terça-feira, 12 de setembro de 2023

Guerra Junqueiro

Escrito por Álvaro Ribeiro




«Regra de ouro da ‘Filosofia Portuguesa’ é a de não haver Filosofia sem Teologia, nem Filosofia substante sem Teologia que a justifique. E a Teologia fundada em Filosofia transpira para além do sermo teológico; pode exprimir-se melhor na poesia. De onde a verificação de que a Teologia portuguesa atinge maior índice de encanto nos místicos e nos poetas do que nos teólogos propriamente ditos. O simbolismo especial da Teologia apela à mais alta relação do saber divino, mediante o saber poético.

Do ponto de vista da herança cultural, a "Filosofia Portuguesa" admite a presença interactiva de uma ordem trilógica, toda ela de oriente monoteísta e de formulação escolástica: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Do ponto de vista institucional o movimento requer um afastamento equidistante do positivismo agnóstico, do catolicismo ortodoxo e do ensino das instituições públicas, não obrigando a que a pessoa em que o filósofo reside faça profissão de inconfessionalidade, mas o movimento apresenta analogia das suas nomenclaturas com as nomenclaturas da herança católica. O silente meditativo que é Álvaro Ribeiro advertiu-nos do segredo. Ele está plenamente convencido da compatibilidade entre "Filosofia Portuguesa" e "Filosofia Católica", e demonstrou-nos a continuidade de uma escola de apologia desde Pedro Hispano a Leonardo Coimbra. Por fim, garantiu que, apesar de tudo, o catolicismo de Guerra Junqueiro, de Sampaio Bruno e de Leonardo Coimbra, não oferece dúvidas, nem mesmo naqueles escritos que a disciplina eclesiástica considera negativos, heterodoxos, mesmo heréticos.»

Pinharanda Gomes («A Cidade Nova»).


«Sem Camões, as forças vivas da Pátria portuguesa não teriam lugar espiritual e terreno onde vivessem a nosso lado, insinuando-se no presente, sempre a demandar e a criar um novo e glorioso futuro.

Sem Junqueiro não teríamos lavada a face do agravo do Ultimatum; não teríamos todos os “simples” de Portugal dando generosamente a opulência da sua riqueza espiritual à fome das nossas almas, não teríamos o esforço da ascensão a falar-nos na linguagem da luz o seu caminho para o Sol.»

Leonardo Coimbra («Guerra Junqueiro», in «DISPERSOS, I – POESIA PORTUGUESA»).


«Resumindo: desastres, misérias, vergonhas, infortúnios, calamidades, subjugadas com energia e padecidas com nobreza, enseivariam de novo alento o coração exânime da pátria. O raio lascou a árvore? Brotaria, amputada, com maior violência. A alma habita na raiz.

Mas seria possível conjurar quatro milhões de interesses, quatro milhões de egoísmos, num ímpeto de fé heróica e de renúncia. Era. Digo-o sem hesitar. O sibarita que ria, o cevado que ronque. Era! O espírito, como o fogo, consome traves, calcina pedras, derrete metais. O facho duma alma pode incendiar uma Babilónia. Um iluminado pode abrasar um império. Tem-se visto. O cofre-forte é de ferro, a libra é de oiro, o egoísmo é de bronze, mas a electricidade impalpável, invisível, imponderável, volatiliza tudo num momento. Ora o espírito é a electricidade de Deus. Nada lhe resiste. Devora séculos, evapora mundos. Jesus e Buda, – um crucificado, o outro mendigo, – refazem o globo, põem nova máscara à criação. Joana d’Arc e Nun'Álvares, irmãos gémeos, redimem duas pátrias. Focos ambulantes de espírito divino, arrastam e vencem, – magnetizando. O céu é contagioso como a lepra.

Claro que o milagre exige a fé. Nem todos os sábios juntos escreveriam os Evangelhos. A língua do homem, sem a língua de fogo, não apostoliza, discursa. Um Doutor não é um Messias.

A metempsicose, em moderno, do grande Condestável, eis o meu sonho. Um justiceiro e um crente. Braço para matar, boca para rezar. Pelejas como as de Valverde só se ganham assim: ajoelhando primeiro. O Nun'Álvares de hoje não usaria cota, nem escudo, mas, ao cabo, seria idêntico. A mesma chama noutro invólucro. Não combateria castelhanos, combateria portugueses. O inimigo mora-nos em casa. Aljubarrota no Terreiro do Paço e os Atoleiros... nos mil atoleiros de infâmias que enodoam as ruas, e obstruem o trânsito. Queríamos um justo inexorável, um  santo heróico, com a verdade nos lábios e uma espada na mão.»

