Escrito por Guerra Junqueiro
«A “Renascença
Portuguesa” invocava, como seus patronos, os nomes de Teófilo Braga, Guerra Junqueiro
e Sampaio Bruno, escritores que haviam preconizado a renúncia à nacionalidade
ou profetizado a infusão da Pátria no aglomerado da Europa, em vindouro
internacionalismo ou universalismo. Depois da crise intelectual e moral de 1870
a 1891, a propagação das doutrinas republicanas e a esperança de imitar a Suíça
e a França, facultaram ao povo fórmulas políticas de um ideal a que só a
filosofia poderá dar inteligente expressão. Em vez do Fim da Pátria, alarmado por Guerra Junqueiro, haveria que proclamar
os fins da Pátria, esquecidos ou omitidos na lei fundamental da República.»
Álvaro Ribeiro («Memórias de Um Letrado, I»).
«Nem toda a
profecia é de júbilo, nem todo o profeta geme, nem toda a admonição chora.
Alguma contesta e protesta. Como Leonardo tão bem inteligiu, e como está
ostensivo em toda a obra do poeta, Junqueiro é uma alma tão religiosa que pode
pecar por excesso. Um excesso que transborda uma congestão de negatividade: o
mal é tão presente, o mundo é tão amoral, que a responsabilidade é trespassada
dos imperfeitos cristãos para o próprio Cristo.»
Pinharanda Gomes («A Cidade Nova»).
«Nem Deus,
nem dignidade, nem remorsos.
A sua mão,
onde quer que pousava, punha nódoas de sangue. A Companhia dos Vinhos foi
inaugurada no Porto com uma fileira de forcas que trabalharam seis horas, e por
um crebo ulular de gemidos de uns açoitados que se tinham amotinado em seguida
à bebedeira de terça-feira de Entrudo.
Eu não me persuado
que tivessem uma prelucidação das futuras malfeitorias da Companhia os
arruaceiros condenados. Sim: não me atrevo a considerar mártires da ciência
económico-agrícola o soldado António de
Sousa, de alcunha o Negro, e mais o
Manuel Francisco, de alcunha o Cosido,
e o Tativitate, e o Cheta, e mais as senhoras Custódia Maria, de alcunha a Estrelada, cúmplice enforcada da Páscoa
Angélica, meretriz professa. Nem eles nem elas se devem considerar bodes e
cabras expiatórias da ideia moderna contra os monopólios e pela liberdade das
indústrias. A celebrar assim a memória destes padecentes, não se explica a
incongruência dos democratas avançados que, um destes dias, fizeram a apoteose do
déspota que mandou enforcar aquela gentalha esfrangalhada e piranga, como réus
de crime de alta traição e de
lesa-majestade da primeira cabeça. Não se renega assim o ideal avoengo.»
Camilo Castelo Branco («Perfil do Marquês de Pombal»).
Balanço patriótico:
Um povo
imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de
carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de
misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice, pois
que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia
ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um
povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua
inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, – reflexo de astro
em silêncio escuro de lagoa morta;
Um clero português, desmoralizado e materialista,
liberal e ateu, cujo Vaticano é o ministério do reino, e cujos bispos e abades
não são mais que a tradução em eclesiástico do fura-vidas que governa o
distrito ou do fura-urnas que administra o concelho [1]; e
ao pé deste clero indígena, um clero jesuítico, estrangeiro ou estrangeirado,
exército de sombras, minando, enredando, absorvendo, pelo púlpito, pela escola,
pela oficina, pelo asilo, pelo convento e pelo confessionário, – força
superior, cosmopolita, invencível, adaptando-se com elasticidade inteligente a
todos os meios e condições, desde a aldeola ínfima, onde berra pela boca
epiléptica do fradalhão milagreiro, até à rica sociedade elegante da capital,
onde o jesuitismo é um dandismo de sacristia, um beatério chic, Virgem do tom, Jesus de high-life,
prédicas untuosas (monólogos ao divino por Coquelins de fralda) e em certos
dias, na igreja da moda, a bonita missa encantadora – luz discreta, flores de
luxo, paramentos raros, cadeiras cómodas, latim primoroso, e hóstia glacée, com pistache, da melhor
confeitaria de Paris;
Uma
burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não discriminando já o
bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que,
honrados (?) na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e
sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à
falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa
sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente
inverosímeis no Limoeiro [2];
Um exército
que importa em 6 000 contos, não valendo 60 réis, como elemento de defesa
e garantia autonómica;
Um poder
legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do
moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país,
e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre, – como da
roda duma lotaria;
A Justiça
ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um
saca-rolhas.
