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quarta-feira, 5 de julho de 2023

Vida Conversável

Registo extraído de uma conversa com o Professor Agostinho da Silva



António Quadros e António Telmo


«Quanto ao Agostinho da Silva, não constitui surpresa para mim o que me diz sobre ele. Desempenha perfeitamente o papel de décimo terceiro discípulo de Leonardo Coimbra. No Brasil privei com ele diariamente durante três anos. O Álvaro Ribeiro andava a dizer nos últimos meses da sua vida que Agostinho da Silva era o maior valor da sua geração. E acrescentava: “Que pena ter desperdiçado esse valor e não ter realizado a obra de que era capaz.” Ele sim, Álvaro Ribeiro merece o secreto nome de terceiro discípulo.

(...) No Jornal de Letras, se não estou em erro, Agostinho da Silva deu uma entrevista em que considera os jornalistas superiores de longe (sic) aos filósofos. Ou ele nunca leu Leonardo, Bruno, Marinho, Álvaro ou, se os leu, o seu  maçonismo de contágio veda-lhe saber o que é uma verdadeira manifestação do espírito. “A pedra que se põe de lado” não é a pior pedra mas a melhor. Quem tem sido posto de parte pelos construtores do socialismo é Álvaro Ribeiro. A interpretação que Agostinho da Silva faz do Quarto Evangelho, análoga à alemã do Fausto, pondo no princípio, não o verbo ou o pensamento, mas a acção, pertence já ao passado.»

António Telmo para António Quadros (Carta XXII, Extremoz, 28 de Julho de 1987, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).

 

«(...) o Governo português interessou-se pelo Centro [Brasileiro de Estudos Portugueses] e um dia fui convidado a ir ao Rio para falar com o embaixador. Já não era o mesmo com quem eu tivera um conflito aquando do começo da guerra colonial e que pretendera que eu fosse demitido da Universidade da Bahia. Era outro, um homem completamente diferente, que me transmitia um convite do Governo português para eu ir a Lisboa falar com as autoridades, com o próprio presidente da República.

Vim, como já lhe disse, e fui preso no aeroporto, porque se tinham esquecido de avisar a polícia, pois tudo fora tratado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Mas, soltaram-me logo e falei com Franco Nogueira, o ministro dos Estrangeiros, que se pôs imediatamente à disposição para fazer o necessário em Brasília, sem qualquer objecção política e só no final da cerimónia oficial é que me fez uma pergunta de carácter político. Nós já nos conhecíamos e tínhamos amigos comuns do tempo em que Franco Nogueira era da esquerda – nos seus tempos de juventude. Perguntou-me se eu achava que o Brasil aceitaria um plano dele a propor uma comunidade luso-brasileira.

– Não se meta nisso porque o Brasil vai negar – disse-lhe eu . – O Brasil perante Portugal mantém uma atitude de desconfiança e, quando pode, de ataque, porque é muito mais fácil para eles explicarem coisas que ainda não puderam resolver – entende-se muito bem que ainda não tivessem podido resolver, pois, o Brasil é uma tarefa difícil desde 1822 – e que esses males são provocados por eles não terem sido colonizados pelos holandeses ou pelos franceses.

Ora, por exemplo, no caso dos holandeses, foram regimentos de portugueses, pretos e índios que os vieram combater; era já gente brasileira que não estava nada contente com a maneira como o holandês se comportava. Curiosamente, há um livro de Mário Neme – meu amigo já falecido – sobre o domínio do holandês no Brasil. Olhe, sob o ponto de vista social e político de um brasileiro extremamente patriota – falava mesmo à moda de Piracicaba donde era natural, com um sotaque muito cerrado – chega à conclusão de que o regime português, sob todos os pontos de vista humanos, era para os brasileiros, e não se fala dos escravos, um regime muito mais tolerante e aberto do que o dos holandeses. E até talvez para os escravos, pois havia aquela convivência e domesticidade de portugueses e escravos no Brasil que Gilberto Freyre refere e insiste, embora não conte que os negros dos quilombos se tenham revoltado contra o domínio português. Mas os holandeses foram muito mais importantes para o conhecimento científico do Brasil do que os portugueses, pois trouxeram artistas e sábios que fizeram um levantamento do Brasil e das coisas brasileiras como os portugueses não sabiam ainda fazer. Entre esses artistas realce-se um excelente paisagista, Franz Post, cuja documentação pintada sobre o Brasil é muito instrutiva e que está hoje na Holanda, creio que em Haia, onde há um museu com muitas das suas telas sobre motivos brasileiros.


Ver aqui

Eu aconselhei Franco Nogueira que, devido à guerra colonial já ter começado naquela altura, não era conveniente que ele fizesse uma proposta daquelas, mas já que estávamos ali como dois amigos e se ele achasse bem dar-lhe-ia uma ideia que os brasileiros deveriam aceitar e que seria muito útil para Portugal, exactamente por causa do conflito de África. Ou seja, uma comunidade luso-afro-brasileira, com o centro de coordenação em África, de maneira que não fosse uma renovação do imperialismo português, nem um começo do imperialismo brasileiro. O foco central poderia ser em Angola, no planalto, deixando Luanda à borda do mar e subir, tal como se fizera no Brasil em que se deixou a terra baixa e se foi estabelecer a nova capital num planalto com mil metros de altitude. Fizessem a mesma coisa em Angola, e essa nova cidade entraria em correspondência com o Brasil e com Lisboa para se começar a formar uma comunidade luso-afro-brasileira. Franco Nogueira declarou não poder fazer isso, que seria dividir Portugal, pois Angola era uma parte do país. Em face disto não havia mais nada a dizer, agradeci o que se tinha feito e saí.

Com quem conversei ainda um pouco mais foi com Adriano Moreira, dei-me muito bem com ele, tratámos de tudo o que se referia a Brasília e ele fez sempre o possível por ajudar.

Voltei para o trabalho do Centro e devido ao papel especial das cartas, aquela gente da Universidade começou logo a levantar o boato de que eu fora mandado para lá pelo Salazar para tentar uma recolonização do Brasil. Isto era coisa daquela esquerda – eu e muita gente no Brasil chamava-lhe a “esquerda festiva” – que era uma esquerda meio burlesca e sobretudo mal-intencionada, o que não quer dizer que a direita não fosse tão ruim ou até talvez pior em muitas coisas. Apesar desta acusação, isto não teve problema nenhum, pois eu dei-me sempre muito bem com os alunos, com o pessoal administrativo e com o pessoal menor da Universidade, de maneira que estava ali perfeitamente seguro, aquilo não entrava em cabeça nenhuma, a não ser na deles para os seus fins políticos.

Um dia, Adriano Moreira foi ao Brasil chefiando uma delegação portuguesa que ia visitar Brasília. Nessa altura já eu morava mesmo em Brasília, tendo até feito um barracão no mato do cerrado, para ter comigo os rapazes que trouxera da Bahia para fazerem o curso universitário, pois eles não tinham recursos. Eu ganhava o suficiente para eles e para mim e quando era preciso fazer uma despesa extra para comida, os professores meus amigos da Universidade faziam uma subscrição, ajudavam a comprar arroz e feijão, e aquilo lá foi andando e todos se formaram... Eram, hoje já não sei bem, um pouco mais de meia dúzia. Agora, já todos formados, em medicina, biblioteconomia, antropologia, filologia clássica, estão empregados e trabalham nas coisas boas do Brasil. Dei-me sempre muito bem com aquilo, levava uma vida muito simples que Adriano Moreira admirou quando ele levou lá, para uma festa à noite, no mato, os amigos que tinham ido com ele de Lisboa.

– Nenhum estudante português aceitaria morar numa coisa destas – disse-me ele.

– Estes aceitam, mora também aqui um professor, de maneira que eles não têm problema nenhum. Talvez os estudantes portugueses aceitassem se na barraca morassem também os professores. É uma experiência a fazer um dia, quem sabe?