Guerra Junqueiro («Pátria»).





GUERRA JUNQUEIRO não é entre nós considerado um filósofo, apenas porque não escreveu livros de filosofia. Tão mesquinho critério bibliográfico, vigente em meios universitários, leva pelo contrário a considerar filósofos alguns professores que nunca manifestaram autonomia, profundidade, ou originalidade de pensamento. No entanto, ninguém que conheça medianamente as obras de Guerra Junqueiro poderá negar que o poeta sempre se interessou com ansiedade, se não com angústia, pelos problemas humanos, pelos segredos naturais e pelos mistérios divinos.

Não foi Guerra Junqueiro o cantor que apenas renova a expressão poética de uma ortodoxia ou de uma heterodoxia; não escreveu escolástica poética, se assim é lícito dizer. O seu pensamento de interrogação, indagação e inquietação, em vez de se deter em teses dogmáticas ou em conceitos fixos, caminhou sempre para mais além. É fácil apontar erros a quem se desencaminha, mas é difícil traçar a topografia da aventura espiritual.

Contemporâneo da luta entre o positivismo e o catolicismo, ou, paralelamente, entre mecanismo e finalismo, Guerra Junqueiro situou-se no lado da fidelidade às tradições portuguesas. Só assim é lícito interpretar hoje a sua obra satírica e polémica. No entanto historiadores há que, na impossibilidade de apreciarem uma obra de génio, não distinguem as intenções superficiais das intenções profundas.

Sabemos, por exemplo, que em obra de título irreverente, Guerra Junqueiro polemizou contra certo ensino catequístico segundo o qual Deus criou o mundo em seis dias. O poeta não pode considerar ortodoxa a criação como acto único no passado, porque tal doutrina dificilmente se compatibiliza com a criação da alma humana a cada momento do tempo e com o conceito de providência. Imaginar a criação à maneira de um acontecimento que ocorreu em longínquo ponto do espaço e em remoto momento do tempo, imaginá-la em termos de perfeição e não em termos de actualidade, equivale a fazer passar a religião à história.

Descrever a criação do mundo como facto histórico, com os verbos no indicativo e no pretérito, parece-nos inadequada expressão de um mistério, porque a história só começa na inveja, na queda, no pecado original. Também nos parece errónea a confusão entre analogia e catalogia, entre o análogo e o catálogo, o imaginar o homem criado segundo o tratado de anatomia do ilustre Testut. Projectar a figura do homem histórico sobre a forma do homem pré-histórico significa desconhecer a verdade católica de que Deus formou o homem à sua imagem e semelhança, ou desconhecer as consequências teológicas dessa verdade.

O acontecimento histórico a considerar no centro da teologia católica é a encarnação de Cristo. Antes e depois de Cristo não há limites de cronologia de que possamos falar com certeza suficiente, e muito menos poderemos descrever em linguagem positivista o que aconteceu e acontecerá nos conjecturados extremos. Aplicar os esquemas de quantidade, espaço e tempo à ordem dos mistérios divinos será sempre contraproducente em apologética.



Segundo a interpretação tomista do Padre Sertillanges, a criação significa apenas o mistério da dependência em que o mundo se encontra em relação com Deus [1]. O cristão crê em Deus criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, mas para transformar a crença em ciência socorre-se da filosofia aristotélica. Sem a noção de actualidade, superior às dimensões do tempo, afigura-se-nos erróneo pensar o criacionismo.

O mistério da encarnação relaciona-se, aliás, com o mistério da maternidade. Guerra Junqueiro, de harmonia com a tradição portuguesa, considerava a maternidade superior à virgindade e, portanto, o casamento superior ao celibato. A moral convencional, contradizendo a sublimação dos instintos naturais em virtudes éticas, aparece subtilmente personificada nas sátiras de Guerra Junqueiro.

Se pudêssemos dizer que a maternidade é material e que a paternidade é espiritual, compreenderíamos o lugar que a Pátria ocupa na obra de Guerra Junqueiro. Entre a matéria e o espírito existe, porém, a mediação do verbo, porque só a palavra significante, ascendente e descendente, pode evitar que a dialéctica anule a religiosidade dos seres. A obra de Guerra Junqueiro, exaltando a maternidade, a heroicidade e a santidade, representa para todos nós um dos mais belos casos de inspiração epopeica.

