam, no plano moral e no plano intelectual, daqueles que haviam feito a República; e achavam-se continuamente envoltos em escândalos financeiros, caciquismo político, compadrios, ódios pessoais. E estavam desmanteladas as estruturas básicas da sociedade: a polícia, amedrontada; a imprensa, segundo Ribeiro de Carvalho, encontrava-se sujeita ao "regime vexatório de censura prévia e da apreensão"; e, pelo que respeitava à magistratura, afirmava Cunha Leal em Março de 1926 que "os juízes eram mortos a tiro e à bomba". E resumia: "a sociedade estava aterrada".

Em primeiro plano, da esq. para a dir.: Oliveira Salazar, Gomes da Costa e o Marechal Óscar Carmona.


Reflectia-se muito particularmente no Exército a situação crítica. Sinel de Cordes, vulto prestigioso, em sucessivos artigos no Século analisava o estado de carência das instituições militares. Nestas, grassava a indisciplina, a impreparação, o aviltamento, a miséria do material e do pessoal. Jorge Botelho Moniz escrevia um volume documentando as acusações. Mas o ponto alto dos clamores do Exército foi atingido pelo discurso que Gomes da Costa proferiu perante Vieira da Rocha, ministro da Guerra, no acto de posse deste. Começou o antigo comandante do CEP por dizer: "Impõe-me a minha graduação o dever de dirigir a V. Ex.ª algumas palavras em nome dos oficiais aqui presentes e se presume representarem todo o Exército. Não tendo, porém, conversado previamente com eles eu desconheço o que eles pensam acerca desta convocação que a repartição do gabinete se não esquece de fazer sempre que um novo ministro toma posse do cargo e que pela sua frequência e imposição não tem outro significado mais que o simples cumprimento duma ordem banal. Creio bem que, por isso mesmo, deve V. Ex.ª, que sempre tem sido um soldado, sentir como todos nós a inutilidade e até mesmo o ridículo de uma cerimónia que só se justificaria pelo entusiasmo suscitado após um alto feito militar, mas que em circunstâncias normais tão vexatória é para V. Ex.ª como para nós". Ao sarcasmo fez Gomes da Costa seguir a dureza. "V. Ex.ª, que não é a primeira vez que exerce o cargo de ministro da Guerra, deve saber do miserável estado do Exército, desprovido de organização, desprovido de instrução, desprovido de material, absolutamente incapaz de oferecer uma resistência séria". E continuava cauterizando a ferida: "Poderá parecer estranho que tendo nós recebido ordem para apresentar cumprimentos a V. Ex.ª, cumprimentos que a tradição impôs como afirmação de passividade imbecil e conformação com o estado de inércia mental a que nos têm reduzido, eu quebre essa norma chamando a atenção de V. Ex.ª para a falta de preparação militar do país; mas, senhor ministro, eu entendo que o meu dever como soldado, que me orgulho de o ser, consiste precisamente em dizer o que penso, para que ao derrocar-se esta nacionalidade se não diga que tendo uma oportunidade de chamar a atenção do governo para a miséria militar da Nação eu a deixei escapar por comodidade ou cobardia". E, clamando por reformas, concluía lançando ao ministro um repto: "Tem V. Ex.ª o coração colocado bem no seu lugar e de forma a poder encarregar-se dum tal papel? É o que resta ver"».

Franco Nogueira («Salazar» I).




Uma revolução espiritual






"O mal vem de longe!..." teria podido dizer Salazar, exactamente como tinha exclamado outrora Dom Carlos. Mas era um mal que, pelo menos, já não exercia qualquer fascinação. Oitenta anos de liberalismo e vinte anos de demagogia republicana promoveram uma série de conceitos e criaram uma porção de instituições que, pela sua simples duração, tinham esgotado a própria essência e tinham gasto o seu prestígio. O movimento de 28 de Maio, assim como a investidura de Salazar com poderes ditatoriais, foram revoluções acontecidas depois de quase todas as formas históricas geradas pelo liberalismo e pelo republicanismo se acharem esvaziadas.("Quase todas", porque a última etapa, o comunismo, não se tinha conseguido realizar em Portugal). A felicidade de Salazar foi ter sido chamado bastante tarde para o governo, depois de todas as ideologias do século XIX haverem tido tempo bastante para dar os seus frutos, depois de o ciclo demoliberal quase ter chegado ao fim das suas últimas etapas.

