Mostrando postagens com marcador Leão Hebreu. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Leão Hebreu. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Diálogos de Amor (ii)

Escrito por Leão Hebreu






«Aristóteles foi o mais notável dos discípulos de Platão. (…) Abandonou Platão, sendo este ainda vivo, o que levou Platão a afirmar que Aristóteles o espezinhara como um potro, que dá uma parelha de coices na mãe».

Diógenes Laércio



«Aristóteles estudou demoradamente a dialéctica socrática, de que descreveu o processo nos livros de Tópicos, distinguindo-a nitidamente dos dizeres sofísticos, aos quais dedicou também um livro especial. Quanto ao método platónico, que combina a mitologia órfica com a ciência pitagórica, critica-o Aristóteles com maior respeito, não só pela gratidão para com o mestre, mas também porque lhe reconhece o intento de investigação da verdade. A exigência socrática da definição perfeita realiza-se no conceito, dotado de extensão e de compreensão. O erro platónico verifica-se na transformação mitológica do conceito em ideia, conceito sem extensão, portanto sem plural, guardando uma singularidade misteriosa que só a poucos seria dado ver por processos mnésicos, gnósicos e teoréticos. A singularidade ou unicidade da ideia, separada do mundo sensível quando meramente inteligível, suscitava problemas que não poderiam ser resolvidos pelo uso oportuno da palavra participação».


Álvaro Ribeiro


«Houve já vários intérpretes que o fizeram notar: a "forma" de Aristóteles é apenas a "ideia" de Platão trazida do céu para a terra. E, com efeito, Aristóteles nega a existência separada de uma oliveira em si, de um cão em si, de um homem em si, segundo os quais seriam construídos ou dos quais participariam as oliveiras, os cães e os homens particulares».


André Cresson


«Se entre as acções virtuosas, as que o homem pratica na vida civil e na vida militar prevalecem sobre todas as outras pelo heroísmo, pela beleza e pela magnanimidade, certo é que dependem por sua vez de valores mais desejados, e por isso não constituem propriamente virtudes. Falta-lhes, aliás, a paz de alma, indispensável à verdadeira felicidade.

A actividade da inteligência apresenta, pelo contrário, esta particularidade distintiva mais importante: é especulativa, e não está subordinada a outro fim; é acompanhada de uma alegria bem sua e perfeita, que lhe dá maior vigor; basta-se a si própria num lazer sem fadiga, pelo menos tanto quanto é possível ao homem, e parece reunir todas as condições da felicidade. A actividade pura da inteligência constituiria a perfeita felicidade do homem, se pudesse preencher a duração total da vida, já que nada de incompleto pode constituir a felicidade. Uma vida tal seria demasiado bela para ser uma vida humana! Se ao homem é por momentos dado viver assim, tal não acontece por virtude da sua condição de homem, mas porque há dentro dele algo divino; e tanto quanto esta faculdade difere do composto humano, tanto a sua actividade difere das outras virtudes. Se a inteligência é, portanto, divina em relação ao homem, a vida inteligente é também divina, em comparação com a vida humana. Diremos, por consequência, que ao homem não basta, como muitos preceituam, ter pensamentos humanos, nem aos mortais pensamentos mortais; tanto quanto nos seja possível, cumpre-nos sermos imortais, esforçando-nos por viver segundo o que, para a nossa vida, considerarmos melhor; este melhor tem certamente pouco lugar na nossa vida, mas pelo seu poder e pela sua dignidade está sem dúvida acima de tudo!».


Aristóteles


«Saber era subir da sombra à luz, da imagem ao objecto, (…) das aparências aos seus princípios com Platão, ou era, com Aristóteles, ver nos indivíduos as formas que são o acto da sua existência, reduzir os fenómenos às causas e razões pela sua participação na luz dos princípios.





Se a física de Platão é uma promoção da matemática, seja uma anamnese do inteligível pitagórico, a de Aristóteles, pela hierarquia das potências actualizando-se até ao acto puro, é, no pensamento, uma ascensão para os princípios universais e é, no objecto, uma aspiração para o inacessível vértice da pirâmide da natureza, que é o Motor Imóvel».

Leonardo Coimbra


«Platão e Aristóteles se reúnem sem contradição, como complementares e indispensáveis um ao outro, num Deus, já não pessoa da Trindade, mas reunião indefinível, supraconceitual, de todas elas três; se reúnem no único Deus total e verdadeiro que existe: o que, não sendo, vai sendo o quando, o como e o enquanto somos. A esse Deus, sem culto, cultuaremos com todo o culto; em todo o culto».


Agostinho da Silva


«Participar vem do latim participare, e de participatio, participação. Etimologicamente vem de capio, capere, que dá cipere e de partis, parte, cipere, sinónimo de recipere. Em seu sentido etimológico, participar é receber de outrem algo. Mas o que é recebido é recebido não totalmente (totaliter), pois totaliter recipere seria receber em totalidade algo (áliquid). É intuitivo que o conceito de participar implica um receber parcial de algo (aliquid) de outro (ab alio). O que participa é o participante, o qual participa do participável (participable = o que pode ser recebido) de outro, o participado.

(...) Assim, entre as formas e os seres do mundo sensível, há uma certa univocidade. E essa univocidade foi pressentida por Tomás de Aquino ao comentar o livro décimo da Metafísica de Aristóteles. A espécie é univocamente predicada da espécie como forma, e da espécie na singularidade, mas as duas espécies são distintas, por ser incorruptível a primeira, e corruptível a segunda.

As formas platónicas não estão submetidas ao devir, nem ao nascimento nem à morte, e Tomás de Aquino, na "Suma Teológica", referindo-se a elas, disse: "aos olhos de Platão as formas separadas são absolutas e, por assim dizer, universais, e nos seres sensíveis, ao contrário, elas se encontram misturadas e limitadas"».


