segunda-feira, 30 de abril de 2018

A Revolução dos Cravos: «manicómio em autogestão» (ii)

Escrito por João M. da Costa Figueira




Jean-Paul Sartre



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Alioune Diop, o "Sócrates negro".













«O pan-africanismo ou doutrina da negritude está na base do pan-africanismo político e é também um pan-africanismo cultural. O movimento representava um esforço de revalorização da cultura africana face às outras, nomeadamente a europeia. A doutrina da negritude foi concebida por intelectuais negros franceses, tinha como orgão a revista Présence Africaine e encontrou um poderoso aliado em Jean-Paul Sartre, que na sua obra L'Orphée Noir procurou teorizar as bases da doutrina como fundamento da revolta dos africanos contra a Europa».

João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).



«Lá estão vocês a inventar revoluções».


Resposta do ministro da Defesa, Silva Cunha, quando foi informado às 00:20 de 25/4, de que uma coluna militar tinha saído de Santarém...


«Correu auspiciosa a tomada de posse de Marcello Caetano como presidente do Conselho de Ministros, envolta numa atmosfera de destendimento e esperança. Durante largos anos, Caetano tinha tecido a sua teia de apoios e ia começar a dispô-los nos principais lugares. Tentou liberalizar o país, embora com passos comedidos e seguros - a tal "evolução na continuidade" - e tentou desenvolver a economia do país de forma a reflectir-se numa melhoria das condições sociais da população (o "Estado Social"), o que conseguiu.

Liberalizou o regime dando ordens para que houvesse uma maior tolerância na censura, cujo nome acabou por mudar para "exame prévio"; permitiu o despontar de formações políticas, como a SEDES e a "Ala Liberal", tentou revitalizar e modernizar a União Nacional, que crismou de Acção Nacional Popular; permitiu o regresso do exílio ao bispo do Porto e a Mário Soares, ainda antes das eleições de 1969, e "suavizou" a actuação da PIDE, que rebaptizou de DGS.

No entanto, relativamente ao problema maior que o país tinha em mãos, a defesa do Ultramar, nunca se conseguiu perceber muito bem aquilo que pretendia ou que desejava fazer. Tentou criar uma via intermédia entre os ortodoxos do regime - conhecidos na gíria popular como "ultras" - e a oposição dita democrática, com óbvia exclusão do PCP.

Porém, não conseguiu consolidar uma força autónoma e acabou por ir desagradando a todos, o que, numa escalada dolorosa para o próprio e dramática para o país, acabou por o deixar quase isolado e sem saber o que fazer. Algumas "ingenuidades", quase inverosímeis, marcaram também o seu percurso. Eis, em síntese, as principais etapas deste "calvário".

Começou por reabilitar o grupo de personalidades que tinham entrado na "Abrilada" de 1961, a quem, aliás, tinha estado ligado. Deste modo, Costa Gomes foi logo promovido a general e Almeida Fernandes foi para presidente do Conselho de Administração da CP.

Outra das medidas tomadas por Marcello Caetano foi proibir a PIDE, quando mudou o seu nome para DGS, de desenvolver qualquer acção contra o PCP. [Dados obtidos em entrevista ao inspector António Capela, da DGS, em Março de 2008]. Não por acaso, foi precisamente nessa altura que ocorreram vários atentados e sabotagens de certa gravidade, como foi o atentado à bomba contra o navio Cunene, no porto de Lisboa (Outubro de 1970); o triplo atentado no mês seguinte, em Lisboa, contra a Escola Técnica da DGS, ao Centro Cultural Americano e aos armazéns do Cais da Fundição; em Março de 1971, destruição de cerca de uma dezena de aviões e helicópteros na Base Aérea de Tancos; no mês seguinte, desapareceu o navio Angoche, ao largo de Moçambique, o que causou 23 desaparecidos. Estas acções foram desencadeadas pela Acção Revolucionária Armada, embora também se tenham verificado muitos atentados provocados por outros grupos e focos de agitação social. Ao fim de oito meses, a ordem foi revogada.

No seu primeiro discurso, a 17 de Novembro de 1968, na Assembleia Nacional, Marcello Caetano introduziu alterações de semântica e usou de ambiguidades que fizeram nascer dúvidas no ideário da defesa ultramarina e na justeza das razões até então defendidas.

Durante a campanha eleitoral de 1969, Marcello referiu-se à "progressiva autonomia" das províncias ultramarinas, o que abriu fissuras no seio do regime e, na sequência disso, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, demitiu-se. Com efeito, o discurso onde essa ideia foi avançada, proferido a 27 de Setembro de 1970, caiu mal entre os indefectíveis do Estado Novo. A sua análise da situação em África mostrava que o novo chefe do Governo estava disposto a abandonar um conjunto de valores que eram precisamente os pilares que sustentavam a defesa do Ultramar. Não surpreende por isso que os conservadores se tenham afastado definitivamente e que não tenha agradado aos "progressistas" e liberais, que o acusavam constantemente de ficar aquém das expectativas.






Durante a revisão constitucional de 1971, que fixou a autonomia progressiva das províncias, Angola e Moçambique subiram à categoria de Estados e todos os territórios passaram a dispor de orgãos electivos de governo próprio, o que convenceu os meios internacionais de que o governo português pretendia mudar a sua política ultramarina. No entanto, estas medidas foram mal recebidas nos meios conservadores, o que obrigou Marcello Caetano a inflectir à direita no discurso comemorativo dos 45 anos do 28 de Maio, em Braga.

Entretanto, começaram os equívocos com Spínola. Em 1972, era necessário eleger o Presidente da República. Houve discussão, mas ninguém parecia ter coragem de substituir o almirante Tomás, que já levava 14 anos no cargo. Chegou a pensar-se em Spínola (isso talvez tivesse evitado o 25 de Abril), embora sem grande convicção, o que a avaliar por aquilo que se passou mais tarde não teria sido muito prudente. Ainda assim, consideramos um erro grave de avaliação não se ter sentado outra pessoa em Belém. Do mesmo modo, dever-se-ia ter preparado as coisas - se bem que isso fosse um gesto arriscado para os defensores do regime - para que a eleição do Presidente da República voltasse a ser feita por sufrágio directo e universal.

As eleições legislativas realizaram-se em 1973. A oposição reuniu em Aveiro, onde a política ultramarina foi atacada sem piedade. Houve distúrbios. Os liberais, por sua vez, também se reuniram e fizeram uma viragem à esquerda. Pela mesma época, o Congresso dos Combatentes reuniu no Porto, com o objectivo de insuflar novo ânimo e levar a cabo novas acções tendo em conta a luta que estava a ser travada, um encontro que foi mal recebido pelo governo. Marcello Caetano estava cada vez mais isolado.

A partir de 1973, a agitação nas Forças Armadas começou a aumentar e as relações político-militares complicaram-se. Para o agravamento da situação nos quartéis contribuíram decisivamente duas questões: numa conversa entre Marcello Caetano e António de Spínola, à data governador da província da Guiné, onde a situação militar se tinha agravado (em resultado da transferência do esforço da acção socioeconómica da área do Chão Manjaco para sul, mas agora para bater militarmente o PAIGC), este último terá aventado a hipótese de se encetarem negociações com o PAIGC. O chefe do Governo recusou formalmente a proposta, dizendo-lhe que "para defesa global do Ultramar, é preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra, do que por um acordo negociado com os terroristas, abrindo o caminho a outras negociações".

Spínola não terá digerido bem a resposta de Marcello Caetano e uma vez mais começou a circular nas Forças Armadas o "fantasma" de Goa, Damão e Diu, cuja derrocada militar provocara um grande mal-estar em 1961.

A segunda questão teve que ver com a falta de candidatos às academias militares, na verdade as instituições que alimentavam as fileiras dos quadros permanentes, sobretudo nas armas combatentes. Essa situação obrigou a uma multiplicação de comissões nos teatros de operações, por parte dos oficiais do quadro permanente, o que originava, naturalmente, um grande cansaço físico e psíquico (embora fizesse parte das vicissitudes da profissão), mas também um deficiente enquadramento das tropas (o número de unidades aumentava desproporcionalmente aos quadros), o que obrigou a recorrer mais frequentemente aos oficiais milicianos. Com o tempo pensou-se inclusivamente em facultar o acesso de milicianos com o curso liceal e com experiência de campanha às escolas militares e assim reforçar os efectivos do quadro permanente. No início, estes oficiais faziam o curso normal da Academia Militar e entravam na escala hierárquica à esquerda dos oficiais oriundos de cadetes do mesmo ano. No entanto, como este artifício não resolveu o problema da falta de efectivos, foi criado um curso especial, mais acelerado, e permitiu-se que os oficiais que o concluíssem fossem integrados no quadro permanente com a antiguidade de miliciano, ultrapassando assim muitos oficiais oriundos de cadetes. Esta medida estava contemplada, em termos sintéticos, no decreto 353/73, de 13 de Julho. O diploma foi imediatamente criticado por uma grande parte dos oficiais de carreira, sobretudo capitães, tendo muitos deles enviado exposições através da cadeia hierárquica. Ao mesmo tempo que o governo tentava corrigir a matéria através do decreto 409/73, foi redigida contra o decretos uma exposição colectiva de oficiais em serviço na Guiné. O governo convenceu-se que se tratava de uma manobra concertada e começaram a circular rumores de um movimento de capitães. Resultado: as regras da disciplina começaram a ser desafiadas. No fim do ano, o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, o general Costa Gomes, apresentou ao chefe do governo as reclamações que lhe tinham feito chegar.

A opinião pública pouco se apercebeu do que se estava a passar. No entanto, os acontecimentos precipitaram-se. O "movimento dos capitães" transformou-se rapidamente e as reivindicações corporativas assumiram um pendor político, onde pontificavam as ideias-mito que assaltavam a sociedade da altura e que foram inoculadas e espalhadas nos meios castrenses através dos oficiais milicianos oriundos dos meios académicos, onde tais ideias estavam mais arreigadas e que iam ao arrepio da permanência portuguesa em África e dos princípios em que se baseava o Estado Novo. Viviam-se os ideais da fraternidade, do amor livre, da paz mundial, da sociedade da abundância e do bem-estar para todos; as ideias progressistas na Igreja estavam na moda, que muitos associavam, ao Concílio Vaticano II; fala-se na necessidade do diálogo, do pacifismo, do desarmamento e da ilicitude de qualquer guerra, etc.



Papa Paulo VI









Juntamente com o movimento dos capitães, havia novidades nas forças políticas hostis ao governo. Segundo algumas informações, tinha sido assinado um pacto entre socialistas e comunistas, no sentido de condenar em conjunto a permanência de Portugal fora da Europa. Foi então que surgiu a exigência da "solução política" para o problema ultramarino, o que, obviamente, significava entregar o poder aos movimentos independentistas, e no mais curto espaço de tempo. É de crer que muitos dos oficiais envolvidos nas conspirações que levariam ao derrube do governo e do regime não se apercebessem destas movimentações e muito menos das consequências que resultariam da sua acção.

Marcello Caetano estava cansado e desgostoso dos homens e da vida. A 11 de Março de 74 pediu a demissão ao Presidente da República. Este demorou três dias a responder-lhe, mas a verdade é que não procurou alternativa (tendo morrido o prof. Salazar, o velho almirante - pessoa, aliás, de excelente compleição moral - não estava preparado para ser o "número um"). Limitou-se a convidar o presidente do Conselho de Ministros para um café, na sua residência, onde lhe disse que estavam os dois juntos naquilo e que agora era tarde para mudar. Outro erro.

Marcello Caetano, aparentemente sem saber o que fazer, concebeu um plano em que iria inventar uma crise para sair da crise: um conflito entre o ministro do Ultramar e um governo de uma província (Angola), que seria agravado artificialmente e que resultaria numa declaração unilateral de independência! Tinha-se entrado no desvario! Em seguida, apareceu o livro de Spínola, que terá recebido mais inputs de outros do que do próprio, com ideias requentadas, que jamais seriam aceites por quem nos combatia -, e, por isso, não resolveria nada - e cuja autorização para publicação foi dada sem aparentemente ninguém o ter lido, baseado num parecer do general Costa Gomes, que há mais de 20 anos ia passando entre os intervalos das crises que cruzava, dando uma no cravo e outra na ferradura. Uma história que parece muito mal contada.

