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quinta-feira, 31 de julho de 2025

A filosofia na formação do homem português, do homem que fala português e que pensa em português

 Escrito por Álvaro Ribeiro





«A base da pátria é o idioma, porque o idioma é o pensamento em acção, e o homem é um animal pensante, e a acção é uma tradição verdadeiramente viva, a única verdadeiramente viva, concentra em si, indistinta e naturalmente, um conjunto de tradições, de maneiras de ser e de pensar, uma história e uma lembrança, um passado morto que só nela pode reviver. Não somos irmãos, embora possamos ser amigos, dos que falam uma língua diferente, pois com isso mostram que têm uma alma diferente. Estamos, neste mundo, divididos por natureza em sociedades secretas diversas, em que somos iniciados à nascença, e cada um tem, no idioma seu e no que está nele, o seu toque próprio, a sua própria palavra de passe.

(...) A base da sociabilidade, e portanto da relação permanente entre os indivíduos, é a língua, e é a língua com tudo quanto traz em si e consigo que define e forma a Nação

Fernando Pessoa (in António Quadros, «Fernando Pessoa, a Obra e o Homem», II Volume).

 

«De facto os aplausos e a admiração que Leonardo Coimbra colhia (como ele não podia deixar de o perceber) eram puramente espectaculares, dirigidos apenas à sua personalidade exterior de tribuno e homem estranho: na realidade, ninguém o compreendia; e o homem de valor o que deseja é que participem das suas preocupações e não que admirem a sua figura, ou timbre de voz, ou facilidade de palavra; o que ele quer, em suma, é que o compreendam e não que o aplaudam. Leonardo Coimbra sentia com nitidez a sua incomunicabilidade, e sofria como todos os homens superiores a têm sofrido, em todos os tempos e lugares, e sofrerão sempre; sob a máscara do tribuno que frequentemente subia aos estrados para falar, falar, falar, dando-se o ar de homem que tinha a satisfação de transferir as suas ideias, havia o rictus secreto, cheio de amargura, do pensador que sabia que as suas obras somente eram vendidas nas feiras do livro a preços irrisórios, para não serem vendidas a peso. Quantas vezes nos últimos anos, quando os amigos lhe perguntavam de longe a longe se andava a pensar algum livro, ele replicava com rápida mordacidade! - "Mas para quê? Neste país não se pensa: neste país...".




(...) Certo é que alguns dizem que os homens superiores nunca podem falhar; que o que eles realizaram é precisamente o que eles tinham a realizar. Perante a obra de Leonardo Coimbra (como perante a de Antero de Quental) tal teoria afigura-se-nos radicalmente irreflectida. De facto, os homens superiores podem falhar; e falham quase sempre. Em regra, o que eles realizam fica desmedidamente aquém do que lhes era possível. Ora, desde que um desses homens tem a consciência de que as suas melhores virtualidades foram contrariadas e esmagadas pelo que lhes é exterior, natural é que no seu espírito ecluda qualquer forma cancerosa de "desforra": nuns, essa "desforra" é uma simples abominação surda seguida do afastamento; noutros é a reacção colérica conducente à própria perda; noutros é o silêncio seguido de um desaparecimento enigmático, etc. Em Leonardo Coimbra foi a mordacidade implacável. Que é, porém, a mordacidade senão uma reacção ofensiva dos ofendidos? E quem sabe se, sem a intervenção fortuita e trágica do desastre, o seu fim não seria mais nitidamente uma acusação contra o meio?».

Santana Dionísio («Leonardo Coimbra»).

 

«Quem alguma vez ouviu José Marinho interpretar uma frase de Jesus, extraída dos Evangelhos, ou explicar um dos mais belos poemas da língua portuguesa, jamais esqueceu a maravilhosa mestria de quem facilmente abre, desenvolve ou desenrola os textos que foram escritos para transmitir só aos iniciados a verdade das doutrinas sagradas. Transitando do significado exotérico para o sentido esotérico, já não é o professor quem fala, mas talvez o sacerdote inspirado. Desta observação se infere a função que José Marinho pessoalmente atribui à filosofia, deslocando-a para a escolástica, segundo a honrosa tradição medieval.

É, para seus discípulos, evidente que a vocação espiritual de José Marinho se exprime no apelo de transcender a escolástica, a filosofia, o pensamento situado, na inquietação de alcançar a ideia pura. Enquanto outros pensadores, seus contemporâneos, opondo barreiras ou diques ao positivismo invasor – que ameaça anular amanhã as últimas características da cultura portuguesa, e até o idioma nacional, – iam escrevendo ensaios escolásticos sobre as relações da filosofia com a religião, com a pedagogia, com a política, com a literatura, etc., José Marinho, elaborava em segredo a sua obra-prima, que haveria de ser intitulada Teoria do Ser e da Verdade. Publicou-a em 1961, com plena consciência de que praticava uma "intempestiva ousadia" numa sociedade adversa aos livros de pensamento puro.



Traduzida em francês, inglês ou alemão, esta obra seria a demonstração perfeita da superioridade da filosofia portuguesa sobre todas as suas rivais estrangeiras; ela permanece ignorada e esquecida aquém e além fronteiras, por culpa de todos nós, que não sabemos cultivar nem aproveitar as verdadeiras fontes das nossas riquezas espirituais. Síntese poderosa de todas as teses enunciadas na filosofia contemporânea, ela é além disso verificada por uma dinâmica intenção mística. Ela realiza, com a superação da filosofia, a transcensão infinita que ao homem como tal é possível falar, dizer ou escrever».

Álvaro Ribeiro («Homenagem a José Marinho»).



A filosofia na formação do homem português, do homem que fala português e que pensa em português 


De lustro para lustro, ao fim de cinco anos, após a duração de um curso, volta-se a falar em nova reforma, em dar outra forma, ao articulado jurídico de estruturas escolares que parecem já caducas, inoperantes ou improdutivas. Tal resulta de olhar apenas para o que no mundo é efémero, transferível ou relativo, em vez de prestar atenção ao que a experiência tem demonstrado ser constante e improgressivo, tanto no educador como no educando. Quantas vezes se procura imitar o melhor modelo estrangeiro, tantas vezes se esquece o propósito essencial da formação do homem português, do homem que fala português e que pensa em português.

Tal não acontece, porém, em outros povos, e em outros estados, os quais não só cultivam ciosamente as filosofias que criaram ou que importaram, mas também as difundem por livros de apologética adequados à propagação de ideologias propícias ao domínio hegemónico sobre o pensamento estrangeiro. Ocioso será lembrar os exemplos históricos de indução falaciosa na construção de sistemas universais, porque tais factos de intercâmbio cultural demonstraram uma lição que se impõe à memória dos bons entendedores. A subordinação da política à filosofia, implícita ou explícita nos textos jurídicos, vai-se tornando evidente a quem sabe ler com atenção as mais recentes páginas da História, sem confundir as constantes com as variantes de acontecimentos progressivos para um fim remoto ou ignoto.






Durante séculos áureos da Nação Portuguesa, em que se verificou a hegemonia universitária da Escolástica, foi a filosofia predominantemente cultivada em latim e intimamente associada à religião. A disciplina promotora da liberdade de pensamento, enviada em sua forma aristotélico-jesuítica, esteve associada à disciplina seguradora da unidade da fé. Depois de 1772, instaurados o iluminismo liberalista e o sociologismo positivista, haveria o vulgo ignorante, mas bem falante de considerar como anacrónico, retrógrado, ou reaccionário o ensino da filosofia.

Ao longo do século XIX desenvolveu-se contra a Escolástica, não uma crítica minuciosa e certeira, mas uma injusta polémica, tendente a dissolver a relação perene entre a filosofia e a religião. Exaltada foi a liberdade de pensamento, mas tal liberdade deveria ficar subordinada ao determinismo da ciência, formando-se à margem deste círculo vicioso um campo propício às variantes da opinião. Alguns plumitivos chegaram até a doutrinar sobre os conflitos havidos entre a ciência e a religião, encobrindo numa expressão caracterizada pela impropriedade dos termos, intenções precursoras de agitação política e revolução social.

Eliminar a filosofia dos quadros do ensino público foi a aspiração confessada ou inconfessada de muitos reformadores políticos, mas a tal propósito obstavam não só os hábitos didácticos dos professores fiéis à nossa tradição escolástica, mas também o prestígio de que a filosofia gozava nas nações estrangeiras e nos congressos internacionais. Adentro das nossas fronteiras, a filosofia ia sendo também atacada pela licenciosidade dos literatos e parlamentares românticos; mas os escritores realistas, mais prudentes ou mais inteligentes, admitiram uma filosofia esboçada para complemento da enciclopédia científica, imitando o exemplo das celebridades estrangeiras. Ninguém elevou a voz para demonstrar que a exclusão da filosofia escolástica iria dificultar a autêntica e metódica investigação histórica do pensamento artístico, político e religioso do povo português; seria o factor mais profundo da adulteração da fisionomia espiritual da Pátria; aceleraria a dissolução da língua portuguesa no jornalismo escrito e falado para melhor aceitação das expressões de origem internacional.

A palavra «filosofia» permaneceu a designar uma das últimas disciplinas do curso dos liceus, mas tal disciplina, periodicamente reformada nos seus programas ou ministrada por livros estrangeiros, reproduz ainda hoje um método incompatível com uma didáctica vivente, do qual resulta a demissão da inteligência em que se propõe transitar para uma escola universitária. Seria inútil repetir ou resumir as críticas feitas por especialistas autorizados. Nos serviços públicos, desde o Curso Superior de Letras até à última reforma das Faculdades de Letras, nunca houve a intenção de formar filósofos entre os estudantes que para tal demonstrassem vocação ou aptidão, (a exemplo do que se praticou outrora quanto às carreiras eclesiásticas), porque sempre os legisladores atribuíram prioridade às disciplinas de história e à ordenação histórica dos tópicos dos programas, em detrimento das actividades especulativas que se reflectem no julgar, no conceber, no meditar, e que manifestam sua fecundidade pela elaboração de livros originais.