Dois
partidos monárquicos, sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, na
hora do desastre, de sacrificar à monarquia ou meia libra ou uma gota de
sangue, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas
palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo
zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu
no parlamento, – de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.
Um partido
republicano, quase circunscrito a Lisboa, avolumando ou diminuindo segundo os
erros da monarquia, hoje aparentemente forte e numeroso, amanhã exaurido e
letárgico – água de poça inerte, transbordando se há chuva, tumultuando se há
vento, furiosa um instante, imóvel em seguida, e evaporada logo, em lhe batendo
dois dias a fio o sol ardente; um partido composto sobretudo de pequenos
burgueses da capital, adstritos ao sedentarismo crónico do metro e da balança,
gente de balcão, não de barricada, com um estado-maior pacífico e desconexo de
velhos doutrinários, moços positivistas, românticos, jacobinos e declamadores,
homens de boa-fé, alguns de valia mas nenhum a valer; um partido, enfim, de índole estreita, acanhadamente político-eleitoral,
mais negativo que afirmativo, mais de demolição que de reconstrução,
faltando-lhe um chefe e autoridade abrupta, uma dessas cabeças firmes e
superiores, olhos para alumiar e boca para mandar, – um desses homens
predestinados, que são em crises históricas o ponto de intercepção de milhões
de almas e vontades, acumuladores eléctricos da vitalidade duma raça, cérebros
omnímodos, compreendendo tudo, adivinhando tudo, – livro de cifras, livro de
arte, livro de história, simultaneamente humanos e patriotas, do globo e da
rua, do tempo e do minuto, forças supremas, forças invencíveis, que levam um
povo de abalada, como quem leva ao colo uma criança.
Instrução
miserável, marinha mercante nula, indústria infantil, agricultura rudimentar;
Um regime
económico baseado na inscrição e no Brasil, perda de gente e perda de capital,
autofagia colectiva, organismo vivendo e morrendo do parasitismo de si próprio;
Liberdade
absoluta, neutralizada por uma desigualdade revoltante, – o direito garantido
virtualmente na lei, posto, de facto, à mercê dum compadrio de batoteiros,
sendo vedado, ainda aos mais orgulhosos e mais fortes, abrir caminho nesta
porcaria, sem recorrer à influência tirânica e degradante de qualquer dos bandos
partidários.
Uma
literatura iconoclasta, – meia dúzia de homens que, no verso e no romance, no
panfleto e na história, haviam desmoronado a cambaleante cenografia azul e
branca da burguesia de 52, opondo uma arte de sarcasmo, viril e humana, à
fraudulagem pelintra da literatura oficial, carimbada para a imortalidade do
esquecimento com a cruz indelével da ordem mendicante de S. Tiago.
Uma geração
nova das escolas, entusiasta, irreverente, revolucionária, destinada, porém,
como as anteriores, viva maré dum instante, a refluir anódina e apática ao
charco das conveniências e dos interesses, dela restando apenas, isolados, meia
dúzia de homens inflexos e direitos, indemnes à podridão contagiosa pela vacina
orgânica dum carácter moral excepcionalíssimo.
E se a isto
juntarmos um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado
já em fórmulas banais e populares, – tão bons
são uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma
choldra, etc., etc., – teremos em sintético esboço a fisionomia da nacionalidade
portuguesa no tempo da morte de D. Luís, cujo reinado de paz podre vem dia a
dia supurando em gangrenamentos terciários.
O advento
do materialismo burguês, inaugurado pela ironia céptica do Rodrigo, acabava
pela galhofa cínica do Mariano. O riso de sibarita amargo, desfechava no riso
canalha, de garotão de aljube. O patusco terminava em malandro.
A burguesia
liberal, merceeiros-viscondes, parasitagem burocrática, bacharelice ao piano,
advogalhada de S. Bento, morgadinhas,
judias, sinos, estradas, escariolas,
estações, inaugurações, locomotivas (religião do Progresso, como eles diziam),
todo esse mundo de vista baixa, moralmente ordinário e intelectualmente reles,
ia agora liquidar numa infecta débâcle
de casa de penhores, numa Alcácer Quibir esfarrapado, de feira da ladra.
A nação,
como o rei, ia cair de pobre.
O conflito
inglês e a revolução brasileira, dois cáusticos, puseram a nu, de improviso,
toda a nossa debilidade orgânica, – miséria de corpo e miséria de alma.