Enfim, o resto é conhecido: intentona frustrada nas Caldas, a 16 de Março; convocação dos oficiais-generais para uma sessão de apoio ao chefe do Governo e da política ultramarina; demissão dos generais Costa Gomes e Spínola (que se recusaram a estar presentes); Grândola Vila Morena a 25 de Abril. Entre as Caldas e Abril foram presos três oficiais. Outra história incompreensível. A explicação (não exaustiva) encontra-se num artigo intitulado "Uma missão (quase) impossível". [Publicado na revista Macau, II série, n.º 56, de Dezembro de 1996]. O tenente-coronel Mariano Tamagnini Barbosa foi encarregado de uma missão secreta em Macau, em Fevereiro de 1974. Como precisava de um passaporte diplomático especial foi levantá-lo à sede da DGS, em Lisboa. O subdirector da polícia, Barbieri Cardoso, estranhou o caso e quis saber o que se passava. A certa altura da conversa, o subdirector disse o seguinte: "Já que o senhor coronel me parece boa pessoa e pertence à Força Aérea onde o meu irmão é médico, deixe-me dar-lhe um conselho: vá para onde for, não volte tão cedo a Portugal, fique por lá, se regressar encontrará o seu país irreconhecível, dominado por comunistas". Depois, prosseguindo num tom de voz cada vez mais exaltado, declarou: "O responsável por essa desgraça é esse f. da p. do Marcello Caetano, que não permite que metamos na linha esses seus colegas capitãezinhos, que andam para aí a conspirar e a fazer reuniões para derrubarem o regime. Nós estamos a par de tudo, sabemos o que dizem, o que planeiam e onde se reúnem, mas esse canalha do Marcello é que nos dá ordem para não actuarmos.

"É preciso ter paciência e compreensão para com essa juventude", diz-nos. Nós estamos manietados, não podemos fazer nada. Com o doutor Salazar era diferente, ordenava-nos logo "dêem uns abanõezitos nesses garotos e ponham-nos na ordem".

Note-se que este episódio se passou no dia 2 de Março de 1974, a menos de dois meses do 25 de Abril, o que mostra bem como a DGS estava por dentro do "movimento dos capitães" e Marcello Caetano devidamente informado.

Aquelas palavras foram premonitórias e se juntarmos a todas as peças deste puzzle ainda mal ajustado o facto de Marcello Caetano se ter recusado a seguir para Monsanto no 25 de Abril, como estava previsto, obrigando o agente da DGS que o foi buscar a casa a levá-lo para o Quartel do Carmo, onde recusou a fuga (que era possível e que lhe foi proposta) e se obstinou em receber Spínola; de se saber (por exemplo) que este não iria acabar com a DGS, apenas substituir o director pelo inspector Coelho Dias, seu condiscípulo do Colégio Militar; o facto ainda de ninguém ter dado ordens e assumido a condução das operações para conter o golpe em curso, etc., tendo tudo isto em conta, pode concluir-se, sem grande margem para erros, que o então chefe do Governo "desejaria" o golpe ou que, no mínimo, não estava disposto a anulá-lo e, nesse caso, teria havido alguma forma de entendimento com Spínola (ficaria Marcello Caetano como Presidente da República e Spínola como presidente do Conselho de Ministros?). [Marcello estava, aliás, preocupado com um possível golpe de "ultras", encabeçado pelo general Kaúlza de Arriaga (uma das principais figuras que fizera abortar a "Abrilada" em 1961!), tendo chegado a dar instruções à DGS para o vigiar. De facto, houve algumas movimentações na área mais conservadora do regime, que foi habilmente esvaziada após uma denúncia pública do então major Fabião, numa reunião no Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços, em 17 de Dezembro de 1973].






M47 leais ao regime vs. blindados da EPC, na Rua do Arsenal.



Feytor Pinto e Nuno Brito partem de jipe para a residência de Spínola com mensagem de Marcello Caetano.



25 de Abril de 1974: Quartel do Carmo






No entanto, a vaidade de Spínola, que só encontrava paralelo na sua falta de preparação política, como aliás se viu na longa série de equívocos e desencontros que nos últimos anos marcaram as suas relações com Marcello Caetano e as pressões e contradições existentes no Movimento das Forças Armadas, que o general do monóculo nunca dominou ou influenciou maioritariamente, a sua vaidade, dizia, ditaram a saída rápida do presidente do Conselho de Ministros para o Funchal e dali para o Brasil. Fim de história e início de outra».

João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).


«(...) julgo justo e exacto afirmar: a revolução começou por ter um âmbito muito restrito quanto à sua origem e objectivos, que se diriam quase disciplinares e de grupo; dado o estado em que se encontrava a sociedade portuguesa, todavia, forças políticas e ideológicas exteriores logo compreenderam a oportunidade que podiam aproveitar ou provocar, e tomaram em mão um processo que foi rapidamente conduzido sem que a massa do povo português se apercebesse do que se passava».

Franco Nogueira («Juízo Final»).


«Nesse dia [25 de Abril] do ano de 1974, um golpe de Estado militar alterava pois drasticamente o rumo histórico nacional, tomando o poder com o duplo objectivo expresso (Programa do MFA) de restaurar a democracia e de promover a auto-determinação do Ultramar português.

Mas em 28 de Setembro do mesmo ano, com a resignação de Spínola e com a ascensão do sector revolucionário e marxista do Movimento das Forças Armadas, principiava a desfiguração daquele Programa inicial e começava a eliminação pessoal dos partidários da auto-determinação referendada e da democracia pluralista, lançando-se ao mesmo tempo uma operação de lavagem ao cérebro do povo português ou de agressão ideológica maciça, de proporções entre nós nunca vistas.

Em 11 de Março do ano seguinte, no seguimento de uma estratégia já experimentada com êxito noutros lugares, como a Checoslováquia e a Hungria, o mesmo grupo em fusão, assenhoreando-se dos postos-chaves do Governo, das Forças Armadas e dos Meios de Comunicação Social, estabelecia os fundamentos da Revolução comunista e do Estado totalitário, criando uma força policial-militar de repressão, o Copcon, encerrando os Partidos e os jornais sumariamente classificados de reaccionários e fascistas, efectuando prisões em massa sem culpa formada, realizando vertiginosamente a nacionalização de toda a Banca e das principais empresas e unidades industriais, precipitando ocupações de terras no Alentejo, criando unidades colectivas no modelo dos Kolkozes russos, organizando por todo o lado sovietes ou comissões de trabalhadores, de moradores, de soldados, de marinheiros, etc., ao mesmo tempo que lançava uma ofensiva de grande estilo contra a democracia "burguesa", aconselhava ostensivamente o voto em branco nas prometidas eleições para a Assembleia Constituinte e mais tarde deixava que os deputados fossem sequestrados dentro da própria Assembleia, por uma multidão manipulada e bem enquadrada.

Tudo isto foi possível devido à erosão do regime anterior, como já sublinhei, nomeadamente devido à despolitização, à impreparação e à inocência intelectual da maioria dos portugueses, ao que é preciso acrescentar os complexos de culpa, o oportunismo e o medo de muitos dirigentes políticos e militares que, não sendo comunistas, fizeram contudo o jogo comunista, tornando-se assim cumplíces conscientes ou inconscientes de uma tentativa totalitária que ia destruindo completamente o país e cujos efeitos foram de qualquer modo catastróficos. Efectivamente, numerosos foram os socialistas liberais, os sociais-democratas, os tecnocratas, os funcionários públicos, os cristãos-progressistas e os oficiais da Forças Armadas ontem conservadores, liberais ou patriotas, que aceitaram de braços cruzados ou até sancionaram uma política de terra queimada destinada patentemente à colectivização do país, à instauração de uma ditadura do proletariado e a uma descolonização sem referendo, sem garantia dos interesses portugueses e sem quaisquer concessões aos nossos colonos e assimilados, esses que mais tarde foram compelidos a fugir em massa das terras que desbravaram, das plantações que semearam e das cidades que edificaram, num dos êxodos mais pungentes e aviltantes da história contemporânea».

António Quadros («A Arte de Continuar Português»).




Orlando Vitorino e António Quadros



«Fora do quadro das Forças Armadas, cujos movimentos subterraneamente dirige, o Partido Comunista na esfera civil procura apresentar-se como pessoa de bem, como um comunismo contemporizador e humanizado, diferente do do camarado Staline, que sacrificara 20 milhões de vidas humanas para criar o paraíso soviético. Usando e abusando do mesmo expediente trapaceiro, contando para o efeito com larga divulgação na Rádio, Imprensa e Televisão, num comunicado do Comité Central em que analisava o momento político, em Junho de 1974, o PC declarava textualmente: "... É particularmente importante a participação dos católicos na vida política portuguesa. O Comité Central desaprova a divulgação pelos meios de informação de massas (TV, rádio, etc.), de obras literárias, teatrais e outras que firam as crenças e sentimentos religiosos. Fomentar conflitos em torno do problema da religião só pode conduzir a divisões e confrontos no movimento popular, num momento em que a unidade é mais necessária do que nunca"...

Em 26 de Janeiro de 1975, no auge do gonçalvismo, Cunhal em entrevista a alguns jornalistas franceses, no Centro de Trabalho de Alcântara, que os jornais portugueses largamente noticiaram, voltaria ao assunto, afirmando a propósito:

"O entendimento de comunistas e católicos é também uma das realidades positivas do movimento popular e democrático. Esse entendimento tem por base o acordo quanto a objectivos essenciais e o respeito sempre demonstrado pelos comunistas das crenças e da prática de culto". [Ora, a verdade, desde Marx e Engels, mais tarde com Staline e outros ditadores do Kremlin, não é que o comunismo respeite as crenças religiosas e as práticas de culto: muito pelo contrário. O comunismo além de "intrinsecamente perverso" (Pio XI), é por essência ateísta. Assim, o poder soviético luta contra a religião. Primeiro, por meio da separação das Igrejas e do Estado; em seguida pela organização da educação anti-religiosa nas escolas e pela educação anti-religiosa das massas. Com efeito, enquanto nos países capitalistas a separação da Igreja e do Estado permite à religião que se desenvolva ampla e livremente, na União Soviética esta separação leva a religião a uma morte natural e definitiva. Só há perfídia e cinismo nas palavras do líder comunista...].

É pois com esta mise-en-scène e falseada caracterização que se processa a primeira fase da estratégia do PC, ou seja a sua participação no primeiro Governo provisório, em 19 de Maio de 1974, logo a seguir à proclamação do general Spínola como Presidente da República.

No número de reaparição do "Avante!", orgão do Partido Comunista Português, em grande formato, e fora do regime de clandestinidade, publicado em 17 de Maio, aparentando uma força e um poder que não correspondiam a qualquer realidade - escrevia-se em tom de advertência: "A não-participação dos comunistas no Governo Provisório (seja porque o PCP recusasse, seja porque se formasse uma coligação com exclusão dos comunistas) comprometeria irremediavelmente o prosseguimento do processo de democratização. Provocaria sem qualquer dúvida sérias divisões no movimento democrático"... Este "papão" seria abusivamente utilizado pelo PC».

João M. da Costa Figueira («25 de Abril: A Revolução da Vergonha»).


«Em cada dia que passava maior era a confusão no País, onde tudo se desmoronava, levando a crer que a estratégia conduzida por mão oculta estaria orientada para a chamada "terra queimada". Surgiria então a mão salvadora que evitaria o naufrágio completo mas da qual ficaríamos eternamente credores e dependentes.