(...) Muitos processos há de excluir a filosofia, ou de fazer passar por filosofia o que é a sua contradição e contrafacção; maior é, porém, o número de artifícios de estilo para significar desdém ou aversão pelos filósofos que não se conformam com o destino injusto do anonimato. Desde o cumprimento insincero, e portanto irónico, mediante palavras lisonjeiras, até às práticas de ofensa, difamação e desonra que os jornais e as revistas acolhem para divertimento dos seus leitores, consolida-se aquela opugnação vulgar ou pública segundo a qual o qualificativo de filósofo é mais ou menos ridículo e, portanto, mais próprio para a comédia do que para a tragédia. Morrem os filósofos nas condições que a História regista para que o castigo social não deixe de recair sobre quantos se dedicam a uma forma de pensamento livre, independente de qualquer ideologia sectária ou partidária, motivados apenas pelo excelso amor da verdade.

(Álvaro Ribeiro, in «Homenagem a José Marinho»).

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Guerra Junqueiro

Escrito por Álvaro Ribeiro




«Regra de ouro da ‘Filosofia Portuguesa’ é a de não haver Filosofia sem Teologia, nem Filosofia substante sem Teologia que a justifique. E a Teologia fundada em Filosofia transpira para além do sermo teológico; pode exprimir-se melhor na poesia. De onde a verificação de que a Teologia portuguesa atinge maior índice de encanto nos místicos e nos poetas do que nos teólogos propriamente ditos. O simbolismo especial da Teologia apela à mais alta relação do saber divino, mediante o saber poético.

Do ponto de vista da herança cultural, a "Filosofia Portuguesa" admite a presença interactiva de uma ordem trilógica, toda ela de oriente monoteísta e de formulação escolástica: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Do ponto de vista institucional o movimento requer um afastamento equidistante do positivismo agnóstico, do catolicismo ortodoxo e do ensino das instituições públicas, não obrigando a que a pessoa em que o filósofo reside faça profissão de inconfessionalidade, mas o movimento apresenta analogia das suas nomenclaturas com as nomenclaturas da herança católica. O silente meditativo que é Álvaro Ribeiro advertiu-nos do segredo. Ele está plenamente convencido da compatibilidade entre "Filosofia Portuguesa" e "Filosofia Católica", e demonstrou-nos a continuidade de uma escola de apologia desde Pedro Hispano a Leonardo Coimbra. Por fim, garantiu que, apesar de tudo, o catolicismo de Guerra Junqueiro, de Sampaio Bruno e de Leonardo Coimbra, não oferece dúvidas, nem mesmo naqueles escritos que a disciplina eclesiástica considera negativos, heterodoxos, mesmo heréticos.»

Pinharanda Gomes («A Cidade Nova»).


«Sem Camões, as forças vivas da Pátria portuguesa não teriam lugar espiritual e terreno onde vivessem a nosso lado, insinuando-se no presente, sempre a demandar e a criar um novo e glorioso futuro.

Sem Junqueiro não teríamos lavada a face do agravo do Ultimatum; não teríamos todos os “simples” de Portugal dando generosamente a opulência da sua riqueza espiritual à fome das nossas almas, não teríamos o esforço da ascensão a falar-nos na linguagem da luz o seu caminho para o Sol.»

Leonardo Coimbra («Guerra Junqueiro», in «DISPERSOS, I – POESIA PORTUGUESA»).


«Resumindo: desastres, misérias, vergonhas, infortúnios, calamidades, subjugadas com energia e padecidas com nobreza, enseivariam de novo alento o coração exânime da pátria. O raio lascou a árvore? Brotaria, amputada, com maior violência. A alma habita na raiz.

Mas seria possível conjurar quatro milhões de interesses, quatro milhões de egoísmos, num ímpeto de fé heróica e de renúncia. Era. Digo-o sem hesitar. O sibarita que ria, o cevado que ronque. Era! O espírito, como o fogo, consome traves, calcina pedras, derrete metais. O facho duma alma pode incendiar uma Babilónia. Um iluminado pode abrasar um império. Tem-se visto. O cofre-forte é de ferro, a libra é de oiro, o egoísmo é de bronze, mas a electricidade impalpável, invisível, imponderável, volatiliza tudo num momento. Ora o espírito é a electricidade de Deus. Nada lhe resiste. Devora séculos, evapora mundos. Jesus e Buda, – um crucificado, o outro mendigo, – refazem o globo, põem nova máscara à criação. Joana d’Arc e Nun'Álvares, irmãos gémeos, redimem duas pátrias. Focos ambulantes de espírito divino, arrastam e vencem, – magnetizando. O céu é contagioso como a lepra.

Claro que o milagre exige a fé. Nem todos os sábios juntos escreveriam os Evangelhos. A língua do homem, sem a língua de fogo, não apostoliza, discursa. Um Doutor não é um Messias.

A metempsicose, em moderno, do grande Condestável, eis o meu sonho. Um justiceiro e um crente. Braço para matar, boca para rezar. Pelejas como as de Valverde só se ganham assim: ajoelhando primeiro. O Nun'Álvares de hoje não usaria cota, nem escudo, mas, ao cabo, seria idêntico. A mesma chama noutro invólucro. Não combateria castelhanos, combateria portugueses. O inimigo mora-nos em casa. Aljubarrota no Terreiro do Paço e os Atoleiros... nos mil atoleiros de infâmias que enodoam as ruas, e obstruem o trânsito. Queríamos um justo inexorável, um  santo heróico, com a verdade nos lábios e uma espada na mão.»

Guerra Junqueiro («Pátria»).





GUERRA JUNQUEIRO não é entre nós considerado um filósofo, apenas porque não escreveu livros de filosofia. Tão mesquinho critério bibliográfico, vigente em meios universitários, leva pelo contrário a considerar filósofos alguns professores que nunca manifestaram autonomia, profundidade, ou originalidade de pensamento. No entanto, ninguém que conheça medianamente as obras de Guerra Junqueiro poderá negar que o poeta sempre se interessou com ansiedade, se não com angústia, pelos problemas humanos, pelos segredos naturais e pelos mistérios divinos.

Não foi Guerra Junqueiro o cantor que apenas renova a expressão poética de uma ortodoxia ou de uma heterodoxia; não escreveu escolástica poética, se assim é lícito dizer. O seu pensamento de interrogação, indagação e inquietação, em vez de se deter em teses dogmáticas ou em conceitos fixos, caminhou sempre para mais além. É fácil apontar erros a quem se desencaminha, mas é difícil traçar a topografia da aventura espiritual.

Contemporâneo da luta entre o positivismo e o catolicismo, ou, paralelamente, entre mecanismo e finalismo, Guerra Junqueiro situou-se no lado da fidelidade às tradições portuguesas. Só assim é lícito interpretar hoje a sua obra satírica e polémica. No entanto historiadores há que, na impossibilidade de apreciarem uma obra de génio, não distinguem as intenções superficiais das intenções profundas.

Sabemos, por exemplo, que em obra de título irreverente, Guerra Junqueiro polemizou contra certo ensino catequístico segundo o qual Deus criou o mundo em seis dias. O poeta não pode considerar ortodoxa a criação como acto único no passado, porque tal doutrina dificilmente se compatibiliza com a criação da alma humana a cada momento do tempo e com o conceito de providência. Imaginar a criação à maneira de um acontecimento que ocorreu em longínquo ponto do espaço e em remoto momento do tempo, imaginá-la em termos de perfeição e não em termos de actualidade, equivale a fazer passar a religião à história.

Descrever a criação do mundo como facto histórico, com os verbos no indicativo e no pretérito, parece-nos inadequada expressão de um mistério, porque a história só começa na inveja, na queda, no pecado original. Também nos parece errónea a confusão entre analogia e catalogia, entre o análogo e o catálogo, o imaginar o homem criado segundo o tratado de anatomia do ilustre Testut. Projectar a figura do homem histórico sobre a forma do homem pré-histórico significa desconhecer a verdade católica de que Deus formou o homem à sua imagem e semelhança, ou desconhecer as consequências teológicas dessa verdade.

O acontecimento histórico a considerar no centro da teologia católica é a encarnação de Cristo. Antes e depois de Cristo não há limites de cronologia de que possamos falar com certeza suficiente, e muito menos poderemos descrever em linguagem positivista o que aconteceu e acontecerá nos conjecturados extremos. Aplicar os esquemas de quantidade, espaço e tempo à ordem dos mistérios divinos será sempre contraproducente em apologética.



Segundo a interpretação tomista do Padre Sertillanges, a criação significa apenas o mistério da dependência em que o mundo se encontra em relação com Deus [1]. O cristão crê em Deus criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, mas para transformar a crença em ciência socorre-se da filosofia aristotélica. Sem a noção de actualidade, superior às dimensões do tempo, afigura-se-nos erróneo pensar o criacionismo.

O mistério da encarnação relaciona-se, aliás, com o mistério da maternidade. Guerra Junqueiro, de harmonia com a tradição portuguesa, considerava a maternidade superior à virgindade e, portanto, o casamento superior ao celibato. A moral convencional, contradizendo a sublimação dos instintos naturais em virtudes éticas, aparece subtilmente personificada nas sátiras de Guerra Junqueiro.

Se pudêssemos dizer que a maternidade é material e que a paternidade é espiritual, compreenderíamos o lugar que a Pátria ocupa na obra de Guerra Junqueiro. Entre a matéria e o espírito existe, porém, a mediação do verbo, porque só a palavra significante, ascendente e descendente, pode evitar que a dialéctica anule a religiosidade dos seres. A obra de Guerra Junqueiro, exaltando a maternidade, a heroicidade e a santidade, representa para todos nós um dos mais belos casos de inspiração epopeica.

Ninguém nega que Guerra Junqueiro tivesse sido dotado de imensa opulência verbal, conseguindo com suas palavras, imagens e rimas escrever alguns poemas que encantam quem os ouve ou lê, poemas que nunca mais esquecem, poemas que por isso podem ser considerados imortais. Do que muitos duvidam, porém, é de que o verso bem acentuado e bem metrificado possa acelerar a inteligência na indagação da verdade. Contra a dúvida, nenhum exemplo mais alto existe na língua portuguesa de que a arte de poetar é também a arte de filosofar.

Toda a obra do poeta, apesar das irregularidades e vicissitudes, se escala na difícil gradação que vai dos problemas humanos aos segredos naturais, e dos segredos naturais aos mistérios divinos. Sociólogo a princípio da sua carreira, muito preocupado com as instituições, as doutrinas e os homens, quando chegou à maturidade reconheceu que lhe cumpria procurar a verdade num plano superior ao da vida social, e aproximou-se do estudo da Natureza. Em breve verificou, porém, que as ciências positivistas nos dão apenas uma fenomenologia superficial, ou artificial, sem acesso ao íntimo da realidade.