Nessa altura é que Adriano Moreira me levou, sem dizer nada, o colar da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, por ele fundada. Foi uma das suas grandes ideias, posta de parte depois da Revolução de 25 de Abril, absurdamente, pois poderia ter um papel muito interessante no mundo, porque era uma associação de gente de todos os países, interessada em cultura portuguesa. De repente, tornei-me sócio de uma Academia; foi uma coisa pitoresca porque nem da Academia de Platão eu gosto. Acho que ele traiu Sócrates. Pois é. A filosofia é uma provocação. A filosofia deve ser um rosário de dúvidas e não deve ser transformada em certeza e em ensino. Ora, quem começou com a moda foi, realmente, o nosso amigo Platão na Academia, que foi bem castigado no mundo com todas as outras criadas à imagem da dele e que talvez tivesse sido muito melhor que a maior parte das Academias de agora. Em todo o caso, levou a filosofia para o terreno das certezas e do ensino, começando ele assim, com as ideias de aprendiz de tirano, a fazer a República e as Leis. Quando Platão foi a Siracusa, pensava talvez que convenceria Dionísio de Siracusa a executar os seus pensamentos, mas, provavelmente, Dionísio achou que ele no fundo era um ingénuo que lhe atrapalharia a ditadura e tratou-o de tal maneira que Platão teve de voltar depressa para as árvores da Academia e de se deixar de convencer políticos a fazer isto ou aquilo.




Ver aqui, aqui e aqui


Bem, houve uma sessão no Centro. Adriano Moreira levava tudo: o colar, as vestes académicas e eu tive de fazer um agradecimento e pôr o colar em frente de toda a delegação portuguesa que tinha ido com ele. Contei-lhes qual a minha posição da altura, e que no Brasil já tinha estado noutras, porque o Governo português me tinha tornado impossível a vida em Portugal. Mas nesse caso eu tinha tido mais um sinal de que, como acreditava já, de um mal pode vir sempre algum bem. Talvez isso possa ser aplicável, de uma maneira geral, à História, sendo porém muito difícil ficarmos agradecidos ao mal pelo bem que recebemos. A nossa atitude costuma ser a contrária: é reconhecer pouco o bem e ficar sempre a falar do mal que por acaso nos sucedeu. Por isso, agradecia agora a Portugal estar doutra maneira, com outras atitudes, que esperava continuasse e que um dia pudesse realmente haver um reconhecimento de tudo o que era bom na cultura portuguesa em todos os países, quer nos que falavam português, quer nos outros. Ao mesmo tempo, que se eliminasse completamente na cultura portuguesa tudo aquilo que ajudara a fazer tantas vítimas em Portugal desde os séculos XIV ou XV até àquele momento em que falávamos ali.

A vida no Centro continuou durante alguns meses com relativa tranquilidade. Mas houve um incidente que complicou muito as coisas. Os funcionários da Universidade de Brasília ganhavam mais ou menos o mesmo que os das outras Universidades. Mas, no entanto, havia uma diferença enorme entre o que eles recebiam e os professores. Então, eles acharam que deviam reclamar um equilíbrio nos vencimentos, que deviam ter um melhoramento, porque no fim de contas o seu vencimento não era próprio para Brasília. Fizeram várias diligências junto da Universidade, mas esta continuou sempre como havia feito no caso dos assistentes: protestando, dando desculpas, baralhando tudo. Até que um dia, os funcionários perderam a paciência e resolveram declarar greve. No Centro, os meus funcionários não aderiram. Eu não tinha nada que fazer greve, era professor; os assistentes que lá estavam também não. Mantive as portas abertas e os funcionários, que se davam muito bem comigo, acharam que não tinham nada que se solidarizar com os outros, porque para eles, que tratavam directamente comigo, não havia atrapalhação nenhuma de vencimentos, quando viessem, vinham. E a situação manteve-se tranquila, com a Universidade toda em greve, excepto o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses, que continuava a funcionar normalmente. Mas as coisas pioraram e um dia, do gabinete do reitor, surgiu algo de muito complicado e complicante. Apareceu uma circular, para que os funcionários a favor da reitoria se declarassem não em greve e os outros que a continuassem. Isto é, a reitoria exigia uma lista daqueles que aderiam, colocando os outros numa situação de diferença perante os colegas. Bem, como quase toda a Universidade estava fechada, para os outros funcionários não havia complicação, o que não acontecia com os meus que vieram ter comigo aflitos:

– Se nós não vamos para a greve, como é?

É muito simples – disse eu – considero que a greve é uma maneira de  apreciar os actos do superior, o que, dentro do estatuto é um acto de indisciplina. As pessoas ou ganham ou perdem, isso é lá com elas, mas a apreciação de um superior só pode ser: ou contra ou a favor. Se eu digo que sou contra o meu superior é um acto de indisciplina; se digo que sou a favor, também, porque não tenho nada que apreciar os actos dele. Assim, apreciar funciona para os dois lados. De maneira que eu proíbo que alguém dê a menor importância a essa coisa que veio da reitoria. Devolvam já esse papel.

E para que não houvesse dúvidas fiz um edital em que proibia e pu-lo na parede. Os outros professores, cujos funcionários não estavam em greve, não se tinham lembrado daquela situação. Aliás, eles quase todos contra mim, raríssimas vezes estavam a meu favor. Mas quando era preciso dizer alguma coisa que pudesse desagradar, sobretudo depois da Ditadura, da Revolução de 64, os professores vinham sempre pedir-me que fosse eu o orador, para me colocarem em situação difícil.

Por exemplo, lembro-me quando a esquadra russa avançava em direcção a Cuba com armas e a esquadra americana foi ao seu encontro, que me pediram para falar num comício na Universidade contra tal acto. Eu fui e disse que aquilo era um conflito resultante de um outro muito mais vasto entre duas ideias sobre a economia e a política. Mas nós também poderíamos dizer que resultava de uma mania existente em muitas pessoas de, quando estão em qualquer trabalho, se considerarem superiores e os outros inferiores. Ter uma consideração económica, pessoal, de espécie nenhuma, isso era algo existente em tudo e até naquela Universidade.





Com efeito, nos dias anteriores, os professores que comiam no restaurante da Universidade, como todos os alunos e empregados, tinham planeado que todos negassem a ir com uma travessa de metal buscar comida para levarem para a mesa e comerem. Eu, que não gosto daquele sistema, nem de comer em travessas, fazia exactamente como os outros. Então, os professores reclamaram que para eles não queriam travessas, mas sim pratos e talheres como devia ser. Para os empregados e estudantes podia continuar tudo na mesma. Nesse mesmo dia, eu deixei de ir ao restaurante da Universidade. Passei a alimentar-me de sanduíches. Comia qualquer coisa, não tinha problema nenhum.

Assim, eu disse que isso era uma situação geral que se dava também na Universidade. Já que os professores tinham resolvido uns dias antes comer só em pratos, sem se importarem nada com os outros. Sobre esse assunto das esquadras eu não tinha nada a dizer, pois acho que quando algo está errado no mundo, a gente começa por duas coisas muito importantes: não cometermos nós mesmos o erro e verificar se não estamos num serviço que o cometa.

E foi só isso que eu tive a dizer de fundamental quanto ao encontro entre as esquadras americana e russa.

Bem, com a greve dos funcionários... a certa altura vi publicada no jornal uma nota da Universidade em que o reitor em virtude da continuação da greve fechava a Universidade, até ver como é que o assunto se resolvia. Convoquei imediatamente os funcionários para uma reunião, porque eu já havia estado numa reunião deles para lhes dar o meu apoio. Disse-lhes que pela minha parte a Universidade não fechava e que o fecho ou não dependia inteiramente deles. Mantínhamos a Universidade aberta, os professores que quisessem dar aulas davam-nas e eles com esses professores quebravam a greve e seria eu a começar isso. E se o reitor mandasse fechar a porta eu daria aulas na rua, no jardim ou em qualquer parte. Fui então imediatamente dar aula, os alunos foram ouvir e os funcionários estiveram presentes. Nessa altura a reitoria percebeu que a coisa estava a ir de outra maneira e chamou Niemeyer. O arquitecto era do Partido Comunista ou simpatizante e, portanto, próximo deles, e toda a gente lhe tinha muito respeito dado ele ter sido o grande obreiro de Brasília e por ser também professor na Universidade. Chamaram-no exactamente para ver se ele convocava uma reunião com os empregados e solucionava o conflito. E conseguiram-no. Niemeyer estava encarregado de ceder o mais possível às exigências e a greve acabou. Foi assim o fim da greve na Universidade com, como calcula, muita hostilidade para comigo, é claro.»