Ninguém nega que Guerra Junqueiro tivesse sido dotado de imensa opulência verbal, conseguindo com suas palavras, imagens e rimas escrever alguns poemas que encantam quem os ouve ou lê, poemas que nunca mais esquecem, poemas que por isso podem ser considerados imortais. Do que muitos duvidam, porém, é de que o verso bem acentuado e bem metrificado possa acelerar a inteligência na indagação da verdade. Contra a dúvida, nenhum exemplo mais alto existe na língua portuguesa de que a arte de poetar é também a arte de filosofar.

Toda a obra do poeta, apesar das irregularidades e vicissitudes, se escala na difícil gradação que vai dos problemas humanos aos segredos naturais, e dos segredos naturais aos mistérios divinos. Sociólogo a princípio da sua carreira, muito preocupado com as instituições, as doutrinas e os homens, quando chegou à maturidade reconheceu que lhe cumpria procurar a verdade num plano superior ao da vida social, e aproximou-se do estudo da Natureza. Em breve verificou, porém, que as ciências positivistas nos dão apenas uma fenomenologia superficial, ou artificial, sem acesso ao íntimo da realidade.

Diremos que, para o poeta, a Natureza deixa de ser estudada em termos biológicos, próximos de mais das metáforas literárias, para ser estudado em termos materiais; sim, para o nosso poeta, o principal problema está em explicar a matéria à luz de Deus. A matéria, que observamos no estado sólido, líquido e gasoso, nos limites teóricos da doutrina clássica, pressupõe o elemento ígneo ou etéreo, sempre considerado pelos discípulos de Aristóteles. Assim, ao estudo do magnetismo, da electricidade e da luz, estudo que se desenvolve paralelamente com o pensamento romântico, sucedia o estudo da radioactividade a que Guerra Junqueiro prestou muito especial atenção.

Novas hipóteses científicas permitiam, no fim do século XIX, renovar a doutrina da unidade da matéria, a qual, destituída das formas substanciais que caracterizam e distinguem os átomos, logo se dissolvia como acontece ao conceito impredicável. Outras hipóteses, mais audaciosas, previam o desaparecimento e até inexistência da matéria, ao fim de biliões de séculos de evolução, e o energetismo parecia sistematização suficiente para intelecção dos fenómenos físicos. Nesta dissolução de todas as forças que as ciências a seu modo hierarquizam, a imaginação e a inteligência de Guerra Junqueiro admitiam a permanência de uma substância infinita, a presença de Deus.





Imediatamente ocorre à lembrança a doutrina de Espinosa e a consequente acusação de acosmismo e de panteísmo. Esta observação erudita não colhe, porém, porque o pensamento de Guerra Junqueiro, longe de ser uma doutrina metafísica com indiferença pela acção e pela paixão, é uma doutrina religiosa. A doutrina a lembrar seria a de Hegel, para quem Deus não era substância, mas consciência ou pessoa.

Tão alto pensamento, para o qual Deus é amor, vontade e inteligência, não pode ser considerado panteísmo. É claro que tais atributos divinos asseguram a possibilidade de conceber Deus como criador e a sua relação analógica com a criatura. Mas convém também lembrar que o infinito é uma linguagem para dizer que tais predicados são transcendentais.

Parece-nos injusto considerar Hegel um panteísta. O significado da lógica de Hegel, opondo a noção do infinito à dialéctica, equivale a estabelecer a transcendência que Kant havia negado na Crítica da Razão Pura. Tornando possível a transcendência, deixam os supremos valores de ser considerados subjectivamente, nos limites em que Kant circunscrevia a sensitividade.

Todos os sentidos que são dados à nossa percepção, tenham duração instantânea ou duração permanente para que os julguemos corpos, são entes limitados e finitos. A majoração ou a minoração das imagens, segundo o princípio de continuidade, não as torna infinitas. Não há verdadeiro infinito do tempo e do espaço, mas apenas infinito intelectual para compreensão das séries numeráveis.

O corpo humano é uma imagem que aparece e desaparece entre as outras imagens que constituem o mundo. A dissolução de um corpo menor em um corpo maior não pode servir de símile para comparar a relação da consciência humana com a consciência divina. A religiosidade tem de ser imaginada e inteligida fora das condições do tempo e do espaço.

O infinito de Hegel não é um infinito de número mas um infinito de palavra. É a relação do verbo com a oração. Também para Guerra Junqueiro o infinito se exprime muito mais por actividade do que por quantidade.