Diremos que, para o poeta, a Natureza deixa de ser estudada em termos biológicos, próximos de mais das metáforas literárias, para ser estudado em termos materiais; sim, para o nosso poeta, o principal problema está em explicar a matéria à luz de Deus. A matéria, que observamos no estado sólido, líquido e gasoso, nos limites teóricos da doutrina clássica, pressupõe o elemento ígneo ou etéreo, sempre considerado pelos discípulos de Aristóteles. Assim, ao estudo do magnetismo, da electricidade e da luz, estudo que se desenvolve paralelamente com o pensamento romântico, sucedia o estudo da radioactividade a que Guerra Junqueiro prestou muito especial atenção.

Novas hipóteses científicas permitiam, no fim do século XIX, renovar a doutrina da unidade da matéria, a qual, destituída das formas substanciais que caracterizam e distinguem os átomos, logo se dissolvia como acontece ao conceito impredicável. Outras hipóteses, mais audaciosas, previam o desaparecimento e até inexistência da matéria, ao fim de biliões de séculos de evolução, e o energetismo parecia sistematização suficiente para intelecção dos fenómenos físicos. Nesta dissolução de todas as forças que as ciências a seu modo hierarquizam, a imaginação e a inteligência de Guerra Junqueiro admitiam a permanência de uma substância infinita, a presença de Deus.





Imediatamente ocorre à lembrança a doutrina de Espinosa e a consequente acusação de acosmismo e de panteísmo. Esta observação erudita não colhe, porém, porque o pensamento de Guerra Junqueiro, longe de ser uma doutrina metafísica com indiferença pela acção e pela paixão, é uma doutrina religiosa. A doutrina a lembrar seria a de Hegel, para quem Deus não era substância, mas consciência ou pessoa.

Tão alto pensamento, para o qual Deus é amor, vontade e inteligência, não pode ser considerado panteísmo. É claro que tais atributos divinos asseguram a possibilidade de conceber Deus como criador e a sua relação analógica com a criatura. Mas convém também lembrar que o infinito é uma linguagem para dizer que tais predicados são transcendentais.

Parece-nos injusto considerar Hegel um panteísta. O significado da lógica de Hegel, opondo a noção do infinito à dialéctica, equivale a estabelecer a transcendência que Kant havia negado na Crítica da Razão Pura. Tornando possível a transcendência, deixam os supremos valores de ser considerados subjectivamente, nos limites em que Kant circunscrevia a sensitividade.

Todos os sentidos que são dados à nossa percepção, tenham duração instantânea ou duração permanente para que os julguemos corpos, são entes limitados e finitos. A majoração ou a minoração das imagens, segundo o princípio de continuidade, não as torna infinitas. Não há verdadeiro infinito do tempo e do espaço, mas apenas infinito intelectual para compreensão das séries numeráveis.

O corpo humano é uma imagem que aparece e desaparece entre as outras imagens que constituem o mundo. A dissolução de um corpo menor em um corpo maior não pode servir de símile para comparar a relação da consciência humana com a consciência divina. A religiosidade tem de ser imaginada e inteligida fora das condições do tempo e do espaço.

O infinito de Hegel não é um infinito de número mas um infinito de palavra. É a relação do verbo com a oração. Também para Guerra Junqueiro o infinito se exprime muito mais por actividade do que por quantidade.

A relação aristotélica entre o acto puro e a pura potência é renovada por Guerra Junqueiro em termos de luz e matéria. As formas, as figuras e as imagens são entes intermediários numa escala que desce até à negridão do sólido, neste teatro de dor, de sofrimento e de morte que é a terra. Mas a consciência humana, iluminada pelo verbo, pode estar relacionada com a luz perpétua.

A oração é acto genesíaco de que surgem os poemas e os filosofemas. A arte de orar antecede a arte de poetar. Os poemas, perdendo em ritmo o que ganham em nitidez intelectiva, traduzem-se em filosofemas.




Entre Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro a semelhança de pensamento filosófico não está oculta, nem é renegada, pela diferença das expressões literárias. Ambos, pensadores evolucionistas, dividem o drama cósmico em três actos: no primeiro o mistério insondável, de que as teogonias oferecem o exemplo passado; no segundo, de que a humanidade está sendo espectadora e actora, cruza-se a dor com o amor, vão diminuindo o erro e o mal; no terceiro, com o esperado advento da figura messiânica, dár-se-á o regresso ao homogéneo absoluto ou à unidade do ser. Mas enquanto Guerra Junqueiro, firmado na crença que lhe restava da fé que perdera, ia imaginando o poema do regresso de Jesus à terra, Sampaio Bruno, criando até à intuição do avatar, profetiza a vinda de um novo Cristo.

Sampaio Bruno reconheceu o valor da obra filosófica de Guerra Junqueiro, e declarou-o num juízo admirável pela exactidão predicativa:

«O nosso grande poeta Guerra Junqueiro, atingindo a maturidade de razão adulta, revelou-se uma mui rara intuição filosófica, tornando incisivo o pensamento metafísico, que nele é sempre profundo, mercê nítida flagrância de uma imaginação igualmente opulenta na concepção e na expressão.

«Conexo com a interpretação do pecado original... de Deus, com a definição imprevista do Demónio, Guerra Junqueiro ascendeu a culminâncias transcendentes em sua doutrina da moral cósmica. Assim é legítima a ansiedade que se consagre ao aparecimento do volume em que vem arquivando as suas longas meditações» [2].

O livro, que deveria ficar intitulado A Unidade do Ser, continuou inédito. Guerra Junqueiro não influiu teoreticamente sobre os seus contemporâneos. Não influiu como filósofo, mas apenas como prosador.

Cônscio de possuir, aliadas, a inteligência aquilina e a força leonina, o poeta proclama em voz suasiva, encantadora, imperiosa, o verbo revolucionário, enquanto Sampaio Bruno timidamente murmura numa conversa a meia voz, em frases ora sincopadas, ora sinuosas, a doutrina excelsa que explica a história pela tradição. Guerra Junqueiro promove, impulsiona, acelera a obra filosofal, mediante a introdução na prosa portuguesa dos ritmos apropriados ao movimento sintético, e corta assim muitas dificuldades estilísticas que obstam ao pensamento o voo especulativo. Gratos ficaram a Guerra Junqueiro os escritores seus discípulos, que assim se viram adestrados a constituir um estilo ágil, capaz de perseguição aérea às intuições mais fugidias, e de alcançar na penumbra as noções subtis que não podem ser dadas à luz diurna.

O léxico de Guerra Junqueiro, dos mais opulentos que se encontram em poetas portugueses, delicia os leitores que amam a beleza, a variedade e a força do nosso idioma, que não as queiram deixar desfalecer na hora cinzenta do linguajar plebeu. Mas se é um vocabulário rico de termos utilizáveis pelas obras literárias, não é muito variado em termos de filosofia. Foi, todavia, no capítulo do léxico que o excelso prosador veio a dar lição aos escritores especulativos.

O estilo filosófico de Guerra Junqueiro é escasso de neologismos, mas abundante de locuções raras, porque o poeta, no ímpeto para teorizar tudo quanto descrevia ou narrava, consegue dar aos escolhidos vocábulos a velocidade superior do pensamento. A sua adjectivação procede no sentido contrário ao da escola realista: em vez de acumular epítetos delicados, irónicos e misantrópicos, vai articulando numa gradação ascensional as qualidades dos seres que sofrem mas que se redimem pelo amor. Guerra Junqueiro, fiel à mensagem romântica, procurou exprimi-la numa linguagem científica e filosófica, no tempo em que os literatos escreviam realismo e positivismo.




Guerra Junqueiro, se adjectivasse apenas por exigência de prosódia, para encantar o leitor e assim lhe infundir em sonho as noções que a consciência crítica e vigilante se recusa a contemplar, mereceria por isso a admiração que é devida aos grandes artistas. Mas o pensador sabia que o adjectivo é uma palavra medianeira que vale pela alusão a um saber que o substantivo condensa e o verbo dissolve. Por isso na prosa de Guerra Junqueiro o que menos se encontra é a proposição clássica, na qual o substantivo fica como que para sempre sujeito a um só adjectivo qualificativo, como um mundo crucificado onde já não tivesse lugar a liberdade pessoal.

Em Guerra Junqueiro impressiona-nos a mestria na colocação das preposições, processo sintáctico em que raros escritores chegam a ser bons aprendizes, e admiramos a feliz assimilação dos adjectivos aos particípios verbais, e, por consequência, a acção pela qual efectua a solicitação ao pensamento – solicitação irresistível  dos substantivos complementares. O evolucionismo de Guerra Junqueiro, longe de ser nebuloso ou dissolvente, tende sempre para a estrutura das formas paradigmáticas. Exemplificaremos apenas com este período admirável: «A vida vertiginosa, tumultuosa, entrelaçada, contínua, patética, infinitiforme, a vida latejante de seiva, incubada de sonho, fulva de luz, cega de espantos, ébria de beijos, trémula de morte e grávida de amor, a vida eterna, divina e formidável, que nasce da vontade e da emoção, aparece na obra do filósofo descrita por cálculos, ordenada por argumentos e por ideias» [3].

Vejamos agora se Guerra Junqueiro, ao construir a oração, a proposição, o período, pelo ritmo frásico, nos dá alguma lição válida para o estilo especulativo. Com efeito, vemos que a oração mais simples é constituída pela ligação de dois infinitos verbais, na qual o prosador, usando a parataxe, literariamente nos sugere a mobilidade eurítmica mas serena: «Viver é conviver. Viver é amar.» A seguir, para evitar a repetição que, tornando monótono o ritmo, decairia no compasso que adormece o pensamento, vai variando o discurso com frases mais complexas. O verbo ainda predomina, mas a frase prolonga-se, densifica-se, como nos exemplos seguintes: «Sentir é compreender com todo o corpo», «Cantar é divinizar o som».

O infinito verbal é substituído depois por um substantivo abstracto que, no mais fundo dos seus significados, nos lembra a acção ou a paixão. A frase, para subir a segundo estádio do pensamento, adquire maior energia: «A dor é escada de fogo que nos conduz à vida eterna.» «A arte é o culto mágico de Deus.» «A revelação é Poesia, a teologia é Estética.»