Tinha vivido na Alemanha, em 1968, a dramática Primavera de Praga, em que a voz do povo que se levantou contra a opressão de Moscovo, foi prontamente esmagada pela força demolidora das armas, fazendo silenciar aquela gente que apenas pretendia um pouco de liberdade. Os alemães constituíram de imediato um "gabinete de crise" onde a evolução da situação na capital da Checoslováquia era permanentemente avaliada e medidas concretas tomadas a fim de prevenir quaisquer reflexos na RFA. Neste Gabinete, os adidos militares dos países da NATO eram, com frequência, postos ao corrente da situação e participavam na discussão da atitude soviética que em nada surpreendia o Ocidente e, apenas, reforçava a convicção de que estavam absolutamente determinados a prosseguir na sua estratégia. Dentro do seu "espaço" não havia dúvidas de que toda e qualquer tentativa para se libertarem de Moscovo seria, de imediato, neutralizada pela força. Fora deste espaço, seriam aproveitadas todas as insastisfações, reais ou forjadas, em qualquer parte do mundo, para intervirem prontamente sempre no apoio dos desprotegidos contra os senhores do poder ou do capital. De forma insidiosa mas firme, iniciava-se o processo de conversão dos "insatisfeitos" a potenciais agentes ou forças subversivas onde, naturalmente o vocábulo "comunista" não tinha cabimento para, sem levantarem suspeitas, mais facilmente e sem receios aliciarem os descontentes. Assim nasciam os gérmens que, bem orientados, iriam produzir os seus frutos dentro da estratégia definida.






























A Cambada. Ver aqui


Tudo isto, naquela altura, povoava os meus pensamentos e começava a preocupar-me, não em termos pessoais mas nacionais. Continuava totalmente fora do processo, procurando apenas manter-me bem informado. O que não era nada fácil, graças à autêntica hecatombe que desabara sobre quase todos os sectores da vida nacional. Num ápice as cadeias foram esvaziadas dos seus inquilinos, independentemente das razões que os tinham levado até lá e, quase no mesmo instante, foram novamente ocupadas por outros hóspedes, mesmo sem culpa formada. Pura e simplesmente, as pessoas eram escorraçadas das suas funções porque tinham servido o regime derrubado no 25 de Abril, por vinganças pessoais, por poderem constituir obstáculos ao andamento do processo ou por qualquer outro fundamento infundamentado. Quem não se recorda dos célebres mandados de captura em branco do COPCON? Tudo era possível e já nada nos surpreendia! Desconhecia em absoluto que entre os militares, os meus camaradas de armas, houvessem tantas "competências", tanta gente politicamente esclarecida nos mais diversos campos de actividade pública. Todo o aparelho do Estado, em pouco mais de um mês, mas principalmente após a queda do primeiro-ministro Adelino da Palma Carlos, surge totalmente controlado pelos novos senhores do poder, os "capitães" do MFA segundo as directrizes emanadas de forças ocultas de acordo com os planos previamente estabelecidos. Tudo parecia acontecer por mero acaso como que duma forma totalmente anárquica, ditada pelas forças de circunstância. Puro engano, pois não podiam deixar de se inserir dentro duma estratégia que visava a tomada do poder por outras forças, pregadoras das amplas liberdades e da democracia. A insegurança da grande generalidade das pessoas e dos seus bens aumentava em exponencial. Falava-se na fuga para o estrangeiro de personalidades ligadas ao antigo regime que ainda não tinham sido presas e da saída de capitais. Era o "salve-se quem puder".

Entretanto estabelecem-se relações diplomáticas com os países do Leste, entre as quais se deve salientar a União Soviética que em 11 de Junho abriu uma embaixada com mais de trezentos, digo trezentos, funcionários, tendo à frente o senhor A. Kallinin que, curiosamente, tinha estado anteriormente no Chile a "instalar" Allende e em Cuba a orientar Fidel de Castro. Corria que se tinham apresentado com um verdadeiro exército do KGB, todos falando correctamente o português!

Outro factor bem significativo e não menos preocupante, traduzia-se no controlo, por elementos do MFA, de todos os níveis de comando nas estruturas das Forças Armadas. Ignorava-se quem mandava e o pânico instalara-se um pouco por toda a parte, pois só num dia foram saneados cerca de quarenta oficiais generais e uns tantos metidos na prisão sem culpa formada.

Das Províncias Ultramarinas as notícias eram escassas, sabendo-se que os governadores-gerais haviam sido demitidos e substituídos por entidades, aparentemente, da confiança dos novos senhores do poder. Apesar de tudo chegavam sinais de alguma inquietação com perturbações em algumas unidades militares, enquanto no sector civil as greves e manifestações faziam a sua aparição. Parecia, no entanto, que tudo estava muito mais tranquilo que cá por cima, embora se sentisse que, com as palavras de ordem que entretanto surgiram de "nem mais um soldado para a guerra" e os impedimentos ao embarque de novas forças militares no aeroporto do Figo Maduro, se procurava interferir na problemática ultramarina. Com uma certa frequência se ouvia que o 25 de Abril ainda não tinha chegado às colónias, que certamente não escapavam à estratégia global montada pela revolução.

O novo primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, removia todos os obstáculos levantados pelo seu antecessor, visando um controlo total do aparelho do Estado pelos revolucionários, e o PREC surgia em toda a sua força. Conhecia-o de Angola quando o Gen. Costa Gomes desempenhava as funções de comandante-chefe, tendo a ideia de que se tratava de uma pessoa moderada, tecnicamente capaz e colaborante. Quanto me havia enganado! Ainda hoje recordo perfeitamente como o Rosa Coutinho descrevia a forma como o tinham instalado no poder. Após a demissão de Palma Carlos, foram propostos vários nomes ao presidente da Repúblicam Gen. Spínola, que, por uma ou outra razão, real ou fictícia, foram sistematicamente rejeitados. Até que um dos homens do MFA diz para o Presidente, quando uma solução não parecia fácil de encontrar:

- E se perguntássemos ao Coronel Vasco Gonçalves?

- E ele vai aceitar?

Os proponentes saíram do gabinete, entrando quase de imediato com o futuro primeiro-ministro. Posta a questão, naturalmente que a sua resposta foi afirmativa visto que a sua entrada para estas funções também constava dos "planos". Dizia então o Rosa Coutinho com o eterno sorriso triunfante: "Quando montámos a ratoeira ao Spínola, o Vasco Gonçalves estava mesmo ali atrás da porta, aguardando a nossa chamada". Foi o relato feito pelo próprio, cerca de um mês mais tarde, já em Angola. Era uma das vitórias das muitas batalhas da "guerra" em que estavam empenhados.


Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho e o 'Almirante Vermelho' (Rosa Coutinho).




António de Spínola e Costa Gomes. Ver aqui



Mas, face a todo o panorama que se desenhava aos olhos dos portugueses, interrogava-me com frequência quais tinham sido as verdadeiras determinantes do 25 de Abril e os seus objectivos concretos. No imediato, parecia claro que as "amplas liberdades" repetidamente apregoadas pelos novos detentores do poder não passavam duma miragem no horizonte de todos aqueles que se atreviam a mostrar a sua discordância face à ordem revolucionária instituída pela novel força política, onde grassava a anarquia, a incompetência, a sede de vingança e o desprezo pelos mais elementares direitos dos cidadãos. Todos os pretextos eram válidos para se atingir na sua dignidade um qualquer português que decidisse não alinhar com a ordem instituída. E não podia deixar de recordar algumas das conclusões a que se tinha chegado na Alemanha durante a já referida Primavera de Praga e, mais concretamente sobre a expansão da chamada "mancha vermelha" por onde a oportunidade da situação o aconselhasse ou os responsáveis do "outro lado" vislumbrassem quaisquer hipóteses de êxito, mesmo parcial».

General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).


«Sobre o refugiado caiu a maldição de um povo ingénuo e bom, mas instrumentalizado nas mentiras do "25 de Abril".

Tarde, demasiadamente tarde, os portugueses da Metrópole se aperceberam da burla, em cuja voragem os "heróis" (que não o foram em África) sumiram a Nação, a sua História, a sua Economia. E compreende-se. Andar na mata ou na picada, enfrentar o inimigo, aguentar emboscadas e meses de isolamento em climas insalubres, não é para todos. Permanecer no Maiombe, tendo, sobre si, a ameaça da floresta e dos homens, só o aceitaram os militares com espírito de missão.

Lamentavelmente, eu que fui, oficial, tenho de reconhecê-lo: não foram os soldados, não foram os rapazes das "berças", que iam às "sortes" e festejavam, nas suas aldeias, a honra de terem sido "apurados para todo o serviço", de ingressarem nas fileiras, os que se cansaram, os que se queixaram, os que se arrependeram de a farda que vestiam, atrair perigos e visões cruentas - a face mais feia da Humanidade, que é a guerra. Foram outros - os que enveredaram pela carreira das armas, que frequentaram a Academia Militar, talvez porque os seduzisse passear no Chiado de talabarte e esporas, talvez porque as continências dos subordinados lhes mitigassem frustrações e vaidades, talvez porque a "tropa" era emprego antecipadamente garantido, com ordenado certo e nada que fazer - que, a pretexto de ditaduras e baseando-se em sociologismos de alcova, deram o golpe. Não por patriotismo. Não por amor ao próximo. Não consciencializados pelo estudo da posição de Portugal no Mundo, pela justiça ou injustiça da guerra ultramarina. Deram o golpe por cansaço, por cobardia, porque, ao entrarem na Academia Militar, antiga Escola de Guerra, a guerra estava fora das suas cogitações.

Entre combater guerrilheiros perseverantes, treinados e corajosos, do PAIGC, do MPLA, da FRELIMO e assustar os pombos do Rossio com o troar dos carros de assalto (a cair aos bocados), não havia que hesitar. Imperioso, se quisessem salvar a pele, era achar uma bandeira, um slogan, a que se aferrassem, a mezinha que lhes soltasse os intestinos e impedisse que fossem exautorados na praça pública. Havia que puxar pela imaginação. A democracia, a anti-ditadura, a fraternidade dos povos - tanto fazia, contanto que ficasse garantida uma aparência de dignidade.

A fraternidade dos povos!... Seria de rir, se não escorressem as lágrimas.

Fraternidade em relação a quem? Foram fraternos os revolucionários do "25 de Abril" para os brancos do Ultramar, para os negros do Ultramar, para os povos do Ultramar? Protestaram contra o fuzilamento, contra o enforcamento dos que foram condenados, em Angola, na Guiné e em Moçambique, pelo crime de terem combatido a seu lado? Mais correctamente: assassinados porque os tinham defendido? Tiveram um gesto? Rezaram uma oração? Não terão saudades e remorsos lembrando os leais militares negros que confiaram nas Forças Armadas Portuguesas e a elas pertenciam?

(...) É o povo quem o afirma, na sua filosofia simples: "com papas e bolos se enganam os tolos". Os oficiais-combatentes comemoram as papas e os bolos dos companheiros de falinhas mansas, de ar circunspecto, de argumentação insistente, que lhes assopravam aos ouvidos segredos e intrigas palacianas. Confundidos, caíram na esparrela. Se tivessem pensado, se lessem, mesmo em "diagonal", as folhas de serviços dos mentores da revolução, certo que outro "cantar" seria o seu.

Souberam das razões porque Spínola recambiou Vasco Gonçalves da Guiné para Portugal? Conheciam as "tropelias" de Vítor Alves, na Academia Militar e no Leste de Angola? Informaram-se da austera vida do capitão Tomé, em Nampula? Interrogaram-se do comportamento de Melo Antunes em São Salvador do Congo? Admiraram a valentia de Fabião e de Rosa Coutinho, o aprumo do abstémio Vítor Crespo, a inteligência do Otelo?

Estou em crer que não. Os oficiais-combatentes, agora pejorativamaente chamados operacionais, tinham mais que fazer: tinham que justificar os galões que usavam nos ombros; que andar no mato; que lutar; que dignificar os postos que ocupavam. Foram eles os ingénuos que colaboraram na tragédia - de que se arrependem e que estão a pagar.

Infelizmente, com eles, por eles, pagaram e pagam milhões de portugueses. Os de lá e os de cá, "engolidos" pelos militares de opereta, pelos comunistas e criptocomunistas, engodados com a isca da (falsa) democracia.

Duplamente pagaram e pagam os de lá, os africanos, os que vieram e os que ficaram ao cimo ou debaixo da terra. Os refugiados não trouxeram milhões. Ninguém os quis receber. Todos os rejeitaram. Irmãos na desgraça não são da mesma família. Quando muito, são vagos parentes, que chegam inesperadamente, à hora da refeição e, pelo aumento do número de bocas, tem de se fazer o caldo mais aguado. Malditos sejam por isso. Que se quedassem por África e estoirassem - de fome ou com um tiro na cabeça. Que não viessem sobrecarregar as despesas da Metrópole. Que não viessem comer as côdeas e os ossos que podiam dar-se aos cães».