A relação aristotélica entre o acto puro e a pura potência é renovada por Guerra Junqueiro em termos de luz e matéria. As formas, as figuras e as imagens são entes intermediários numa escala que desce até à negridão do sólido, neste teatro de dor, de sofrimento e de morte que é a terra. Mas a consciência humana, iluminada pelo verbo, pode estar relacionada com a luz perpétua.

A oração é acto genesíaco de que surgem os poemas e os filosofemas. A arte de orar antecede a arte de poetar. Os poemas, perdendo em ritmo o que ganham em nitidez intelectiva, traduzem-se em filosofemas.




Entre Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro a semelhança de pensamento filosófico não está oculta, nem é renegada, pela diferença das expressões literárias. Ambos, pensadores evolucionistas, dividem o drama cósmico em três actos: no primeiro o mistério insondável, de que as teogonias oferecem o exemplo passado; no segundo, de que a humanidade está sendo espectadora e actora, cruza-se a dor com o amor, vão diminuindo o erro e o mal; no terceiro, com o esperado advento da figura messiânica, dár-se-á o regresso ao homogéneo absoluto ou à unidade do ser. Mas enquanto Guerra Junqueiro, firmado na crença que lhe restava da fé que perdera, ia imaginando o poema do regresso de Jesus à terra, Sampaio Bruno, criando até à intuição do avatar, profetiza a vinda de um novo Cristo.

Sampaio Bruno reconheceu o valor da obra filosófica de Guerra Junqueiro, e declarou-o num juízo admirável pela exactidão predicativa:

«O nosso grande poeta Guerra Junqueiro, atingindo a maturidade de razão adulta, revelou-se uma mui rara intuição filosófica, tornando incisivo o pensamento metafísico, que nele é sempre profundo, mercê nítida flagrância de uma imaginação igualmente opulenta na concepção e na expressão.

«Conexo com a interpretação do pecado original... de Deus, com a definição imprevista do Demónio, Guerra Junqueiro ascendeu a culminâncias transcendentes em sua doutrina da moral cósmica. Assim é legítima a ansiedade que se consagre ao aparecimento do volume em que vem arquivando as suas longas meditações» [2].

O livro, que deveria ficar intitulado A Unidade do Ser, continuou inédito. Guerra Junqueiro não influiu teoreticamente sobre os seus contemporâneos. Não influiu como filósofo, mas apenas como prosador.

Cônscio de possuir, aliadas, a inteligência aquilina e a força leonina, o poeta proclama em voz suasiva, encantadora, imperiosa, o verbo revolucionário, enquanto Sampaio Bruno timidamente murmura numa conversa a meia voz, em frases ora sincopadas, ora sinuosas, a doutrina excelsa que explica a história pela tradição. Guerra Junqueiro promove, impulsiona, acelera a obra filosofal, mediante a introdução na prosa portuguesa dos ritmos apropriados ao movimento sintético, e corta assim muitas dificuldades estilísticas que obstam ao pensamento o voo especulativo. Gratos ficaram a Guerra Junqueiro os escritores seus discípulos, que assim se viram adestrados a constituir um estilo ágil, capaz de perseguição aérea às intuições mais fugidias, e de alcançar na penumbra as noções subtis que não podem ser dadas à luz diurna.

O léxico de Guerra Junqueiro, dos mais opulentos que se encontram em poetas portugueses, delicia os leitores que amam a beleza, a variedade e a força do nosso idioma, que não as queiram deixar desfalecer na hora cinzenta do linguajar plebeu. Mas se é um vocabulário rico de termos utilizáveis pelas obras literárias, não é muito variado em termos de filosofia. Foi, todavia, no capítulo do léxico que o excelso prosador veio a dar lição aos escritores especulativos.

O estilo filosófico de Guerra Junqueiro é escasso de neologismos, mas abundante de locuções raras, porque o poeta, no ímpeto para teorizar tudo quanto descrevia ou narrava, consegue dar aos escolhidos vocábulos a velocidade superior do pensamento. A sua adjectivação procede no sentido contrário ao da escola realista: em vez de acumular epítetos delicados, irónicos e misantrópicos, vai articulando numa gradação ascensional as qualidades dos seres que sofrem mas que se redimem pelo amor. Guerra Junqueiro, fiel à mensagem romântica, procurou exprimi-la numa linguagem científica e filosófica, no tempo em que os literatos escreviam realismo e positivismo.