O substantivo concreto passa a significar o agente ou o paciente, personificando as ideias que figuram os verbos de harmonia cósmica. Junqueiro escreve agora frases deste tipo: «A raiz chupa ao lodo a flor que nasce da vergôntea»; «Um ai de mendigo pode valer todas as sinfonias de Beethoven»; «O artista, criando beleza, cria amor, porque a beleza é expressão rítmica do Bem, é o amor a cantar na forma e no som, no verbo e na luz».

Outro aspecto do ritmo de Guerra Junqueiro é o encurtamento das frases pela incidência sucessiva de pontos finais, e, assim, as palavras que coordenam e subordinam as frases umas às outras são eliminadas, omitidas ou substituídas por sinais gráficos. As articulações metálicas que escruturavam as vestes dos tropos – os advérbios, as preposições e as conjunções – são frequentemente eliminadas; a pontuação é, consequentemente, simplificada, deixando aparecer hiatos na continuidade melódica das metáforas, e mostrando as palavras isoladas na beleza da nudez intelectual. O discurso torna-se mais rápido, as frases mais curtas vão a compasso da respiração ofegante, o pensamento adquire a cadência de um rítmico adejar pela fluidez dos elementos, desprendendo-se da terra com desdém pelo seu habitante meditabundo.

Deste estilo, que a breves traços pretendemos esquematizar, foi contestada a legitimidade, a utilidade e o valor da sua aplicação à filosofia. A crítica condenou a prosódia que denominou «sonoridade oca», e se, por vezes, admitiu a metrificação harmoniosa no labor poético, julgou os efeitos de som perniciosos para o alinhamento das ideias claras, precisas e distintas. A mobilidade da sintaxe, e, consequentemente, os tropos que permitem ao pensamento o progresso, a elevação e a transcendência, foram considerados como meros efeitos de retórica pelos quais as palavras sem brilho real esconderiam o mais vazio pensamento.




Tal não acontecia, porém, nas liberdades poéticas de Guerra Junqueiro, que conseguiu manter a sua inspiração num alto nível de pensamento, tal não aconteceria também com a prosa filosofal [4]. Os críticos mostraram apenas não gostar da reforma estilística do grande poeta, ou pretenderam vedar caminhos novos à filosofia portuguesa. Veremos, porém, que se da obra do poeta de Os Simples resultou uma renovação da poesia, como disse Raul Proença [5], também da sua obra em prosa resultaria um inegável impulso para o pensamento português.

Guerra Junqueiro abriu caminho a um estilo profético mais poderoso do que o dos simbolistas, estilo em que a adjectivação surpreende quando aparentemente errónea, absurda, incompreensível, mas que, na sequência do discurso, ganha e adquire significação altamente inteligível para, com ela, iluminar o período inteiro. O leitor, dócil a essa retrospecção cognitiva, verá compensada assim pela inteligência a sua pitagórica virtude de credulidade silente, e exercita-se, pouco a pouco, a suprir mediante interpretação própria todos os hiatos expressivos com valor estético de função excitante e artística. As palavras que deveriam estar num texto explicativo, mas que desapareceram por quebra de ritmo ou por artifício de estilo, não fazem falta a quem sabe ler para entender, e nesse entender familiarizar-se com novos raciocínios.

A prosa rítmica – métrica ou simétrica – pode impedir que o leitor analise detidamente o assunto, e até retirar às palavras usuais a sua significação didáctica. A incompatibilidade com o esquema clássico, – sujeito, cópula, predicado – representativos da ortodoxia e do passado, pode até ser garantia de libertação do pensamento especulativo. Mal vai a quem julgar superior aquele estilo sóbrio em que as frases não dizem nem mais, nem menos do que o escritor pretendia transcrever de um pensamento anteriormente determinado.

Ser inteligente não é compreender o que num texto se encontra muito bem explicado, nem ainda o que se encontra deficientemente explicado, nem ainda o que seria de difícil explicação. Ser inteligente é acertar na escolha do que ninguém escolhe, é ler o que ninguém se preocupa de soletrar, é ver no aspecto nocturno das coisas a sua nova dimensão auroral. A prova de inteligência nunca poderá ser dada na discussão presente, mas apenas no êxito futuro; por isso a inteligência, que é acima de tudo prognose e profecia, não se confunde baixamente com o cálculo utilitário.

O poeta escreve numa vivência subconsciente que resulta da inspiração, e, quando retoca de artifício o verso formulado, reconhece ter recebido de graça o pensamento que exprimiu. O escritor vulgar transcreve na sua prosa o pensamento que previamente adquiriu por adaptação ao ambiente social ou por penoso trabalho de cultura superior. O prosador autêntico reconhece que escrever consiste em submeter as palavras a experiências estilísticas, na confiança, na esperança, na certeza de que invocará os segredos propulsores da vida mental.

Destarte Guerra Junqueiro nos ensina como da filologia se transita para a filosofia. A sua revolução estilística iria facilitar revolução gnósica. Libertando as palavras, libertava também os conceitos, para que o pensamento filosófico, em vez de contemplar uma galeria clássica de estátuas frias, atendesse à musicalidade reveladora do significado, da vida e do destino das imagens.

Assim, ao proceder por uma seriação de epítetos o filósofo não oferece o estendal de uma poderosa luxúria de poder melódico; profundo conhecedor da língua portuguesa, não efectua uma aglomeração casual de epítetos; mas procede a intensificação gradativa, enumeração de séries já conhecidas, e ascende a subtil fluidificação. Decerto, nessa sublimação vocabular, o pensamento eleva-se até se perder em termos que descousificam, indefinem, idealizam todas as formas e todas as forças, sacrificando até a significação verbal do sólido na inefável misticidade. Mas ao estudioso do estilo logo se afiguram as frases do ritmo junqueirista como ampliantes séries atributivas que dependem de uma oração principal, e esta, em cada caso, parte sempre de um substantivo ou de um verbo substantivado, para que da intuição original decorram torrencialmente os predicados definidores e concretizantes.


Raul Brandão

Sirva de exemplo o admirável prefácio que o autor de Os Simples antepôs a Os Pobres de Raul Brandão, texto a todos os títulos digno de figurar numa antologia da filosofia portuguesa [6]. Nesse escrito, o uso magistral das palavras com prefixo in (impalpável, incerto, ilusório, ilimitado, etc., mas, e principalmente, infinito), longe de preencher as lacunas do pensamento com sonoridades vocálicas, tem por fim exprimir pela negatividade a dissolução que incessantemente facilita a realização cósmica e que permite, ao homem interventor, inserir no mundo dúctil o calor da sua espiritualidade. Há, decerto, nesta visão evanescente uma unilateralidade que ao filósofo competirá corrigir, mas não se pode, por isso, negar ao pensamento junqueirista o mérito de ter expresso uma face da verdade, em termos apropriados, correctos, inteligíveis, e, além disso, agraciados de notável beleza.

Daremos como exemplo característico de Junqueiro aquela frase que, parecendo mais insignificante, tenha merecido a atenção dos críticos: «Deus é, pois, o amor infinito, vencendo infinitamente a infinita dor.» De encadeamento de frases curtas, como resultado de sucessivas apreensões de atributos do mesmo conceito, apresentaremos este modelo admirável: «Rezar o universo é polarizá-lo no infinito amor. Cantar não basta, rezar é mais. Rezar é o superlativo divino de cantar. A oração é a canção angelizada, a canção chorada de mãos postas.» Etc. Finalmente, esta sucessão de aspecto revelador e admirável: «Rezar é chorar, mas heroicamente, na acção e na luta, no mundo e para o mundo. Rezar como Nuno Álvares, entre o fogo ardente da batalha. Enganam-se os que vão para Deus, voltando as costas à Natureza. Quem se quiser salvar, há-de salvar os outros. Quem renegar a Natureza renega a Deus. A ascese é egoísta e anticristã. O quietismo beato, apagando o universo, apaga a Deus. Quietismo e niilismo, – dois zeros, dois sinónimos. O frade tenebroso, na concha da mão exangue e paralítica, sustenta uma caveira. É o nada olhando o não-ser. O monge radiante (S. Francisco) na dextra poderosa, em vez da caveira, tem um globo de oiro constelado, onde se ergue uma cruz. Tem o universo e Deus» [7].

É impossível deixar de admirar, neste trecho sóbrio, o entrelaçado de filosofemas austeros numa linguagem correcta, excelsa e sublimante. Este estilo não deixaria de influir nos escritores das gerações mais novas, e reaparece com muitos dos seus característicos no Verbo Escuro (1914) de Teixeira de Pascoaes e em A Alegria, a Dor e a Graça (1915) de Leonardo Coimbra. Em séries de inferências que se graduam da Terra ao Céu, do Visível ao Invisível, da Natureza à Graça, exprimem os nossos artistas um panteísmo transcendente.

As Orações de Guerra Junqueiro exerceram tão grande influência que deram origem ao movimento cultural que da cidade do Porto irradiou para todo o país com a denominação de «Renascença Portuguesa». A mensagem poética de Guerra Junqueiro foi ouvida e interpretada por Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa em dois sentidos diferentes. Teixeira de Pascoes é um naturalista voltado para o passado, Fernando Pessoa é um futurista interessado pelo artifício, pelo que se distinguem de outros poetas que colaboraram em A Águia.

Conveniente é notar que, sofrendo a influência do Mercure de France, aqueles poetas portugueses preferiram ao simbolismo hermético o simbolismo cristão. A tradição evangélica deu-lhes o emblema que serviria de título à nova revista. Queriam, com isso, significar uma religiosidade que excede as praxes limitadas a um ponto da Terra.

Tal como Leonardo Coimbra nos advertiu em escrito apropriado, convém comparar Teixeira de Pascoaes com Frederico Nietzsche. A antropologia do autor de Also Sprach Zaratustra, fantasiando a evolução animal do gnomo ao gigante, segundo arquétipos telúricos da mitologia germânica, levou ao cúmulo as objecções terríveis que se podem apresentar ao humanismo cristão. Teixeira de Pascoaes, pelo contrário, concebeu a evolução humana fora do plano da zoologia, segundo uma orientação espiritualista, e interpretou a morte iniciaticamente como condição indispensável para uma renascença ou ressurreição.




Dando a réplica do espírito dantesco ao espírito fáustico, Teixeira de Pascoaes reconheceu na vida da nacionalidade portuguesa a assistência perene de uma verdade a que deu o nome de génio. Outros escritores inspirados, igualmente conhecedores das leis divinas, atribuíram a essa verdade diversas denominações, mais compatíveis com a cultura contemporânea. Estudar a expressão poética, filosófica e religiosa do Génio Português – tal era, para Teixeira de Pascoaes, a missão mais nobre que poderia ser confiada às novas gerações de artistas.