O momento era propício para uma reintegração da política portuguesa no espírito da sua tradição e da sua história. Naturalmente, para as pessoas da extrema esquerda, o momento era também propício para integrar a política portuguesa noutro ciclo, supra-histórico, e não há dúvida que, se não tivesse acontecido o movimento de 28 de Maio e não tivesse aparecido Salazar, Portugal teria conhecido - com resultados e duração imprevisíveis - uma revolução comunista. Era a consequência lógica, necessária, da revolução começada no século XIX - e que se tinha desenvolvido numa contínua oposição em relação às instituições tradicionais. A revolução comunista que se teria seguido, sem dúvida, à anarquia demagógica do regime de António Maria da Silva, não teria sido outra coisa senão uma forma apocalíptica do processo de europeização a qualquer preço e de deslusitanização de Portugal, ideal sonhado pela geração de Coimbra e por todos os líderes da vida pública dos últimos anos de monarquia.

Como Salazar era católico e nacionalista, e como o movimento de 28 de Maio foi, pela sua essência, um movimento de resistência nacional - o momento histórico só podia conduzir à reintegração da política portuguesa na linha da tradição. Isto significava, naturalmente, não só uma oposição firme em relação ao comunismo - mas, especialmente, uma acção de eliminação gradual mas eficaz das últimas formas que sobreviviam, fossilizadas ou degeneradas, do espírito demoliberal. Falando em 28 de Abril de 1934 sobre o "espírito da revolução", Salazar confessou aquilo que poderia ser encontrado implícito já nas suas primeiras reformas económicas e sociais: "A ditadura nacional, atacando pela base todos os elementos doutrinários de desagregação e criando o equilíbrio financeiro que tem de estar nos fundamentos da restauração geral, veio dar condições de um amplo desenvolvimento do espírito inerente da tradição, que fez Portugal nascer, crescer, brilhar e tem a virtude de lhe dar solidez e perpetuidade". E mais adiante fala sobre a continuação da tradição histórica e sobre o novo vigor que devia insuflar às ideias e às instituições que estão nas suas bases ancestrais. Eis a revolução que se tinha proposto o movimento de 28 de Maio.



Sidónio Pais






Revolução, evidentemente, difícil de realizar. E isso devido não tanto aos elementos de oposição demoliberais e de extrema esquerda - na sua maioria comprometidos com os governos anteriores - mas especialmente aos elementos de direita, a saber, os grupos monárquicos. O paradoxo da ditadura militar era ter realizado uma revolução "reaccionária", suspendendo a Constituição republicana e anulando todas as liberdades e costumes instaurados pela República . permanecendo porém republicana. Nesta situação paradoxal encontrava-se também Salazar, começando a sua obra de restauração do espírito eminente da tradição portuguesa. Exactamente a mesma restauração tinha sido reivindicada pelo movimento integralista também, restauração esta que culminaria com a abolição da república e o regresso à monarquia. Salazar era forçado, para a realização da revolução nacional, a usar as ideias-força do integralismo, sem aderir, porém, àquela fórmula do monarquismo lusitano. "Era forçado" é, naturalmente, um modo de falar. Salazar não precisou directamente das concepções integralistas; pois tinha chegado às mesmas conclusões que António Sardinha, excepto quanto à necessidade absoluta da restauração da monarquia. A reacção contra o espírito demoliberal não começou em Portugal com Salazar, nem com o movimento de 28 de Maio. Como já vimos, só alguns anos depois da instauração da república a oposição moral e política contra o novo regime começou a manifestar-se. A diferença entre o movimento de 28 de Maio e as tentativas anteriores de derrubar o regime, é que o movimento de 28 de Maio saiu vencedor, enquanto todas as outras tentativas falharam ou se mantiveram no poder de modo efémero (o caso de Sidónio Pais). A diferença entre Salazar e todos aqueles que o antecederam, na crítica das instituições demoliberais, foi que só Salazar teve a oportunidade de realizar as suas ideias sociais e políticas. Como orientação ideológica geral, ele encontrava-se ao lado de tantos "reaccionários" que tinham criticado o espírito das instituições demoliberais.

