Texto baseado nas palavras proferidas por Franco Nogueira no Conselho de Segurança, a 24 de Julho de 1963
«Ora a verdade é
que no povo português concorrem duas características que são virtudes das mais
altas quando tomadas no todo – isto é, a Nação – mas que não deixam de ter um
reverso quando projectadas na vida diária dos vários escalões dos agregados
políticos e sociais. Refiro-me ao extremado sentido individualista do português
e à sua generosidade de alma. Aquele leva-o a retrair-se perante toda a
tentativa de alinhamento comunitário, em que as suas convicções sobre as coisas
e as pessoas haveriam de subordinar-se à acção de uma minoria dirigente. É
inevitável criar-se uma espécie de desconfiança perante a autoridade, não
porque se lhe negue idoneidade, mas porque se deseja que ela seja menos apegada
ao geral e mais ao particular, o que quer dizer ao humano. Daí resultam não
poucas contradições na maneira de ser dos portugueses, que o estrangeiro
dificilmente pode compreender: profundamente católico, quando religioso, o
português é, ao mesmo tempo, anticlerical; estudioso e cumpridor não respeita,
por princípio, o mestre; altamente competente quando profissional tem
dificuldade em adaptar-se ao trabalho de conjunto. No círculo do seu viver
quotidiano cada português tem conceitos próprios que diferem dos do seu
vizinho, num pormenor que poderá ser secundário mas é quase sempre bastante
para impedir que se dêem as mãos no mesmo esforço. Este traço do carácter
português dá às nossas gentes apurado sentido crítico que, perante os
acontecimentos, as leva desde logo a aperceber-se do que neles é genuíno e
essencial; mas que ao mesmo tempo lhes reduz as proporções e provoca a
observação arguta, quase sempre com acento nos aspectos negativos das pessoas e
das coisas. Na prática, e em termos da vida política, isto significa que o povo
português a menos que reconheça a presença do ideal nacional, colabora com
dificuldade. Aí se encontra, creio, a explicação primordial do inêxito do
partidarismo político em Portugal; aí se encontra, também, um escolho que exige
determinadas ordens de limitações para que as liberdades políticas possam ser
realmente vividas.
Não se infira daqui que o português é cínico ou interesseiro, pois na origem desse individualismo crítico não se encontra uma atitude intelectual nem um cálculo de utilidade: pelo contrário, é também peculiar do português ser generoso, afectivo, emocional. E é precisamente esse lado emocional que pode arrastar o português a vibrar em volta de um facto, de uma ideia, de uma personalidade. Em tais períodos, o espírito generoso do povo leva-o a perder o seu habitual sentido das realidades. Quando a experiência demonstra que as promessas eram vãs ou a personalidade menos heróica, o português readquire rapidamente o seu equilíbrio embora por vezes com exagerado desânimo. Quer dizer que, também em Portugal, a demagogia pode ter e tem tido os seus êxitos. Mas a nós tem-nos parecido ser esse um caminho pouco honesto, pois que joga em demasia com as esperanças do povo, embora na certeza de não poder satisfazer mesmo os seus anseios legítimos.»
Oliveira Salazar («Realidades da Política Portuguesa»).