O génio é aquele ente subtil que assiste ao homem superior. Porque temos um génio somos um povo, porque temos um génio esperamos cumprir no mundo um destino espiritual que mal se desenha entre névoas e sombras. A profecia ainda não se cumpriu, aguarda o advento de uma época propícia, mas a cada geração se repete e se actualiza num verso de um poeta ou numa frase de um prosador.

Não se cumpriu ainda a profecia porque o povo não tem sido para ela educado. Os sistemas, métodos e processos de educação, importados ou imitados de modelos estrangeiros, apenas nos asseguram um lugar condigno no concerto das nações civilizadas. Quando, porém, desde o ensino primário ao universitário, tudo estiver organizado segundo o plano da filosofia lusíada ou atlântica, o povo português poderá afirmar a sua superioridade espiritual, realizando no mesmo acto a sua missão de qualidade divina.

É difícil marcar termo à escala de valores poéticos e encontrar ponto em relação ao qual se possa medir o progresso. No entanto é licito dizer que os movimentos poéticos que surgiram depois da «Renascença Portuguesa», se renovaram o lirismo e se deram ao drama acuidade maior, não excederam a épica religiosidade de Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa. A expressão poética de subjectividade humana enriqueceu-se com elementos recebidos de escolas estrangeiras e procurou seu complemento objectivo nas ortodoxias políticas ou religiosas, pelo que se situou em plano inferior ao «transcendentalismo panteísta», considerado por Fernando Pessoa o grau de apogeu da poesia portuguesa.

Tem-se dito e escrito que o movimento de A Águia foi continuado pelo grupo da Seara Nova. Subscreverá tal afirmação apenas quem verificar que os fundadores do quinzenário lisbonense haviam sido colaboradores do mensário portuense; mas quem proceder à comparação das doutrinas defendidas em uma e outra revista corrigirá facilmente o apressado juízo dos críticos literários. Nem em literatura, nem em política a revista Seara Nova aceitou a inspiração patriótica de Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, porque preferiu interessar-se pelos problemas pedagógicos, técnicos e económicos que deveriam ser resolvidos à luz da sociologia internacional.

A «Renascença Portuguesa» foi, sem dúvida, o movimento cultural mais profundo, sincero e original da primeira metade do século XX. Embora não lograsse êxito no ensino público e, portanto, não beneficiasse daquela continuidade indispensável à função educativa, representou incontestavelmente um grau de espiritualidade superior ao do movimento das Conferências do Casino. Tanto em poesia como em filosofia, a obra alegórica de Antero de Quental, que alguns críticos comparam à de Camões, representa um estádio ultrapassado pela obra simbólica de Guerra Junqueiro.

(In Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, Lisboa, Portugália, 1955, pp. 173-192).




[1] A. D. Sertillanges, O. P. – L’Idée de Création et ses retentissements en philosophie – Paris, 1945. Este livro bem merecia ser divulgado por tradução em Portugal. Quem o ler desprender-se-á necessariamente de muitos absurdos que ainda vigoram na nossa apologia ou apologética religiosa.

[2] Sampaio Bruno – A Ideia de Deus, Porto, 1902. Pág. 470.

[3] Todas as frases entre aspas foram transcritas das Prosas Dispersas de Guerra Junqueiro.

[4] A defesa dos valores retóricos e estilísticos do extraordinário Poeta, contra as críticas superficiais, tendenciosas e sectárias dos detractores da eloquência, encontra-se magistral e definitivamente realizada no livro de Amorim de Carvalho, Guerra Junqueiro e a Sua Obra Poética – Porto, 1945.

[5] Raul Proença – Páginas de Política, 2.ª série. Lisboa, 1939, pp. 300-1.

[6] Guerra Junqueiro – Prosas Dispersas – Porto, 1921, pp. 35-65. A opinião de Leonardo Coimbra sobre este prefácio ficou exarada no seu livro sobre Guerra Junqueiro – Porto, 1923, p. 133 e seguintes.

[7] Guerra Junqueiro – Prosas Dispersas – Porto, 1921, pp. 63-64.

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

"O amor é uma realidade imaginária, e por isso mesmo dificilmente inteligível"

Escrito por Álvaro Ribeiro



Expulsão de Adão e Eva, por Alexandre Cabanel.


«Pinharanda Gomes classifica-o entre os "gnósticos" no seu Dicionário de Filosofia Portuguesa. Há, com efeito, em Álvaro Ribeiro o desgosto do mundo humano e a ideia de que a salvação vem pelo conhecimento. Como, porém, o conhecimento é interpretado em analogia com “O Homem conheceu a Mulher” do Génesis, o seu pensamento opõe-se a todas as correntes gnósticas que põem como condição do aperfeiçoamento humano a abstenção de relações sexuais ou a tolerância delas como um mal necessário, segundo o ensino de São Paulo. Deste ponto de vista, Álvaro Ribeiro não é um “gnóstico”, é um adversário da Gnose.

Aquilo a que podemos chamar a baixa gnose e que perpetua degeneradamente o ensino de São Paulo, na impossibilidade de reprimir o puro, natural, santo impulso do amor entre o homem e a mulher, procedeu à sua conspurcação pelo cinema, pela imprensa, pela rádio, pela televisão, pela pornografia, fingindo defendê-lo ao tornar patente e público o que só é verdadeiramente pelo segredo e pela relação individual. A colectivização do acto sexual constitui a última e aparentemente decisiva, julgam eles, consagração da magia negra pelo socialismo. Compreende-se assim que o nome de Álvaro Ribeiro seja silenciado e odiado à esquerda e à direita.

O amor entre o homem e a mulher é, em primeiro plano, uma relação sem mácula de duas naturezas. Pela palavra, a relação natural torna-se transparente do sobrenatural. A sua socialização movimenta as palavras e as imagens obscenas que atraem o que no sobrenatural constitui o mais baixo e reles demonismo. A palavra é pelo pensamento como o acto é pela palavra. Só o pensamento, criando as palavras da imaginação amorosa faz nascer o acto que eleva e redime. O pensamento é, porém, como o filósofo diz, uma actividade invisível do espírito cujo meio próprio é o segredo e o mistério.

Assim se evidencia a íntima relação da filosofia com o amor. Pelo pensamento poderemos viver o mistério que é o universo, o imenso universo de que o amor entre o homem e a mulher assistido por Deus é a renovação miniaturial, mas infinita. O perfeito amor é o que corresponde a uma perfeita filosofia e essa é a de Deus que devemos procurar imitar.»

António Telmo («A Ilha do Amor no Pensamento de Álvaro Ribeiro»).


«As teses da biografia íntima do pensador sublinham as posições da sua biografia exterior. Se conseguirmos estabelecer esta relação sublimante, conseguiremos apreciar a verdade concreta, a firmeza real das teses e do pensamento. Um exemplo: Álvaro Ribeiro teve uma infância difícil que lhe tornou tormentosa a transição à fala e para sempre lhe perturbou as capacidades de expressão oral. Todavia, enunciou a tese oposta a esta posição e empenhou-se permanentemente em afirmar e demonstrar que a fala é o mais elevado valor da natureza humana e a expressão a garantia da realidade, ou da verdade, do pensamento. Escreve, sobre esta tese, as melhores páginas que jamais se escreveram sobre a caracterização da língua portuguesa, da língua francesa e da língua alemã, como línguas da filosofia e, identificando a tradição com a pátria, enunciou a tese de que “a tradição é a língua”, isto é, de que na língua se guardam os significados, os conceitos e as ideias que, em suas sucessivas e múltiplas variantes, constituem a riqueza de pensamento de um povo, constituem a própria pátria, porque a pátria é uma entidade espiritual.

Outra posição de Álvaro Ribeiro foi a ausência de família, posição infeliz ou negativa em que o pensador firmou a tese contrária: a de que na família reside o elemento mais firme e fecundo da educação, não podendo nós esquecer que esta tese, de âmbito à primeira vista limitado, se amplia na tese inspirada na ética aristotélica, de que toda a filosofia é uma doutrina da educação ou uma teoria do ensino.

Ainda outra posição na biografia exterior de Álvaro Ribeiro, foi a da constante pobreza em que toda a vida viveu e, por vezes, muito sofreu. Todavia, o pensador, em vez de cair em qualquer vulgar preconização socialista da igual distribuição da riqueza, antes afirmou a sua concordância com as teses do liberalismo chegando até a enaltecer o positivismo – que doutrinariamente refutou – de Teófilo Braga por haver contrariado, com êxito, o republicanismo sindicalista de figuras da 1.ª República que lhe estariam mais próximas – dele, Álvaro Ribeiro – como o portuense Basílio Teles.»

Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia de Álvaro Ribeiro»).



Orlando Vitorino


«O liberalismo da razão pura, ou o liberalismo puro, nunca poderia ser operante na vida social. Ele tem sido, porém, apresentado pelos doutrinários na expressão radical da liberdade indefinida ou infinita, na confiança plena dada à iniciativa particular, e na admissão providencialista do jogo das leis naturais. É evidente que tal liberdade concedida à motivação egoísta das actividades humanas tende a criar o estado de guerra, ou o seu análogo, na vida social, visto que as leis naturais são contingentes e estão maculadas pelo mal. Ao egoísmo dos homens sucede o egoísmo das instituições, e o próprio princípio associativo, ao intitular-se de socorro-mútuo, nessa designação exclui aqueles que, sofrendo de facto, não beneficiam de auxílio por não estarem em situação legal. O princípio regulamentar de só conceder benefícios aos sócios é a perfeita negação da caridade. A instituição egoísta fortalece o princípio da tirania, acabando por negar e contradizer a liberdade indefinida e infinita.

Não há, porém, puro liberalismo, nem liberalismo de razão pura, como não há puro naturalismo que se regule por leis físicas. A liberdade está condicionada pelo processo educativo, pela possibilidade de aperfeiçoar cada homem actualmente existente, e, mais ainda, pela possibilidade de transformar o género humano durante o processo infinito de redenção. A natureza, dizem os teólogos, tem de ser completada pela graça, e sem a graça não é possível a glória. A acção educativa é, portanto, uma acção de auxílio, e não uma intervenção de constrangimento. É de advertir que ao falarmos do processo educativo não nos referimos apenas à escolaridade. A escola moderna tende a desinteressar-se  mais do composto humano para se subordinar aos interesses mais imediatos, mais urgentes e mais prementes da sociedade.