Parada do BC12, nos trágicos primeiros dias de Junho de 1975. O helicóptero evacua feridos para Luanda e vêem-se, ao fundo, "refugiados" à espera de melhores dias.



Refugiados de Carmona na parada do BC12, com o 1.º cabo Emanuel Miranda dos Santos, em Junho de 1975.



Um helicóptero a aterrar na parada do BC12, em Carmona. Ao fundo, um grupo de refugiados civis. À direita, algumas das suas viaturas.






Fuga e debandada de Angola: Costa dos Esqueletos















"Retornados" e suas bagagens em Belém (1975).

















Afirmou António José Saraiva, destacado antifascista, no semanário "Liberdade", de 5 de Maio de 1976: "Diz-se e escreve-se que eles (retornados) eram exploradores, brutais, ávidos de lucros, criminosos de delito comum, culpados de si mesmos (...) Esses que apontam os crimes dos retornados - que fizeram, durante vidas inteiras senão aproveitarem-se dos ditos crimes? Como foi possível a vida parasitária da maior parte da população portuguesa durante séculos, senão às costas do preto, accionado pelo colonizador? Donde vinha o café e o açúcar que se consomem ainda hoje abundantemente nas pastelarias de Lisboa? Donde vinha o algodão barato que permitia a tantos operários e patrões sustentarem-se de fabriguetas primitivas? Donde vinham as tonelas de ouro que faziam do escudo uma moeda forte, permitindo, com uma indústria deficiente e uma agricultura rudimentar, sustentar legiões de funcionários improdutivos? Todos somos responsáveis pela política de Portugal, em África, prosseguida com tenacidade desde os fins da monarquia, objectivo prioritário da primeira república, a que se dedicavam homens como Mariano de Carvalho, Brito Camacho e Norton de Matos. Os retornados não são mais do que boomerang do império que todos nós fomos. O retorno que nos atinge em cheio é a arma que o nosso braço lançou. Os retornados, com que o País foi solidário enquanto foram prósperos, são uma acusação viva lançada à cara da nação inteira. Uma dupla acusação. Em primeiro lugar, porque o fenómeno dos retornados é o resultado de uma política de descolonização cuja torpe inércia é tão profunda quanto o arranque das descobertas foi deslumbrante. A página da descolonização não foi menos sangrenta que a da expansão; só que foi um pântano podre, enquanto a outra foi fogo que alumiou a Terra (...) O ódio racial aos retornados a pretexto dos seus crimes é apenas uma maneira de a nação portuguesa querer ilibar-se dos crimes por que toda ela é absolutamente responsável. É um caso típico de bode expiatório. E lança uma viva luz sobre o mecanismo do racismo. Trata-se de discriminar uma parte da nação, lançando sobre ela o odioso dos males colectivos. O retornado é o cristão-novo dos nossos dias. Serve para o resto do povo imacular a sua consciência; convencer-se de que nada tem que ver com os malefícios e os abusos da colonização. Serve também para desviar as atenções dos erros cometidos em nome da nação: se eles retornaram é porque são inteiramente maus e porque a descolonização foi um fracasso vergonhoso. E servirá para desculpar outras inépcias que vão cometer-se... O racismo nasce fundamentalmente dessa necessidade de limpeza de uma dada comunidade. Nós portugueses pecamos puros, porque as culpas foram desse punhado de "criminosos". E se eles, tiveram de retornar, a culpa não é dos responsáveis dessa sangrenta e lamacenta descolonização: não, a culpa é dos retornados, culpados de si mesmos, como já foi escrito (...) Os retornados chegam no momento em que precisamos de uma desculpa para o maior fracasso da nossa História e de um objecto para cevar a nossa frustração irremediável".

António José Saraiva fez, em palavras, o verdadeiro retrato do povo português, ante a original descolonização. A "vanguarda revolucionária" do "25 de Abril" proporcionou ao País e às próprias Forças Armadas, uma tranquilizante lavagem ao cérebro.

Os refugiados são acusados de tudo. Muitos responsáveis pela governação permitem e auxiliam a intoxicação da opinião pública. Arenga-se nos jornais, na Rádio, na Televisão, nas ruas e praças, para desviar as pessoas da trágica realidade. Membros do MFA, alguns depois ministros, bradam, histérica e sistematicamente, que não se poderia chegar à democracia sem passar pela descolonização. Que nenhum povo é livre, quando oprime outros povos. Lava-se o povo no banho da culpa colonial. Forjam-se mitos. Inventam-se cambiantes. Mudam-se as tácticas, de um tipicismo caracterizadamente comunista e comunizante. Assim se vai destruindo o País. E o refugiado transforma-se em mexilhão... empurrado, espoliado, banido, na senda de um calvário de que não se descortina o termo.

A entrega de Angola, da forma como foi realizada, leilão de bens pilhados, tornou Portugal mais pequeno e mais pobre. Sem o aval do Ultramar, o País definhou. Como Povo "fazedor de nações", deitou fora a expansão da indústria, da agricultura, do comércio, da cultura.

Os refugiados "exploradores" ergueram obra que dignifica, engrandece e redime um país.

Segundo os dados fornecidos pelo Gabinete do Secretário de Estado dos Retornados, departamento do Ministério dos Assuntos Sociais, os valores deixados só pelo sector empresarial são os seguintes:































Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«(...) Portugal é hoje um país empobrecido, muito para além da realidade aparente. Abandonámos o Ultramar, simplesmente, sem negociação; e estamos endividados para gerações. Repito: para gerações. Isto basta para nos aterrar, para nos alarmar».

Franco Nogueira («Juízo Final»).







«Um jornalista estrangeiro da época classificou a situação em Portugal metropolitano de "manicómio em autogestão". Como classificaria esse mesmo jornalista a situação em Angola? Que se passava de facto naquela terra maravilhosa, de gente simples e alegre mas completamente confundida, desorientada, amedrontada e que uns tantos abutres abocanhavam para devorar o melhor bocado».

General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).





A Revolução dos Cravos: «manicómio em autogestão»



(...) Franco Nogueira


O embaixador e antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, por seu lado, ao tempo do anterior regime, marcou igualmente uma posição clarividente na análise dos vários problemas da política externa do País, nas assembleias de todo o mundo. A sua inteligência e cultura, o exacto e perfeito conhecimento dos problemas e das situações, o seu espírito realista e acendrado patriotismo - permite considerá-lo, com inteira justiça, uma das individualidades de maior evidência na vida portuguesa dos nossos dias.

Tal como o Prof. Oliveira Salazar (...), também Franco Nogueira seguiu coerentemente um pensamento político que se inseria profundamente nas coordenadas do interesse nacional. As palavras que vamos transcrever, são exemplo disso e constituem a resposta à pequenez dos que demagogicamente e vazios de alma se apresentaram em 25 de Abril como «salvadores da Pátria»...

Ouçamo-lo:

«... Eu diria, antes de mais, que afirmar a inviabilidade de o homem negro se integrar na sociedade portuguesa constitui uma atitude ou posição racista. Não se pode integrar, porquê? Acaso se considerará que o negro é tão inferior que não pode «atingir» o modo de vida português? Acaso se julgará a sociedade portuguesa tão elevada e tão superior que homens de outras raças não são dignos de se integrarem naquela? A verdade é que, no plano moral como no plano sociológico, as duas sugestões são de repudiar. Não há raças que por definição sejam superiores ou inferiores, e a história diz-nos que só os países formados por raças diferentes e misturadas têm sido criadoras e desempenhado papel de relevo. Por outro lado, reparemos em que a orientação ideológica dos que negam a integração do negro africano na sociedade portuguesa é idêntica à dos que reclamam e defendem, e com razão, a integração do negro americano na sociedade norte-americana, que é de maioria branca. Em que ficamos? Por que motivo essa integração é legítima e viável num caso e não é no outro? E o Brasil: não temos aí um caldeamento de raças? Por que não será praticável conseguir o mesmo em Angola e Moçambique? Por estarem geograficamente separadas? Mas não se conseguiu já aquele objectivo em Cabo Verde? E apesar das ilhas de Hawai e do Alaska serem habitadas por chineses, japoneses, malaios, indonésios, esquimós, não foram todos integrados na sociedade norte-americana? Poderia citar muitos outros exemplos e casos. Por que há-de ser um mito no caso português? Aliás, a democracia racial é uma funda tradição portuguesa».


O «Dossier» político do Ultramar


«Quanto ao "Dossier" político do Ultramar, é constituído pelas resoluções da ONU contra Portugal e pelas notas, declarações e respostas dos responsáveis portugueses. Tudo tem sido largamente divulgado, em várias línguas, e sempre a Imprensa portuguesa deu publicidade a todos aqueles documentos. A verdade é que a doutrina portuguesa e seus fundamentos tem sido repetida e exposta em refutação dos critérios arbitrários que as Nações Unidas nos pretendem impor, e esses critérios da ONU constam dos textos das resoluções votadas contra nós. Tais textos são bem claros: exigem a retirada imediata de todas as Forças Armadas e de Segurança, a criação de partidos políticos africanos que forem indicados pela Organização da Unidade Africana, o reconhecimento dos chefes terroristas que forem escolhidos pela mesma organização e a entrega do governo aos mesmos, depois de um processo organizado e supervisado pela ONU. Alguém de boa-fé terá dúvidas sobre os resultados inevitáveis a que tudo aquilo conduziria? Mas tudo isto está publicado e republicado, e parece-me inconcebível que possa alegar-se desconhecimento daqueles textos fundamentais. Será inacreditável que alguém possa debater a política ultramarina portuguesa sem haver estudado as resoluções da ONU contra Portugal e como os textos são bem claros teremos de concluir que os que recomendam a nossa anuência às decisões das Nações Unidas aceitam as consequências da aplicação de tais textos: a entrega do Ultramar.



Sede das Nações Unidas em Nova Iorque



Mário Soares apresenta à ONU a entrega do Ultramar português, na pele de ministro dos Negócios Estrangeiros (23 de Setembro de 1974).



Costa Gomes na ONU (Outubro de 1974).



Melo Antunes na ONU (1975).



«Com a ONU apenas seria viável negociar o «calendário» da entrega do Ultramar» (8)


(...) «Ora, o Ultramar não é negociável, e não sei de país que aceite compromisso sobre direitos nacionais. Por outro lado, temos de compreender que a ONU não é um orgão de negociação firme e final. Suponhamos que se chegava a um qualquer arranjo ou acordo com a ONU. Pensar-se-á que era final e definitivo? Seria ingénuo acreditá-lo. Nos termos do regulamento da Assembleia, esta pode "sempre" reabrir todo o qualquer problema por decisão de simples maioria. Um acordo a que chegássemos numa sessão da Assembleia, e desde que a não satisfizesse completamente, seria posto em causa na sessão seguinte; e assim, de compromisso em compromisso e sempre para "apaziguar" a ONU, cederíamos em tudo. Estávamos a praticar a política da organização de Nova Iorque e não a nossa. Tal atitude filia-se numa doentia tendência nacional para pensar que os princípios e as doutrinas "dos outros" é que são bons, e que a eles devemos confiar a protecção dos nossos interesses. Não: com a ONU apenas seria viável negociar o "calendário" da entrega do Ultramar, e mesmo assim sob condição de que a entrega fosse feita num período de meses muito curto».


«Em torno do fenómeno ultramarino se estabeleceu sempre a unidade nacional»


«A nossa História diz-nos que é precisamente em torno do fenómeno ultramarino que se estabeleceu sempre a unidade nacional, e que é o Ultramar que tem suscitado os grandes movimentos colectivos. Há mesmo quem sustente que a preocupação de salvar o Ultramar ajudou a impulsionar a revolução de 1640: a tese é lançada, por exemplo, por Jaime Cortesão. E já neste século [XX] o fenómeno se produziu. Basta ler textos de grandes vultos da I República, Augusto Soares, António José de Almeida, João Chagas, Teixeira Gomes, Brito Camacho, Bernardino Machado, e muitos outros, todos tinham a peito a defesa ou integridade do Ultramar. Não se disse, aliás, que foi para o defender que o País entrou e se bateu na Primeira Grande Guerra? Estes argumentos são de natureza histórica, e são válidos, mas não precisamos de nos socorrer deles para verificar que o Ultramar é a realidade que permite estruturar um autêntico movimento de base nacional - porque o Ultramar é que dá um sentido de destino colectivo e nos autoriza a ter uma ampla visão de progresso e de desenvolvimento» (Entrevista concedida a João Coito, para o «Diário de Notícias», em 1969).