«O homem, o homem social, económico e político, está hoje possesso de ideias messiânicas: a sociedade igualitária, a actividade criadora socializada e cientificamente planeada, a felicidade tecnicamente organizada, o governo mundial, a igualdade universal e o desenvolvimento rápido dos povos atrasados. Dado o carácter messiânico destas ideologias, e a sua disseminação pelas grandes massas, a comunidade cristã sentiu-se impressionada por aquelas, e adoptou-as, fazendo-as tão suas que colocou ao seu serviço todo o zelo apostólico e o fervor missionário de que a Igreja é capaz. Muitos vêem aqui um sério risco de cedência às tentações da cidade secular de César, e um perigo de que, de teológica que deve ser, se possa transformar em sociológica a Igreja de Cristo. Seria talvez este o sentido das palavras que o Papa Paulo VI pronunciou em Fátima, quando afirmou ser um mal “que a Igreja substituísse a teologia dos verdadeiros e grandes mestres por ideologias novas e particulares”. O serviço das ideias havidas como messiânicas, e que afinal são provisórias como todo o sistema de governo da cidade, está absorvendo o conceito de Deus, e quase se lhe sobrepõe, e por isso em muitos círculos é apresentado como sendo de anti-Igreja a atitude daqueles que procuram ir ao encontro das massas oferecendo-lhes, sem que o façam em nome de Cristo, aquilo que sabem que as massas gostam de escutar. Devemos meditar profundamente em outras palavras recentes de Sua Santidade quando há pouco proclamou o seu receio de “autodestruição da Igreja”. Porque, com efeito, alguns há que assinalam uma separação ou apartamento entre a Igreja e o destino espiritual do homem: não se vai a extremo de negar que aquela prepare e conduza à redenção e resgaste deste: mas na ordem de precedência atribui-se lugar prioritário ao messianismo ideológico de César, quase se transferindo para a sociedade os predicados de Deus. E neste ponto há quem sublinhe uma contradição que na verdade não se afigura bem esclarecida.»
Franco Nogueira («A Crise Contemporânea: suas Coordenadas», conferência proferida no Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa, em 13 de Fevereiro de 1969»).
«Cabral, Neto e Santos [aquando da recepção papal] encontravam-se em Itália a participar na Conferência Internacional de Apoio aos Povos das Colónias Portuguesas, destinada a mobilizar apoios entre organizações e governos da Europa. A União Soviética, através do Conselho Mundial para a Paz e Cooperação, um organismo ligado ao KGB, ajudou a financiar o encontro».
José Freire Antunes («Nixon e Caetano, promessas e abandono»).
«Foi realmente pena que o nosso Paulo VI não tivesse levado da nação portuguesa o pontapé no traseiro que bem diligenciou merecer».
Santos Costa a Marcello Caetano
III
Quando comentei o discurso do ministro da Tunísia, afirmei que o conflito no Norte de Angola era de facto instigado e organizado no exterior. É importante o ponto, e espero que o Conselho me escute com algum pormenor neste particular. Direi desde já que, nos primeiros meses de 1961, logo afirmámos que eram estrangeiros ou representavam interesses estrangeiros os terroristas que haviam atravessado a fronteira do Norte de Angola. Para além dos factos chegados na altura ao conhecimento das autoridades portuguesas e dos testemunhos das populações das áreas afectadas, é abundante a prova de que mãos alheias dirigiram os ataques terroristas. Do próprio facto de não havermos tomado quaisquer medidas cautelares deverá concluir-se que nenhuma perturbação interna era esperada, ou receada. Na área nenhumas forças de segurança existiam, e justamente por isso os terroristas, durante algumas semanas, assassinaram e esquartejaram pessoas – fossem brancos, negros ou mestiços – mas contra estes crimes não tiveram as Nações Unidas uma sóbria palavra de reprovação. Por outro lado, agitadores estabelecidos no estrangeiro e os seus patrocinadores formulavam ameaças de violência antes desta ser desencadeada. Estas considerações óbvias, se não se quer aceitar a palavra do Governo português, deveriam impor-se às consciências honestas. Todavia, é significativo que em alguns círculos não só era rejeitada a palavra do Governo português, e ignorada a prova circunstancial aduzida, mas esforços supremos foram envidados para convencer o mundo de que o terrorismo estrangeiro, que afectou uma pequena parte do Norte de Angola, constituía um genuíno movimento nacionalista abrangendo todo o território. E durante muitos meses esta deliberada mentira foi repetida para que, a poder de repetição, assim fosse persuadida a opinião pública mundial e se justificassem novas e ilegais interferências de fora. E no entanto, com o passar do tempo, centenas de inquiridores estrangeiros visitaram Angola, e vieram dizer a verdade. Tem agora o mundo perante si os testemunhos de observadores, altamente qualificados e de muitas nacionalidades e profissões, que publicaram os relatos das suas investigações no território.