Explicado assim que a liberdade depende da verdade, e não da vontade mais ou menos opiniosa, resta resolver o problema de saber quem é livre. É este, aliás, o problema equivalente ao de saber quem é sui juris. O doente, o degenerado e o anormal, seres nos quais a vontade não é livre, não podem exercer os direitos de concessão universal; nesse caso estão as crianças, quer dizer, os seres humanos em fase biológica de crescimento; outrora foram também considerados menores as mulheres e os escravos. Entre as pessoas legalmente consideradas livres, nem todas podem exercer os seus direitos, porque estes vão sendo cada vez mais condicionados por certas provas de ciência ou de liberdade. A burocracia faminta de papéis exige certidões, certificados e atestados que o cidadão obtém à custa de muitas humilhações perante os seus semelhantes, ou até perante os seus inferiores. A sociedade duvida cada vez mais de que os seus membros amem a verdade, tenham palavra de honra, sejam livres. Estas exigências burocráticas que tendem a aumentar com o rodar dos tempos, demonstram bem a distância que existe entre a vontade animal e a liberdade humana.»

Álvaro Ribeiro («Escola Formal»).

 

«A liberdade exige que o indivíduo possa prosseguir os seus propósitos; quem é livre em tempo de paz não está cativo dos desígnios concretos da sua comunidade. Essa liberdade de decisão individual deve-se à definição de distintos direitos individuais – os direitos de propriedade, por exemplo – e de áreas em que cada um pode usar para os seus próprios fins os meios com que conta ao seu dispor. Isto é, uma clara área de liberdade é definida para cada um. Tal é de capital importância. Ter algo de seu, mesmo que pouco, é igualmente o fundamento para formar uma personalidade própria e criar um ambiente distintivo em que cada pessoa prossiga os seus desideratos individuais.

A confusão nasce do pressuposto vulgar de que é possível ter esse tipo de liberdade sem restrições. Este pressuposto surge no aperçu atribuído a Voltaire de que “quand je peux faire ce que je veux, voilá la liberté” (“a liberdade é fazer o que bem entendo”), na afirmação de Bentham de que “toda a lei é um mal porque toda a lei é uma infracção à liberdade” (1789/1887: 48), na definição de Bertrand Russell de liberdade como “ausência de obstáculos à concretização dos nossos desejos” (1940: 251), e em inúmeras outras fontes. A liberdade universal é, não obstante, impossível neste sentido porque a liberdade de cada um claudicaria ante a liberdade ilimitada, isto é, na ausência de restrições, de todos os demais.

A questão é, portanto, como alcançar a maior liberdade possível para todos. Isso pode ser alcançado mediante a restrição da liberdade de todos por via de regras abstractas que impedem a coerção arbitrária ou discriminatória por ou de outras pessoas, evitando qualquer invasão da livre esfera individual de cada um (ver Hayek 1960 e 1973...). Em resumo, objectivos concretos comuns são substituídos por regras abstractas comuns. O governo é somente necessário para impor essas regras abstractas e, assim, proteger o indivíduo contra a coerção ou invasão da sua livre esfera pessoal por outrem. A obediência forçada a propósitos comuns concretos é equivalente a escravidão ao passo que a obediência a regras abstractas comuns – por mais pesadas que possam ainda fazer-se sentir – abre campo à mais extraordinária liberdade e diversidade. Por vezes, supõe-se que essa diversidade possa, contudo, redundar em caos ameaçando a ordem relativa que associamos à civilização, mas maior diversidade gera mais ordem. Daí que o tipo de liberdade possível graças à adesão a regras abstractas, em oposição à liberdade de restrições, seja, como Proudhon observou certa vez, “a mãe e não a filha da ordem!”».

Friedrich A. Hayek («Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo»).





«A Liberdade não é, ao contrário do que a etimologia da palavra possa sugerir, uma derrogação de todos os constrangimentos, mas sim a aplicação da mais efectiva observância de cada um dos justos constrangimentos a todos os membros de uma sociedade livre, sejam eles magistrados ou súbditos.»

Adam Ferguson


«Amor não quer cordeiros nem bezerros.»

Luís de Camões




O Amor


O amor é uma realidade imaginária, e por isso mesmo dificilmente inteligível. Quem estiver livre de confundir a imaginação com a representação mental e com a percepção, quem souber que a imaginação é criadora, saberá também que o amor se distingue do eros por um carácter sobrenatural. A atracção dos sexos, cuja fenomenologia naturalista se apresenta à consciência humana em imagens perturbantes, significa apenas uma relação a compor na correlação própria da analogia.

A linha de demarcação entre o natural e o sobrenatural não será a mesma para um critério histórico e para um critério metafísico, mas seja qual for o critério adoptado, sempre a distinção há-de contribuir para a inteligência da condição sexual da humanidade [1]. Os fins superiores da vida humana realizam-se por mediação do amor, graças à imaginação que os amantes intercalam no que naturalmente é comparável ao procedimento das espécies zoológicas. A decadência da arte explica a redução da vida amorosa à vida erótica quando a humanidade sofre o cansaço de imaginar.

O estudo do amor conduz necessariamente ao estudo dos mitos, e a presença da mitologia é critério bastante para separar a poesia lírica da poesia de amor. Está no Simpósio de Platão a prova filosófica de que o conceito de Eros não é suficiente para explicar a ideia de Amor. Admitido que o amor propõe à consciência um problema humano, um segredo natural e um mistério divino, convém reconhecer que na adunação está efectivamente a religião.

Alguns compêndios de psicologia inserem, no capítulo dedicado à vida afectiva, breves referências ao amor, mas tudo confundem com o tratamento esquemático das emoções, dos sentimentos e das paixões. É, todavia, evidente que o amor não pode ser classificado entre os fenómenos afectivos. O amor é uma realidade transhumana e transcendente, de que podemos ou não ter consciência, embora seja certo que esta realidade revela a sua verdade mediante emoções, sentimentos e paixões.

Incluir o estudo do amor nos livros de psicologia equivale a reconhecer que só pela palavra, pelo modo por que a psique formula o seu logos, sabemos que o amor é algo desconhecido pelos animais. A arte da palavra é efectivamente o que humaniza e imanentiza essa realidade transcendente a que damos o nome de amor. Neste aspecto se vê quanto a psicologia se relaciona com a literatura.


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O vero atractivo da obra literária está na promessa de descrever, e de narrar, como é que as personagens tomam consciência do amor, não só para o exprimir mas também para o explicar. Muitas vezes tal consciência não se dá perfeitamente, e então é o escritor quem excita o leitor a assumir consciência da inconsciência das personagens, acrescentando com a ironia reflexiva um motivo de maior interesse na feitura do romance. Vendo que as personagens vivem emoções, sentimentos e paixões que, por motivos vários, não se referem directamente ao ser amado, o leitor observa uma inconsciência que há-de ter efeitos dolorosos, traumáticos, alarmantes, até ao momento trágico em que as personagens se desenganam e se defrontam com a vontade.

O carácter involuntário e inexplicável do amor é que permite confundi-lo com a paixão, e neste engano diz o vulgo que determinado homem está apaixonado. O homem que ama sabe que é livre, mas a sua libertação passa do sofrimento para o sentimento, e do sentimento para a imaginação, segundo um ritual de expressão e de comunicação a que a mulher, já prevenida e preparada, naturalmente se conforma. Errada é, pois, a nomenclatura da sedução, da conquista e da posse, porque, oriunda dos domínios da vontade e da violência, não pode adequadamente cingir os aspectos evasivos do amor.

O amor humano abrange as ordens corporal, anímica e espiritual. Nisso se distingue, sem comparação degradante, com o instinto de reprodução dos animais. A ética do amor seria mera convenção moral, sempre discutível, se a perfeita união da mulher com o homem não tivesse repercussões virtuosas ou pecaminosas na ordem do Espírito.

A união amorosa realiza-se em três planos que poderíamos dizer da vida afectiva, da vida imaginativa e da vida racional, escala cuja ascensão e descensão abre sempre novos horizontes aos amantes. A imaginação é, efectivamente, o poder mais alto que ao ser humano foi dado para atenuar a dor, se não para atingir o prazer. Quando a razão expulsa a imaginação, quando o ser amante julga o ser amado, a conclusão chama-se divórcio, separação de dois egoísmos.

Confundir a vida instintiva, a que o sedutor se cinge, com a vida emocional, apenas porque uma e outra se denunciam pelo comportamento fisiológico, equivale a confundir imanência com transcendência. A palavra intervém sempre para humanizar a vida, e é pela magia das palavras, ou pela poesia, que o homem e a mulher se podem assegurar de estarem ou não perante o amor. Sem eloquência não há vida amorosa, e a prova é que para simular o amor em actos de sedução é indispensável recorrer a palavras falsas.

Toda a nossa atenção incide sobre os verbos que exprimem a consciência do estado amativo, e sobre eles é possível fazer um admirável estudo de psicologia e de filologia. A consciência exprime-se por locuções em que entram os verbos auxiliares, seguidos de nome predicativo do sujeito, quando por egoísmo a pessoa não excedeu o grau de liricidade. Uma vez reconhecida a pessoa amada, uma vez imaginada a superioridade da pessoa amada, já o amor se exprime por verbos activos e transitivos, verbos que pedem complemento directo.

A declaração de amor utiliza verbos como desejar, querer, gostar, etc., mas também usa substantivos verbais, quer dizer, os substantivos que designam acções e paixões, embora não seja esta a definição corrente na nomenclatura gramatical. Afeição, admiração, adoração substantivam mas exprimem actividades da alma amante, a que responde a alma amada com a passividade de termos tais como compaixão, simpatia, ternura, querença. A imaginação, exprimindo hipérboles, compõe os dizeres amorosos com as promessas de eternidade.




Ao estudo da linguagem do amor pertence também o estudo dos termos de comparação de que o amante se utiliza quando pretende louvar a pessoa amada. Lembremo-nos do Cântico dos Cânticos, e por esse exemplo nos guiemos para observar a relatividade das circunstâncias e das oportunidades que sugerem as metáforas da poesia de amor. O estudo estilístico terá de ser acompanhado pelos estudos foclórico e etnográfico, sabido que a poesia primitiva, ou popular, é a matriz das mais altas obras da literatura.