Agostinho da Silva («Vida Conversável»).

 

«Rossi e Agostinho confiavam muito em mim. Antes de eu ir para Dakar, Agostinho pediu uma audiência, uma audiência não, que ele não era dessas coisas, ele disse que queria conversar. A primeira coisa que disse foi: “É preciso enterrar Portugal”. Porque ele achava que Portugal era um país do passado, que não deveria atrapalhar o Brasil na África. Sugestões: aproximar Cabo Verde; ele dizia “que haja um dia uma cidadania de todo o mundo de língua portuguesa”; não se ligar a Portugal, “deixar que este cumpra o seu destino”, quer dizer, se afundar. Isso ele disse em 1961».

Pedro Moacir Maia («Agostinho da Silva e a Política das Relações Brasileiras com África», In Memoriam de Agostinho da Silva).

 

«Lisboa, 3 de Setembro [de 1966] – De madrugada, pelas 6,30 horas, chegou o chanceler brasileiro, Juracy de Magalhães. Bem-disposto; declarações simpáticas mas inócuas; de forma geral, reserva mental quanto ao nosso ultramar. Ao fim e ao cabo, os brasileiros querem que Moçambique e Angola, sobretudo Angola, se tornem independentes de Portugal e dependentes do Brasil. É assim; mas trata-se a meu ver de erro colossal da parte do Brasil, e de uma opção grave contra os interesses nacionais brasileiros, porque a África portuguesa, quando perdida por Portugal, não se tornará brasileira mas presa de interesses imperiais de que o Brasil estará ausente. Porque mo pedira, levei Juracy pela tarde às lezírias do Ribatejo, a uma festa de touros. Falei muito com Donatello Grieco: este confessou que nunca acreditara que Portugal ganhasse a partida em África: mas julga que essa está efectivamente ganha por nós. Juracy, absorvido nos touros e na paisagem.




Lisboa, 8 de Setembro – Partiu o ministro brasileiro. Confirmei a impressão que me fizera quando o encontrei na Baía, em 1960, num Colóquio Luso-Brasileiro. Era Juracy então governador da Baía e candidato à Presidência da República. Presidindo à vasta mesa de jantar no Palácio do Governo, Juracy convidava quantos apareciam e, ao passo que eram absorvidas largas travessas com montanhas de vatapá, constantemente renovadas, ia distribuindo benesses políticas – para o caso de ser eleito. Mas ficava sempre calmo, não perdia a dignidade, e revelava agudo sentido político no plano eleiçoeiro. Ainda é o mesmo homem, mais temperado por uma estadia em Washington como embaixador, e sem ter sido presidente. Está agora muito receoso da demagogia no Brasil. E precauto a mais não poder: foram-lhe arrancadas a ferros as poucas frases que disse quanto ao nosso ultramar. Muito pró-americano, e ao que suspeito muito nas mãos dos americanos. Foi aliás muito nítido: depois de duas horas de uma exposição maciça que lhe fiz sobre África, disse-me que o Brasil nada faria quanto ao nosso ultramar, e em nosso favor, se isso prejudicasse os interesses brasileiros, e nisso está evidentemente certo, salvo na medida em que Juracy me parece ver os interesses brasileiros num excessivo enfeudamento a Washington, quando deveria ver que são os Estados Unidos que tremem se o Brasil, em assuntos portugueses ou latino-americanos, bate o pé a Washington, e daí a força de uma Comunidade Luso-Brasileira. Mas os acordos que assinámos apesar de tudo – cultural, de colaboração económica, etc. – causaram alguma impressão, e na verdade traduzem algum apoio do Brasil à nossa política. Mas há no Rio uma reserva mental: querem aproveitar-se de nós e mostrar uma amizade que nos anestesia para, à custa desta, e na aparência desta, conseguirem os seus desígnios em Angola. Há no Brasil uma incipiência imperial, talvez ingénua de momento, mas para nós com algum perigo.

Lisboa, 9 de Setembro – Bom ambiente na opinião pública perante a assinatura dos acordos com o Brasil. Nós somos um povo de subservientes perante o estrangeiro: parece que aos cônsules dos Estados Unidos e do Brasil em Luanda e em Lourenço Marques todos se curvam com temor reverencial e dizem tudo, confessam tudo, discutem tudo, respondem a tudo. Dir-se-ia que aqueles cônsules são vice-reis. Como pôr termo a isto?».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se – Diário: 1969-1968»).


Alberto Franco Nogueira com John F. Kennedy (Washington, 1962). Ver aqui e aqui


Vida Conversável


Uma ideia que se pode ter e que alguém poderia tirar das palavras que o meu amigo acaba de pronunciar, é que o rio está fora da gente e quando se quer ir às nascentes tem-se realmente de ir contra a corrente. Mas outra ideia que se pode ter é a que as nascentes estão dentro da própria pessoa e que, muitas vezes, as condições da educação, económicas ou sociais em que se vive, a ideia que a pessoa frequentemente tem, que pode ser uma ideia falsa daquilo que deve ser a sua própria vida, leva a que nós próprios desconheçamos as nascentes e que, de repente, se produza um fenómeno qualquer no qual tudo o que está à volta se quebra e descubramos as nascentes em nós próprios, tendo a alegria de ver que fora está um rio a fluir, que brota dessas mesmas nascentes, ao contrário daquele que encontrámos antes e que era de certo modo alheio ao que estava oculto em nós próprios e devia soltar-se.

O que aconteceu comigo na ida para o Brasil foi que toda a vida em Portugal tinha sido condicionada pelo ambiente português, o ambiente muito forte que existia dentro da minha casa no Porto, aquela onde me criei e eduquei. Mesmo nas instituições que pareciam mais livres, como a Faculdade de Letras do Porto e outras, existia um peso muito grande daquela sociedade portuguesa formada pelos que tinham ficado em Portugal, pois os que puderam sair do país logo no século XV, ou sobretudo no século XVI com o aparecimento do Brasil, com a oferta de uma terra onde as pessoas se podiam estabelecer e onde não havia qualquer pressão do quadro social, que em Portugal era muito desagradável, onde iam encontrar os grupos de índios que estavam muito mais correndo no rio que deles próprios devia brotar, do que aquele rio em que contra vontade tinham estado em Portugal durante tanto tempo e que se cá continuassem os levaria ao afogamento. Um rio tão denso que eles nem sequer tinham possibilidade de nadar nem de se deslocar e onde acabariam por ser jogados e ali mesmo sepultados.

Então ao chegar ao Brasil logo várias coisas foram sucedendo. A primeira, talvez, foi que me encontrei a mim próprio, de repente, descobri-me, sem que houvesse qualquer acto voluntário: as coisas foram realmente sucedendo e a única virtude que se poderia pôr da minha parte é que eu me deixei levar por aquilo que despertava em mim ou que, parecendo vir de fora, efectivamente, me batia à porta para que eu abrisse. Quer dizer, a minha atitude no Brasil pode ser uma atitude que as pessoas achem muito interessante porque me mudou, porque abriu algo que estava fechado, mas que outros podem censurar como se fora um abandono de normas, de comportamentos, de procedimentos que a pessoa devia respeitar até ao fim da vida. Isto é, o meu comportamento no Brasil, nos primeiros tempos, pode ser olhado como coisa perfeitamente censurável, ou então, como algo em que me deixei abrir, me deixei ser o que eu próprio na realidade era e não aquela coisa artificial que fui durante a minha vida em Portugal, quer nas atitudes de complacência com o que me rodeava, quer nas próprias atitudes de revolta contra o que me parecia opressivo. Quer dizer, a minha abertura no Brasil, no meio em que mergulhei e no qual as coisas foram sucedendo sem que eu remasse contra a corrente que ia encontrando – isso é que é importante – é a tal viagem às nascentes: abandonei-me à corrente e parece que o rio dava uma volta ao mundo sobre si próprio, voltava à nascente e depois eu não tinha mais trabalho nenhum senão o deixar levar-me pelas águas, abandonar-me completamente ao que ia acontecendo pelo mundo. Assim, se nos primeiros tempos do Brasil tiver de dizer em termos que toda a gente entenda qual foi a minha atitude, direi que não foi uma atitude voluntária com um plano a cumprir, mas sim uma atitude de abandono ao que vinha, de ir ao sabor da corrente e depois a própria corrente ia-me fazer encontrar aquilo que de facto poderia ser interessante para mim e que no fundo me formou.