Guerra Junqueiro, se adjectivasse apenas por exigência de prosódia, para encantar o leitor e assim lhe infundir em sonho as noções que a consciência crítica e vigilante se recusa a contemplar, mereceria por isso a admiração que é devida aos grandes artistas. Mas o pensador sabia que o adjectivo é uma palavra medianeira que vale pela alusão a um saber que o substantivo condensa e o verbo dissolve. Por isso na prosa de Guerra Junqueiro o que menos se encontra é a proposição clássica, na qual o substantivo fica como que para sempre sujeito a um só adjectivo qualificativo, como um mundo crucificado onde já não tivesse lugar a liberdade pessoal.

Em Guerra Junqueiro impressiona-nos a mestria na colocação das preposições, processo sintáctico em que raros escritores chegam a ser bons aprendizes, e admiramos a feliz assimilação dos adjectivos aos particípios verbais, e, por consequência, a acção pela qual efectua a solicitação ao pensamento – solicitação irresistível  dos substantivos complementares. O evolucionismo de Guerra Junqueiro, longe de ser nebuloso ou dissolvente, tende sempre para a estrutura das formas paradigmáticas. Exemplificaremos apenas com este período admirável: «A vida vertiginosa, tumultuosa, entrelaçada, contínua, patética, infinitiforme, a vida latejante de seiva, incubada de sonho, fulva de luz, cega de espantos, ébria de beijos, trémula de morte e grávida de amor, a vida eterna, divina e formidável, que nasce da vontade e da emoção, aparece na obra do filósofo descrita por cálculos, ordenada por argumentos e por ideias» [3].

Vejamos agora se Guerra Junqueiro, ao construir a oração, a proposição, o período, pelo ritmo frásico, nos dá alguma lição válida para o estilo especulativo. Com efeito, vemos que a oração mais simples é constituída pela ligação de dois infinitos verbais, na qual o prosador, usando a parataxe, literariamente nos sugere a mobilidade eurítmica mas serena: «Viver é conviver. Viver é amar.» A seguir, para evitar a repetição que, tornando monótono o ritmo, decairia no compasso que adormece o pensamento, vai variando o discurso com frases mais complexas. O verbo ainda predomina, mas a frase prolonga-se, densifica-se, como nos exemplos seguintes: «Sentir é compreender com todo o corpo», «Cantar é divinizar o som».

O infinito verbal é substituído depois por um substantivo abstracto que, no mais fundo dos seus significados, nos lembra a acção ou a paixão. A frase, para subir a segundo estádio do pensamento, adquire maior energia: «A dor é escada de fogo que nos conduz à vida eterna.» «A arte é o culto mágico de Deus.» «A revelação é Poesia, a teologia é Estética.»

O substantivo concreto passa a significar o agente ou o paciente, personificando as ideias que figuram os verbos de harmonia cósmica. Junqueiro escreve agora frases deste tipo: «A raiz chupa ao lodo a flor que nasce da vergôntea»; «Um ai de mendigo pode valer todas as sinfonias de Beethoven»; «O artista, criando beleza, cria amor, porque a beleza é expressão rítmica do Bem, é o amor a cantar na forma e no som, no verbo e na luz».

Outro aspecto do ritmo de Guerra Junqueiro é o encurtamento das frases pela incidência sucessiva de pontos finais, e, assim, as palavras que coordenam e subordinam as frases umas às outras são eliminadas, omitidas ou substituídas por sinais gráficos. As articulações metálicas que escruturavam as vestes dos tropos – os advérbios, as preposições e as conjunções – são frequentemente eliminadas; a pontuação é, consequentemente, simplificada, deixando aparecer hiatos na continuidade melódica das metáforas, e mostrando as palavras isoladas na beleza da nudez intelectual. O discurso torna-se mais rápido, as frases mais curtas vão a compasso da respiração ofegante, o pensamento adquire a cadência de um rítmico adejar pela fluidez dos elementos, desprendendo-se da terra com desdém pelo seu habitante meditabundo.

Deste estilo, que a breves traços pretendemos esquematizar, foi contestada a legitimidade, a utilidade e o valor da sua aplicação à filosofia. A crítica condenou a prosódia que denominou «sonoridade oca», e se, por vezes, admitiu a metrificação harmoniosa no labor poético, julgou os efeitos de som perniciosos para o alinhamento das ideias claras, precisas e distintas. A mobilidade da sintaxe, e, consequentemente, os tropos que permitem ao pensamento o progresso, a elevação e a transcendência, foram considerados como meros efeitos de retórica pelos quais as palavras sem brilho real esconderiam o mais vazio pensamento.