É indispensável, como vemos, um certo domínio da linguagem para atingir alta consciência do amor. A infância, isto é, a idade em que a criança não fala, ou ainda não fala correctamente, não pode ser idade de amor. A precocidade da mulher em relação ao homem, no desembaraço da fala, na escolha ou invenção de expressões melodiosas, na espontânea aptidão para cantar, são indícios de que para o sexo feminino o amor contém maior importância do que lhe atribui o sexo masculino.

Há muitos escritores que, cientes da verdade de que logo ao nascer pertencemos a um dos sexos, afirmam que a consciência do amor possa surgir antes da puberdade, e confirmam a sua tese mediante a descrição fenomenológica de emoções, sentimentos e paixões que se revelam na puerícia, idade que se conta dos sete aos catorze anos. Estes amores, falsamente chamados infantis, porque quem ainda não fala ainda não sabe amar, têm até sido poeticamente descritos em diários, memórias e obras literárias. Tais documentos humanos de imperfeita consciência do amor revelam uma expressão que ainda não é comunicação, ou comunicativa, provam que é indispensável o tempo próprio para que se verifique o trânsito da potência ao acto.

Durante a puerícia é mais natural a indiferença ou o desinteresse de um sexo pelo outro do que a curiosidade tendenciosa para as relações sexuais, embora a imitação das atitudes e dos procedimentos dos adultos possa surgir de exemplos dados no ambiente social. Muitos incitamentos exteriores apressam a curiosidade pela temática amorosa, e muitos exemplos incitam a puerícia a um desequilíbrio moral pela precocidade erótica. Será difícil preservar o pudor natural das crianças num ambiente em que os chamados meios de difusão da cultura estão, e não podem deixar de estar, impregnados de problemática afrodisíaca [2].

Incitar os adolescentes a que procurem pessoas que não respeitam, não estimam, não amam, para com elas praticarem a simulação do amor, num contrato miserável e por vários aspectos comparável ao homicídio, é um crime, porque transforma os vivos em mortos. Esta negação do amor, professada por aqueles que chamam ao casamento um contrato, segundo uma definição já condenada na Filosofia do Direito de Hegel, contradiz a teologia do matrimónio e, com ela, o significado espiritual da vida humana [3]. Tal simulação chega a ser tolerada por pessoas que se jactam de bom comportamento moral.

O preconceito egoísta denuncia-se, porém, na unilateralidade das expressões vigentes. Cada pessoa pretende resolver apenas o seu próprio problema sexual, indiferente a quaisquer razões de amor. Assim, em consequência desta atitude solipsista, os verbos casar, separar e divorciar são usados na conjugação reflexa, o que é linguisticamente bem significativo do carácter individualista dos nossos costumes e da nossa legislação.

Além destes aspectos, que alarmam o moralista, convém prestar atenção a que se acentua cada vez mais a tendência para a masculinização da cultura durante a idade escolar. Quanto mais vencer a tese da igualdade dos sexos perante o padrão masculino, quanto mais a mulher se desvestir dos atributos de feminilidade, por influência da escola, tanto mais a vida amorosa tenderá a descer à preocupação elementar da satisfação dos instintos. A mulher crê na superioridade da cultura masculina, pretende absorvê-la e assimilá-la, mas na medida em que imita o homem vai considerando ridículos e desprezíveis os atributos que outrora eram tidos por característicos da feminilidade.

As doutrinas religiosas explicam a relação da mulher com o homem pelo simbolismo da relação da carne com o espírito. O matrimónio solidário dos mistérios da encarnação, da redenção e da ressurreição, sacramentando confere as graças especiais dos casados e dignifica a geração humana. Infelizmente, porém, as doutrinas religiosas vão-se adulterando em doutrinas sociológicas, e já os moralistas se contentam apenas com sobrepor ao facto natural o direito social.

A moral condena, pelo ridículo, o homem que de qualquer modo se afemina, e a lei intimida-o até com violentas sanções; mas a sociedade tolera que a mulher a pouco e pouco adquira atitudes e hábitos masculinos, desde o corte do cabelo até ao vestuário de uniforme. A transfiguração da mulher, nos limites consentidos pela Natureza e tolerados pela Sociedade, não pode deixar de adulterar a significação do amor, da maternidade e da família. O homem há-de sentir-se humilhado quando reconhecer que a mulher, em vez de manifestar a superioridade que é própria do seu sexo, perverte a imaginação em inteligência, para dominar nos campos abertos ao instinto combativo.

Ninguém observa com atenção suficiente que é injusto obrigar a rapariga a receber o mesmo ensino escolar que foi destinado para o rapaz, e que tal injustiça é clamante no período dos sete aos catorze anos. É de alarmar a ignorância de que a mesma idade cronológica não corresponde nos dois sexos a iguais idades biológicas e psicológicas, pelo que não pode haver ensino simultâneo dos mesmos programas escolares. A rapariga cumpre mais aceleradamente o ciclo da evolução, que pode dar-se por definido na puberdade, pela consciência da finalidade maternal, que a torna verdadeiramente mulher, enquanto o rapaz só nesta idade desperta para a seriedade da vida à chamada da vocação.

Diz-se que as raparigas são mais precoces do que os rapazes, mas convém explicar esta noção de precocidade pelos seus motivos biológicos e psicológicos. Fácil é verificar quanto as raparigas são sensíveis ao ridículo, dotadas de aptidão para as expressões cómicas, que transmitem umas às outras com risinhos em voz baixa; fácil é verificar que os rapazes se dedicam à exteriorizar a vontade, falando alto e gritando, satisfazendo por processos violentos a sua profunda tendência expansionista. As raparigas cedo se dedicam ao estudo das pessoas, dos caracteres e dos temperamentos, ganhando assim superioridade sobre os rapazes que, mais reflexivos, e intimidados, só depois da adolescência hão-de entender a diferente psicologia de cada sexo.

A tendência para o individual, o pessoal e o concreto é mais nítida na rapariga, que tem melhor memória para o jogo lúdico das palavras, enquanto que o rapaz, para dar à vontade a justificação racional, tende para o juízo reflexivo e para a abstracção. Não há, para a dialéctica, metodologia mais útil do que seguir as fases do jogo, da arte e do trabalho nas várias idades, para ver como elas naturalmente se diferenciam conforme os sexos. A rapariga tende espontaneamente a brincar com a boneca, a exercitar a sua habilidade manual nos trabalhos relacionados com a alimentação, o vestuário, o mobiliário e a habitação, a distinguir-se no que se convencionou chamar «artes decorativas»; enquanto o rapaz se concentra com os brinquedos mecânicos, em busca de uma física que ninguém o auxilia a descobrir, ou a arquitectar edifícios que se transformem em fábricas por virtude da engenharia, ou a procurar mundo onde possa dar expansão às suas tendências combativas, aventureiras e nómadas.

Vemos assim que o programa de ensino deve ter por lema transitar do concreto para o abstracto, considerando primeiro a antropologia com a biografia e a história, seguidamente as ciências biológicas e a geografia, depois a física e as técnicas industriais, e por fim a matemática. Claro está que a ordenação minuciosa das matérias destas disciplinas não pode ser a mesma para raparigas e para rapazes, se atendermos a que a evolução biológica e psicológica de ambos os sexos não é simultânea, e que portanto não podem ser simultâneos os mesmos centros de interesse. Raparigas e rapazes não podem aprender ao mesmo tempo as mesmas disciplinas ou, com maior exactidão, exercitar os processos mentais que tais disciplinas exigem, mas é nesta desarticulação das ciências e das artes para fins didácticos que falham muitos redactores de testes, de pontos para exame e de livros escolares.

Só depois da puberdade, fixada e definida a alma, é que começa a deixar de ser perigosa para ambos os sexos a uniformidade didáctica e a ser conveniente o ensino comum. O ingresso nas escolas de habilitação profissional, tanto das profissões inferiores como das profissões superiores, poderá ser condicionado por um exame de aptidão, mas nunca por um exame à soma de conhecimentos que pode e deve ser diferente, que pode e deve ser desigual, nos estudantes dos dois sexos. A complementaridade de pontos de vista, masculinos e femininos, perante a mesma técnica, a mesma ciência ou a mesma metafísica, será um benefício social.

Muito grandes são os estragos que na alma feminina exerce o ensino público, sempre que pela masculinização tende para a uniformização que nunca chega a ser espiritual. Nem todas as mulheres se defendem daquela linguagem impessoal, ou abstracta, que estrutura as técnicas, as ciências e as metafísicas; nem todas as mulheres se libertam daqueles modos de raciocinar ou de pensar, que docilmente assimilaram enquanto estiveram na escola. Felizmente, porém, maior é o número daquelas que se desprendem de pesos mortos, que lhe dificultam a vida, para regressarem ao que efectivamente é a sua vocação natural e sobrenatural.

A mulher consciente sabe que o seu primeiro dever é ser bela, que deve cultivar e aperfeiçoar o seu tipo de beleza, visto que de um modo geral se pode dizer que não há mulheres feias. A fealdade só é ostensiva na mulher que não cuida do seu corpo, do seu vestuário, da sua habitação. A mulher dotada de imaginação saberá sempre valorizar a parcela de beleza com que foi brindada por Deus.

A mulher comunica-nos a sensação de beleza quando tem consciência do valor do seu corpo. Quando a mulher se compenetra de que o seu corpo deve ser belo como um templo, também o resguarda dos olhares profanos como quem reserva um tesouro. A simetria, a estabilidade e a altura da mulher dão à sua figura algo de hierático e arquitectónico, inspirando os pintores a representarem a beleza invisível em retratos que hão-de ser sempre admiráveis.

A pintura esforça-se por fixar todas as gradações do pudor feminino, porque a arte é a representação sensível do insensível, que se aperfeiçoa ascendendo do problema para o segredo, e do segredo para o mistério. O pudor feminino é graça que todos os homens respeitam, quando a reconhecem autêntica e sincera. Tal respeito perdura até nos tempos em que a dança, os desportos e a ginástica parecem aconselhar à mulher a completa desnudação, antecedente de uma dádiva  total, sem reserva nem escolha.

A mulher é atraente, mas para atrair acentua a sua beleza com ornatos de joalharia. A mulher sabe sempre que o homem tantas vezes ignora quando interpreta o simbolismo das jóias. Assim realça a fronte com o diadema, as orelhas com os brincos, o colo com os colares, os braços com as pulseiras, os dedos com os anéis, para que a fragilidade da carne aumente de beleza no contraste com a preciosidade dos metais.