Mário Ferreira dos Santos




S. Tomás de Aquino


Aristóteles não nega as ideias platónicas, antes, pelo contrário, confirma-as

Fílon – Longo discurso fora necessário para dizer em que consiste a discrepância entre Aristóteles e Platão, seu mestre, quanto a isto das ideias e das razões de cada uma das partes e sobre quais são as que mais convencem. Não tas direi agora, porque seria afastar-nos muito do nosso propósito e fazer prolixa esta nossa conversa. Só te digo, para tua satisfação, que isto que te dissemos sobre as ideias não é negado por Aristóteles, nem pode negá-lo, embora as não chame ideias, porque ele põe que preexiste na mente divina o Nimos do universo (10), que é a ordem sábia do mundo. Desta ordem deriva a perfeição e ordenação do mundo e de todas as suas partes, assim como preexiste na mente do capitão-mor a ordem de todo o seu exército. Desta ordem procede a boa disciplina e os feitos de todo o seu exército e de cada uma das suas partes. Assim que vemos que as ideias platónicas, efectivamente, na mente divina, segundo diversos vocábulos e vários exemplos, são aceites por Aristóteles.

Sofia – Percebo a conformidade. Mas indica-me agora alguma coisa da diferença que há entre eles quanto ao ser das ideias, que tanto Aristóteles, como os seus, se esforçam em negar.


Diferença entre Aristóteles e Platão acerca das ideias

Fílon – Eu já ta direi. Saberás, em suma, que Platão pôs nas ideias todas as existências e substâncias das coisas. E fez isto de tal maneira que tudo o procriado delas no mundo corpóreo se julga que seja mais facilmente sombra da substância, que poder-se dizer essência nem substância. E assim, despreza as formosuras corpóreas nelas mesmas, porque diz que, não sendo elas para outra coisa mais que para mostrar-nos as ideias e guiar-nos no conhecimento delas, segue-se que a sua formosura por si é pouco mais que nada. Aristóteles quer ser mais temperado nisto, porque lhe parece que a suma perfeição do artífice deve produzir perfeitos artificiados neles mesmos. Daqui vem que ele defende que no mundo corpóreo e nas suas partes há essência e substância própria de cada uma delas e que as notícias ideais não são as essências e substâncias das coisas, mas sim causas produtivas e ordenativas delas. Daqui vem o defender ele que as primeiras substâncias são os indivíduos e que em cada um deles se salva a essência das espécies. Destas espécies ele não quer que as universais sejam ideias, que são causa das coisas reais, mas sim os conceitos intelectuais da nossa alma racional, conceitos tirados da substância e essência que há em cada um dos indivíduos reais. E por isto ele chama segundas substâncias aos conceitos universais, por serem abstraídos pelo nosso entendimento dos primeiros individuais. E não quer que as ideias sejam primeiras substâncias, como diz Platão, nem sequer segundas, mas primeiras causas de todas as substâncias corpóreas e de todas as essências compostas de matéria e forma. Na verdade, ele defende que a matéria e o corpo entram na essência e substância das coisas corpóreas e que na definição de toda a essência, definição que se faz por género e diferença, entra primeiro matéria ou corporalidade ou forma material comum por género, e a forma específica por diferença, porque a sua essência e substância são constituídas ambas duas por matéria e forma. E, posto que nas ideias não há matéria e corpo, não cai nelas, segundo ele, essência e substância, mas estas são o divino princípio de quem dependem todas as essências e substâncias, convém a saber, as primeiras como efeitos corporais, e as segundas como imagens espirituais das primeiras. Defende também que as formosuras do mundo corpóreo são verdadeiras, embora sejam causadas e dependentes das primeiras formosuras ideais do primeiro entendimento divino. Desta diferença que há entre os dois teólogos nascem todas as outras que se encontram entre eles sobre as ideias, assim como resulta daqui a maior parte das suas diferenças teologais naturais (11).

Sofia – Agrada-me muito conhecer a diferença. E da mesma maneira agradar-me-ia saber com qual deles se conforma mais o teu parecer neste assunto.




A diferença que há entre Platão e Aristóteles consiste mais nos vocábulos que no significado dos mesmos

Fílon – Quando souberes considerar bem esta diferença, encontrá-la-ás mais facilmente nos vocábulos com a imposição dos mesmos do que no significado deles, sobre a maneira como se devem usar, convém a saber, que quer dizer essência, substância, unidade, verdade, bondade, formosura e outros semelhantes, que se usam para exprimir a realidade das coisas.


Aristóteles deve ser preferido a Platão no uso dos vocábulos

Assim que sigo ambos na sentença, porque é uma mesma a dos dois. No uso dos vocábulos talvez seja de seguir Aristóteles, porque o homem mais moderno lima melhor a linguagem e costuma apropriar os vocábulos às coisas mais subtilmente. Quero também dizer-te isto. Platão, dando-se conta de que os primeiros filósofos da Grécia não estimavam outras essências, substâncias e formosuras senão as corpóreas e vendo ainda que pensavam que não havia nada fora dos corpos, foi-lhe necessário curá-los com o contrário, como verdadeiro médico, ensinando-lhes que os corpos por si mesmos não possuem nenhuma essência, nenhuma substância, nenhuma formosura, como isso é em boa verdade, nem têm outra coisa que a sombra da essência e formosura incorpórea, ideal da mente do sumo artífice do mundo.