Kyoto, 1963: Agostinho da Silva, Cláudia Lemos e Secretária de Estado do Brasil.

Afinal, o que era? Eu, como que dei um pulo atrás de mim próprio e fui inserir-me no século XV, por exemplo, e sentir o mesmo que sentiram os portugueses idos em direcção a África para fugirem do regime económico, social e religioso de Portugal, ou que depois se estabeleceram no Brasil. Quer dizer, o que o Brasil fez comigo, logo que lá desembarquei, foi fazer-me dar um pulo como se tivesse pisado uma mola no chão, para ir cair aí pelo século XV ou XVI.

Bem, então fui inserir-me na corrente da história, uma história diferente daquela que corria em Portugal. A que fluía no nosso país era apesar de tudo, digamos, a dos revolucionários ou subversivos com os quais eu também tinha estado em contacto – nunca pertenci a nenhum partido revolucionário ou subversivo ou coisa semelhante, mas de facto, as pessoas com quem me ligava mais eram as que estavam contra o regime ditatorial de Salazar... Ali mesmo, essa revolução, esse estar contra a ditadura de Salazar, era alguma coisa que pertencia ao quadro da história em Portugal e que, curiosamente, se diluiu por completo no Brasil. Na minha chegada àquele país eu posso dizer que não era mais hostil ao regime de Salazar coisa nenhuma. Poderia até dizer que apesar de estar em contacto com tantos portugueses lá exilados, eu não estava nada solidário com eles. Entendia que estivessem contra o regime, porque muitos não estavam na corrente do Brasil, embora fora de Portugal ainda continuavam na mesma corrente de outrora, e isso pode ter sucedido afinal a muita gente dos séculos XV ou XVI, se bem que me pareça que não. Porque os portugueses com quem mais me dava eram aqueles que por motivos políticos tinham sido obrigados a exilar-se, não tinham embarcado voluntariamente, ao passo que os outros, os dos séculos XV ou XVI, que achavam que para eles o ar de Portugal se tinha tornado irrespirável, esses foram voluntariamente. E a mim mesmo – eu não fui exilado –, nenhum governo me mandou embora. Foi a mim mesmo que me apeteceu embarcar porque também já não podia respirar o ar de Portugal. Então quando fui encontrar portugueses no Brasil, com muitos deles é evidente que não me entendia porque eles viviam sob a pressão das questões portuguesas, enquanto eu me havia livrado completamente delas. Era como se Portugal, aquele de que eu não gostava, tivesse desaparecido por completo, mas não lhe era hostil. De facto, eu pulei, fui realmente como os portugueses que abandonaram o país porque não queriam o capitalismo que se abateu sobre o comunitarismo – aquilo de que já falámos – foi exactamente da mesma maneira e assim inseri-me na corrente brasileira abandonadamente. Então esse procedimento, para quem o vivesse com olhos portugueses, seria um comportamento absolutamente censurável. Um sujeito que se abandonou a uma vida totalmente diferente daquela que tinha levado em Portugal, com muita coisa que nunca tinha ousado fazer aqui, nem sequer imaginado, e que lá lhe pareceu normalíssima.

Portanto, a primeira coisa que apontaria na minha estada no Brasil foi a abertura de mim próprio, eu fui outro. Provavelmente, porque ninguém se transforma por completo, eu era o mesmo de Portugal, só que aqui estava metido naquela armadura dos guerreiros medievais e que se achava que devia ser a norma corrente. Por exemplo, andava sempre de gravata, colarinho, aparecia sempre onde devia, da forma que todos achavam bem e comportava-me como um bom elemento social, embora as minhas ideias tivessem sido sempre diferentes das do governo, quer dizer, a gravata era a mesma, a cor é que era diferente. No Brasil tudo isso desapareceu completamente, entreguei-me à vida brasileira, muito mais ampla, muito mais livre e, aos olhos europeus, aos olhos portugueses, muitas vezes censurável em muitos dos seus aspectos. Para mim não foi, inseri-me nela e andei.

Portanto, primeira coisa, no Brasil larguei a armadura portuguesa, nunca mais me importei com as questões, com os conflitos de cá, decidi viver uma vida totalmente diferente, mas uma vida que os portugueses achariam normal em muitos dos seus aspectos.

Segunda coisa, a partir dos primeiros tempos de adaptação, ainda flutuei muito, ainda achei que o Brasil não era o mais conveniente para mim, talvez por causa disso, ainda pensei no Uruguai, na Argentina, mas depois... a pequena intoxicação que já tinha do Brasil, foi suficiente para não poder suportar nem Montevideu, nem Buenos Aires. Tive de voltar ao Brasil, porque também já me era completamente insuportável a ideia de voltar a Portugal...

(In Vida Conversável, Organização e Prefácio de Henryk Siewierski, Assírio & Alvim, 1998, pp. 99-102).

quinta-feira, 30 de julho de 2020

«Portugal teve de resistir a Castela para manter o seu direito de ser»

Escrito por Agostinho da Silva
















«Como arma de ataque ou de defesa, o pau é uma forma tão simples que a etnologia, em geral, não o inclui na categoria das "armas que se seguram com as mãos". No entanto, um bom jogador de pau não receia enfrentar qualquer adversário que use essas outras armas. Põe-se assim o problema de saber se o uso do pau como arma representa apenas um aspecto do uso do pau como implemento de carácter geral, ou se, pelo contrário, o uso do pau em geral representa a ampliação a outras funções daquilo que principalmente e basicamente era apenas uma arma.»

Nuno Russo («Esgrima Lusitana»).


«Era já dia claro; e o sol alto, por essas manhãs de Agosto, começa logo a morder. De castelhanos não havia notícia. Para além do Lena, as dobras do terreno, fechadas de mato, escondiam horizontes. O rei, trazendo sobre a armadura um loudel bordado com palmas verdes cercando escudos de São Jorge, na cabeça o bacinete cilíndrico [o que se conserva no tesouro da Batalha], armava cavaleiros: entre eles Vasco da Lobeira, futuro autor do Amadis de Gaula, tronco dos romances de cavalaria peninsulares. Tinha ao lado o arcebispo de Braga, D. Lourenço, nosso conhecido, pitorescamente arranjado; levava no elmo, em vez de pluma, uma imagem da Virgem, e o roquete de bispo por loudel sobre a cota de armas. Diante dele um clérigo erguia a cruz primacial, à imitação do seu predecessor que fora ao Salado com o Santo Lenho de Portel. Havia a maior extravagância nas armas e armaduras: bacinetes de camal, com caras ou sem elas, solhas, loudéis, cotas, faldões, panceiras, lanças, fachas de ferro e de chumbo, machados: todas as armas, de todos os feitios, mostrando, na sua variedade confusa, a desordem com que tudo se improvisara à vontade de cada qual: desordem, porém, sob que palpitava um pensamento firme e criador.

Ao inverso do que sucedia no magnífico exército castelhano em que a ordem era só aparente, aqui era-o só a desordem. Lá, o exército avançava trazido por um rei enfermo, cercado de povo inexperiente. Aqui, o rei era um rapaz educado pela vida, friamente forte; e o Condestável, escolhendo o lugar do combate, dera a medida do seu génio, até por se defender contra o medo dos seus, encurralando-os num local de onde não havia que fugir senão para o inimigo. As debandadas provocadas pelo pânico eram impossíveis nessa chapada cercada de despenhadeiros, fechada nas costas por uma garganta breve.