São igualmente do embaixador Franco Nogueira as palavras que se seguem, proferidas em Abril de 1970, na Assembleia Nacional, e que não deixam também de se revestir do maior interesse e actualidade:

«Acaso alguém pensará que, amputados e cingidos ao território europeu, seríamos pelo menos mais prósperos?

A realidade básica da Nação Portuguesa é constituída pelo indissolúvel conjunto de Metrópole e Ultramar. É este conjunto que a todos nos dá a força económica, o potencial estratégico, a dimensão política. Acaso alguém pensará que reduzidos à Metrópole seríamos no Mundo o que realmente somos? E acaso alguém pensará que, amputados e cingidos ao território europeu, seríamos ao menos mais prósperos? Só podem julgar assim os que, há pouco chegados, e impressionáveis perante noções abstractas, e insensíveis a outros valores que não sejam os da sua tecnocracia, e nada vendo para além de horizontes limitados - são por tudo isso incapazes de distinguir o que é artificial e efémero do que é real e permanente, e por isso, no seu deslumbramento perante frases e noções aparentemente novas, não sabem ver quanto as mesmas têm de velhas, ou como são lançadas para servir interesses e objectivos alheios. Ou então só podem julgar assim aqueles que, sem coragem para explicar o seu pensamento integral, procuram na realidade propagar e fazer aceitar opções económicas que antecipadamente sabem conduzir depois a opções políticas que se tornavam então inevitáveis: e assim, através do pretexto de um progresso e de um desenvolvimento que por essa via não conseguiríamos, se frustrariam, os sentimentos e a vontade que ainda em Outubro último a Nação bem exprimiu por sufrágio».


(...) Salazar e a Descolonização


Para finalizar quanto de realista tinha a política ultramarina portuguesa, que resistiu ao longo dos séculos, pela vontade do povo e dos governos, na monarquia e na república, entendemos transcrever alguns passos dessa magnífica e jamais esquecida comunicação do Prof. Salazar, na homenagem que Angola lhe prestou em 13 de Abril de 1966. Não está somente em causa a extraordinária peça de filosofia política, a que infelizmente nos desabituámos, mas a clareza meridiana de um pensamento perante o qual nos temos que render:

Ei-los:

«... Em primeiro lugar, correspondia à vossa determinação, a determinação de ficar. O homem que fica, vivo ou morto, ocupa de facto o território; o que abala, deserta, abandona-o. Só o primeiro, perpetuando-se por gerações, adquire um direito de ocupação e de posse que a História consagra como base da sociedade e de participação no poder. Ao outro faltam os laços que, amassando terra e sangue, prendem as gerações, a sucederem-se em corpo e alma, em trabalho e cultura; e desiste de criar algo de parecido com uma nação que possa considerar sua pátria.

Mas havia também a tragédia que avassalava, em golpes de ferocidade, o Norte da Província e imolava as suas vítimas, por força só do ódio e em nenhum outro nome que o da destruição e do caos. Tirar a vida, incendiar fábricas, inutilizar as plantações, espalhar e fazer viver o terror às gentes indefesas eram antigamente actos criminosos; hoje, constituindo uma técnica, neles assenta uma teoria da revolução que abundantemente os pretende justificar. Mas à nossa maneira, que é a maneira antiga, um governo que em tais circunstâncias não intervém para cumprir o primordial dever de garantir a segurança e a vida das populações e a integridade do território perde toda a legitimidade e a sua própria razão de ser. E como cumprimento da sua principal obrigação, não tem esse acto de ser agradecido.


Um terceiro motivo da decisão tomada derivou do modo como encarávamos o problema da "descolonização", que se desenvolvera no continente africano a partir do final da última grande guerra. Mas este ponto exigiria largas reflexões: procurarei hoje resumi-las nalgumas palavras.

Os povos africanos - refiro-me sempre aqui aos situados abaixo da orla islamizada de nações mediterrâneas - os povos africanos, dizia, tentaram a sua descolonização, recebendo liberalmente ou reivindicando a independência das nações que detinham a soberania. Raríssimos territórios ofereciam porém pela sua configuração geográfica, população escassa, traçado de fronteiras aos acasos da ocupação, riqueza do solo ou subsolo, aquele mínimo de condições de viabilidade económica que é o sustentáculo de uma sociedade com vida organizada. O atraso cultural das populações fazia que também não dispusessem tais territórios do mínimo de elementos humanos capazes de traçar o rumo da economia, dirigir o trabalho, conduzir a administração, formar os governos e os altos corpos do Estado. A independência é cara e esses povos não dispunham de riqueza que a sustentasse; a independência é dificil e esses povos não tinham o número de homens preparados a enfrentar os problemas, não digo já de um Estado moderno, mas de uma sociedade que tem de saber organizar-se para poder viver. A organização social existente na maior parte dos territórios não se elevara ainda acima de um conceito tribal, ou estritamente racista, e por si própria muito dificilmente evolucionaria de modo a criar entre as populações elos de carácter e amplitude nacional. Só nós, com a ideia tradicional de integração, temos criado, à volta da realidade portuguesa e do nome de Portugal, a coesão necessária das Provincias Ultramarinas, todas consideradas membros de uma Nação. Era assim fatal que, nos territórios estranhos à soberania portuguesa, tornados independentes por uma espécie de surto epidémico, e fosse qual fosse o mérito da obra de colonização efectuada pelos povos europeus, nós assistíssemos ao aparecimento de Estados sem o suporte de nações, e sem os meios materiais e humanos de poderem estruturar-se e progredir. E porque é preciso acima de tudo viver, surgiram então dois factos da maior relevância na vida desses povos: os subsídios sistemáticos a substituirem-se ao trabalho, a técnica e o conselheiro estrangeiros a substituirem-se ao governante local. Como o facto da independência parece irreversível, afiguram-se-me esses povos condenados, uns a uma espécie de protectorado sem título, outros à fragilidade e instabilidade institucional, abertos por isso mesmo a todas as influências ideológicas e a todas as pressões políticas.

Uma coisa não percebi ainda - é que em tais condições os dirigentes africanos protestam ao mesmo tempo contra o colonialismo e contra o neocolonialismo, porque, destruído o primeiro, não têm diante de si senão duas alternativas: ou progredir sob os benefícios do capital estrangeiro e da técnica internacional, com as inevitáveis e chocantes limitações da independência - e a isto se chama com propriedade neocolonialismo; ou resignar-se à mediocridade, senão ao regresso a formas primitivas de vida em que a pobreza, a doença, as rivalidades e lutas tribais continuarão a ser o preço de uma independência, pelo menos precipitada. A verdade é que o amaldiçoado colonialismo - sem que eu pretenda defender erros ou excessos certamente cometidos - levou a paz à África, permitiu o convívio das populações, promoveu o crescimento demográfico, dotou o continente de mais largos meios de comunicação, descobriu e explorou riquezas e pôs os seus 270 milhões de homens em contacto com a civilização cujos segredos lhes desvendou e colocou ao seu dispor. Sem dúvida, que onde não vigorara o processo de integração, isso se fez através de uma clara discriminação de raças e certa inferioridade social dos africanos negros, e tal estado de coisas havia de modificar-se um dia, por ser contra a natureza manter-se indefinidamente. Mas a via política da independência não podia resolver o problema: este só lograria solução através da ascensão gradual das massas pelo trabalho e pela educação àquele nível de onde se pode aspirar a todas as posições, e onde as diferenciações sociais não têm já razão de ser. O caminho seguido, elevando às culminâncias do mando os ódios recalcados dos súbditos dos grandes impérios, era fatal fizesse eclodir outra espécie de racismo - o racismo negro, com o repúdio e o risco de destruição de tudo o que podia constituir e constitui ainda penhor e segurança de progresso. E assim se chegou à infeliz situação actual.

A nossa resistência a aceitar o padrão generalizado baseia-se em razões históricas que formam a estrutura da Nação portuguesa e enformam a sua Constituição; e os factos, aliás derivados de razões sociológicas, encarregaram-se de justificá-la. Apesar disso ela é largamente condenada, mas ninguém pode recusar-lhe ao menos o mérito de ter dado tempo à reflexão a brancos e pretos - europeus e africanos -, de permitir o balanço dos destroços, de medir a grandeza dos recuos e atrasos, de abrandar a violência das paixões e deixar verificar por comparação a bondade relativa dos métodos. A integração política e social que sempre advogámos leva-nos - leva hoje a maior parte da gente culta - à conclusão de que os países africanos ou se organizam na base do multirracialismo ou devem considerar-se perdidos para a civilização.

Que a sociedade multirracial é possível prova-o em primeiro lugar o BRASIL, a maior potência latino-americana e precisamente de raiz portuguesa, e seria portanto preciso começar por negar esta realidade, além de muitas outras, para recusar a possibilidade de constituição social desse tipo em território africano. Por outro lado, e é outra conclusão da experiência, o próprio racismo negro tem sido levado a reconhecer a sua incapacidade de criar ou de manter uma civilização em terras africanas sem o auxílio do branco. E, não se tendo encontrado, fora da precipitação concorrencial do começo, nem sendo possível descobrir meio de despersonalizar o capital e a técnica ao serviço da África, os países africanos, não estruturalmente ligados a uma potência europeia por laços políticos, ver-se-ão obrigados a aceitar as implicações das influências de poderio que inevitavelmente decorrem da presença actuante desse capital e dessa técnica. Podem muitos propalar ou manter ilusões acerca deste ponto, mas a criação de economias nacionais que possam, tendo incorporado abundantes capitais estrangeiros, determinar-se exclusivamente pelo interesse próprio, exige estruturas políticas que os povos africanos independentes estão muito longe de possuir.

Não posso infelizmente concluir estas reflexões com uma palavra de optimismo, porque devem continuar ainda por bastante tempo as nossas dificuldades e provações. Só posso transmitir-vos uma palavra de confiança na firmeza das nossas atitudes, e ainda fazer-vos uma advertência. Embora difíceis por vezes de apreciar os motivos da lentidão e a paciência com que agimos, devemos ter presente que uma regra se nos impõe como princípio de acção: não fazer em nenhuma circunstância o jogo dos que pretendem ou pelo menos agem como se tivessem a pretensão de combater os nossos interesses legítimos e ignorar os nossos direitos».


(...) O Plano Ponomarev para Portugal


Constituído que fora novo gabinente ministerial, agora sob a chefia de Vasco Gonçalves; criado o quadro de legitimidade constitucional que permitiria acelerar o processo de descolonização pelo reconhecimento do direito dos povos dos territórios portugueses de África à autodeterminação e à independência; vivendo-se num ambiente de contestação e de anarquia laboral; quebrados todos os princípios de ordem, de autoridade e de acatamento à lei - o Partido Comunista Português achava-se nas suas sete-quintas, manobrando o processo a todos os níveis do Poder, convencido que se abrira para o 25 de Abril da traição, finalmente, a sua «estrada de Damasco»... A permanência de Spínola na presidência e, sobretudo o estado de espírito que vinha denunciando, constituiria na oportunidade para o PC o único verdadeiro obstáculo à efectivação dos seus desígnios de uma conquista pura e simples do poder político, assim como de uma descolonização brutalizada e traumatizante, que seria apenas retardada de alguns meses.

Por estranha coincidência ou não, é precisamente no mês de Julho, em que o processo dito revolucionário entrava na sua fase de maior degradação, que se tem conhecimento de uma impressionante e significativa lista de instruções enviada de Moscovo a todos os partidos comunistas do Ocidente, que passaria a designar-se «Plano Ponomarev», uma vez que essa série de conselhos e instruções se encontrava subscrita por Boris Ponomarev (membro do Politburo, encarregado de dirigir a estratégia dos partidos comunistas que ainda não estavam no poder), e ainda por Kinachkine e Sobolev, tendo em vista especialmente as experiências chilena, portuguesa e grega, o qual pela sua importância e significado passamos a transcrever na íntegra:


1. Importância do factor tempo


É necessário mover-se rapidamente para consolidar no poder um governo de esquerda, antes que os contra-revolucionários consigam organizar-se.