Declaração da diferença que há entre Platão e Aristóteles acerca das ideias

Aristóteles, que se deu conta dos filósofos pela doutrina de Platão, filósofos já de todo afastados dos corpos e que julgavam que toda a formosura, essência e substância estava nas ideias e nada no mundo corpóreo, vendo que eles por isto se faziam negligentes no conhecimento das coisas corpóreas e seus actos, movimentos e alterações naturais e nas causas de sua geração e corrupção, da qual negligência havia de resultar defeito e falta de conhecimento abstracto de seus espirituais princípios, porque o grande conhecimento dos efeitos certamente induz a perfeito conhecimento de suas causas, pareceu-lhe por isto tudo que era tempo de temperar o extremo que nisto havia, extremo que, por ventura, viria em processo a exceder o intento platónico. E mostrou, como te disse, existirem propriamente essências no mundo corpóreo e substâncias produzidas e causadas pelas ideias, e existirem nele também verdadeiras formosuras, embora dependentes das puríssimas e perfeitíssimas ideias.


Metáfora bizarra sobre os médicos prudentes

Assim que Platão foi médico que curou a doença com excesso de medicina, e Aristóteles curou-a com o uso do temperamento: foi médico conservador da saúde, já induzida pela indústria de Platão.

Sofia – Não tive pouca satisfação em ouvir e perceber o que quer dizer ideias e como o ser delas é necessário e também que Aristóteles não as nega absolutamente, assim como a diferença que há entre Platão, quanto ao entender e falar delas. E voltando a ele, tu disseste-me que as verdadeiras formosuras são as ideias intelectuais ou notícias exemplares e a ordem do universo e de suas partes preexistentes na mente do seu sumo artífice, isto é, no primeiro entendimento divino. E, embora seja de conceder que nelas exista maior formosura e primeira que a corpórea, como em causas, parece que não é de conceder que as ideias sejam a verdadeira e absolutamente primeira formosura, pela qual toda a outra coisa é formosa, ou formosura. Na verdade, as ideias são muitas, como convém ao dizermos que são as notícias exemplares do universo e de todas as suas partes. Estas são tantas que são quase inumeráveis. E se cada uma das ideias é formosa ou formosura, convém que verdadeira e primeira formosura seja outra mais superior que as ideias, formosura por cuja participação toda a ideia seja formosa, ou formosura. Na verdade, se a verdadeira fosse a própria duma daquelas ideias, nenhuma das outras seria verdadeiramente formosa, nem primeira, mas sim segunda por participação da primeira. Convém, portanto, que me declares qual é a primeira formosura da qual todas as ideias a recebem, porque a verdadeira formosura ideal não satisfaz nisto em virtude da sua multidão.



Os defeitos e imperfeições dos efeitos não procedem de suas causas

Fílon – Agrada-me esta dúvida que levantaste, porque a solução dela porá termo satisfatório ao desejo que tens de saber qual é a verdadeira e primeira formosura. E antes de todas as coisas digo-te que te enganas, crendo que nas ideias há diversidade e multidão dividida, como nas partes mundanas que procedem delas. Na verdade, os defeitos não procedem dos efeitos e não se encontram nas coisas perfeitas os efeitos porque são efeitos, e por causa deles, mas sim porque são próprios do ser efectivo e estão muito distantes da perfeição da causa. E por isto temos defeitos nos efeitos, mas esses defeitos não preexistem nem vêm de suas causas (12).

Sofia – Pelo contrário, parece que das boas causas vêm os bons efeitos, e os efeitos devem ser tão semelhantes às causas, que por eles se possam conhecer essas mesmas causas.


Diferença que há entre a causa e o efeito

Fílon – Embora da boa causa venha o bom efeito, nem por isso se iguala a bondade e perfeição do efeito à da causa. E, embora o efeito se assemelhe a sua causa, nem por isso a iguala nas coisas perfeitas. Bem é verdade que a perfeição da causa induz perfeição no efeito, perfeição proporcionada ao mesmo efeito, mas não igual à da causa. Na verdade, se assim fosse, o efeito seria causa, ou a causa seria efeito, e não causa.


Igualdade de efeito e causa: só diferem na perfeição

Embora seja verdade que tão bom e perfeito é o efeito para efeito como a causa para causa, mas só na perfeição não são iguais. Pelo contrário, ao efeito falta muito da perfeição da causa. E por isto encontram-se defeitos no efeito, defeitos que não se encontram na causa.

Sofia – Entendo bem a razão, mas desejava algum exemplo.

Fílon – Sabes bem que o mundo corpóreo procede do incorpóreo, como efeito próprio de sua causa e artífice. Contudo, o corpóreo não tem a perfeição do incorpóreo. E bem vês quanto falta ao corpo em comparação com o entendimento. E, embora tu encontres muitos defeitos no corpo, como a medida, a divisão e nalguns a alteração e a corrupção, nem por isso deves julgar que preexistem nas causas intelectuais deles sob forma defeituosa, mas julgarás que isso está só no efeito por seu defeito em relação com a causa.


De que maneira as ideias são muitas e é una e indivisível

Assim, pois, a pluralidade, divisão e diversidade que se encontram nas coisas mundanas, não penses que preexistem nas notícias ideais delas. Pelo contrário, o que no entendimento divino é uno e indivisível, multiplica-se idealmente em direcção às causadas partes do mundo, e em relação com elas as ideias são muitas, mas nesse entendimento a ideia é una e indivisível.

Sofia – Como queres tu que as notícias de muitas e diversas coisas seja una em si?

Fílon – Não são partes do universo essas muitas coisas?

Sofia – Sim, o são.

Fílon – E o universo todo, com todas as suas partes, não é uno em si?

Sofia – Em grande verdade o é.

A ideia do universo é una em si, e não em muitas.

Fílon – Portanto, a notícia do universo e sua ideia é una em si, e não em muitas.

Sofia – Assim é. Mas, como o universo, sendo uno, tem muitas partes diversamente essenciadas, assim aquela notícia e ideia do universo terá em muitas diversas ideias.