Arvorada a sua bandeira santa, aquela que primeiro se desfraldara ao sul do Tejo, quanto partia para os Atoleiros, Nun'Álvares, junto dessa garganta estreita, de joelhos, rezava fervorosamente. Trazia uma jaqueta de lã verde bordada de rosas sobre a armadura completa; à cinta levava a espada que o alfageme lhe corregera em Santarém, e uma adaga que só tirava quando ouvia missa. Orava fervorosamente, prometendo à Virgem um templo em Seiça, ao pé de Ourém, a São Jorge outro, ali mesmo, no lugar que os seus joelhos pisavam. [A igreja de Santa Maria de Seiça começou-a em 1393; a ermida de São Jorge existe ainda na aldeia desse nome].

(...) Foi então o grande alarido da batalha [de Aljubarrota]. Apertados num estreito lugar, a cavalo e a pé, homens-de-armas e peões, cruzavam os golpes. Os portugueses de Castela, vindo do centro da vanguarda e ficando por isso à frente do magote estavam no coração da peleja, que, dos lados, os ginetes castelhanos, destacados, acirravam. Mas o enorme vulcão de homens, cavalos, armas, cobertos por uma nuvem de dardos e setas, revolvia-se impenetrável na sua fúria. Os inimigos, achando uma luta corpo a corpo, tinham deitado fora as longas lanças de combate, ou tinham-lhes partido os contos; pelejavam com fachas, espadas e estoques. Os episódios homéricos repetiam-se, e os milagres, povoando o ar, traziam das nuvens os santos à peleja. Nun'Álvares via uma lança descer do céu e bater em cheio em seu irmão Pedro Álvares, o Mestre de Calatrava, que tombava morto. Revolvia-se a mó dos combatentes em torno da capela de São Jorge: ao lado flutuava ao vento, desfraldada, a bandeira mística do condestável. Uma cutilada fizera voar o elmo encimado pela Virgem: o elmo do nosso arcebispo D. Lourenço, que tinha um gilvaz na cara e a orelha cortada, deitando ribeiradas de sangue. Guevara, o roncador Guevara, untava a face com sangue, dizendo que se tingia com a gente que matava. D. Pedro, ouvindo-o, deu-lhe um golpe de través que o decapitou. Velásquez, o grande caçador, Sanchez de Toledo, o letrado, Galvez, o Sem-medo, Montachez, Oropesa, Mondonedo, acabaram todos num feixe às mãos de um só, o António. Salazar, o grão taful, o mais célebre rufião de Sevilha, abandonado pela amante e arruinado, investiu com o Gaspar que o levantou nos braços e o matou, a pernear, com a própria espada dele. Hilário morreu murmurando o nome da sua Antónia. O Lopo e o Vicente, Orestes e Pílades de Lisboa, que tinham jurado morrer juntos, acabaram abraçados. O Giraldo, sem escudo, das muitas cutiladas que levara, tomou-o do Perez, matando-o; e mataram-no a ele, rompendo-lhe o mesmo escudo com uma estocada, e metendo-lhe em hastilhas pela barriga dentro. Mem Rodrigues, lavado em sangue, deixava um rasto por onde passava. O Telo era morto; os Tabordas, Gonçalo Vasques, D. João, senhor de Galiza, Pêro Dias, o conde de Vilalpandos, Manrique: castelhanos e portugueses de Castela, caíam por terra agonizantes. D. Pedro, Conde de Vilhena e condestável, jogava a vida a golpes de facha com os Vasconcelos e com Vasco Martins de Melo, que o mataram.

E quando a vanguarda portuguesa cedia, Nun'Álvares, fitando a sua bandeira desfraldada ao vento, via-a cercada por um bando de pombas brancas que o enchiam de valorosa esperança. O rei vinha correndo da retaguarda em seu auxílio, guiado pela Senhora de Oliveira, de braços abertos... São Bernardo aparecia também, empunhando o báculo num braço de monge, donde caía um paludamento retinto em sangue. O céu abria-se para guiar a ideia alucinada pelo fragor da luta e o braço hirto nos crispamentos do instinto orgânico. Vinha o rei correndo e combatendo no meio da horrenda batalha, quando o Sandoval, aparando-lhe um golpe de facha, o desarmou, fazendo-o cair de joelhos. Estava por terra: ia morrer? Não; ergueu-se num salto, a investir; mas já o Macedo varara o castelhano com uma estocada deixando-o estendido. E com o socorro da retaguarda, reforçada pelas alas, todos os portugueses, reunidos, repeliram gradualmente os inimigos triturando gente e cavalos, castelhanos e franceses, numa confusão medonha de ver.

Observando que a balança pendia contra ele, o rei de Castela, içado em braços a uma mula, ardendo em febre, ordenou que a segunda linha avançasse, desenvolvendo em crescente, à moda dos árabes, para envolver os portugueses. Mas essa segunda linha não estava formada ainda; ainda o couce do exército com muita peonagem não concluíra a marcha; avizinhava-se a noite; e o movimento para avante chocava-se com o movimento de recuo, já declarado nos combatentes.







O Mestre de Alcântara, porém, com a sua cavalaria de homens-de-armas e ginetes, que torneara, como vimos, o arraial português por leste, assaltava-lhe, entretanto, sem êxito, a estacada de couce, no curral das bagagens onde os besteiros e peões se viam em perigo. A batalha que se vencia na frente, podia tornar-se em derrota pelas costas. Nun'Álvares correu lá. Estava a pé: tomou o cavalo do comendador-mor de Cristo, Pêro Botelho. Foi lá, restabeleceu os ânimos, repeliu os assaltantes, conjurou o perigo. E tornando à vanguarda, excitando o valor até à loucura, impeliu-a contra o inimigo, obrigando-o a retroceder. Restabeleciam-se as linhas de batalha; oscilava favoravelmente a grande seara de gente em armas; pendia do lado de Castela, começando a fraquejar e a ceder... A vitória estava ganha. Encerrado no seu fojo, o Condestável obtinha a vitória, nesse dia que ia caindo rapidamente, realizadas, uma a uma, as suas previsões, desde o instante em que, rompendo com o conselho e com o rei, abalara de Abrantes, disposto a impedir aos castelhanos a marcha sobre Lisboa.

E toda esta batalha, tão longa a contar: momento de vida intensa em que as linhas valem por anos, durara apenas meia hora. Anoitecia. A hesitação na vanguarda tornara-se em retirada.

- Já fogem!, já fogem! - gritavam do lado de cá; e a retirada transformava-se num debandar doido, procurando cada qual a sua besta para correr mais rápido, perdendo-se pelos matos, assustando o crepúsculo com um sussurro monstruoso de gritos de aflição e interjeições de ansiedade. A bandeira de Castela tombara por terra: o dragão mordia o pó, as divisas dilacerava-as o mato espezinhado, retinto em sangue. Os largos campos para os lados de Alcobaça palpitavam com a gente dispersa fugitiva, escondendo-se pela charneca, envolvendo-se nas dobras do manto da noite que vinha descendo. Acordavam as aldeias dos coutos de Alcobaça, e os aldeões, que o medo fechara em casa, saíram a ceifar na seara aflita dos desgarrados, matando e roubando. A padeira, em Aljubarrota, dizia-se que matara sete com a pá do forno.»

Oliveira Martins («A Vida de Nun'Álvares»).


«Depois que faleceram sem descendência os filhos de Filipe o Belo, foi dada a coroa de França ao sobrinho deste monarca, Filipe VI, filho do Conde de Valois. Assim foi a linha directa dos Capetos substituída no trono pela de Valois (1328). [A dinastia dos Capetos fora inaugurada por Hugo Capeto (987-996). A este seguiram-se em França os seguintes monarcas: Roberto (996-1031), Henrique I (1031-1060), Filipe I (1060-1108), Luís VI (1108-1137), Luís VII (1137-1180), Filipe Augusto (1180-1223), Luís VIII (1223-1226), Luís IX, mais conhecido por S. Luís (1226-1270), Filipe III (1270-1285), Filipe IV o Belo (1285-1314), Luís X (1314-1317), Filipe IV (1317-1322), e Carlos IV (1322-1328). Os três últimos eram filhos de Filipe o Belo].