A revolução que Salazar visava não se podia realizar com homens dos grupos monárquicos, a não ser na medida em que estes renunciassem a considerar-se homens pertencentes a um certo agrupamento. Por outras palavras, Salazar aplica, no governo e em benefício do movimento de 28 de Maio, aquilo a que se tinha proposto alguns anos antes no Congresso do Centro Católico, dirigindo-se aos monárquicos, em benefício do Centro. Nem podia ser de outra maneira. Se não podia colaborar com os homens do velho regime porque os separavam abismos ideológicos - não podia, por outro lado, colaborar com os nacionalistas monárquicos como tais, porque isso implicaria pôr em perigo a unidade da nação. Os monárquicos constitucionalistas ou integralistas eram, ou tendiam a ser, partidos - e Salazar não permitia que se dividisse novamente a família portuguesa. O seu instinto político advertia-o, desta vez também, que uma colaboração com os elementos dos partidos de direita,
constitucionalistas ou integralistas - com os quais tinha tantos pontos ideológicos comuns - teria comprometido desde o início a vitória de uma revolução autoritária. E deste modo partiu sozinho, tendo somente o apoio do exército e a confiança na fertilidade política da revolução que tinha inaugurado em 28 de Maio. Consciente de que o momento histórico que Portugal estava a viver lhe permitia uma transformação radical dos seus hábitos e das suas instituições sociais e políticas - Salazar preparava as etapas necessárias a esta transformação sem apelar aos partidos que a tinham previsto, a tinham antecipado e tinham construído os seus programas baseados nesta transformação integral da vida portuguesa. Individualmente, aceitava e mesmo encorajava a colaboração de qualquer membro destes grupos, mas não aceitava o grupo, não aceitava o passado de um colectivo político qualquer que fosse. Naturalmente, além desta razão profunda, Salazar tinha outros motivos mais para evitar a colaboração com os grupos que o tinham precedido ideologicamente. Não queria, por um lado, assumir os seus erros políticos, as suas paixões pessoais, as antipatias partidárias. E, por outro lado, esperava absorver-lhes os elementos valiosos, esgotando-lhes desta maneira a substância espiritual, anulando-os. Tomava, talvez, as suas medidas de precaução também contra uma oposição por parte da direita nacionalista-monárquica.





Paradoxal à primeira vista, a atitude de Salazar de não cooperar com os grupos que tinham elaborado programas similares de reintegração de Portugal na linha do seu destino histórico, era, porém, uma atitude normal. Salazar queria fazer realmente uma revolução, e como tal devia começar as coisas desde o início. Os apoiantes do velho regime e seus adversários - eram todos homens velhos. Tinham tomado uma atitude em relação a um estado de coisas que agora estava em dissolução. Pró ou contra - eram, porém, ligados  entre eles, por paixões, por uma conformação mental similar, por um passado comum. Essas pessoas tinham vivido; revolucionários ou contra-revolucionários, mas tinham vivido, tinham-se cristalizado numa certa estrutura, guardavam na sua alma, na sua atitude, na sua linguagem, a marca de uma época que devia ser ultrapassada a qualquer preço. Individualmente, eram pessoas de valor, que o regime dificilmente podia dispensar. Era necessário, então, serem aproveitadas e usadas. Nunca como membros de um grupo político, mas como pessoas, pessoas que deviam ser educadas no espírito da nova revolução, libertas da sua primeira formação política, integradas numa nação histórica, e não numa classe ou num partido.