A ideia que está no entendimento divino, embora seja multiplicada com ordem em direcção às muitas partes do universo, nem por isso admite diversidade em si, nem divisão, nem número dividido

Fílon – Quando realmente eu te concedesse que a ideia do universo contém muitas ideias das partes do universo, não há dúvida que, assim como a formosura de cada uma é participada da formosura do todo, assim a formosura da ideia de todo o universo precede a formosura das ideias parciais, e esta, como primeira, é verdadeira formosura. E, ao ser participada às outras ideias particulares, torna-as formosas gradualmente. Contudo a multiplicação das ideias apartadamente uma da outra não é de conceder, porque, embora a primeira ideia do universo que está na mente do sumo Criador, seja multiforme, isto é, de muitas maneiras com ordem às essenciais partes do mundo, nem por isso aquela multiformidade induz pela diversidade essencial separável, nem participação dimensional, nem número dividido, como faz nas partes do universo, mas é de tal maneira multiforme, que fica indivisível em si, pura e simplicíssima e em perfeita unidade, contendo justamente a pluralidade de todas as partes do universo produzido, com toda a ordem de seus graus, de tal maneira que, onde está uma, estão todas e o serem todas não impedem a unidade de uma. Ali, um contrário não está dividido do outro em lugar, nem é diverso em essência oponente, mas está juntamente na ideia de fogo e na de água, e na de simples e na de composto, e na de cada parte encontra-se a do universo todo, e na de todo está a de cada uma das partes. Isto é de tal maneira que a multidão no entendimento do primeiro artífice é a pura unidade e a diversidade é de verdadeira identidade (13).


A materialidade das palavras impede a ostensão precisa das coisas espirituais

Isto é de tal maneira assim que o homem pode mais facilmente compreender isto com a mente abstracta que dizê-lo com língua corpórea, porque a matéria das palavras impede a precisa demonstração de tanta puridade, fortemente alheia do pintar corpóreo.

Sofia – Parece-me que percebo esta elevada abstracção e como na unidade consiste multiforme causação e como do uno simplicíssimo dependem muitas coisas apartadas, mas, se me desses algum exemplo sensível, isso agradar-me-ia muito.


Exemplo do Sol para a unidade e relativa diversidade e multiplicidade da primeira ideia



Fílon – Lembro-me de ter-te dado já sobre isto um exemplo visível do Sol com todas as cores e luz particular, porque todas elas dependem dele e consistem nele, como na ideia, todas as essências das cores não estão multiplicadas e divididas no Sol, como o estão nos corpos inferiores que ele ilumina, mas é uma luz essencial que com sua unidade contém todos os graus e diferenças das cores e a luz do universo. Por aqui verás que quando esse puro Sol se imprime nas nuvens húmidas e opostas, faz o arco chamado íris, composto de muitas e diversas cores misturadas de tal sorte, que não poderás conhecer se estão todas juntamente ou cada uma de por si. E assim também, quando se representa esse Sol nos nossos olhos, causa na nossa pupila uma multidão de cores e luzes diversas todas juntamente, de tal modo que sentimos que a multiplicação está com a unidade sem poder dar entre elas diversidade alguma separável. Desta maneira também faz lustrosas outras coisas, porque no ar e na água imprime-se com multidão de cores e de luz juntamente sem divisão uma da outra, sendo ela uma simples. Assim que a simplicíssima luz solar, embora em si contenha em unidade todos os graus de luz e cores, representa-se com multidão de cores e de luz nos diversos corpos diversos apartadamente uma da outra, e em nossos olhos e em nossos diáfanos, como o ar e a água, com multiformes e resplandecentes cores tudo juntamente, porque o transparente dista menos de sua simplicidade que o corpo escuro, para recebê-la unidamente. Desta maneira o entendimento do sumo Criador imprime a sua pura e formosíssima ideia. Esta contém todos os graus essenciais da formosura dos corpos do universo, com multidão afastada de formosas essências e diversos graus graduados. E no nosso entendimento e nos outros angélicos e celestiais representa-se com multiformidade, isto é, de muitas maneiras, como formosura unida quanto o entendimento que as recebe é mais excelente em actualidade e claridade. E a maior união causa-lhe maior formosura e mais próxima da primeira e verdadeira formosura da ideia intelectual que está na mente divina. E, para maior satisfação tua, além deste exemplo da semelhança do Sol, vou dar-te outro do entendimento humano, que em natureza é conforme ao exemplar.


Exemplo do conceito intelectual para a unidade e pluralidade da ideia divina do primeiro entendimento

Bem vês que um conceito simples intelectual é representado na nossa fantasia ou é conservado na nossa memória, não naquela una intelectual simplicidade, mas nunca multiforme e unida imaginação, que emana do conceito simples e único, e se representa na nossa pronúncia com multidão apartada de vozes divisamente numeradas, porque em nossa fantasia ou na memória está a representação do conceito de nosso entendimento, da mesma maneira que o Sol se imprime no diáfano e como a formosura divina está em todo o entendimento. E no prolongamento aplicativo imprime-se o conceito, como a luz do Sol se representa nos corpos opacos e como a formosura e sabedoria divina se representa nas diversas partes do mundo criado. De maneira que a semelhança da participação da suma formosura e sabedoria te poderá vir a ser conhecida, não só na luz solar visiva, mas também no simulacro mais próprio da representação dos nossos conceitos intelectuais no sentido interior ou no ouvido exterior (14).

Sofia – Deste-me inteira satisfação com o exemplo da representação da luz solar nas duas maneiras de recebê-la, que são grosso opaco e subtil diáfano, semelhantes à representação da divina ideia intelectual no universo criado nas duas naturezas que a recebem, que são a corpórea e a espiritual intelectiva (in ob. cit., pp. 221-220).