Eduardo III, rei de Inglaterra, neto de Filipe o Belo por sua mãe Isabel, julgou-se lesado. [Contra as pretensões de Eduardo III foi invocada a lei sálica, que era uma colecção de costumes políticos e judiciários dos francos sálios e chegou a ser considerada como uma das leis fundamentais da monarquia francesa. Essa lei proibia a sucessão na linha feminina]. Nesta oposição de interesses teve origem uma guerra que devia prolongar-se por mais dum século (1337-1453).»

Fortunato de Almeida («Curso de História Universal», Vol. II).


«Esperava-se que a intervenção inglesa rematasse decisivamente a obra da independência iniciada pela dinastia nova, e assente já sobre os alicerces de duas campanhas reais: a de 1384, vencida pela Providência que desencadeara a peste; e a de 1385, vencida em Aljubarrota pela arte de Nun'Álvares. Seguindo a questão da herança de D. Pedro, o Cruel, Portugal, explorando a sua posição marítima, pedia por mar auxílio à Inglaterra, para se defender contra o Estado central da península hispânica. E Castela pedia-o à França vizinha, que nesses tempos, invadida pelos ingleses, mais ameaçada e quase perdida estaria, se a coroa castelhana fosse cair sobre a cabeça de um dos duques saxónicos. Por tal forma, a questão de Portugal era, pela primeira vez, o que tantas vezes foi depois: um episódio na grande contenda da influência ocidental europeia, debatida entre a França e a Inglaterra, quando o mundo culto podia dizer-se limitado aquém-Reno; e quando, no equilíbrio das nações modernas, nem a Alemanha, nem a Rússia, intervinham predominantemente.

A política internacional de D. João I estava indicada, e até imposta pelas circunstâncias. A aliança inglesa era a âncora que prendia à praia lusitana a nau imperfeita da nação portuguesa, ameaçada de naufrágio com os temporais de leste. Convidando o duque de Lencastre a vir tomar conta da coroa castelhana, talvez D. João I nem acreditasse completamente no êxito da empresa, nem sequer o desejasse; mas os ingleses, que vinham reivindicar para si próprios o trono, eram inimigos novos do seu inimigo, e aliados na campanha ainda não resolvida, apesar da série de vitórias que assinalavam os dois anos de guerra. Por isso, imediatamente satisfez o pedido de navios, e, de par em par, abriu os braços à expedição anunciada, preparando-se para cooperar com ela. Quer perdessem, quer ganhassem, o proveito para Portugal era certo: acaso seria maior ainda se perdessem, do que se ganhassem. Se Castela caísse nas mãos de ingleses, a sorte da França ficaria arriscada; e perante uma tal grandeza de forças, Portugal baquearia.

A aliança inglesa, portanto, servia para conter as ambições castelhanas: mas só para isto. O procedimento posterior de D. João I, sempre aberto à paz, sem abusar da vitória, sempre retraído perante os ingleses, sem faltar aos pactos da aliança: mostra como, no seu alto espírito político, a situação particular de Portugal se desenhava nitidamente. Era necessário conservar o trono castelhano, mas enfraquecido; e para isso era mister dar a mão ao inglês, mas contendo-lhe as ambições.




Por seu lado, os ingleses não podiam desconhecer que serviço estavam prestando à revolução portuguesa, permitindo o aliciamento de tropas e organizando a expedição do Lencastre; e sabendo-se que importância tinha já a marinha portuguesa, então sem dúvida superior à dos futuros dominadores dos mares, compreende-se a razão de ser da primeira convenção com Ricardo II, celebrada em Londres pelos representantes de Portugal. Por virtude dela, D. João I prestava ao seu aliado o auxílio de forças navais para as empresas em que andava empenhado. Não há, com efeito, compensação no corpo do tratado pois a compensação real estava nos factos simultâneos, cujo alcance para o êxito da quase temerária revolução portuguesa era palpável, e num sentido decisiva.»

Oliveira Martins («A Vida de Nun'Álvares»).


«O fiel de Deus já se acha no guerreiro, ao modo de como se acha em Elias, nas violentas guerras contra os sacerdotes de Baal. Elias arde em zelo pelo Senhor Deus dos Exércitos, Nun'Álvares apresenta-se como o "capitão devoto" que, afastado das tropas, ora e invoca o seu Deus, "suma e trina essência", em favor da sua causa, que ele tinha como justa, por ser causa da unidade católica. A sua vocação não é a guerra pela guerra, a sua vocação é a paz. Homem de confiança, vive-a e transmite-a aos súbditos, na refrega da batalha. E, vencedor, "sempre castiga como pai, e como juiz nunca". A imagem, assim proposta como que em antinomia, tem que se lhe diga: castiga como pai, não julga como juiz. Leia-se: a justiça acha-se limitada pela misericórdia. No essencial, a justiça; no resto, o amor.»

Pinharanda Gomes («O Galaaz do Carmelo», in «S. Nuno de Santa Maria - Nuno Álvares Pereira. Antologia de Documentos e Estudos sobre a sua Espiritualidade»).


«Venerado como santo, divinizado como herói, pela imaginação de um povo inteiro, Nun'Álvares, cuja fé realizou o milagre de remir, para lhe dar um posto na história da humanidade, marcou-lhe ao mesmo tempo o destino, quando, acabada a empresa, foi sepultar-se na cova de um mosteiro. Também Portugal, rematada a campanha heróica da sua expansão ultramarina pela catástrofe com que terminou o século XVI, se condenou ao sepulcro frio de uma devoção extenuante e dissolvente. Só os indivíduos podem aniquilar-se esteticamente: os povos, finando-se, desorganizam-se.

A revolução de 1383 e a dura guerra a que assistimos, mantendo a autonomia política do Estado português, deram-lhe porém uma nova alma: fizeram deste principado uma nação consciente da sua vontade colectiva; pelo mesmo tempo em que, na Castela vizinha, se ia definindo claramente o destino que a assinalava para a hegemonia, e afinal, para a unificação dos Estados peninsulares. Até então, em toda a Espanha, não houvera nações, na rigorosa expressão da palavra, mas sim apenas reinos, ou principados autónomos, nascidos no tumulto da reconquista, delimitados pela força das coisas, variando as fronteiras à mercê da arte, ou do valor dos soberanos. Desde a queda dos visigodos, a Espanha ficara decapitada, e as guerras entre os Estados cristãos são de facto guerras civis. Em cada Estado, as classes, incluindo a nobreza, eminente numa classe quase exclusivamente militar, não se sentem estrangeiras perante as vizinhas, e combatem por um ou por outro lado, instigadas por motivos vários: nunca pelo sentimento de solidariedade nacional.

Com o findar do século XIV mudam as coisas, e os sentimentos novos que se definem preparam o regime posterior do dualismo, em que o antigo Reino de Castela, passando mais tarde a chamar-se a Espanha, exprime com uma palavra só o pensamento unitário da sua existência. Na Espanha ficava todavia Portugal, e depois do baptismo de 1385, Portugal era também uma nação; e também no espírito dos seus monarcas principiaram a florir as ambições de realizar a unidade a seu benefício.

Ao problema propriamente geográfico acresceu desde logo o problema orgânico, pois a ideia nova de Nação diferia por completo do facto espontâneo dos Estados medievais. Eram, estes, agregados de famílias nobres e de vilas burguesas; existiam, federativamente, por justaposição, indiferentes às condições de proporção: a grandeza estava no esplendor das façanhas heróicas! Agora, a nação surgia com os caracteres de um ser uno e vivo, tendo como cérebro o Pensamento, incarnado na pessoa simbólica do rei. Das proporções do Estado dependia a sua grandeza; da sua grandeza a possibilidade de satisfazer à missão magnífica em que se sentia investido. Impossibilitado de se expandir na Península, Portugal viu-se forçado a embarcar. Ceuta foi a primeira viagem: Alcácer-Quibir a última.