Era este o problema político da revolução nacional, um processo complexo de reintegração - do indivíduo na sua unidade social, do colectivo no seu destino histórico, do espírito no seu campo próprio de manifestação. Mas isso significava fazer política, e Salazar sentia de modo tão imperioso a necessidade de esclarecer os seus colaboradores e chefes de exército para a obrigatoriedade de fazer política, que, poucas semanas depois do discurso da Sala do Risco, falou novamente, a 30 de Julho de 1930, perante os membros do Governo e os representantes de todos os distritos do País, sobre "Princípios Fundamentais da Revolução Política". O processo de reintegração acima mencionado não podia ser cumprido de um dia para o outro. Ninguém melhor que Salazar se dava conta da fatal obsolescência de uma revolução apressada e formal. Ele via, porém, sempre mais à frente, sabia o que queria e para onde ia, intuía as necessidades do momento histórico, e se nem sempre se antecipava, deixando que as realidades se tornassem evidentes para todos, nunca se cansava de as ajudar no seu processo de manifestação. Mas tudo isso era válido somente sob uma condição: que o movimento de 28 de Maio se tornasse uma revolução nacional. "Reduzir, como se tem visto, o movimento que implantou a Ditadura a uma "consideração de caserna" para que a classe militar viesse a usufruir o Poder é desconhecer as razões profundas do mal-estar geral, as tendências do nosso tempo, todas as fraquezas, abdicações, insuficiências do poder público, que estão na base daquilo a que pode chamar-se a crise do Estado moderno". Uma nova ordem está em curso em todo o mundo. Para Portugal, os princípios fundamentais da nova ordem são: a nação; o estado, que deve ser tão forte que não mais precise de ser violento; o poder executivo, exercido pelo chefe do Estado, com os ministros nomeados livremente por ele e sem depender de qualquer indicação parlamentar; e, a família, a verdadeira unidade orgânica. "O liberalismo político do século XIX criou-nos "o cidadão", indivíduo desmembrado da família, da classe, da profissão, do meio cultural, da agremiação económica, e deu-lhe, para que o exercesse facultativamente, o direito de intervir na constituição do Estado". Mas esse "cidadão" é uma abstracção. A verdadeira realidade é a família, "célula social irredutível, núcleo originário da vila, do município e, portanto, da Nação". O indivíduo valoriza-se e é criador no quadro da família e da associação profissional. "Mais uma vez se abandona uma ficção - o partido -, para aproveitar uma realidade - a associação". Pela primeira vez desde que se lhe confiou o Ministério das Finanças, Salazar falou sobre corporações, confessando desta forma a consistência do seu pensamento político, pois, como já vimos, em várias conferências feitas nos círculos católicos, Salazar tinha afirmado muitos anos antes a necessidade de construir um Estado baseado nas associações profissionais. Em resumo: "pretende-se construir o Estado social e corporativo em estreita correspondência com a constituição natural da sociedade. As famílias, as freguesias, os municípios, as corporações onde se encontram todos os cidadãos, com as suas liberdades jurídicas fundamentais, são os organismos componentes da Nação, e devem ter, como tais, intervenção directa na constituição dos corpos supremos do Estado: eis uma expressão, mais fiel que qualquer outra, do sistema representativo".




Esta é a primeira formulação dos princípios que ficarão na base da nova Constituição portuguesa, de 1933. Princípios, como se pode ver, revolucionários, porque não tomam em consideração qualquer dos conceitos políticos e morais do antigo regime: cidadão, liberdade, partido, parlamentarismo, etc. "Nós aprendemos pelo raciocínio e vimos pela experiência que não é possível erguer sobre este conceito - a liberdade - um sistema político que efectivamente garanta as legítimas liberdades individuais e colectivas, antes em seu nome se puderam defender - e com alguma lógica, Senhores! - todas as opressões e todos os despotismos. Nós temos visto que a adulação das massas pelas criação do "povo soberano" não deu ao povo, como agregado nacional, nem influência na marcha dos negócios públicos, nem aquilo de que o povo mais precisa - soberano ou não - que é ser bem governado". (...) "Ora nós queremos ser mais positivos - tanto é, mais verdadeiros na nossa política". Mais verdadeiros, ou seja, mais pertos das realidades da vida social, desembaraçados dos mitos demoliberais, libertados dos sistemas politicos criados em cima do nada e construídos sobre abstracções. Mas isso só se pode cumprir tendo o poder, mantendo-o e usando-o com sabedoria como o único instrumento da revolução nacional. "Arrancar o poder às clientelas partidárias; sobrepor a todos os interesses o interesse de todos - o interesse nacional; tornar o Estado inacessível à conquista de minorias audaciosas, mas mantê-lo em permanente contacto com as necessidades e aspirações do País; organizar a Nação, de alto a baixo, com as diferentes manifestações da vida colectiva, desde a família aos corpos administrativos e às corporações morais e económicas, e integrar este todo no Estado, que será assim a sua expressão viva - isto é dar realidade à soberania nacional".