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Não é hoje já
possível, com efeito, negar que existe uma vasta malha de interesses
estrangeiros, que abrange governos, partidos políticos e até empresas, e que
pretende perturbar a paz em Angola. Não estou fazendo uma afirmação gratuita,
nem utilizando apenas as nossas fontes privadas de informação. Larga massa de
provas pode ser colhida na imprensa mundial, incluindo a que não faz segredo do
seu apoio aos movimentos antiportugueses; e tudo ocuparia vários volumes. Mas é
escasso o tempo, e por isso mencionarei somente algumas declarações de origem
insuspeita. Ainda bem recentemente, The
New York Times, de 7 de Julho de 1963, escrevia: «A Tunísia iniciou o fornecimento de armas ligeiras em Maio de 1961,
logo após o começo das hostilidades em Angola, e continua a dar intermitente
auxílio financeiro e militar.» Mas tornemos ao ano de 1961. Em 19 de Junho
desse ano, Dakar-Matin escrevia: «Ghana tornou-se o arsenal dos combatentes
da liberdade em Angola.» O mesmo jornal aludia à deliberação do grupo de
Monróvia em que este prometia «apoio moral e material» aos que combatessem
Portugal em Angola, e descrevia o desembarque de largas quantidades de armas
russas no porto ghanês de Takoradi, sob a protecção da própria polícia de
Ghana. E Dakar-Matin esclarecia: «Largas partidas daquele armamento são secretamente introduzidas no interior de Angola através da costa.» Na
primeira semana de Agosto de 1961 vários orgãos da imprensa internacional
noticiavam que dois pilotos britânicos haviam descoberto uma rede clandestina
de tráfego de armas para Angola, transportadas em caixas rotuladas de «oleaginosas». O Daily Express, de Londres, afirmava que era organizado em Ghana
aquele contrabando. O Journal du Dimanche,
de Bruxelas, escrevia em 6 de Agosto de 1961 que o tráfego clandestino de
armamento fora iniciado na Primavera daquele ano, que coincidiu com os
primeiros ataques de terrorismo no Norte de Angola, e o New York Times, de 17 de Dezembro de 1961, esclarecia que o treino
de estrangeiros na Tunísia progredia em bom ritmo, e que as armas fornecidas
por aquele e outros países africanos continuavam a afluir a Angola. Em 13 de
Março de 1962, o jornal de Oslo Morgenbladet
inseria uma notícia da Associated
Press, emanada de Léopoldville, em que se corroboravam aquelas informações
e se indicava que voluntários de vários países estavam sendo concentrados para
atacar Angola. Segundo o Observer, de
8 de Abril de 1962, combatentes estrangeiros treinados na Tunísia eram em breve
esperados no Congo. Outras notícias sobre o mesmo assunto surgiram no Glasgow Herald, no New York Herald Tribune, no Christian
Science Monitor, no Washington Post,
todos de Abril de 1962. Citarei ainda o New
York Times, de 3 de Junho de 1962, onde se afirma que os estrangeiros eram
treinados na Tunísia e se revela que «já
haviam participado em acções contra tropas francesas na fronteira da Argélia»,
e que o chefe daqueles «tinha recentemente recebido carregamentos de armas e
novos carregamentos eram em breve esperados da Tunísia». E esclarecia que os
mesmos «incluíam metralhadoras ligeiras e
pesadas, granadas e minas terrestres.» Estas revelações eram confirmadas
pelo The Baltimore Sun, de 3 de Junho
de 1962; e pelo Al Ahram, do Cairo,
de 9 de Janeiro de 1962; pelo Newsweek,
de 10 de Dezembro do mesmo ano; e pelo New
York Herald Tribune, Maroc
Information, La Nation Africaine,
La Dépêche d’Algerie e vários outros
jornais, de 18 de Janeiro de 1963. Repetiram a notícia La Nation Africaine e Le
Figaro, de 22 de Maio de 1963, e L’Orient, de 6 de Junho do mesmo ano. E
depois de quanto precede presumo não serem necessários mais pormenores. E julgo
inútil sublinhar o papel desempenhado pela República do Congo no auxílio à
agressão contra Angola. São os factos tão clamorosos que me dispenso de
acumular provas; e a base de treino em Kinkuzu, o fornecimento de espingardas e
metralhadoras, as afirmações públicas produzidas por membros do governo
Congolês são tão conhecidas que mais testemunhos, embora à nossa disposição,
podem ser considerados supérfluos. Terá ainda o ministro da Tunísia a audácia
de afirmar que não é conduzida por estrangeiros a agressão contra Angola?