É impossível reconstruir a história com hipóteses; mas a imaginação pára inquieta perguntando, se, com efeito, o sonho de Campanella não poderia ter sido um facto, caso o filho de D. João II não tivesse morrido de uma queda estúpida. O herdeiro do trono de Avis, monarca de toda a Península, senhor de todo o mundo extra-europeu, poria talvez sobre a cabeça a coroa de um império maior e mais firme do que foi o de Carlos V. Unificando-se politicamente a Península pelo ceptro de um rei português, enfeixando-se todos os Reinos da Espanha no período ascensional da sua fortuna, é possível que a Portugal sucedesse como ao Aragão; ao passo que, depois, quando, sobre uma catástrofe, a união se fez, o povo que num século atingira a plenitude da glória, identificou a união com a desgraça, chorando nas mesmas lágrimas a independência perdida e a fortuna dissipada. E se o acidente fatal de 1491, quando a princesa Isabel de Castela ficou viúva, não tivesse malogrado a ambição ingente do maior homem, talvez, que em Portugal nasceu, a coroa do herdeiro de D. João II, rutilante com as visões diamantinas de Nun'Álvares, que foi o Paracleto português: a coroa rutilante de Avis não teria, é quase certo, rolado pelos areais de Alcácer-Quibir, dispersando as suas pedras desengastadas como lágrimas soltas na face adusta da aflição cruciante de um povo.







Essa aflição, esse doloroso martírio com que nós, portugueses, pagámos e ainda pagamos, um instante de fortuna incomparável, não devem hoje surpreender-nos, pois uma das verdades sabidas é que os momentos de bem-aventurança na Terra são expiados sempre por largos tempos de amargura. O homem não nasceu para a felicidade, por isso mesmo que a natureza lhe deu a imaginação com que se eleva acima do mundo: a felicidade é o estado próprio dos seres apenas vegetativos. Tempo houve, porém, em que desta própria amargura da vida, a imaginação humana fez a escada mística por onde subia, das portas da morte, às visões luminosas do Céu.

Exemplo superior da concepção cristã da vida, e por isso venerado como santo, Nun'Álvares é porventura o tipo culminante da energia própria desta nossa raça peninsular ibérica, idealista na alma, e afirmativamente heróica. O heroísmo encontrou objecto no sentimento histórico da independência que transformou em consciência nacional; o idealismo vasou-se no credo religioso que havia de abrasar toda a Espanha, produzindo um dos fenómenos mais extraordinários da alucinação colectiva.

Históricas, ou transactas, as formas em que a sua energia e o seu pensamento se moldaram, por isso mesmo Nun'Álvares se levanta no passado remoto como o representante eminente do tempo em que existiu. Herdeiros das lições do passado, filhos de um mundo envelhecido, não podemos, é certo, repetir no seu objecto a devoção quase histérica dos santos medievais; mas havemos de aprender com os heróis, qual foi Nun'Álvares, de quanto o homem é capaz, desde que obedece aos impulsos generosos do seu coração e aos movimentos decididos da sua vontade enobrecida.

A alucinação medieval desfez-se logo que outra vez se ouviu, na Renascença, a voz diamantina da razão, e o encanto da beleza encheu de novo o mundo, repovoando os ares e os campos com os génios antigos da harmonia. Morrer bem: tal foi a sabedoria suprema de todos os tempos. À eutanásia dos gregos sucedeu o suicídio claustral com a esperança numa ultravida recheada de piedosa fortuna; mas a ideia que hoje fazemos da morte parece-se mais com a mais distante. Por isso as tebaidas, os claustros, os eremitérios, caíram em ruína; nem por isso, todavia, a noção da vaidade universal das coisas é para nós menor do que era para Nun'Álvares, apesar de ter descido voluntariamente do sólio onde se sentava à Távola Redonda da glória e da grandeza, para se esconder com humildade na sombra espessa do claustro. A certeza do prémio transcendente diminui o mérito da abnegação; e neste sentido o fim de Sócrates vale tanto como o dos santos; e talvez a tragédia de Útica valha mais do que muitos sacrifícios.

Nos tempos modernos, ninguém soube a Vida melhor do que nós, os povos da Espanha: isto é, ninguém afirmou tão superiormente a energia da vontade humana. Ninguém tão-pouco melhor soube morrer, do que o povo que incarnou em si, paradoxalmente, a teoria da morte no seio do Eterno: esse pensamento agudo como a lâmina de uma espada que, dobrando-se e traspassando o mundo, na sua redondeza, veio cravar-se-nos no coração para no-lo dessangrar. A Espanha foi vítima de um erro de definição; e se um dia os homens atinarem com a verdadeira teoria da Vida, ninguém, tão-pouco, saberá morrer por ela como o povo de entre todos gerado para o heroísmo.»

Oliveira Martins («A Vida de Nun'Álvares»).






Capelas Imperfeitas


Portugal teve de resistir a Castela para manter o seu direito de ser


«Oh que formosa coisa era de ver...»

FERNÃO LOPES


Se, porém, está marcado nos destinos que se seja ao mesmo tempo fraterno e universal, o que muitas vezes sucede é que se tenha de começar por pôr de lado aquilo que é apenas uma falsa fraternidade e repousa no desejo que têm os outros de exercer as suas escravaturas, tanto mais perigosas e difíceis de evitar quanto, na maior parte das vezes, se acobertam com os pretextos de uma irmandade que é necessário não quebrar. E Portugal teve, quase logo de início, de tomar a sua definida atitude em face de uma Castela que se não resignava a deixar que cumprisse seu particular destino uma daquelas regiões periféricas sem as quais a vida material lhe seria extraordinariamente difícil. Portugal teve de resistir a Castela para manter o seu direito de ser; teve, por obediência ao pai que o concitava com o seu chamamento, de ser aquela espada que fala o Evangelho e começar por actos de guerra a missão que era, afinal, essencialmente de paz; teve, para poder unir mais tarde, se separar primeiro.

Fê-lo como logo de princípio se constituíra em nacionalidade, apoiado nas características físicas de sua terra, toda em brando declive até o mar; apoiado no voluntarismo de sua gente, disposta a talhar-se um domínio que fosse não o contrário, mas o domínio daquela Santa Maria, a quem o Rei entregara o território; o único domínio sobre o mundo daquela que nada tivera enquanto o universo pagão se sustentara vivo e continuava a nada ter numa Europa que, no fundo, pagã continuava; o domínio daquela que representava a porção virgem da alma que sempre persiste em todo o homem e em que sempre se pode renovar o milagre de nascer um Deus; finalmente apoiado, pelo que respeitava ao irmão-corpo, numa economia que era das mais importantes para a Europa e que, por outro lado, se imbricava perfeitamente em todo o jogo da economia inglesa.

E é por este lado que a guerra da independência de Portugal é, paradoxalmente, ao mesmo tempo que o faz voltar as costas à Europa, o único momento em que Portugal está fundamentalmente interessado numa guerra europeia. Atoleiros, Trancoso, Aljubarrota e Valverde são episódios da Guerra dos Cem anos. Aos espanhóis aliados da França se opõem os portugueses aliados de Inglaterra; e, neste ponto, a vinda dos arqueiros ingleses significa o primeiro dos desembarques que, de vez em quando, para defender sua insularidade, a Inglaterra tem de realizar na Europa. Mas não só politicamente Portugal se opõe à Europa, não só militarmente, e pondo de parte todos os desencontros de terreno e de tempo, Nunálvares está contra Joana d'Arc. Em toda a sua luta, jamais o Português tomou uma atitude que pudesse de algum modo envolver uma quebra da unidade da Igreja. Porque a realidade era essa: todo o atentado contra a unidade da Igreja, todo o gesto por menor que fosse para impedir que Roma, pelo menos espiritualmente, governasse todo o Ocidente da Europa como ponto de partida para governar o mundo, era efectivamente um atentado contra o cristianismo; para o pormos mais claro no vocabulário moderno, contra o catolicismo.

