sábado, 9 de setembro de 2023

Pátria

Escrito por Guerra Junqueiro





«A “Renascença Portuguesa” invocava, como seus patronos, os nomes de Teófilo Braga, Guerra Junqueiro e Sampaio Bruno, escritores que haviam preconizado a renúncia à nacionalidade ou profetizado a infusão da Pátria no aglomerado da Europa, em vindouro internacionalismo ou universalismo. Depois da crise intelectual e moral de 1870 a 1891, a propagação das doutrinas republicanas e a esperança de imitar a Suíça e a França, facultaram ao povo fórmulas políticas de um ideal a que só a filosofia poderá dar inteligente expressão. Em vez do Fim da Pátria, alarmado por Guerra Junqueiro, haveria que proclamar os fins da Pátria, esquecidos ou omitidos na lei fundamental da República.»

Álvaro Ribeiro («Memórias de Um Letrado, I»).

 

«Nem toda a profecia é de júbilo, nem todo o profeta geme, nem toda a admonição chora. Alguma contesta e protesta. Como Leonardo tão bem inteligiu, e como está ostensivo em toda a obra do poeta, Junqueiro é uma alma tão religiosa que pode pecar por excesso. Um excesso que transborda uma congestão de negatividade: o mal é tão presente, o mundo é tão amoral, que a responsabilidade é trespassada dos imperfeitos cristãos para o próprio Cristo.»

Pinharanda Gomes («A Cidade Nova»). 


«Nem Deus, nem dignidade, nem remorsos.

A sua mão, onde quer que pousava, punha nódoas de sangue. A Companhia dos Vinhos foi inaugurada no Porto com uma fileira de forcas que trabalharam seis horas, e por um crebo ulular de gemidos de uns açoitados que se tinham amotinado em seguida à bebedeira de terça-feira de Entrudo.

Eu não me persuado que tivessem uma prelucidação das futuras malfeitorias da Companhia os arruaceiros condenados. Sim: não me atrevo a considerar mártires da ciência económico-agrícola o soldado António de Sousa, de alcunha o Negro, e mais o Manuel Francisco, de alcunha o Cosido, e o Tativitate, e o Cheta, e mais as senhoras Custódia Maria, de alcunha a Estrelada, cúmplice enforcada da Páscoa Angélica, meretriz professa. Nem eles nem elas se devem considerar bodes e cabras expiatórias da ideia moderna contra os monopólios e pela liberdade das indústrias. A celebrar assim a memória destes padecentes, não se explica a incongruência dos democratas avançados que, um destes dias, fizeram a apoteose do déspota que mandou enforcar aquela gentalha esfrangalhada e piranga, como réus de crime de alta traição e de lesa-majestade da primeira cabeça. Não se renega assim o ideal avoengo.»

Camilo Castelo Branco («Perfil do Marquês de Pombal»).




Balanço patriótico:


Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, – reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta;

Um clero português, desmoralizado e materialista, liberal e ateu, cujo Vaticano é o ministério do reino, e cujos bispos e abades não são mais que a tradução em eclesiástico do fura-vidas que governa o distrito ou do fura-urnas que administra o concelho [1]; e ao pé deste clero indígena, um clero jesuítico, estrangeiro ou estrangeirado, exército de sombras, minando, enredando, absorvendo, pelo púlpito, pela escola, pela oficina, pelo asilo, pelo convento e pelo confessionário, – força superior, cosmopolita, invencível, adaptando-se com elasticidade inteligente a todos os meios e condições, desde a aldeola ínfima, onde berra pela boca epiléptica do fradalhão milagreiro, até à rica sociedade elegante da capital, onde o jesuitismo é um dandismo de sacristia, um beatério chic, Virgem do tom, Jesus de high-life, prédicas untuosas (monólogos ao divino por Coquelins de fralda) e em certos dias, na igreja da moda, a bonita missa encantadora – luz discreta, flores de luxo, paramentos raros, cadeiras cómodas, latim primoroso, e hóstia glacée, com pistache, da melhor confeitaria de Paris;

Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro [2];

Um exército que importa em 6 000 contos, não valendo 60 réis, como elemento de defesa e garantia autonómica;

Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre, – como da roda duma lotaria;

A Justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um saca-rolhas.

Dois partidos monárquicos, sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, na hora do desastre, de sacrificar à monarquia ou meia libra ou uma gota de sangue, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, – de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.