Referi somente alguns factos e alguns testemunhos públicos comprovativos do papel desempenhado por aqueles interesses estrangeiros que têm praticado uma intervenção directa na violência desencadeada no Norte de Angola. Poderia aduzir outros elementos da mesma natureza relativos a outros territórios portugueses de África. Abstenho-me, para poupar o Conselho. Nem julgo necessário amontoar mais provas, porque hoje nem sequer se tenta já ocultar a verdade. Mas suponhamos, para simples fins de debate, que existem genuínos movimentos nacionalistas nos territórios portugueses. Seria por esse facto legítimo que os membros desta Organização autorizassem no seu solo campos de treino, auxiliassem terroristas estrangeiros, enviassem voluntários e fornecessem armas, e tudo com o fim de atacar um outro governo membro? É porventura lícito, nos termos da Carta das Nações Unidas, encorajar a violência em território de terceiros?
IV
Quanto precede, Senhor Presidente, leva-me a suscitar um problema sério. Durante os últimos anos, uma nova legalidade está sendo criada, uma nova concepção da lei apareceu nos negócios internacionais, uma nova estrutura jurídica está governando a vida ou alguns aspectos da vida da comunidade das nações. Mas há neste particular um ponto de interesse a sublinhar: aquela nova noção de legalidade internacional opera somente numa direcção única, para um só propósito, e para benefício de alguns apenas. Ser-me-á permitido vincar com um exemplo o que tenho no pensamento? Quando a República do Congo estabelece oficialmente bases de treino contra Angola, trata-se de acto legal; mas se adoptássemos prática idêntica nos nossos territórios, seria havida por ilícita a acção. Quando se diz que serão enviados terroristas contra Angola, é legítima a intenção, e aqueles são designados por voluntários; se acaso fizéssemos o mesmo, seria o facto tido por ilegal, e os voluntários receberiam o nome de mercenários. Eu poderia continuar. E tenho a certeza de que o delegado do Império Soviético não dá o seu acordo às minhas palavras, e isso porque o Império Soviético, ao definir agressão, incluiu nesta as actividades subversivas contra outro Estado, e os actos de terrorismo e apoio de grupos armados. Pergunto-me com perplexidade como reconcilia o representante soviético a definição de agressão aceite pelo seu governo e os factos que acabo de apontar. Tenho de concluir quanto a este aspecto, Senhor Presidente, que estamos perante duas ordens de países na comunidade internacional: aqueles a que tudo é autorizado, seja qual for a justificação que lhes ocorra apresentar; e os demais, a que não é sequer permitido praticar o que os primeiros praticam. E não penso que seja válido o que os primeiros praticam. E não penso que seja válido defender a legitimidade dos actos com fundamento na legitimidade dos objectivos. Porque seria contraproducente essa atitude: esta equivaleria a aceitar que se tornasse legítimo quando fosse apoiada pela força. Seria, por outras palavras, a destruição do governo pela lei.