Notas:

(10) Na progressão dos seres há mudanças que não podem continuar-se indefinidamente. Por isso tem de haver um Ser superior que esteja em acto total sem haver n'Ele a mais ligeira potência. Este Ser é a ordem de todo o universo, isto é, podemos chamá-lo NIMOS, porque ele próprio é o pensamento, que se pensa a si mesmo; é o pensamento do pensamento (Metafísica, Delta, 1074 b, 33).






(11) Para nos darmos conta cabal da noção de ideia em Platão, registaremos aqui as seguintes palavras segundo o diálogo Parménides, logo de início: «Se pusermos dum lado as ideias, e do outro as coisas que participam delas, podemos, efectivamente, e facilmente conceber como uma coisa pode ser una e múltipla. É que o um e o múltiplo existem fora das coisas e são diferentes delas, podendo uma mesma coisa participar, ao mesmo tempo, das duas ideias. É assim que uma mesma coisa real pode ter sem contradição semelhança e dessemelhança, grandeza e pequenez». Está clara a separação entre ideia típica e realidade.

Platão esforça-se por provar que a ideia é o ser primeiro e verdadeiro, a fonte e o princípio de todos os seres. [Para] Aristóteles (...) as ideias não existem senão nos indivíduos, pois as ideias não existem senão nestes e são conhecidas por estes. Para ele, as ideias não são mais do que abstracções do espírito, abstracções essas que são obtidas generalizando os caracteres comuns a muitos indivíduos. Por isso, resulta daqui que o princípio e a causa dos indivíduos, não é a ideia, é o próprio indivíduo. Será sempre uma coisa particular actual a que gerará outra coisa particular. Sabemos que assim como um arquitecto faz uma casa, assim é o «homem que gera o homem» (Metafísica, Alfa, 9,991 a 8-11; Zheta, 8, 1033 b 26-32). Eis a base de discussão do assunto que Fílon está a elucidar. Veremos, na parte que se segue do diálogo de L. Hebreu, como ele se inclina para Aristóteles, embora tente explicar as doutrinas platónicas com certa acomodação aos ensinamentos do Estagirita.

(12) Eis o resumo desta fala. Não podemos atribuir os defeitos dum ser efectivado à causa do mesmo, mas sim ao mesmo ser da efectividade, que pode não estar em condições para receber e transmitir as perfeições do causante.

(13) Todos os seres criados foram criados segundo a ideia que existe no entendimento divino, ideia que se identifica com o próprio Deus. Segue-se daqui que essa ideia é una em si mesma, mas diversa na multiplicidade das suas participações pelos seres criados. Eis o rigor teológico com que nos conduz o nosso genial compatriota.

(14) Estabelecido o conceito da unidade de Deus, quer uma Ideia por essência, quer como Formosura total, L. Hebreu apresenta alguns exemplos de participação dessa ideia e dessa formosura pelas criaturas, mostrando-nos a maneira como devemos seguir e interpretar essas participações tão mesquinhas e limitadas.






sábado, 5 de novembro de 2011

Diálogos de Amor (i)

Escrito por Leão Hebreu





Álvaro Ribeiro: «(...) quem nega, não apenas a irradiação da filosofia portuguesa no mundo, como até a sua existência e valor, demonstra que não estudou o problema, que se limitou a repetir o que os outros disseram».

António Quadros: «Mas como se explica esta ignorância ou esta indiferença, da parte de pessoas que são ou deviam ser responsáveis?»

Álvaro Ribeiro: «Quando andaram no liceu, nunca ninguém lhes falou dos portugueses Pedro Hispano, Leão Hebreu, Pascoal Martins, cujas obras ainda não estão traduzidas em português. O efeito do liceu é decisivo. Nos três últimos anos do liceu forma-se, reforma-se ou deforma-se a mentalidade. Uma vez admitidos nas escolas superiores, não mais pensaram senão em estudar as matérias para exame. Também nunca ouviram falar no Abade Faria e, se sabem que ele existe, foi porque leram "O Conde de Monte Cristo", de Alexandre Dumas».


(Entrevista conduzida por António Quadros, in 57, Ano I, números 3-4, 1957).


«Se um olho fosse um animal, a visão seria consequentemente a alma, sendo esta a substância do olho e que corresponde ao seu princípio».


Aristóteles




Nem todos conhecem e estimam igualmente as formosuras corporais nem as espirituais. Indica as razões destas afirmações

Sofia - Já percebo de que maneira conhece a nossa alma espiritualmente as formosuras, primeiro as corpóreas, e depois, por elas, as incorpóreas, que preexistem no primeiro entendimento e na alma do mundo de modo claríssimo e resplandecente e em nossa alma racional de modo umbroso e latente. E entendo também que, assim como os que mais perfeitamente conhecem as formosuras corpóreas as amam, e os outros não, assim os que mais conhecem as incorpóreas são ardentes amadores delas, e outros não o são. E também me disseste que os que conhecem as formosuras corpóreas e as aprendem com facilidade são os que melhor e mais prontamente conhecem as formosuras incorpóreas do entendimento e alma superior. Contra isto oferece-se-me uma dúvida não pequena. Consiste ela em que, se o amor da formosura se causa pelo verdadeiro conhecimento dela, segue-se que, assim como os que conhecem bem as formosuras corpóreas são os que conhecem bem as incorpóreas, assim os que intensamente amam as formosuras corpóreas são os primeiros amadores das formosuras incorpóreas intelectuais, como é a sabedoria e a virtude. O contrário disto é manifesto, porque os que amam muito as formosuras corpóreas estão nus do conhecimento e amor das formosuras intelectuais e quase cegos para elas, e os que amam ardentissimamente as formosuras intelectuais costumam desprezar, desampará-las, aborrecê-las e fugir delas (1).