As objurgatórias de Camões contra os outros povos que se denominavam cristãos e estavam por suas lutas internas enfraquecendo o cristianismo têm aqui o seu ponto de arranque. O infiel perdurará na medida em que essa fraternidade cristã se quebrar. O bárbaro continuará existindo na terra na medida em que o civilizado se dividir. E que estava fazendo apesar de tudo Joana d'Arc? Estava dando, quando tomava para si o direito de interpretar pessoalmente, segundo seu sentimento e sua razão, as vozes do Céu, estava dando a primeira base para o protestantismo germânico; e estava dando, quando defendia uma França contra uma Inglaterra, o primeiro reconhecimento daquele nacionalismo que tão anticristão se haveria depois de mostrar; tão protestante, de igual modo. Por esse lado se explica que um tribunal eclesiástico a condenasse. E se explica depois que a Igreja a canonizasse: porque na sua luta dramática, quando tudo parecia conluiar-se para a desesperar, Joana jamais deixou de ser humilde; como S. Francisco, defendendo doutrinas tão semelhantes às de Valdus, humilde fôra e, por humilde, santo; Valdus, porém, por seu orgulho, herege.


Mas Nunálvares estava, por uma parte, claramente obediente a um Papa de Roma, enquanto o castelhano, cismático, defendia o Papa de Avinhão; por outra parte, ele não estava batendo-se por uma nação portuguesa contra uma nação espanhola. Em primeiro lugar porque não havia uma nação espanhola, embora as tropas que invadiram o país não fossem exclusivamente castelhanas; em segundo lugar porque mesmo muito tempo depois de terminada a guerra, nunca os portugueses negaram que fossem espanhóis no sentido de pertencerem à Península: espanhóis, sim, mas espanhóis de Portugal, não espanhóis de Castela; espanhóis, mas espanhóis que defendiam, contra um estilo de vida de opressão e de fanatismo e de pura cobiça, um estilo de vida de liberdade, de compreensão e de cooperação que deveria ter sido, por suas razões históricas e por suas tradições, o verdadeiro estilo de vida da Península; espanhóis, mas espanhóis que defenderiam com o seu sangue e quantas vezes fosse preciso, atravessando os martírios de Almada ou de Lisboa, o direito de determinarem o seu próprio destino: e que, graças à geografia de seu território, graças à qualidade de sua gente, graças à fieira de seus portos marítimos, graças à sua plataforma de excelente pesca, graças a seus verões de excelente sal, podiam realizar as façanhas de que não seriam capazes nem o Sul, nem a Galiza, nem Catalunha. A guerra da independência não é uma guerra entre grupos nacionais, mas uma guerra entre irmãos: a guerra que o Evangelho já previra.

Quanto à aliança inglesa também não era ela, no seu aspecto histórico, uma aliança fundamental ou o reconhecimento de uma irmandade superior à irmandade peninsular ou, digamos, mais real do que ela. A aliança inglesa era, por uma parte, uma aliança de interesses, e é bem sintomático que seu primeiro acto tivesse sido comercial, e muito mais sintomático que, de um lado, o tivesse assinado o Rei de Inglaterra e, do outro lado, um negociante ou armador do Porto; era como se do lado de Portugal, o comércio fosse uma actividade particular naturalmente útil ao País e que ele não podia dispensar, mas de que o soberano, como seu representante supremo, não tomava conhecimento oficial; e como se, do lado da Inglaterra, o comércio fosse uma actividade nacional, profundamente intrínseca à nação e, como tal, sancionada pelo Rei; coisa que de jeito nenhum foi desmentido pelo que se seguiria na história da expansão britânica.

Mas era também como uma aliança de esperanças. O carácter português e o carácter inglês alguma coisa tinham de semelhante, talvez, abrindo porventura mais crédito do que elas merecem a hipóteses étnicas, pelo que em ambos havia de céltico. O lirismo, como uma das qualidades mais nitidamente estabelecidas em ambos, em ambos igualmente se disfarçava pela discrição e pelo rendido respeito à pessoa humana, inclusive à própria; a aventura do comércio e da navegação a ambos tentava, como igualmente os atraía a terra nevoenta e misteriosa em que se sumira o Rei Artur e em que D. Sebastião se viria a sumir; romances de cavalaria de um a outro passavam e em ambas as terras encontravam o mesmo interesse, mais do que interesse, o mesmo poético toque de inclusão da ficção na vida; a mesma infantaria, provocada por causas semelhantes se levantava contra uma cavalaria que as circunstâncias democráticas, logo depois duramente reprimidas em quase toda a Europa, condenavam para a história. Se juntarmos a isto a perfeita coordenação das duas economias como, pelo que podemos reconstituir através de raros documentos, um país fornecendo ao outro o cereal que lhe faltava, em troca das frutas, dos peixes e dos vinhos, podemos compreender que, para além dos interesses momentâneos, pudesse ter passado em cérebros portugueses, tão afeitos às largas concepções políticas, a ideia de uma aliança que envolvesse o mundo numa tessitura cristã. Ideia que ainda hoje não estaria totalmente perdida se se pudesse aproveitar Goa como ponto único de enlace entre uma Commonwealth britânica e uma comunidade de nações de língua portuguesa.

Igreja da Nossa Senhora da Imaculada Conceição em Goa.


Simplesmente, os fados ou as ideias humanas, outros caminhos ordenaram. A Inglaterra, que já entrara na luta contra a França, não para defender o seu direito de ser livre, mas para conquistar territórios em que se não falava a sua língua, amplamente merecera que Joana a batesse; acabou por defender, e penosamente, o direito de possuir uma insularidade, que, por vezes, tanto desajudou o mundo, mas que seria o seu sólido porto de armamento e o seu abrigo inexpugnável durante o período de aventuras ultramarinas. Por outro lado, e como consequência fatal do seu primeiro impulso, e sem que possamos dizer onde um é causa e o outro efeito, mas antes os tomando como dupla manifestação de uma mesma realidade, como uma espécie de corpo e alma de uma certa época da história o capitalismo e o protestantismo vão-se apossar da Inglaterra. Vão separá-la de Roma; e, por a terem separado de Roma, vão-na separar, não diremos para sempre, porque afinal todo o pecado é remissível, mas pelo menos para muito tempo, daquela humanidade que anseia, acima de tudo, por que finalmente se estabeleça na terra um regime de fraterno viver.

Mas com Portugal não é isso que sucede; Portugal entra na guerra e sai da guerra como o grande defensor da unidade da Igreja; a vitória da véspera de Santa Maria é igualmente a vitória de Roma sobre Avinhão e jamais se quebra a fidelidade portuguesa à Santa Sé, mesmo quando parece errar o Rei ou quando parece errar o Papa. E Portugal entra na guerra e sai da guerra não defendendo insularidade alguma, não defendendo isoladamente algum; o que ele ganha e faz reconhecer é o seu direito ao Atlântico, é o seu direito de ser irmão dos outros povos do mundo. E o ganha contra as tentadas opressões de uma tirania, que tanta vez depois assaltará Portugal, ou de dentro ou de fora, e que no fundo o que procurava ou tem procurado é isso mesmo: fazer de Portugal não um país dos sete mares mas um país das pequenas províncias, quando muito de estreito conforto burguês; cortar a sua vocação missionária; pautar o seu viver não pela epopeia, mas pela contabilidade.

É esse surto magnífico de vida; essa vitória do que é santo contra o que é temporal; essa unidade da nação em defender o futuro, que vai ser de sacrifícios, de saudades e lágrimas, segundo o seu signo inicial; é esse apostar-se à História Trágico-Marítima, quando podia ter pactuado e se rendido; é esse ser do ser, arriscando o que é, que vão dar a eloquência, a emoção, a piedade, a sensibilidade e a força, a inteligência e a poesia, a veracidade, a criação de um Fernão Lopes, que vão fazer dele, não diremos talvez o autor de um novo Evangelho, mas pelo menos de novos Actos dos Apóstolos; dos Apóstolos que nascem ali para a preparação de um catolicismo universal. O que faz que Fernão Lopes bata Ayala, ou Froissart é que ele conta o seu país, e o seu país daquela hora única no mundo, não conta uma Espanha ou uma França, tão vulgares, apesar de toda a sua grandeza, como em qualquer outro tempo; é grande o artista; maior, porém, por detrás dele, Portugal. (in Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, Guimarães Editores, Lisboa, pp. 45-54).