Um futuro governo de tipo Allende somente poderia conservar o poder recorrendo a brutais instrumentos de coacção.

Considera-se necessário nacionalizar com a máxima rapidez o sector produtivo privado «sem perder tempo na definição de indemnizações que não têm cabimento».

A destruição do sector privado é premissa essencial para eliminar a base da oposição democrática e da imprensa independente.


2. Imprensa da oposição


Já que em Santiago do Chile, o mais autorizado jornal da oposição («El Mercurio») desenvolveu um papel de importância vital na derrota de Allende, os partidos comunistas do Ocidente, que eventualmente entrem na área do poder, devem subtrair da maneira mais rápida possível aos «inimigos de classe» todos os instrumentos de propaganda, para vencer a primeira batalha, a das palavras, obrigando a opinião pública a aceitar, pela insistência baseada na técnica leninista da repetição, slogans do tipo: «unidade das forças populares», «unidade antifascista», «tentativas divisionistas», «ameaça contra-revolucionária».


3. O poder extraparlamentar


Devem ser formados centros de poder, fora do poder central e a ele paralelos, recomendando-se a organização de grupos operativos controlados pelos PCs que afirmem a sua presença nos centros administrativos periféricos, para substituir o poder central, com o consentimento tácito dele, ou para lhe sabotar as directrizes, bloqueando-lhe a eficiência.

Um choque violento entre as forças progressistas e a direita reaccionária é inevitável: é mister, portanto, criar as premissas favoráveis e saber escolher o momento oportuno. Por conseguinte, «é dever de todo o PC montar uma organização capaz de obrigar as classes dominantes a dobrarem-se perante a vontade popular. Toda a tentativa de resistência deve ser quebrada pela força, quando necessário», atribuindo-se aos adversários intenções golpistas.


4. Controle Sindical


O controle dos sindicatos significa controle da força de trabalho do país. Daqui resulta a possibilidade de se condicionar a economia e de se controlarem os opositores nos locais de trabalho.

É necessário - para conseguir tal controle - chegar ao sindicato único ou através de um sindicato unitário actuando com firmeza contra os divisionistas que prejudicam a unicidade de todos os trabalhadores e favorecem as forças subterrâneas da reacção.


5. Forças Armadas


Já que as Forças Armadas podem, condicionar as actividades políticas, torna-se absolutamente indispensável procurar uma «aliança táctica» com o Exército; isto implica converter ou subverter elementos qualificados e importantes das Forças Armadas.







Boris Ponomarev







No entanto, a lição do Chile deve ajudar os PCs a entender que as alianças desta espécie não conseguem transformar as ideias anti-comunistas da maioria dos oficiais. Portanto, os comunistas não podem considerar-se livres do perigo de uma imprevista reacção conservadora.

Torna-se necessária a eliminação de todos os chefes tradicionais das forças de segurança que devem ser impreterivelmente reestruturadas em uma única força revolucionária, entregue a homens de segura fé política.

À distância do tempo, pode hoje avaliar-se, em toda a sua extensão, até que ponto o Partido Comunista Português seguiu caninamente a orientação estabelecida por Ponomarev (9). Com efeito, quer no problema dos meios de comunicação social (Imprensa, Rádio, Televisão); quer no controle dos sindicatos (problema da unicidade sindical e da Intersindical); quer na destruição apressada do aparelho económico pelas nacionalizações selvagens e pela arbitrária fixação de um salário mínimo nacional, incomportável para a grande maioria das empresas, desarticulando assim todo o sector da produção do país; quer pelo assalto aos centros administrativos periféricos (autarquias locais: câmaras municipais e juntas de freguesia); atribuição de intenções «golpistas» às forças mais conservadoras: o caso Palma Carlos, o da «maioria silenciosa» e do 28 de Setembro; a montagem maquiavélica do 11 de Março; o confisco das maiores empresas nacionais e da propriedade fundiária do Alentejo; as prisões arbitrárias de milhares de pessoas; a paralisação do ensino; a degradação dos critérios morais, pelo livro e pelo filme; os sequestros ao Governo na pessoa do Primeiro-Ministro e dos deputados não-comunistas da Assembleia Constituinte; a técnica «repetitiva» no emprego de «slogans» mentirosos, torpes e demagógicos; a manipulação dos elementos mais vulneráveis das Forças Armadas, tornados joguetes inconscientes ao serviço do comunismo internacional, e a destruição sistemática do aparelho económico e financeiro do Estado - culminaria na situação de desespero paranóico e suicida do 25 de Novembro, que pôs o País à beira da guerra civil.

Filme macabro e trágico, de como se destrói uma Pátria, que nos leva a reflectir nos perigos que os portugueses correram de não estarem a viver hoje, em pesadelo, a execrável experiência comunista, a níveis de opressão e miséria!


(...) O Prólogo do 28 de Setembro: degradação do MFA e do País


Reportando-nos, contudo, à cronologia dos factos mais salientes do 25 de Abril da traição, não deixa de ser curioso referir que o PC evitava hostilizar, na fase quente de Julho-Agosto de 1974, os agrupamentos políticos de centro e de centro direita, já por essa altura com certa implantação a nível nacional, como era o caso dos Partidos da Democracia Cristã, Centro Democrático Social, Liberal e do Progresso. No entanto, não deixava de afirmar posições e uma atitude crítica em relação ao PPD, apontando-o como cúmplice da iniciativa contra-revolucionária que teria sido assumida pelo Prof. Adelino da Palma Carlos.

A popularidade e o prestígio do general Spínola (interna e externamente), e bem assim o seu «peso político», obstavam à conveniência de uma confrontação prematura. Por isso, o PC, continuando a aparentar propósitos francamente cooperantes com o presidente da República e com as demais forças políticas, passou a empenhar-se num processo subterrâneo de actuação que visava a criação de condições propícias ao desencadeamento de uma nova crise que pudesse provocar a ruptura entre o presidente Spínola e o «sector progressista» do MFA, já por então directamente controlado pelos comunistas. Nessa acção solapada, desempenharia papel proeminente o CDE, que se achava afastado da coligação governamental por exigência expressa do general, embora constituído como «organização satélite» do PC, visto ter sido entretanto abandonada pelos socialistas e outras facções de esquerda e do centro.

A aceleração do processo de descolonização, acentuada especialmente a partir da «comunicação» do presidente Spínola, no final de Julho, reforçaria, naturalmente, as tensões potencialmente existentes e cristalizadas à volta da crise Palma Carlos. O mês de Agosto, viria assim a ser para o Partido Comunista um período de angústia e de receios - já que o facto de o presidente da República ser o efectivo detentor da força política e militar, lhe possibilitaria, a todo o tempo, o uso da iniciativa num campo e noutro. E esta só não veio a produzir efeitos, a despeito de sinais que a chegaram a dar como próxima em diversas oportunidades, pela acção retardadora exercida pelo controverso general Costa Gomes, que logrou, sempre, fazer adiar a eclosão de confrontos no meio militar, como única forma de clarificar a situação e de repor a autoridade do Estado. Por outro lado, a confrangedora inexperiência política dos mais próximos colaboradores do presidente Spínola e as hesitações deste, favoreciam os desígnios da chamada «facção progressista» que, desse modo, conseguiu ganhar o tempo necessário à montagem da sua própria conspiração de caserna - reservando-se a altura oportuna para actuar.

Enquanto isto, e na sequência de visitas a unidades militares de certa importância operacional, onde improvisava discursos dramáticos e patéticos, chamando os portugueses à razão, no meio da desordem institucional que ia pouco a pouco subvertendo a Nação portuguesa - o presidente Spínola teve ocasião de tomar posições muito firmes no Regimento de Pára-Quedistas, em Tancos, em 2 de Agosto, na comunicação ao País no dia da Independência da Guiné, em 11 de Setembro (do mais alto significado quanto ao seu «estado de espírito»); no improviso proferido no Quartel do Carmo, no dia seguinte, e, ainda, antes da sua mensagem de renúncia, em 30 desse mesmo mês, nas palavras proferidas no acto de posse do Governador de Cabo Verde, em 21 e no discurso proferido na abertura da reunião de trabalho com as Forças Vivas de Angola, em 27, a que se seguiria a «montagem» do 28 de Setembro e o acto de renúncia, e, com este, o fim do consulado Spinolista, de pouco mais de cinco meses, e o início da «galopada» para o desfazer da Pátria...






(...) O «28 de Setembro» e suas sequelas: o Abismo...


O «28 de Setembro» viria a ser, assim, o «magistral» aproveitamento, pelo Partido Comunista e forças suas aliadas, de uma longa crise que vinha preparando (dentro e fora das Forças Armadas), em estrita obediência às instruções de Ponomarev, com a «passividade colaborante» de militares e civis mais estreitamente ligados ao general Spínola os quais, por algumas horas, na noite de 28 para 29 de Setembro, apesar da sua incapacidade de resolução, chegaram a ter nas mãos a possibilidade de fazer regressar o 25 de Abril da Esperança à sua pureza original [???] e salvo desse modo o País das mutilações e das desgraças que tão duramente depois experimentaria em plena ditadura anarquista de Vasco Gonçalves e seus sequazes.

A «maioria silenciosa» e a eventual conspiração de um «golpe» reaccionário, para um regresso ao passado - mais não foram que uma trapaça idiota, habilmente «montada» pelo Partido Comunista... A renúncia do presidente Spínola, na manhã de 30 de Setembro, lida perante o Conselho de Estado e a designação do general Costa Gomes para a Presidência da República, marcaram o termo dramático de um primeiro capítulo da história do movimento militar do 25 de Abril e o início de uma escalada que conduziria à apropriação da «revolução dos cravos» pelo Partido Comunista e seus aliados naturais. De notar, que, entre estes, não se contavam apenas quantos ideologicamente se identificavam com ele, mas também todos aqueles (militares e civis) a quem a nova situação política permitiria um acesso fácil a orgãos de poder ou a posições de mando, ou de simples destaque na cena nacional e internacional - e que, naturalmente, por mero instinto de defesa, passaram a temer que qualquer recuo ou esmorecimento na marcha do processo impulsionado pela «esquerda activa» viesse a originar a perda dos privilégios acabados de alcançar de mão beijada... Exemplo expressivo, a este respeito, o do almirante Pinheiro de Azevedo, Chefe do Estado Maior da Armada e membro da Junta de Salvação Nacional, quando chamado a desempenhar as funções de presidente da República durante a ausência, nos Estados Unidos (em Outubro de 1974), do presidente Costa Gomes. Em declarações a um semanário pró-comunista de Lisboa, e referindo-se à potencial ameaça contra-revolucionária, afirmaria não ter dúvidas de que a sua cabeça e a dos restantes responsáveis do MFA estavam em jogo e, por isso, nem ele nem os outros se dispunham a perder...».

Ao apodo de «fascista», que já se aplicava, por tudo e por nada, a quantos não se mostravam dispostos a pactuar mais abertamente com actuações declaradamente esquerdizantes, somou-se, a partir do começo de Outubro, outro epíteto «infamante» - o de reaccionário, equivalente, no léxico comunista-internacionalista, a agrário, a patrão, a simples proprietário...

Por iniciativa selvagem, de um revolucionarismo primário e lorpa, dos empregados bancários (desde logo organizados num Sindicato de obediência comunista), foram «congeladas» dezenas e dezenas de contas de depósito, impedindo-se desse modo que os seus respectivos titulares movimentassem os seus dinheiros. Esta medida discricionária e irresponsável, começou por impedir que os titulares nessas condições, exercendo actividades comerciais ou industriais, pudessem proceder, a tempo e horas, ao pagamento de salários e ordenados aos trabalhadores das empresas ou firmas a que se achavam ligados.