'Almas elementais'



A alma é meio entre o entendimento e o corpo

Fílon – Agrada-me perceber a tua dúvida, porque a solução dela mostrar-te-á de que maneira se devem conhecer e amar as formosuras corporais e de que maneira se devem fugir e aborrecer, e qual é o perfeito conhecimento e amor delas e qual é falso, sofístico e aparente.


A nossa alma tem duas caras

Percebeste bem como a alma é meio entre o entendimento e o corpo. Não digo só a alma do mundo, mas também a nossa, semelhança daquela. A nossa alma tem, portanto, duas caras, como te disse da Lua em direcção ao Sol e em direcção à Terra: uma cara dirigida ao entendimento, superior a ela, e outra dirigida ao corpo, inferior a ela. A primeira cara dirigida ao entendimento é a razão intelectiva. Com esta raciocina com conhecimento universal e espiritual, tirando para fora as formas e essências intelectuais dos particulares e sensíveis corpos, convertendo sempre o mundo corpóreo em intelectual. A segunda cara, que tem voltada para o corpo, é o sentido, que é o conhecimento particular das coisas corpóreas. Esta cara tem junta a si e misturada a materialidade das coisas corpóreas conhecidas.


Os dois movimentos contrários das duas caras da nossa alma

Estas duas caras têm movimentos contrários ou opostos. Na verdade, assim como a nossa alma com o primeiro rosto ou conhecimento racional faz o incorpóreo do corpóreo, assim com o segundo rosto ou conhecimento sensível, achegando-se aos corpos sensitivos e misturando-se com eles, abrevia o incorpóreo no corpóreo. Com estas duas maneiras de conhecimento são conhecidas as formosuras pela nossa alma, as corporais com uma e outra cara, isto é, sensitivamente e corporalmente, ou racionalmente e intelectivamente.



Amor sensual e amor espiritual

E em conformidade com cada um destes conhecimentos das formosuras corpóreas, o amor delas é causado na alma: amor sensual pelo conhecimento sensível, e amor espiritual pelo conhecimento racional. Há muitos homens que têm clara a cara da alma para os corpos, mas têm escura a cara da alma para o entendimento. E isto vem de estar a sua alma submergida neles e muito aderente, e terem o corpo inobediente e pouco vencido da alma (2).


Miserável espécie de homens, muitos piores que bestas

Todo o conhecimento que estes têm sobre as formosuras corpóreas é sensível, e assim resulta que todo o amor que têm a elas é puro sensível. E não conhecem as formosuras espirituais, nem as amam, nem se deleitam com elas, nem as consideram dignas de serem amadas. E estes tais são infelicíssimos entre os homens e pouco diferentes dos brutos animais. E o que têm de mais é lascívia, libido, concupiscência, cobiça e avareza e outras paixões e tribulações que tornam os homens não só vis e indignos, mas também aflitos e insaciáveis e sempre perturbados e inquietos, sem nenhuma satisfação e contentamento. Na verdade, as imperfeições de tais desejos e deleites tiram-lhes todo o seu fim satisfatório e todo o contentamento quieto, conforme com a natureza de matéria inquieta, mãe das formosuras sensíveis (3).


Espécie de homens morais

Há outros que com mais verdade se podem chamar homens, porque a cara da alma que está para o entendimento está sempre não menos repleta de lume que a que está dirigida para o corpo.


Espécie de homens heróicos

E há alguns homens em que esta segunda cara está muito mais resplandecente. Estes dirigem o conhecimento sensível ao racional como a fim próprio; e estimam tanto, como formosuras, as coisas sensíveis com a cara inferior enquanto tiram delas as formosuras racionais com a cara superior. E embora aproximem a alma espiritual com a cara inferior dos corpos, para ter o conhecimento sensível a partir da formosura deles, levantam-na imediatamente com movimento contrário às espécies sensíveis com a cara superior racional, tirando delas as formas e espécies inteligíveis e reconhecendo ser este o verdadeiro conhecimento da formosura delas, deixam o corpóreo e o sensível, como coisa feia e casca do incorpóreo, ou sombra, ou imagem sua. E da maneira que dirigem um conhecimento para o outro, dirigem também um amor ao outro, isto é, o sensível ao inteligível. Na verdade, amam tanto as formosuras sensíveis quanto o conhecimento delas os guia a conhecer e amar as espirituais insensíveis. A estes amam só como as verdadeiras formosuras e deleitam-se na fruição delas; e ao resto da corporalidade e sensualidade não só não lhe têm amor, nem se deleitam nela, antes a aborrecem como a matéria feia, e fogem dela como de danoso contrário.




A mistura das coisas corporais impede a felicidade da nossa alma

Na verdade, a mistura das coisas corporais impede a felicidade da nossa alma, privando-a, com a luz sensual do rosto inferior, da luz intelectual do rosto superior, que é a sua própria beatitude. Na verdade, assim como o ouro, quando tem liga ou mistura de metais baixos e parte terrestre, não pode ser formoso, perfeito nem puro, porque a sua bondade consiste em estar purificado de toda a liga, e limpo de toda a mistura baixa; assim a alma misturada com o amor das formosuras sensíveis, não pode ser formosa, nem pura, nem chegar à sua bem-aventurança, a não ser quando estiver purificada e limpa de incitações às formosuras sensuais. E então chega a possuir a sua própria luz intelectiva sem impedimento algum; esta é a felicidade. Enganas-te, portanto, ó Sofia, em duvidar sobre qual é o mais principal conhecimento das formosuras sensíveis. Tu julgas que está naquele que as conhece no modo sensitivo e material, não tirando delas as formosuras espirituais, mas estás em erro. Na verdade, é imperfeito conhecimento das formosuras corpóreas este que dizes, porque quem do acessório faz o principal não conhece bem; e quem deixa a luz pela sombra, não vê bem; e aquele que deixa de amar a forma original, para amar a sua semelhança ou imagem, a si próprio se aborrece. Na verdade o perfeito conhecimento das formosuras corpóreas está em fazer conhecer de tal maneira, que facilmente, se possam tirar delas as formosuras incorpóreas (4).