V
De novo regresso à
política portuguesa, Senhor Presidente. Tem sido afirmado e repetido que aquela
é errónea, inaceitável, anacrónica, agressiva, repressiva, desligada dos tempos
modernos, denegadora dos direitos humanos e da liberdade individual; e que além
de tudo constitui uma ameaça à paz e à segurança. Se me pudesse fatigar,
estaria exausto de escutar estas acusações. E no entanto a verdade é que
nenhuma tentativa idónea foi alguma vez feita para avaliar a política
portuguesa. Esforço algum foi jamais envidado para saber se os fundamentos
ideológicos da política portuguesa estão conformes ou opostos aos mais altos
ideais da humanidade. Desejo algum foi jamais expresso no sentido de analisar
os métodos e os objectivos, para se saber se são aceitáveis. Nada de quanto
precede foi alguma vez investigado. Critica-se com o fim de criticar; e não se
sabe já o que se critica; nem se afigura que haja sequer interesse em apurar a
realidade da política portuguesa. Tenho de considerar indispensável, portanto,
expor alguns básicos, para benefício dos de boa fé somente, e acaso também para
aqueles que consigam manter um espírito aberto sem ideias preconcebidas.
Alberto Franco Nogueira |
Como um primeiro
aspecto, e que constitui o fundamento da política portuguesa, afirmarei a nossa
profunda convicção de que no mundo nenhuma raça é superior ou inferior a
qualquer outra raça. Somos assim fortemente opostos a toda a sorte de
segregação racial. Acreditamos que uma democracia racial forma a mais sadia
base de qualquer sociedade humana. Acreditamos que todas as raças devem viver
em comum, e trabalhar em harmonia para o bem comum. É esta para nós uma
tradição multicentenária, e pensamos que todas as raças e todos os povos podem
contribuir utilmente para benefício da humanidade, e que o progresso se
consegue apenas quando tais contributos sejam conjugados entre si. Daqui parto
para um segundo aspecto fundamental da nossa política. Refiro-me à formação de
uma sociedade multirracial integrada, que aproveite os valores culturais e
morais de todos. E quando falo de sociedade multirracial, não estou a pensar na
simples coexistência de diferentes grupos sociais ou étnicos. Penso numa
comunidade em que todos os grupos étnicos se encontram estreitamente
integrados, e caldeados, com um profundo sentimento íntimo de unidade. E a
história confirma este ponto de vista. Nações constituídas por mais de uma raça
foram ou são grandes nações; e aqueles países que se fecham a contactos raciais
e se dizem formados por uma raça pura, dão-nos talvez uma impressão de
felicidade; mas a verdade é que não são motores de progresso, nem de
iniciativa, e tendem a volver-se em conjuntos humanos adormecidos e parados. E
por último, Senhor Presidente, nós acreditamos que o crescimento de uma
sociedade humana tem mais garantias de ser prosseguido se houver igualdade
perante a lei, e se idênticas oportunidades forem concedidas, e abertas a
todos, sem olhar a raça, cor, origem ou religião. Quer isto dizer que são os
mesmos para quaisquer os direitos e os deveres. Quer isto dizer, e é essa a
nossa política, que são para todos iguais os direitos políticos, e idêntico o
acesso ao ensino e no campo económico e social.
Estes aspectos
abrangem o conjunto da vida de qualquer comunidade, e o seu progresso deve ser
medido pelo grau de participação de todos os habitantes nas actividades
políticas, educativas, económicas e sociais daquela. Linhas mestras da política
portuguesa são, portanto, a promoção e a expansão dessa participação nas
províncias ultramarinas. Não nos arrogamos a perfeição; mas é indubitável que,
dentro da nossa estrutura, e de harmonia com os artigos 55.º e 56.º da Carta da
O. N. U., todos são iguais, com idênticos direitos civis e beneficiando da
mesma representação política. E eu dirijo-me a este Conselho, e pergunto: que
crítica válida pode ser aduzida contra as bases ideológicas e filosóficas da
política portuguesa? Nenhumas, além de frases sem conteúdo. E vou mais longe:
afirmo que a nossa política não é expediente de apressada criação; não é
recurso oportunista para superar dificuldades; e não é disfarce de outras
políticas. É um facto: nós acreditamos que a nossa política constitui uma
resposta permanente para problemas permanentes; e é em si uma solução para
dificuldades que existem no continente africano. E não preciso de audácia para
dizer que a nossa política está conforme aos mais elevados ideais da
humanidade, no plano da filosofia e da religião, no plano da política ou da
sociologia. Não frisará com algumas frases demagógicas, e acaso será obstáculo
a interesses alheios à África. Mas estas não são razões válidas, nem que
devamos ter em consideração.