Fazendo por ignorar as situações de facto consumado, assim criadas, a máquina de propaganda movida dinamicamente pelo Partido Comunista, pelo CDE, que voltara de novo ao primeiro plano no enquadramento governativo, no pós-28 de Setembro, e ao serviço de uma parte do Governo e do MFA, passou a acusar sistematicamente de «sabotadores económicos» aqueles mesmos reaccionários que praticamente colocara na situação de insolventes e de falidos - e isto relativamente aos sectores industrial e comercial assim como ao agrícola. Efectivamente, e sobretudo nas regiões rurais do Baixo e Alto Alentejo, como em parte do Ribatejo, as células locais do PC, depois da imposição da prática de salários que exorbitavam da realidade da própria exploração da terra, obrigaram, sem possibilidades de recurso, aos agrários, mesmo pequenos e médios agricultores, grande parte dos quais rendeiros e seareiros, a admitir ao seu serviço um número excessivo e desnecessário de trabalhadores rurais, com o claro objectivo de os exaurir financeiramente. Com idêntico objectivo, promoveram (em fins de Janeiro de 1975, e nos dois meses seguintes), a ocupação arbitrária das chamadas grandes propriedades agrícolas, especialmente aquelas que pelo apuro e esmero da sua exploração foram as primeiras a ser cobiçadas... Num grande comício em Beja, em Fevereiro de 1975, o Secretário de Estado da Agricultura, Dr. Esteves Belo, anunciara a «expropriação de terras e seu arrendamento compulsivo», medidas essas que então classificou como «um grande passo no caminho da reforma agrária», que viriam afinal a encontrar a sua consagração, num clima de violência e de atropelo a que o Decreto-Lei 406-A/75, pouco depois publicado, daria cobertura legal. Não era decididamente a «Reforma Agrária» mas um processo monstruoso de latrocínios e de confisco da propriedade fundiária alentejana.

Em documento distribuído à imprensa, em 9 de Janeiro de 1976, o Engenheiro Lopes Cardoso, Ministro da Agricultura e Pescas, dizia que «o processo da reforma agrária se desenvolvera até esta data praticamente sem controle, nem enquadramento por parte dos organismos estatais a quem cabia justamente a sua condução». Mais: «O Decreto-Lei 406/75, impropriamente designado por lei da reforma agrária, longe de ter servido para disciplinar e orientar as expropriações que deviam constituir o ponto de partida para a reforma agrária, tem servido apenas para a legalização de situações de facto. É assim que enquanto se estima em cerca de um milhão de hectares a área actualmente ocupada, a área que foi objecto de expropriações nos termos da lei não excede os 300 mil hectares»...








Sabe-se quanto a economia da terra condiciona todas as outras actividades, por ser a base fundamental da vida de nações como a nossa, que não dispõem de grandes parques industriais. O Partido Comunista não resistiu neste ponto a aplicar no Alentejo uma política de terra queimada, explorando a situação de atraso das suas populações rurais, acenando-lhe com um falso «eldorado» e uma falsa ideia da entrega das terras a quem a trabalha. A trágica experiência da colectivização da terra, que só na Rússia sacrificou mais de seis milhões de camponeses à fúria bolchevique, pouco importava aos burocratas comunistas. O que interessava era a subversão pela opressão e miséria das classes trabalhadoras, como forma de atingir o tão cobiçado totalitarismo de Estado.

A luta anti-capitalista, contra todas as formas de monopólio, incluindo o ataque frontal a algumas empresas multinacionais a operar com os seus capitais e com a sua tecnologia no arranque do desenvolvimento económico, em franco processamento a partir dos anos 70, - luta essa acelerada desde os primeiros dias de Outubro, a seguir à renúncia do presidente Spínola - deveria vir a incrementar-se, brutalmente, a partir da madrugada de 13 de Dezembro de 1974, com a prisão, sancionada pelo Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves, de numerosos banqueiros e de outras conhecidas figuras do nosso meio social, de algum modo ligadas aos meios financeiros e industriais. Essas detenções, do desconhecimento da quase totalidade dos membros do Governo, iniciaram-se a partir das 2 horas da madrugada, sendo a lista completa das pessoas a aprisionar apenas do conhecimento do PC e do CDE, lista essa confidenciada, particularmente, a alguns orgãos de Informação, pouco depois da 5 e 30. Alertados entretanto alguns membros do Governo, cerca das 7 horas, muitos dos mandados de captura, grande parte dos quais assinados em branco pelo COPCON, não chegariam a ser executados. E, muito embora a relação oficial das prisões feitas só tivesse sido divulgada pelo gabinete do Primeiro-Ministro às 12,30 horas desse mesmo dia, acontecera que, 3 horas antes (portanto pelas 9), já era profusamente distribuído nas ruas em Lisboa um comunicado do CDE dando conta da ofensiva revolucionariamente empreendida contra os «sabotadores económicos capitalistas». Em simultaneidade de acção, líderes desse mesmo agrupamento, correia de transmissão do PC, realizavam comícios de esclarecimento em diversos pontos da capital, aliás conforme viria a ser largamente noticiado na Imprensa.

Singular ou sintomaticamente, a execução dessa acção - que ficará como uma das mais vergonhosas da Revolução Traída - coincidiria com o início do Congresso do Partido Socialista, há muito aprazado para os dias 13, 14 e 15 de Dezembro. Essa onda de violência, desencadeada com objectivos puramente demagógicos, e de intimidação, contava igualmente com o apoio declarado da Intersindical, de influência comunista, à qual competiria a iniciativa da campanha contra os «sabotadores económicos», realizando, com o aparato adequado, manifestações de trabalhadores, quer nas ruas quer no seio das empresas.

O projecto da ofensiva anti-capitalista, que contou com a benevolência e indiferença do Chefe do Estado, general Costa Gomes, não foi, no entanto, executado em toda a sua extensão, sendo de presumir que a onda de reacções despertada a nível interno e externo tivesse obrigado a suspendê-lo. Certo é que as tensões aumentaram ao nível dos orgãos do poder, especialmente no seio do Governo, acentuando-se a partir daí as divergências já patentes entre o Primeiro-Ministro e os ministros sem pasta do ramo das Forças Armadas, a um dos quais cabia a coordenação do sector da Economia e estava confiada a elaboração de um «plano económico de emergência» (plano Melo Antunes), que se sabia estar a ser orientado para objectivos moderados e realistas, embora apontando uma «via socializante» em oposição a soluções radicais propugnadas pelo Partido Comunista e por muitos tecnocratas e intelectuais de formação marxista, alinhados em agrupamentos do Governo, como era o caso da CDE e do Movimento de Esquerda Socialista - MES.


(...) Unicidade Sindical - Prepotência comunista


Outro facto importante na altura e que viria a dar lugar ao extravasamento, para público, das dissenções que se registavam a nível de «caserna», quer no seio do Governo quer, reflexamente, nos orgãos de poder militar foi o da discussão do problema da «unicidade» sindical, iniciada pouco depois, com motivo na elaboração da Lei que regularia a organização e a actuação dos Sindicatos - os «novos patrões» das classes trabalhadoras... A imposição do Sindicato único pretendida pelo Partido Comunista e seus aliados, em obediência às inequívocas instruções de Ponomarev, como meio de garantir a força da Intersindical e o consequente controlo político dos trabalhadores, encontrou a oposição firme e tenaz do Partido Socialista, secundado, nesse aspecto, pelo Partido Popular Democrático e, também, por outras formações partidárias, como a da Democracia Cristã e do Centro Democrático Social. O próprio Episcopado Português não se eximiu, perante tão grave problema, a emitir opinião desfavorável ao «monolitismo sindical», aliás combatido de armas na mão, por assim dizer, pelo Partido Comunista, em 1934, quando foi adoptado sistema análogo pelo corporativismo salazarista.

A polémica estabelecida, ao nível do País, acerca da «unicidade sindical» pretendida à viva força pelos comunistas, decorreria, no entanto, em condições de grande desigualdade quanto aos meios utilizados na altura para divulgação dos pontos de vista de cada um dos sectores empenhados em tão importante debate. De facto, enquanto o PC e o seu filhote CDE já então transformado em partido político com a sigla MDP/CDE, e a própria Intersindical, monopolizavam, praticamente, todos os meios de comunicação social (Imprensa, Rádio e TV) para a divulgação das suas teses e ataque  violento aos defensores das posições que lhes eram contrárias - as forças políticas que se opunham ao «monolitismo» pretendido contavam, quando muito, com os jornais partidários, semanários de reduzida expansão, e com o recurso à promoção de comícios públicos, de que os orgãos da informação davam em geral parco noticiário.





O interesse posto pelo Partido Comunista nesta questão mostrou-se tão grande, que, em 14 de Janeiro de 1975, juntamente com os seus aliados naturais, promoveu, em Lisboa, uma manifestação pública de apoio à «unicidade», empenhando nessa realização vultuosos meios materiais, aplicados na deslocação de alguns milhares de pessoas vindas de regiões distantes, que se fizeram transportar em comboios e autocarros, a X por cabeça... Observadores estrangeiros e jornalistas portugueses, não comprometidos, estimaram em cerca de 80 mil os manifestantes, o que na óptica oficial do PC foi calculado em «mais de 200 mil» - número este, aliás, noticiado por todos os orgãos de comunicação social, em obediência à palavra de ordem imposta às direcções e redacções dos jornais e emissoras de rádio.

Denunciando esta e outras manipulações que obviamente se destinavam a falsear os dados do problema e a influenciar a opinião pública e os orgãos de poder militares - o Partido Socialista conduziu, por seu lado, uma campanha enérgica e corajosa que atraiu na altura aos seus quadros algumas dezenas de milhares de novos militantes, grangeando a simpatia e o respeito de uma larga camada de portugueses que, finalmente, entre surpreendidos e confiantes, puderam verificar a existência de uma força política capaz de «bater o pé» aos comunistas, e de contestar, a este, a «posse» do País. Alguns dos comícios promovidos, nesse período agitado e convulso, pelo PS, designadamente em Lisboa, Porto e Coimbra, registaram participações «record», que excediam em milhares de pessoas a lotação dos recintos onde tinham lugar. Organizações do mesmo tipo, realizadas por outras forças políticas, especialmente o PPD, concitaram igualmente enorme afluência.

Entretanto, a divergência publicamente debatida entre os Partidos originaria crescente enervamento dos sectores militares, sobretudo daqueles que mais próximo se achavam do PC e seus aliados - MES, FSP (cisão minoritária do PS), Liga Comunista Internacionalista (LCI) e, claro, MDP/CDE. A própria Comissão Coordenadora do MFA, que se aproveitara da controvérsia para incitar atitudes de franca reserva ao «plano económico de emergência» que estava a ser elaborado sob a orientação e responsabilidade do ministro Melo Antunes - não hesitou em fazer, perante os écrans da Televisão, uma declaração expressa de apoio à adopção legal da «unicidade»! Esta intromissão inqualificável dos militares responsáveis do Prec em tão controverso debate político, e o facto de ter vindo a proibir uma manifestação programada com 12 dias de antecedência pelo Partido Socialista, e com a qual este partido pretendia comemorar em 31 de Janeiro uma data histórica grata ao Povo Português (a primeira sublevação republicana ocorrida em Portugal, em 1891) - reafirmava aos olhos do País a convicção de que, efectivamente, o Partido Comunista continuava detentor do poder e que, único depositário da confiança do MFA, alargava, quanto podia, a sua influência nefasta no aparelho do Estado.

Certo é que, apesar de todos os protestos em contrário pela maioria esmagadora da Nação, com o beneplácito e ámen dos orgãos militares, o princípio da «unicidade sindical» foi incluído na lei. Embalado pelos ventos do triunfalismo, o Partido Comunista acentuava por essa altura nova e decisiva escalada no controlo dos meios de comunicação escrita, por meio de movimentos internos nas empresas que conduziriam à expulsão das administrações e ao saneamento de directores e jornalistas não declaradamente afectos à sua linha política. No quadro da procurada institucionalização do MFA, não fora, apenas, homologada a criação que se propusera de um Conselho Superior da Revolução (com poderes supragovernamentais), e que deveria substituir-se aos existentes: Assembleia dos Duzentos (com membros eleitos nos três ramos das Forças Armadas), Conselho dos Vinte e Junta de Salvação Nacional. O predomínio de oficiais de inspiração «spinolista» no primeiro dos orgãos atrás referidos impediria, na oportunidade, o «hara-kiri» pretendido pelos chamados «progressistas»...