Suma miséria da alma

E quando a luz inferior da nossa alma, a que se dirige para o corpo, tem a conveniente luz, então segue a luz do feixe superior intelectivo, sendo-lhe acessório e inferior e veículo seu. Mas, se a luz inferior vence, a alma é imperfeita, sendo imperfeita uma e outra luz. Daqui resulta ficar a alma desproporcionada e infeliz.


Quando é bom o amor das formosuras inferiores

Assim temos que o amor das formosuras inferiores, então é conveniente e bom, quando só serve para destilar delas as formosuras espirituais, que são as verdadeiramente amáveis e quando está principalmente nestas, e nas coisas corporais acessoriamente por elas. Na verdade, assim como os óculos em tanto são bons, lindos e amados, enquanto a claridade deles é proporcionada à vista e aos olhos, e os servem bem na representação das espécies visíveis, e sendo mais claros e desproporcionados são maus, e não só inúteis, mas até prejudiciais e impedimento da vista, assim o conhecimento das sensitivas em tanto é bom e causa de amor e deleite em quanto se dirige ao conhecimento das formosuras intelectuais e induz ao amor e gozo delas. E quando é desproporcionado e não dirigido a isto é danoso e impediente das formosuras da luz intelectual em que consiste o fim humano. Nota, portanto, ó Sofia, que não te deves deixar manchar no amor e deleite das formosuras sensuais, apartando a tua alma do seu formoso princípio intelectual, submergi-la no pélago do corpo feio e da suja matéria. Não te aconteça o da fábula daquele que, vendo as formosas figuras esculpidas na água suja, voltou as costas às originais e seguiu as imagens umbrosas e afogou-se entre elas na água turva.




Sofia – Agrada-me a tua doutrina neste ponto e desejo segui-la. E conheço quão grande é o engano que pode haver no conhecimento e amor das formosuras corpóreas e o grande risco que nelas se corre. E vejo distintamente que as formosuras corporais, em quanto são formosuras, não são corporais, mas são só a participação que as corpóreas têm com as espirituais ou o resplendor que as espirituais infundem nos corpos inferiores, cujas formosuras são verdadeiramente sombras e imagens das formosuras incorpóreas intelectuais, e que o bem da nossa alma está em subir das formosuras corporais às espirituais e em conhecer pelas inferiores sensíveis as formosuras superiores intelectuais.

As formosuras corporais são sombras das espirituais

Mas, apesar de tudo isto, fica-me ainda desejo de saber que coisa é esta formosura espiritual, que faz formoso cada um dos incorpóreos e se comunica também aos corpos, e não só aos celestiais em grande abundância, mas também se participa aos inferiores e corruptíveis, segundo lhes coube, mais ou menos, e, mais que a todos, ao homem, e principalmente à sua alma racional e mente intelectiva. Na verdade, que coisa é esta tão formosa que assim se derrama por todo o universo e por cada uma de suas partes, e por ela todos os formosos e cada um deles é feito formoso? Na verdade, embora me tenhas declarado que a formosura é graça formal, cujo conhecimento move a amar, esta definição é só da formosura dos corpos formados e de suas formas. Mas eu quereria saber precisamente como é sombra e imagem da incorpórea (esta formosura a que me refiro), e que coisa é esta formosura incorpórea da qual depende a corpórea. Na verdade, quando souber isto, conhecerei o que é a verdadeira formosura que se distribui por todos, e não terei necessidade do particular conhecimento e definição da formosura corpórea que me deste, porque a definição da corpórea não é a definição da formosura, senão dela no corpo, e não sei o que é a mesma formosura em si mesma, fora dos corpos, coisa que principalmente desejo saber. Suplico-te que me queiras ensinar também esta coisa com as restantes.


A formosura dos corpos assim naturais como artificiais, procede da ideia que está na mente do artífice

Fílon - Assim como nos formosos artificiados, segundo já percebeste, a formosura não é outra coisa mais que a arte do artífice participada difusamente nesses corpos artificiados e nas suas partes, donde a verdadeira e primeira formosura artificial é a arte científica preexistente na mente do artífice, da qual dependem as formosuras dos corpos artificiados, como de sua primeira ideia comunicada a todos, assim a formosura de todos os corpos naturais não é outra que o resplendor de suas ideias.


O resplendor das ideias é a formosura dos corpos

Daqui resulta que essas ideias são as verdadeiras formosuras. Por elas todos os corpos são realmente formosos (5).

Sofia – Tu declaras-me esta coisa por aquilo que não é menos oculto que ela. Dizes-me que as verdadeiras formosuras são as ideias, mas a mim não me é menos necessário declarar-me que coisa seja ideia e que coisa seja formosura, mormente sabendo que o ser das ideias, como tu dizes, nos é muito mais escondido que o ser da formosura. Portanto, como queres declarar-me o mais manifesto com o escondido? Quanto mais que, além de ser mais oculto o ser da ideia que o da formosura, é também muito mais duvidoso e incerto, porque todos concedem haver uma verdadeira formosura de que dependem todas as outras, mas muitos dos filósofos sapientíssimos negam o ser das ideias platónicas, como são Aristóteles e seus seguidores, os peripatéticos. Por isso, como queres declarar-me o certo pelo duvidoso e o mais manifesto pelo oculto? (6)


Aristóteles





As ideias são notícias do universo, notícias que preexistem na mente divina

Fílon – As ideias não são mais que as notícias do universo criado com todas as suas partes, preexistentes no entendimento do sumo opífice e Criador do mundo, cujo ser nenhum dos sujeitos racionalmente o pode negar.