A mulher é atraente na medida em que a beleza, valor estético, significa atracção. Bem sabemos que a beleza feminina é efémera, móvel e simbólica, mas há mulheres que a podem conservar por graça que dura a vida inteira. Na sua mobilidade, a mulher pretende impressionar um só tipo de homem, ou um só homem, aquele que já elegeu ou que há-de ser eleito, porque é feminino viver no signo da monogamia, exclusiva e total.

Erram quantos julgam ser a mulher naturalmente vaidosa. A vaidade é ávida de aplausos e louvores, e vaidosos são os homens que exultam com as condecorações no peito e com as coroas na cabeça – sejam coroas de metais, de louros ou de espinhos –, contanto que assim ostentem o sinal de estarem dependentes da opinião dos seus semelhantes. A mulher procede muito mais por opinião própria, com a perseverança de quem persegue um destino, resignada e paciente.

Acumulando motivos de distinção entre as outras mulheres, e de brilho que impressione os olhos dos homens, cada qual pretende exteriorizar simbolicamente o que a sociedade lhe impede de exprimir directamente pelas emoções. A moda, ou mudança de vestuário, vale de discurso alegórico pelo qual a mulher, quando sabe perfeitamente o simbolismo das cores e das formas, torna a sua alma inteligível a quem for capaz de a entender. Nada contraria tanto a feminilidade como a renúncia à liberdade de expressão simbólica, nada lhe repugna tanto como a obrigação de vestir um uniforme.

Ninguém ignora o simbolismo do preto e do branco no vestuário, ninguém ignora o significado do luto e da candura, da viuvez e da virgindade. Todas as cores são dotadas de significação notável, todas as figuras que contornam as cores representam realidades inteligíveis, e não há mulher que desdenhe a graça de rever no espelho os fantasiosos enfeites da sua arte admirável. Adivinhar o que o símbolo diz quando falta a palavra, eis o que só é dado aos homens que estudam fora dos livros a estética, porque a estética, ciência dos símbolos ou simbologia, tem por efeito exercitar a alma na intuição precisa dos segredos naturais.

A sociedade não consente que a mulher exprima tumultuariamente as suas emoções, nega-lhe o direito de manifestar o natural anseio de obter a companhia do varão, obriga-a retrair-se numa atitude expectante, e assim é o sexo feminino impelido a usar a linguagem indirecta dos símbolos, espera ser desejado enquanto não lhe for lícito desejar. Decerto que o desejo não é ainda amor, decerto que o desejo é obscura consciência do instinto que quer ser dado à luz gloriosa da sensação, mas consciência dolorosa e sofredora. A equivalência entre desejo e sofrimento, em que por leviandade de alma poucos reparam, torna-se evidente a quem passou sede ou fome, conforme aliás se diz em comparações usuais da linguagem erótica.

A mulher tem por mister esforçar-se por ser admirada, desejada e amada, para que entre os sucessivos pretendentes vá eliminando os que menos lhe agradam até à hora decisiva da escolha. As palavras compaixão, condolência e concordância, que podem valer de sinónimos para simpatia, denotam bem que o amor se revela pela simultaneidade de dois sofrimentos, pela esperança comum de sublimar a dor pelo prazer. Toda a arte de amar gira em torno da compaixão, conforme demonstrou Miguel de Unamuno no livro intitulado Del Sentimiento Trágico de la Vida.




A mulher declara a compaixão pelo homem de quem admira a superioridade, qualquer que seja o tipo social da superioridade. Enquanto umas mulheres julgam, porém, essa superioridade desejável só para seu benefício, antegozando graças a obter mediante o casamento, tão estáveis quanto garantidas pela legislação civil, outras não ignoram que a superioridade masculina aparece desarmada neste mundo, e que a sociedade não reconhece à primeira vista os santos, os heróis e os génios. A mulher amante dispõe-se a subordinar a sua vida à vida do seu amado, e, nesta subordinação tão voluntária como consciente, gratifica o homem com a possibilidade de seguir a sua carreira, de vencer e de triunfar.

Condenáveis e lamentáveis nos parecem todas as mulheres que, dando ouvidos a terceiras pessoas, impediram os seus maridos de realizarem as obras a que deveriam ter-se dedicado por vocação. Grande é o número de artistas, escritores e pensadores que, contrariados pelo egoísmo pessoal, familiar ou mundano de suas mulheres, desistiram para sempre de cumprir a missão superior. Todos nós conhecemos vários exemplos na sociedade contemporânea, e se bem que a decência impeça de os apresentar a execração pública, nada evita que sejam por vezes relembrados em conversas particulares ou confidenciais.

O mérito, para não dizermos o dever, da mulher casada está em adaptar-se às condições sociais do marido, e não na perfídia que contraria a vocação masculina, alegando exigências de economia familiar. Todos os homens concordam com igual doutrina quando, enternecidos pelo amor ou até pela amizade, afirmam que não desejariam que as suas mulheres trabalhassem fora do lar, e quando, em consequência dessa doutrina, procuram acesso a profissões mais remuneradas, para acertarem enfim a economia doméstica. O egoísmo masculino renega, porém, aquela doutrina, quando admite que as mulheres dos outros percam a beleza, a saúde e até a honra no exercício das mais duras profissões do comércio, da indústria e da agricultura.

A mulher faz a graça ou a desgraça do homem, porque lhe propõe as ideias, emoções e figuras que estimulam ou atenuam a sua actividade. Da qualidade destas figuras, emoções, ideias, que pairam na atmosfera de sonho, de poesia ou de realidade, depende a possibilidade de o homem ser herói, artista ou santo. Na mulher que escolheu, e que escolheu porque a considerou bondosa, bela ou inteligente, o homem, senhor da sua liberdade, hipotecou perigosamente o seu destino [4].

A mulher bem avisada deve estar preparada para reconhecer quão fraco é na vida íntima do lar o homem que parece forte na via pública, conhecer os desânimos, as desistências, as covardias do sexo masculino nas horas de perturbação, e reanimar o amado para nova luta contra falsos amigos e verdadeiros inimigos [5]. É por isso que a mulher casada, pela sua dedicação a um só homem, realiza um sacrifício incomparavelmente mais valioso do que as mulheres que, repartindo o seu zelo pelos serviços de instituições, tais como as puericultoras, as enfermeiras e as espias, não sabem o que é dádiva total de pessoa a pessoa. A mulher casada pode ser obrigada a suportar integralmente o peso da infelicidade que recai sobre o seu marido, quando outras circunstâncias dramáticas não afectam a vida conjugal, o que não acontece às mulheres solteiras que, embora lutando com as asperezas e as dificuldades do exercício de uma profissão, gozam de um prestígio cada vez mais garantido pelos costumes, pelos regulamentos e pelas leis.


Eros e Psique

A monogamia, que as instituições defendem a favor da mulher, depende em grande parte da conservação do sigilo conjugal. Estranho é que na lei não esteja prescrito este dever de ambos os cônjuges, porque sem a conservação do sigilo conjugal não pode haver fidelidade amorosa, nem pode o casamento realizar plenamente os fins da família. Ao tornar público o que é privado, ao relatar em conversas fúteis e inúteis todas as experiências dolorosas, desde as doenças do corpo, alma e espírito, até aos desastres nos ócios e nos negócios, o cônjuge inconfidente devassa a intimidade do lar, abre a porta à devassidão.

Verdade é que a moral não faz pressão para que o sigilo conjugal seja de lei. A moral representa os sentimentos da mediocridade e da mediania em transigência mais ou menos elástica com os supremos valores. Ora todos observamos que os homens, logo na adolescência, são instigados a confessar as aventuras eróticas de que foram protagonistas, e assim, para satisfazerem a vaidade própria do sexo masculino, pecam contra a gratidão devida ao sexo feminino.

O mancebo que narra um encontro erótico, seja em conversa alegre ou em poema lírico, e que não guarda total segredo sobre a identidade da mulher, está a aviltar-se, sem que disso tenha consciência, perante os que escutam, ou os que o lêem, com sorriso acolhedor, irónico e condenatório. Não observa que a si mesmo confere um atestado de delator o homem incapaz de defender pelo segredo a honra da mulher. Na ausência será escarnecido pelos companheiros, esse homem que sobrepõe o amor-próprio ao amor alheio, esse homem que não merece ter amigos.

A condição do amor é uma vida secreta, que só pode exprimir-se por alegorias. Toda a literatura, exactamente porque usa de liberdades poéticas, confirma a verdade transmitida por velhas tradições. Mal vai aos homens e aos povos que, por esquecimento da sabedoria tradicional, já não entendem os motivos profundos desta condição.

O amor tem de ser secreto porque contra ele luta a entidade mais poderosamente inimiga da vida, que é a inveja. Até as inocentes crianças, maculadas pelo pecado original de não poderem ver o amor, riem maliciosamente dos namorados e dos amantes, quando não os perseguem e perturbam até lhes frustrarem as condições de felicidade. É dos adultos, porém, que surgem os processos auxiliares da inveja, dirigidos para combater eficazmente o amor, para reprimir a exteriorização das emoções, dos sentimentos e das paixões, para enfraquecer no condicionamento sociológico as energias criadoras da vida.

A maledicência, que é um dos processos mais vulgares no combate da inveja contra o amor, a maledicência, que tem por fim a desonra do homem ou da mulher, é significativa de falta de imaginação. A maledicência é, por isso, um sinal de decadência. Quem diz o mal torna-se a pouco e pouco incapaz de ouvir o bem.

(In Álvaro Ribeiro, A Razão Animada, Sumário de antropologia, Livraria Bertrand, 1957, pp. 249-263).





[1] Edith Stein, Frauenbildung und Frauenberufe, Munchen, 1949. Tradução francesa de Marie-Laure Rouveyre, com o título La Femme et sa Destinée, Paris, 1956.

[2] Henri Bergson, Les Deux Sources de la Morale et de la Religion, Paris, 1932, p. 326.

[3] G. W. P. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, Berlin, 1833, §§ 75 e 163.

[4] John Stuart Mill, Autobiography, London, 1873. Tradução portuguesa de Flausino Torres, com o título Memórias, Lisboa, s. d.

[5] Ashley Montagu, The Natural Superiority of Women, London, 1954.