(...) Prólogo do «11 de Março» - Montagem e sequelas


Ao arrepio do que sempre fora pretendido expressamente pelo PC, o Presidente da República - coagido por factores externos e por uma pressão interna, a que não puderam furtar-se os que se afirmavam continuadores do 25 de Abril - anunciou ao País, em 11 de Fevereiro, a realização das eleições para a Assembleia Constituinte, fixando a data do acto eleitoral para 12 de Abril. O facto foi compreensivelmente festejado pelo PS e pelo PPD e outras formações políticas que nunca tinham deixado de afirmar-se favoráveis à consulta do País por meio do sufrágio, considerando que só o voto consagraria e legitimaria a Democracia pluralista que o MFA prometera solenemente aos portugueses.

Mais uma vez, no entanto, uma actuação subterrânea viria a produzir-se em simultaneidade com o aparente conformismo das cúpulas do sector comunista: enquanto publicamente se apresentavam para a competição eleitoral, o PC e seus filhotes logravam fazer protelar a publicação dos diplomas legais que teriam de condicionar a realização das eleições e, dessa maneira, porque havia prazos a respeitar para a efectivação das formalidades pré-eleitorais (propositura das candidaturas, acordo quanto à utilização dos orgãos de comunicação social pelos Partidos, etc.), a breve trecho se depreendeu que a data fixada para a realização do acto eleitoral teria forçosamente de ser protelada. E veio de facto a sê-lo - para 25 de Abril, prazo limite admitido no Programa do «25 de Abril» de 1974.




Comício do PCP no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa.




Mas, mesmo assim, com este adiamento de última hora, os riscos de um teste a nível nacional eram, para o Partido Comunista e seus aliados, muito grandes - já que os responsáveis não ignoravam, e disso estavam conscientes, que a «influência» que exerciam se apresentava desproporcionada à implantação que, na realidade, desfrutavam no País: e a verificação de uma tão grave circunstância estimularia, perigosamente, os sectores militares discordantes da linha de «aceleração progressista», ao mesmo tempo que desautorizaria, inexoravelmente, a minoria activista que, no seio do MFA, fazia a cobertura do PC e aliados.

É aqui que reside, sem dúvida, a génese do «golpe» de 11 de Março!

Pode dizer-se que como consequência do estado de grande anarquia em que o País passou a viver, desde o 25 de Abril - num regime de total ausência de autoridade ou com os orgãos do poder a «prestigiarem» permanentemente a ilegalidade - a ideia da «conspiração» passou também, ao pão nosso de cada dia, constituindo uma espécie de «estado de espírito» igualmente permanente. A nível civil, tal «conspiração» apresentava-se inconsequente e sem o mínimo de viabilidade, por carência de meios de acção e inexistência de grupos organizados, muito embora a progressão do descontentamento a nível geral tivesse vindo a produzir-se a um ritmo febricitante; a nível militar, identicamente inócua, por razões múltiplas e complexas, de que podem enunciar-se algumas: depurações maciças nos quadros de oficiais, sobretudo do Exército e da Marinha; comprometimento e responsabilidade de muitos dos oficiais «sobreviventes» no movimento de 25 de Abril e nas acções políticas que imediatamente se lhe seguiram; apertada vigilância exercida em relação a toda a oficialidade suspeita de simpatia ou ligação (sentimental ou política) com o general António de Spínola, designadamente sobre os comandos e pessoal da Força Aérea e formações para-militares: Polícia de Segurança Pública e Guarda Nacional Republicana; privação de meios operacionais (em equipamentos, munições e combustíveis) à quase totalidade das unidades consideradas como «potencialmente desafectas» ao processo de subversão e de acelerada comunização do País; actuação, à escala de todo o território do continente, de uma acção «pidesca» impiedosa, controlada pela chamada Comissão de Extinção da PIDE/DGS, 5.ª Divisão do Estado Maior das Forças Armadas e da 2.ª Divisão-Informação das FA, e executada pelos activistas do PC, do MDP/CDE e dos grupos extremistas que se lhes colaram, todos eles armados e municiados, como a LUAR, Brigadas Revolucionárias, de Isabel do Carmo, e ARA, dispondo de capacidade para mobilizarem milícias populares, milícias essas que, desde o «28 de Setembro», e em diversas outras oportunidades, haviam exercido já acções terroristas que levaram à intercepção de todas as comunicações rodoviárias, não apenas nos acessos aos grandes centros urbanos e aos postos de fronteira (onde exerciam actividade permanente, ao lado da Guarda Fiscal), como ainda em todas as estradas principais e secundárias da zona litoral como das regiões do interior; alargamento da «escuta» telefónica que, dos 2 100 postos existentes em todo o País anteriormente a 25 de Abril, veio a ser ampliada para cerca de 26 000, de controlo simultâneo, e em que mesmo ao nível de «cúpulas» se escutavam uns aos outros; por último, e principalmente, a completa e a mais torpemente generalizada indisciplina (fortemente fomentada) de soldados e marinheiros que, aliciados por forças esquerdistas, PC incluído, deixariam de acatar o mínimo princípio da obediência que deviam aos seus superiores.

Num tal quadro, como é evidente, as possibilidades de actuação real para quaisquer grupos conspirativos seria, fatalmente, votada ao mais rotundo malogro; e apenas uma acção «palaciana», um golpe de Estado, em que estivessem coniventes personalidades altamente colocadas, poderia conduzir, eventualmente, não a um retrocesso mas a uma recondução do processo revolucionário do 25 de Abril às vias originais: restituição das liberdades públicas, instauração de uma democracia substantiva, pluralista, respeito pela legalidade democrática, aplicação séria de uma política de progresso económico e social, sem prejuízo do desenvolvimento prático do princípio da autodeterminação, aliás tal como se estabelecera no Programa do MFA e recebera a aprovação da maioria esmagadora do Povo Português.

De qualquer forma, e apesar da «agonia» em que o País se debatia, a existência, ainda reconhecida na oportunidade, de um elevado número de oficiais que, usando da confiança da maioria dos quadros das várias Armas e Serviços Militares, figuravam, por eleição, em orgãos importantes, como a Assembleia do MFA, o Conselho dos Vinte e o próprio Governo, ocupando, outros, posições de comando em regiões Militares, Armas e Unidades operacionais - continuavam a constituir um sério obstáculo à consumação pura e simles do ambicioso projecto revolucionário que, decalcado, como vimos, do chamado «Plano Ponomarev», e inspirado nos objectivos imediatos da URSS, se destinava a criar no extremo ocidental da Europa um «ponto quente» que poderia inverter, substancialmente, o equilíbrio de forças no Atlântico Norte e no Atlântico Sul (Açores, Madeira, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e Angola) e, no Mediterrâneo, contagiando uma situação revolucionária esquerdizante em Espanha, com «inquinações» possíveis, até ao nível do poder, quer na França, quer em Itália...

A uma situação explosiva de «conspiração latente» correspondeu, assim, o bem imaginado e melhor executado «contra-golpe» de 11 de Março - acção provocadora desencadeada pelo PC e seus acólitos, para criar o estado emocional propício a uma depuração e a uma radicalização do processo revolucionário tendente a influenciar, além do mais, o quadro em que iriam decorrer as eleições, se acaso não viesse mesmo a ser possível impedir a sua efectivação!...

António de Spínola



António de Spínola no Brasil, com seus guarda-costas.



Com efeito, ainda as pseudo-acções militares (ataque com balas simuladas a uma unidade da especial confiança do sector progressista do MFA, em Lisboa) se estavam a iniciar - 11 e 50 da manhã - e já a Intersindical, o MDP/CDE e outras organizações revolucionárias armadas, desenvolviam a sua actuação, mobilizando «as massas trabalhadoras» para as barragens nas estradas e caminhos, para a ocupação das fábricas e oficinas e bem assim para o cerco das unidades e estabelecimentos militares, tendo em vista paralisar o desencadeamento de quaisquer movimentos de tropas, designamente das forças motorizadas da Arma de Cavalaria (Lisboa, Santarém e Estremoz, afectas ao general Spínola); e civis armados, exibindo mandatos de captura assinados pelo comandante adjunto do COPCON (Otelo Saraiva de Carvalho), pelo Primeiro-Ministro (Vasco Gonçalves) ou pelo coronel Varela Gomes (5.ª Divisão do EMGFA) procediam à prisão, em Lisboa e noutros pontos do País, de capitalistas, empresários, banqueiros e militares, muitos dos quais haviam figurado na célebre «lista de 13 de Dezembro» e que, na altura, como se disse, não haviam chegado a ser detidos.

As circunstâncias em que ocorreu a morte da única vítima do famigerado «ataque» ao RAL1 (um soldado que se encontrava no dormitório da Unidade), nunca foi convenientemente averiguada nem explicada - mas forneceu, isso sim, o elemento passional «indispensável» para a criação de um ambiente dramático favorável à repressão e às drásticas medidas que o Partido Comunista e seus aliados logo prontamente exigiram e que, obviamente, estavam já preparadas: dissolução de todos os orgãos militares e sua imediata substituição por um Conselho Superior da Revolução, com plenos poderes e forte participação de oficiais de esquerda e pró-comunistas; nacionalização selvagem da Banca e dos Seguros, logo seguida da «confiscação» de todas as indústrias-base: siderurgia, combustíveis, química, cimentos, celulose, tabacos e empresas rodoviárias e de caminhos-de-ferro, e empresas públicas de águas, gás e electricidade... Seguiu-se, também, imediata recomposição do Governo, com exclusão do ministro sem pasta Vítor Alves, marginalização do major Melo Antunes (colocado nos Negócios Estrangeiros), a quem foi retirado o controlo do sector económico, alargando-se a coligação com a entrada de numerosos membros do MDP/CDE e de alguns tecnocratas do MES para os Ministérios e Secretarias de Estado das Finanças e da Economia; nomeação de um membro do Partido Comunista para o importante Ministério das Comunicações e Transportes (correios, telefones, marinha mercante, portos, caminhos-de-ferro, estradas, aviação e aeroportos), mantendo o mesmo partido o controlo, que vinha já, detendo desde Maio de 1974, do Ministério do Trabalho...

O número de oficiais aprisionados ou postos em fuga para o estrangeiro (com predomínio, entre os primeiros, dos que pertenciam aos quadros da Força Aérea), foi aproximadamente de centena e meia - sendo demitidos, imediatamente, por resolução do Conselho da Revolução, sem julgamento ou avaliação da prática de qualquer delito, cerca de 30. Grande parte de uns e de outros, eram homens do 25 de Abril e figuras gradas do Movimento das Forças Armadas, que o haviam tornado possível!

Em síntese, pode dizer-se que os ganhos alcançados pelo Partido Comunista e forças coligadas ou cúmplices no «golpe» de 11 de Março, confirmaram à generalidade da opinião pública e aos observadores estrangeiros de que, na prática, ficara instaurada em Portugal a «Democracia Popular». Daí que o «fantasma da reacção», da «ameaça fascista», da «conspiração do capitalismo internacional» e do «imperialismo ocidental» passassem a ser diariamente agitados na Imprensa, na Rádio e na Televisão, nos discursos de alguns dos principais responsáveis do Governo e das Forças Armadas, como nos comícios da «aliança comunista» (ibidem, pp. 111-134).


Notas: 

(8) Que assim era, provou-se com a viagem feita pelo Dr. António de Almeida Santos, no princípio de Dezembro de 1974, às Nações Unidas, levando consigo um «calendário» para as independências da Guiné e Cabo Verde, Angola e Moçambique, a conceder em prazo inferior a um ano. Punha apenas ressalva quanto a Timor que, segundo o ministro da Coordenação Interterritorial, «parece desejar continuar ligado a Portugal». Visão, pois, correcta a de Franco Nogueira!

(9) Em Novembro último, Ponomarev, visitou a Europa Ocidental, incluindo a Grã-Bretanha. Foi hostilizado em toda a parte, tendo sido mesmo reclamada a sua expulsão, quando visitou Londres. Em Portugal, por mais estranho que pareça, mereceu as «honras» de uma audiência presidencial...




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