Tal não acontecia, porém, nas liberdades poéticas de Guerra Junqueiro, que conseguiu manter a sua inspiração num alto nível de pensamento, tal não aconteceria também com a prosa filosofal [4]. Os críticos mostraram apenas não gostar da reforma estilística do grande poeta, ou pretenderam vedar caminhos novos à filosofia portuguesa. Veremos, porém, que se da obra do poeta de Os Simples resultou uma renovação da poesia, como disse Raul Proença [5], também da sua obra em prosa resultaria um inegável impulso para o pensamento português.

Guerra Junqueiro abriu caminho a um estilo profético mais poderoso do que o dos simbolistas, estilo em que a adjectivação surpreende quando aparentemente errónea, absurda, incompreensível, mas que, na sequência do discurso, ganha e adquire significação altamente inteligível para, com ela, iluminar o período inteiro. O leitor, dócil a essa retrospecção cognitiva, verá compensada assim pela inteligência a sua pitagórica virtude de credulidade silente, e exercita-se, pouco a pouco, a suprir mediante interpretação própria todos os hiatos expressivos com valor estético de função excitante e artística. As palavras que deveriam estar num texto explicativo, mas que desapareceram por quebra de ritmo ou por artifício de estilo, não fazem falta a quem sabe ler para entender, e nesse entender familiarizar-se com novos raciocínios.

A prosa rítmica – métrica ou simétrica – pode impedir que o leitor analise detidamente o assunto, e até retirar às palavras usuais a sua significação didáctica. A incompatibilidade com o esquema clássico, – sujeito, cópula, predicado – representativos da ortodoxia e do passado, pode até ser garantia de libertação do pensamento especulativo. Mal vai a quem julgar superior aquele estilo sóbrio em que as frases não dizem nem mais, nem menos do que o escritor pretendia transcrever de um pensamento anteriormente determinado.

Ser inteligente não é compreender o que num texto se encontra muito bem explicado, nem ainda o que se encontra deficientemente explicado, nem ainda o que seria de difícil explicação. Ser inteligente é acertar na escolha do que ninguém escolhe, é ler o que ninguém se preocupa de soletrar, é ver no aspecto nocturno das coisas a sua nova dimensão auroral. A prova de inteligência nunca poderá ser dada na discussão presente, mas apenas no êxito futuro; por isso a inteligência, que é acima de tudo prognose e profecia, não se confunde baixamente com o cálculo utilitário.

O poeta escreve numa vivência subconsciente que resulta da inspiração, e, quando retoca de artifício o verso formulado, reconhece ter recebido de graça o pensamento que exprimiu. O escritor vulgar transcreve na sua prosa o pensamento que previamente adquiriu por adaptação ao ambiente social ou por penoso trabalho de cultura superior. O prosador autêntico reconhece que escrever consiste em submeter as palavras a experiências estilísticas, na confiança, na esperança, na certeza de que invocará os segredos propulsores da vida mental.

Destarte Guerra Junqueiro nos ensina como da filologia se transita para a filosofia. A sua revolução estilística iria facilitar revolução gnósica. Libertando as palavras, libertava também os conceitos, para que o pensamento filosófico, em vez de contemplar uma galeria clássica de estátuas frias, atendesse à musicalidade reveladora do significado, da vida e do destino das imagens.

Assim, ao proceder por uma seriação de epítetos o filósofo não oferece o estendal de uma poderosa luxúria de poder melódico; profundo conhecedor da língua portuguesa, não efectua uma aglomeração casual de epítetos; mas procede a intensificação gradativa, enumeração de séries já conhecidas, e ascende a subtil fluidificação. Decerto, nessa sublimação vocabular, o pensamento eleva-se até se perder em termos que descousificam, indefinem, idealizam todas as formas e todas as forças, sacrificando até a significação verbal do sólido na inefável misticidade. Mas ao estudioso do estilo logo se afiguram as frases do ritmo junqueirista como ampliantes séries atributivas que dependem de uma oração principal, e esta, em cada caso, parte sempre de um substantivo ou de um verbo substantivado, para que da intuição original decorram torrencialmente os predicados definidores e concretizantes.