São sempre da mesma
natureza os ataques verbais contra a política portuguesa, e revolvem-se em
torno das mesmas frases vazias e das mesmas palavras sem significado. Já
discuti algumas das acusações; mas há outras. Por vezes afirma-se que é
caracterizada pelo imobilismo a política portuguesa, e que é anacrónica, além
de não ter em conta os desenvolvimentos dos tempos modernos. Todos os de boa
fé, e todos que hajam estudado a política portuguesa, concordarão que são
infundadas tais acusações. Não quero fatigar o Conselho, e abster-me-ei de
recorrer a páginas de história antiga; mas porque são pertinentes haverei de
indicar alguns pormenores recentes.
Em 1911 foram
feitas importantes reformas na estrutura política e administrativa dos
territórios ultramarinos, dentro da concepção da igualdade de todos. Em 1933,
reafirma-se a mesma orientação na Constituição política aprovada por plebiscito
naquele ano; e depois de 1933 numerosas outras medidas foram aprovadas. Em 1961
e 1962, novas reformas da mais alta importância. Regedorias e municipalidades
foram criadas onde não existissem; foi alargada a participação da população
rural no encaminhamento dos seus negócios; e por nova lei fez-se provisão para
a universalidade do sufrágio. E neste ano de 1963, há algumas semanas apenas,
foi posta em vigor nova legislação. Sofreu profundas alterações a Lei Orgânica
do Ultramar, e um passo em frente foi dado na descentralização administrativa
territorial; e as decisões foram tomadas em consulta com os representantes eleitos
das províncias ultramarinas. São de largo alcance as implicações da nova lei.
Os territórios ultramarinos estão desde há muito representados, evidentemente,
na Assembleia Nacional através dos seus deputados eleitos; mas desde agora
estarão representados também na Câmara Corporativa, no Conselho Ultramarino, e
em todos os demais orgãos de âmbito nacional. Calcula-se que atingirá cerca de
cem o número de delegados eleitos pelos territórios ultramarinos para os orgãos
nacionais. Por outro lado, em Angola e Moçambique foram estabelecidos conselhos
económicos e sociais, sendo também eleita a maioria dos seus membros. Foi
igualmente ampliada a composição dos Conselhos Legislativos cujos membros,
salvo duas excepções, são todos eleitos. E devo por último sublinhar que a
competência de todos os orgãos territoriais foi ampliada, e abrange agora todos
os assuntos de interesse directo para a província, muito particularmente em assuntos
financeiros e económicos.