Falecimento
e falência. Ruínas. Montões de vergonhas, trapos de leis, cisco de gente, lama de
impudor, carraças de bancos, famintos emigrando, porcos digerindo, ladroagem,
latrinagem, um salve-se quem puder de egoísmos e de barrigas, derrocada dum povo
numa estrumeira de inscrições, – 700 mil contos de calote público, a bela
colheita do torrão português, regado a oiro, a libras, desde 52 até 90.
A crise não
era simplesmente económica, política ou financeira. Muito mais: nacional. Não
havia apenas em jogo o trono do rei ou a fortuna da nação. Perigava a
existência, a autonomia da pátria. Hora grande, momento único. A revolução
impunha-se Republicana? Conforme. Se o monarca nos saísse um alto e nobre
carácter, um grande espírito, juvenil e viva encarnação de ideal heróico, tanto
melhor. A revolução estava feita. Imprimia-se, dum dia ao outro, no Diário do Governo.
Mas feita
com quem, perguntarão, se tudo era lodo? Feita com o elemento moço do exército
e da marinha, com quase todo o partido republicano [3],
com individualidades íntegras e notáveis dos partidos monárquicos, com a
juventude das escolas, com um sem-número de indiferentes por nojo e por
limpeza, com os duzentos homens de sério valor intelectual dispersos nas letras,
nas ciências, no comércio e na indústria, e com o povo, o povo inteiro, que
acordaria, Lázaro estremunhado, da sua campa de três séculos, à voz dum
vidente, ao grito dum Nun’Álvares.
O
português, apático e fatalista, ajusta-se pela maleabilidade da indolência a
qualquer estado ou condição. Capaz de heroísmo, capaz de cobardia, toiro ou
burro, leão ou porco, segundo o governante. Ruge com Passos Manuel, grunhe com
D. João VI. É de raça, é de natureza. Foi sempre o mesmo. A história pátria
resume-se quase numa série de biografias, num desfilar de personalidades,
dominando épocas. Sobretudo depois de Alcácer. Povo messiânico, mas que não
gera o Messias. Não pariu ainda. Em vez de traduzir o ideal em carne, vai-o
dissolvendo em lágrimas. Sonha a quimera, não a realiza.
O próprio Pombal é o Desejado? Não. Fez-se temer, não se fez amar. Cabeça de bronze, coração de pedra. Moralmente, ignóbil. Rancoroso, ferino, alheio à graça, indiferente à dor. Inteligência vigorosa, material e mecânica, sem voo e sem asas. Um brutamontes raciocinando claro. Falta-lhe o génio, o dom de sentir, nobreza heróica, vida profunda, – humanidade, em suma. Máquina apenas. Não criou, produziu. A criação vem do amor, a génese é divina. Criar é amar. Por isso a obra lhe foi a terra. Pulverizou-se. Só dura o que vive. Uma raiz esteia mais que um alicerce. Pombal em três dias, num deserto, quis formar um bosque. Como? Plantando traves. Adubou-as com mortos e regou-as a sangue. Apodreceram melhor.
Sei muito
bem que o estadista não é o santo, que o grande político não é o mártir, mas
sei também que toda a obra governativa, que não for uma obra de filosofia
humana, resultará em geringonça anedótica, manequim inerte, sem olhar e sem
fala.
A
ductilidade, quase amorfa, do carácter português, se torna duvidosas as
energias colectivas, os espontâneos movimentos nacionais, facilita, no entanto,
de maneira única, a acção de quem rege e quem governa. Cera branda, os dedos
modelam-na à vontade. Um grande escultor, eis o que precisamos.
Há, além disso,
bem no fundo deste povo um pecúlio enorme de inteligência e de resistência, de
sobriedade e de bondade, tesoiro precioso, oculto há séculos em mina entulhada.
É ainda a sombra daquele povo que ergueu os Jerónimos, que escreveu os
Lusíadas. Desenterremo-la, exumemo-la. Quem sabe, talvez revivesse!...
Ver aqui |
Ver aqui, aqui, aqui e aqui |
(In Guerra Junqueiro, Pátria,
Lello & Irmãos, Porto, pp. 185-192).
[1] Há excepções individuais,
claramente. A fisionomia geral, no entanto, é aquela.
[2] Se o Nazareno, entre ladrões,
fosse hoje crucificado em Portugal, ao terceiro dia, em vez do Justo,
ressuscitariam os bandidos. Ao terceiro dia? que digo eu! Em 24 horas andavam
na rua, sãos como peros, de farda agaloada e grã-cruz de Cristo.
[3] Continuaria a haver algumas dúzias de republicanos, por coerência, brio pessoal ou teima doutrinária. O espírito republicano que alastrou no país, esse extinguia-se, ou antes não se tinha gerado.
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