Um partido republicano, quase circunscrito a Lisboa, avolumando ou diminuindo segundo os erros da monarquia, hoje aparentemente forte e numeroso, amanhã exaurido e letárgico – água de poça inerte, transbordando se há chuva, tumultuando se há vento, furiosa um instante, imóvel em seguida, e evaporada logo, em lhe batendo dois dias a fio o sol ardente; um partido composto sobretudo de pequenos burgueses da capital, adstritos ao sedentarismo crónico do metro e da balança, gente de balcão, não de barricada, com um estado-maior pacífico e desconexo de velhos doutrinários, moços positivistas, românticos, jacobinos e declamadores, homens de boa-fé, alguns de valia mas nenhum a valer; um partido, enfim, de índole estreita, acanhadamente político-eleitoral, mais negativo que afirmativo, mais de demolição que de reconstrução, faltando-lhe um chefe e autoridade abrupta, uma dessas cabeças firmes e superiores, olhos para alumiar e boca para mandar, – um desses homens predestinados, que são em crises históricas o ponto de intercepção de milhões de almas e vontades, acumuladores eléctricos da vitalidade duma raça, cérebros omnímodos, compreendendo tudo, adivinhando tudo, – livro de cifras, livro de arte, livro de história, simultaneamente humanos e patriotas, do globo e da rua, do tempo e do minuto, forças supremas, forças invencíveis, que levam um povo de abalada, como quem leva ao colo uma criança.

Instrução miserável, marinha mercante nula, indústria infantil, agricultura rudimentar;

Um regime económico baseado na inscrição e no Brasil, perda de gente e perda de capital, autofagia colectiva, organismo vivendo e morrendo do parasitismo de si próprio;

Liberdade absoluta, neutralizada por uma desigualdade revoltante, – o direito garantido virtualmente na lei, posto, de facto, à mercê dum compadrio de batoteiros, sendo vedado, ainda aos mais orgulhosos e mais fortes, abrir caminho nesta porcaria, sem recorrer à influência tirânica e degradante de qualquer dos bandos partidários.

Uma literatura iconoclasta, – meia dúzia de homens que, no verso e no romance, no panfleto e na história, haviam desmoronado a cambaleante cenografia azul e branca da burguesia de 52, opondo uma arte de sarcasmo, viril e humana, à fraudulagem pelintra da literatura oficial, carimbada para a imortalidade do esquecimento com a cruz indelével da ordem mendicante de S. Tiago.

Uma geração nova das escolas, entusiasta, irreverente, revolucionária, destinada, porém, como as anteriores, viva maré dum instante, a refluir anódina e apática ao charco das conveniências e dos interesses, dela restando apenas, isolados, meia dúzia de homens inflexos e direitos, indemnes à podridão contagiosa pela vacina orgânica dum carácter moral excepcionalíssimo.

E se a isto juntarmos um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado já em fórmulas banais e populares, – tão bons são uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra, etc., etc., – teremos em sintético esboço a fisionomia da nacionalidade portuguesa no tempo da morte de D. Luís, cujo reinado de paz podre vem dia a dia supurando em gangrenamentos terciários.




O advento do materialismo burguês, inaugurado pela ironia céptica do Rodrigo, acabava pela galhofa cínica do Mariano. O riso de sibarita amargo, desfechava no riso canalha, de garotão de aljube. O patusco terminava em malandro.

A burguesia liberal, merceeiros-viscondes, parasitagem burocrática, bacharelice ao piano, advogalhada de S. Bento, morgadinhas, judias, sinos, estradas, escariolas, estações, inaugurações, locomotivas (religião do Progresso, como eles diziam), todo esse mundo de vista baixa, moralmente ordinário e intelectualmente reles, ia agora liquidar numa infecta débâcle de casa de penhores, numa Alcácer Quibir esfarrapado, de feira da ladra.

A nação, como o rei, ia cair de pobre.

O conflito inglês e a revolução brasileira, dois cáusticos, puseram a nu, de improviso, toda a nossa debilidade orgânica, –  miséria de corpo e miséria de alma.

Falecimento e falência. Ruínas. Montões de vergonhas, trapos de leis, cisco de gente, lama de impudor, carraças de bancos, famintos emigrando, porcos digerindo, ladroagem, latrinagem, um salve-se quem puder de egoísmos e de barrigas, derrocada dum povo numa estrumeira de inscrições, – 700 mil contos de calote público, a bela colheita do torrão português, regado a oiro, a libras, desde 52 até 90.