Creio que de tudo haveremos de tirar uma só conclusão: a participação dos habitantes dos territórios ultramarinos está assegurada nos planos político e económico, em nível territorial, pelas regedorias, municipalidades, conselho económico e social, e conselho legislativo; e, em nível nacional, através da Câmara Corporativa, da Assembleia Nacional e do Conselho Ultramarino. A partir de Setembro próximo, e até ao começo de 1964, terá início o processo eleitoral, garantindo o carácter representativo da nova estrutura política e administrativa. Do nosso ponto de vista, é acima de tudo importante que seja assegurada a cada indivíduo a oportunidade de ocupar na sociedade o lugar para que tenha capacidade, sem distinção de cor, raça ou credo religioso. Penso que poderemos dizer com verdade que o conjunto da população está apto a fazer escutar a sua voz no governo nacional e no governo local; detém em suas mãos a administração; e em todos os níveis está-lhe garantida a sua expressão própria. Havendo salientado todos estes aspectos, afigura-se-me que será ainda de interesse para este Conselho esclarecer que todos os esforços estão sendo feitos para assegurar o progresso social, económico e cultural de todos os habitantes. Solicitámos, por outro lado, estudos independentes sobre problemas dos territórios à Organização Internacional do Trabalho, à Organização Mundial de Saúde e à Organização para a Alimentação e Agricultura. Constituem motivo de orgulho para a administração portuguesas as conclusões a que chegaram aqueles estudos, e destruíram as críticas de muitos que as formulavam sem haver analisado a situação. Aquelas agências especializadas apresentaram algumas sugestões construtivas, que vamos executar. Para dar ímpeto novo à formação de um escol em todos os territórios, o treino de professores e a construção de escolas primárias, secundárias e técnicas têm sido estimulados. E por último direi que a partir de Setembro próximo será iniciado o funcionamento das Universidades de Luanda e de Lourenço Marques.
VI
Senhor Presidente: num rápido esboço, é
esta a nossa política. Sabemos que outros podem usar outros métodos. Mas não é
esse o problema. Para nós, a questão consiste em saber se são legítimos os
nossos métodos, honrosos os nossos objectivos, e apropriados aos verdadeiros
interesses do povo e conformes aos seus desejos. Sobre nenhum destes pontos
subsiste a menor dúvida no nosso espírito. Decerto: não agimos de harmonia com
frases feitas, ou em obediência a oportunismos políticos, ou para satisfação de
interesses estrangeiros, que aliás são alheios ao continente africano.
Sinceramente acreditamos estar dentro dos termos da Carta da O. N. U., cujas
provisões cumprimos, e actuar consoante os mais altos ideais humanos, e os
interesses reais de todas as populações das províncias portuguesas, e as exigências
do progresso e desenvolvimento das sociedades humanas. Acreditamos que seguimos
o caminho certo, e não admitimos que sejam impugnadas a nossa seriedade e a
nossa honestidade. Todos os que conhecem a África, todos os que sejam
imparciais e objectivos, todos esses concordarão em que estou dizendo a verdade;
e, em torno desta mesa, os membros e não membros deste Conselho sabem no íntimo
dos seus corações que estou expondo factos, sem embargo de estes poderem acaso
não se afeiçoar às conveniências políticas do momento. Todos sabem que os
critérios e os processos definidos pelas Nações Unidas para uma verdadeira autodeterminação
não são justos nem realistas. Uniformidade de métodos e de soluções não se
harmonizam com a diversidade e variedade dos problemas das comunidades humanas.
E digo mais: todos sabem que existe estreita interdependência entre a evolução económica
e social de um grupo humano e a sua estrutura política. Ignorar esta realidade
é suscitar o caos e lançar os alicerces do neocolonialismo da África. Alguns
neste Conselho não estarão talvez preparados para o reconhecer em público: mas
no segredo das suas consciências todos sabem e reconhecem que é assim.
Por nossa parte temos apresentado propostas e sugestões. Estamos de boa fé. Desejamos conversar com os países de África, e estudar em comum os problemas africanos, e tomar em conjunto medidas construtivas. Somos criticados; somos vítimas de acusações; sugerimos conversas entre todos; fazemos convites para que nos visitem. Seguimos uma política de vanguarda, e estamos prontos a discutir sem condições prévias, nem limitação de temas. Que se teme? Quais os motivos de reserva? Nada pedimos, nem solicitamos mercê ou graça, e somente esperamos aquela boa fé que tem de considerar-se como subentendida. Muito obrigado, Senhor Presidente.
(In Franco Nogueira, Debate Singular, Ática, Lisboa, 1970, pp. 106-120).
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