Raul Brandão

Sirva de exemplo o admirável prefácio que o autor de Os Simples antepôs a Os Pobres de Raul Brandão, texto a todos os títulos digno de figurar numa antologia da filosofia portuguesa [6]. Nesse escrito, o uso magistral das palavras com prefixo in (impalpável, incerto, ilusório, ilimitado, etc., mas, e principalmente, infinito), longe de preencher as lacunas do pensamento com sonoridades vocálicas, tem por fim exprimir pela negatividade a dissolução que incessantemente facilita a realização cósmica e que permite, ao homem interventor, inserir no mundo dúctil o calor da sua espiritualidade. Há, decerto, nesta visão evanescente uma unilateralidade que ao filósofo competirá corrigir, mas não se pode, por isso, negar ao pensamento junqueirista o mérito de ter expresso uma face da verdade, em termos apropriados, correctos, inteligíveis, e, além disso, agraciados de notável beleza.

Daremos como exemplo característico de Junqueiro aquela frase que, parecendo mais insignificante, tenha merecido a atenção dos críticos: «Deus é, pois, o amor infinito, vencendo infinitamente a infinita dor.» De encadeamento de frases curtas, como resultado de sucessivas apreensões de atributos do mesmo conceito, apresentaremos este modelo admirável: «Rezar o universo é polarizá-lo no infinito amor. Cantar não basta, rezar é mais. Rezar é o superlativo divino de cantar. A oração é a canção angelizada, a canção chorada de mãos postas.» Etc. Finalmente, esta sucessão de aspecto revelador e admirável: «Rezar é chorar, mas heroicamente, na acção e na luta, no mundo e para o mundo. Rezar como Nuno Álvares, entre o fogo ardente da batalha. Enganam-se os que vão para Deus, voltando as costas à Natureza. Quem se quiser salvar, há-de salvar os outros. Quem renegar a Natureza renega a Deus. A ascese é egoísta e anticristã. O quietismo beato, apagando o universo, apaga a Deus. Quietismo e niilismo, – dois zeros, dois sinónimos. O frade tenebroso, na concha da mão exangue e paralítica, sustenta uma caveira. É o nada olhando o não-ser. O monge radiante (S. Francisco) na dextra poderosa, em vez da caveira, tem um globo de oiro constelado, onde se ergue uma cruz. Tem o universo e Deus» [7].

É impossível deixar de admirar, neste trecho sóbrio, o entrelaçado de filosofemas austeros numa linguagem correcta, excelsa e sublimante. Este estilo não deixaria de influir nos escritores das gerações mais novas, e reaparece com muitos dos seus característicos no Verbo Escuro (1914) de Teixeira de Pascoaes e em A Alegria, a Dor e a Graça (1915) de Leonardo Coimbra. Em séries de inferências que se graduam da Terra ao Céu, do Visível ao Invisível, da Natureza à Graça, exprimem os nossos artistas um panteísmo transcendente.

As Orações de Guerra Junqueiro exerceram tão grande influência que deram origem ao movimento cultural que da cidade do Porto irradiou para todo o país com a denominação de «Renascença Portuguesa». A mensagem poética de Guerra Junqueiro foi ouvida e interpretada por Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa em dois sentidos diferentes. Teixeira de Pascoes é um naturalista voltado para o passado, Fernando Pessoa é um futurista interessado pelo artifício, pelo que se distinguem de outros poetas que colaboraram em A Águia.

Conveniente é notar que, sofrendo a influência do Mercure de France, aqueles poetas portugueses preferiram ao simbolismo hermético o simbolismo cristão. A tradição evangélica deu-lhes o emblema que serviria de título à nova revista. Queriam, com isso, significar uma religiosidade que excede as praxes limitadas a um ponto da Terra.

Tal como Leonardo Coimbra nos advertiu em escrito apropriado, convém comparar Teixeira de Pascoaes com Frederico Nietzsche. A antropologia do autor de Also Sprach Zaratustra, fantasiando a evolução animal do gnomo ao gigante, segundo arquétipos telúricos da mitologia germânica, levou ao cúmulo as objecções terríveis que se podem apresentar ao humanismo cristão. Teixeira de Pascoaes, pelo contrário, concebeu a evolução humana fora do plano da zoologia, segundo uma orientação espiritualista, e interpretou a morte iniciaticamente como condição indispensável para uma renascença ou ressurreição.