A crise não era simplesmente económica, política ou financeira. Muito mais: nacional. Não havia apenas em jogo o trono do rei ou a fortuna da nação. Perigava a existência, a autonomia da pátria. Hora grande, momento único. A revolução impunha-se Republicana? Conforme. Se o monarca nos saísse um alto e nobre carácter, um grande espírito, juvenil e viva encarnação de ideal heróico, tanto melhor. A revolução estava feita. Imprimia-se, dum dia ao outro, no Diário do Governo.

Mas feita com quem, perguntarão, se tudo era lodo? Feita com o elemento moço do exército e da marinha, com quase todo o partido republicano [3], com individualidades íntegras e notáveis dos partidos monárquicos, com a juventude das escolas, com um sem-número de indiferentes por nojo e por limpeza, com os duzentos homens de sério valor intelectual dispersos nas letras, nas ciências, no comércio e na indústria, e com o povo, o povo inteiro, que acordaria, Lázaro estremunhado, da sua campa de três séculos, à voz dum vidente, ao grito dum Nun’Álvares.

O português, apático e fatalista, ajusta-se pela maleabilidade da indolência a qualquer estado ou condição. Capaz de heroísmo, capaz de cobardia, toiro ou burro, leão ou porco, segundo o governante. Ruge com Passos Manuel, grunhe com D. João VI. É de raça, é de natureza. Foi sempre o mesmo. A história pátria resume-se quase numa série de biografias, num desfilar de personalidades, dominando épocas. Sobretudo depois de Alcácer. Povo messiânico, mas que não gera o Messias. Não pariu ainda. Em vez de traduzir o ideal em carne, vai-o dissolvendo em lágrimas. Sonha a quimera, não a realiza.


O próprio Pombal é o Desejado? Não. Fez-se temer, não se fez amar. Cabeça de bronze, coração de pedra. Moralmente, ignóbil. Rancoroso, ferino, alheio à graça, indiferente à dor. Inteligência vigorosa, material e mecânica, sem voo e sem asas. Um brutamontes raciocinando claro. Falta-lhe o génio, o dom de sentir, nobreza heróica, vida profunda, – humanidade, em suma. Máquina apenas. Não criou, produziu. A criação vem do amor, a génese é divina. Criar é amar. Por isso a obra lhe foi a terra. Pulverizou-se. Só dura o que vive. Uma raiz esteia mais que um alicerce. Pombal em três dias, num deserto, quis formar um bosque. Como? Plantando traves. Adubou-as com mortos e regou-as a sangue. Apodreceram melhor.

Sei muito bem que o estadista não é o santo, que o grande político não é o mártir, mas sei também que toda a obra governativa, que não for uma obra de filosofia humana, resultará em geringonça anedótica, manequim inerte, sem olhar e sem fala.

A ductilidade, quase amorfa, do carácter português, se torna duvidosas as energias colectivas, os espontâneos movimentos nacionais, facilita, no entanto, de maneira única, a acção de quem rege e quem governa. Cera branda, os dedos modelam-na à vontade. Um grande escultor, eis o que precisamos.

Há, além disso, bem no fundo deste povo um pecúlio enorme de inteligência e de resistência, de sobriedade e de bondade, tesoiro precioso, oculto há séculos em mina entulhada. É ainda a sombra daquele povo que ergueu os Jerónimos, que escreveu os Lusíadas. Desenterremo-la, exumemo-la. Quem sabe, talvez revivesse!...


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(In Guerra Junqueiro, Pátria, Lello & Irmãos, Porto, pp. 185-192).



[1] Há excepções individuais, claramente. A fisionomia geral, no entanto, é aquela.

[2] Se o Nazareno, entre ladrões, fosse hoje crucificado em Portugal, ao terceiro dia, em vez do Justo, ressuscitariam os bandidos. Ao terceiro dia? que digo eu! Em 24 horas andavam na rua, sãos como peros, de farda agaloada e grã-cruz de Cristo.

[3] Continuaria a haver algumas dúzias de republicanos, por coerência, brio pessoal ou teima doutrinária. O espírito republicano que alastrou no país, esse extinguia-se, ou antes não se tinha gerado.



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