Todas estas coisas ficariam mortas se não correspondessem a uma necessidade histórica e se não fossem vividas por aqueles que participaram na criação da nova ordem. Não é suficiente serem aceites pela nossa inteligência, dizia Salazar, mas devem ser "sentidas, vividas, executadas". Agir politicamente significa, para Salazar, viver conscientemente e executar as indicações do momento histórico. Mas a adesão a este momento histórico não pode ser somente intelectual: para frutificar, é necessário uma participação total do ser humano. Dificilmente se poderia construir alguma coisa sem "uma revolução mental e moral que aconteça aos portugueses de hoje, e sem uma atenta preparação das gerações de amanhã".

Salazar com um grupo de banqueiros por ocasião da assinatura do contrato de consolidação da dívida flutuante.


Nestes dois desideratos - a revolução mental e moral dos contemporâneos, a preparação das jovens gerações - encontram-se formuladas as condições do sucesso da revolução salazarista. Em que podia basear-se para as pôr em prática? De maneira nenhuma no exército, cuja missão era garantir a ordem interna e a continuidade do regime. Salazar também não podia esperar algo de efectivo por parte do pessoal dos antigos partidos políticos. A sua conversão à revolução nacional era possível, e mesmo desejada, mas o número dos realmente convertidos só podia ser muito modesto. Ao refundar a vida pública portuguesa, Salazar esperava ver juntar-se a ele homens novos, homens que até aí não tinham tido a ocasião de confessar a sua vontade de participar da história. Uma massa considerável, representando até há pouco tempo a maioria amorfa do País, vivendo à margem da vida política, aceitando as reformas e as contra-reformas com a mesma indiferença e passividade - podia transformar-se no mais autêntico exército revolucionário. Ela devia, porém, ser ajudada a dizer a sua palavra. Pois, desde a primeira constituição liberal de Portugal, essa massa tinha-se mantido à margem da história. A história recente de Portugal fora feita por certos grupos políticos e intelectuais, nutridos por ideais estrangeiros obcecados por transformações quiméricas. Desde que um punhado de doutrinadores e revolucionários portugueses tinham decidido a homogeneização de Portugal, a maioria do povo tinha-se contentado em suportar as suas experiências, os seus êxtases. Portugal tornou-se uma monarquia constitucional, tornou-se depois república, e poderia ter-se tornado república soviética, sem que essa massa amorfa soubesse e participasse em qualquer dessas revoluções. Há um século, a história tinha sido confiscada por um punhado de pessoas que queriam a qualquer preço ser diferentes do que eram. Salazar - como antes dele os integralistas - deu conta da esterilidade dessa imitação. "Cada vez que intentámos ser nós, e não outros, fomos construtivos e criadores, não só dentro das fronteiras, mas no mundo", confessou ele mais tarde (27 de Abril de 1935). Essa imitação não só tinha esterilizado o génio criativo português, mas manteve à margem da história quase toda a totalidade da Nação. Voltando agora às origens, restaurando as instituições tradicionais, criadas e validadas por oito séculos de história - Salazar esperava que a nação inteira pudesse mostrar a cara e pudesse manifestar a sua vontade na vida pública (in «Salazar sem Máscaras», Nova Arrancada, 1998, pp. 161-166).








Continua