Razão por que não se pode negar as ideias

Fílon – Na verdade, se o mundo não foi produzido ao acaso, como se mostra pela ordem do todo e das partes, convém que seja produzido por mente ou entendimento sábio, que o produz naquela ordem perfeitíssima e com aquela proporção correspondente que tu e todo o sábio vê nele. Esta ordem não só é admirabilíssima no todo, mas nas suas partes mais mínimas é de grande admiração a qualquer sábio que isso considera, e na ordem e correspondência de suas mínimas partes vê a suma perfeição daquele que o fez (7).

Sofia – Eu não negarei isto, nem creio que se possa negar, porque em mim mesma e em qualquer de meus membros vejo o grande saber do Criador de todas as coisas. Este excede a minha apreensão e a de todo o homem sábio.

Fílon – Conheces bem, mormente se visses a anatomia do corpo humano e de cada uma de suas partes, com quanta subtileza de arte e sabedoria está composto e foi formado, porque em qualquer delas se te representará a imensa sabedoria, providência e cuidado de Deus nosso Criador, como diz Job: Em minha carne vejo Deus (8).

Sofia – Passemos adiante para as ideias.

Fílon – Se a sabedoria e arte do sumo Criador fez o universo com todas as suas partes e partes em modo perfeitíssimo, concordância e ordem, convém que todas as notícias das coisas tão sabiamente feitas preexistam em toda a perfeição na mente desse obrador do mundo, assim como convém que as notícias das artes e das coisas artificiadas preexistam na mente do artífice e do arquitecto delas, porque, de outra maneira, não seriam artificiadas, mas só feitas ao acaso. Estas notícias do universo e de suas partes, que preexistem no entendimento divino, são coisas a que damos o nome de ideias, convém a saber, prenotícias divinas das coisas produzidas. Percebeste agora o que são ideias e como verdadeiramente são? (9)

Sofia – Percebo-o com toda a evidência. Mas indica-me como as podem negar Aristóteles e os outros peripatéticos (in Diálogos de Amor, Livraria Portugal, Introdução, tradução e notas de Reis Brasil, 1972, pp. 202-210).


Notas:

(1) Sofia formula uma objecção, que é desenhada a partir da oposição que parece haver entre os amadores de formosuras e os amantes das formosuras espirituais. Os primeiros desprezam a formosura de tipo espiritual, ao passo que os segundos desdenham da corporalidade. Sendo isto assim, como poderá encaminhar-se do corporal para o espiritual, sendo tão oposta a atitude daqueles que se demoram em cada um destes tipos ou géneros de formosura? Fílon vai responder com toda a precisão e clareza no que se segue.




(2) Lembremo-nos de que a divisão do amor entre sensual e espiritual é muito geral, indicando a predominância dos motivos amorosos causadores desse mesmo amor. Na realidade, não podemos falar, nem de amor puramente espiritual, nem de amor puramente sensual, pois o homem age como um todo. Daqui que só temos amor humano, com tendências maiores ou menores para um dos géneros indicados por L. Hebreu. Todo o acto amoroso depende da alma que é fonte de espiritualidade, mas é praticado com interferência do corpo. Daqui vem o não podermos tirar-lhe completamente a sua sensualidade ou interferência corporal. Fixemos bem estas noções. Não há pecados da carne, pois esta é inerte. Toda a responsabilidade dos nossos actos deve ser atribuída ao espírito.

(3) O homem parece-se tanto mais com Deus quanto mais espiritualizar o seu amor, assim como terá maior semelhança com as bestas ou animais irracionais quanto mais se deixar possuir ou dominar pelos motivos nascidos da pura coporeidade.

(4) Vejamos a belíssima teoria da sublimação do amor segundo L. Hebreu. O homem foi feito para Deus ou para a Formosura Eterna. Por isso, será tanto mais feliz neste mundo (mesmo em vida, claro está), quanto mais intensa for a sua volta para Deus, como seu Fim Último. Esta marcha para Deus faz-se por caminho de ascese, libertando a nossa alma, quanto possível, de toda a influência das formosuras de tipo corpóreo.

(5) A formosura dos seres espirituais é pura participação das ideias dessas formosuras segundo existem na Mente Divina. Realmente, a formosura criada é pura sombra da Formosura Eterna. Daqui resulta que a nossa alma tem o dever de deixar a sombra de formosura para se dirigir para a Formosura Real. Recordemos, novamente, Camões:



«E faz que este natural
Amor, que tanto se preza,
Suba da sombra ao Real:
Da particular beleza
Para a beleza geral».

(Redondilhas Babel e Sião).



As doutrinas de L. Hebreu documentam, inequivocamente, o desenrolar do pensamento e da afectividade do nosso Vate imortal.




(6) Sofia insiste com Fílon para que este lhe declare a diferença que existe entre a realidade do que são ideias e a realidade do que são formosuras. Torna-se isto mais urgente em virtude de sabermos que os peripatéticos e outros muitos filósofos rejeitam o mito platónico da reminiscência. Atentemos bem na resposta clara e perfeita que Fílon vai fundamentar no que se segue, imediatamente.

(7) Tendo em conta que é coisa absurda e inteiramente impossível que o mundo tenha sido produzido ao acaso, é evidente que deve ser produzido segundo o plano dum ser inteligentíssimo, pois é a partir desse ser que podemos explicar a sua ordem. A este ser inteligentíssimo chamamos Deus; a esse plano chamamos as suas ideias eternas, ou eterno exemplar do Mundo.

(8) Eis as palavras de Job, no seu livro a capítulo XIX, 26: «E serei novamente revestido da minha pele, e na minha própria carne verei o meu Deus».

(9) As ideias, como tais, são os arquétipos de todas as coisas, arquétipos preexistentes na mente divina, isto é, são as prenotícias ou modelos eternos que levaram à criação do Mundo.

Continua