Dando a réplica do espírito dantesco ao espírito fáustico, Teixeira de Pascoaes reconheceu na vida da nacionalidade portuguesa a assistência perene de uma verdade a que deu o nome de génio. Outros escritores inspirados, igualmente conhecedores das leis divinas, atribuíram a essa verdade diversas denominações, mais compatíveis com a cultura contemporânea. Estudar a expressão poética, filosófica e religiosa do Génio Português – tal era, para Teixeira de Pascoaes, a missão mais nobre que poderia ser confiada às novas gerações de artistas.

O génio é aquele ente subtil que assiste ao homem superior. Porque temos um génio somos um povo, porque temos um génio esperamos cumprir no mundo um destino espiritual que mal se desenha entre névoas e sombras. A profecia ainda não se cumpriu, aguarda o advento de uma época propícia, mas a cada geração se repete e se actualiza num verso de um poeta ou numa frase de um prosador.

Não se cumpriu ainda a profecia porque o povo não tem sido para ela educado. Os sistemas, métodos e processos de educação, importados ou imitados de modelos estrangeiros, apenas nos asseguram um lugar condigno no concerto das nações civilizadas. Quando, porém, desde o ensino primário ao universitário, tudo estiver organizado segundo o plano da filosofia lusíada ou atlântica, o povo português poderá afirmar a sua superioridade espiritual, realizando no mesmo acto a sua missão de qualidade divina.

É difícil marcar termo à escala de valores poéticos e encontrar ponto em relação ao qual se possa medir o progresso. No entanto é licito dizer que os movimentos poéticos que surgiram depois da «Renascença Portuguesa», se renovaram o lirismo e se deram ao drama acuidade maior, não excederam a épica religiosidade de Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa. A expressão poética de subjectividade humana enriqueceu-se com elementos recebidos de escolas estrangeiras e procurou seu complemento objectivo nas ortodoxias políticas ou religiosas, pelo que se situou em plano inferior ao «transcendentalismo panteísta», considerado por Fernando Pessoa o grau de apogeu da poesia portuguesa.

Tem-se dito e escrito que o movimento de A Águia foi continuado pelo grupo da Seara Nova. Subscreverá tal afirmação apenas quem verificar que os fundadores do quinzenário lisbonense haviam sido colaboradores do mensário portuense; mas quem proceder à comparação das doutrinas defendidas em uma e outra revista corrigirá facilmente o apressado juízo dos críticos literários. Nem em literatura, nem em política a revista Seara Nova aceitou a inspiração patriótica de Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, porque preferiu interessar-se pelos problemas pedagógicos, técnicos e económicos que deveriam ser resolvidos à luz da sociologia internacional.

A «Renascença Portuguesa» foi, sem dúvida, o movimento cultural mais profundo, sincero e original da primeira metade do século XX. Embora não lograsse êxito no ensino público e, portanto, não beneficiasse daquela continuidade indispensável à função educativa, representou incontestavelmente um grau de espiritualidade superior ao do movimento das Conferências do Casino. Tanto em poesia como em filosofia, a obra alegórica de Antero de Quental, que alguns críticos comparam à de Camões, representa um estádio ultrapassado pela obra simbólica de Guerra Junqueiro.

(In Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, Lisboa, Portugália, 1955, pp. 173-192).




[1] A. D. Sertillanges, O. P. – L’Idée de Création et ses retentissements en philosophie – Paris, 1945. Este livro bem merecia ser divulgado por tradução em Portugal. Quem o ler desprender-se-á necessariamente de muitos absurdos que ainda vigoram na nossa apologia ou apologética religiosa.

[2] Sampaio Bruno – A Ideia de Deus, Porto, 1902. Pág. 470.

[3] Todas as frases entre aspas foram transcritas das Prosas Dispersas de Guerra Junqueiro.

[4] A defesa dos valores retóricos e estilísticos do extraordinário Poeta, contra as críticas superficiais, tendenciosas e sectárias dos detractores da eloquência, encontra-se magistral e definitivamente realizada no livro de Amorim de Carvalho, Guerra Junqueiro e a Sua Obra Poética – Porto, 1945.

[5] Raul Proença – Páginas de Política, 2.ª série. Lisboa, 1939, pp. 300-1.

[6] Guerra Junqueiro – Prosas Dispersas – Porto, 1921, pp. 35-65. A opinião de Leonardo Coimbra sobre este prefácio ficou exarada no seu livro sobre Guerra Junqueiro – Porto, 1923, p. 133 e seguintes.

[7] Guerra Junqueiro – Prosas Dispersas – Porto, 1921, pp. 63-64.

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