Escrito por Álvaro Ribeiro
«Regra de
ouro da ‘Filosofia Portuguesa’ é a de não haver Filosofia sem Teologia, nem
Filosofia substante sem Teologia que a justifique. E a Teologia fundada em Filosofia
transpira para além do sermo teológico;
pode exprimir-se melhor na poesia. De onde a verificação de que a Teologia
portuguesa atinge maior índice de encanto nos místicos e nos poetas do que nos
teólogos propriamente ditos. O simbolismo especial da Teologia apela à mais
alta relação do saber divino, mediante o saber poético.
Do ponto de
vista da herança cultural, a "Filosofia Portuguesa" admite a presença
interactiva de uma ordem trilógica, toda ela de oriente monoteísta e de
formulação escolástica: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Do ponto de
vista institucional o movimento requer um afastamento equidistante do
positivismo agnóstico, do catolicismo ortodoxo e do ensino das instituições
públicas, não obrigando a que a pessoa em que o filósofo reside faça profissão
de inconfessionalidade, mas o movimento apresenta analogia das suas
nomenclaturas com as nomenclaturas da herança católica. O silente meditativo
que é Álvaro Ribeiro advertiu-nos do segredo. Ele está plenamente convencido da
compatibilidade entre "Filosofia Portuguesa" e "Filosofia
Católica", e demonstrou-nos a continuidade de uma escola de apologia desde
Pedro Hispano a Leonardo Coimbra. Por fim, garantiu que, apesar de tudo, o
catolicismo de Guerra Junqueiro, de Sampaio Bruno e de Leonardo Coimbra, não
oferece dúvidas, nem mesmo naqueles escritos que a disciplina eclesiástica
considera negativos, heterodoxos, mesmo heréticos.»
Pinharanda Gomes («A Cidade Nova»).
«Sem
Camões, as forças vivas da Pátria portuguesa não teriam lugar espiritual e
terreno onde vivessem a nosso lado, insinuando-se no presente, sempre a demandar
e a criar um novo e glorioso futuro.
Sem
Junqueiro não teríamos lavada a face do agravo do Ultimatum; não teríamos todos os “simples” de Portugal dando
generosamente a opulência da sua riqueza espiritual à fome das nossas almas,
não teríamos o esforço da ascensão a falar-nos na linguagem da luz o seu caminho
para o Sol.»
Leonardo Coimbra («Guerra Junqueiro», in «DISPERSOS, I – POESIA PORTUGUESA»).
«Resumindo:
desastres, misérias, vergonhas, infortúnios, calamidades, subjugadas com
energia e padecidas com nobreza, enseivariam de novo alento o coração exânime da pátria. O raio lascou a árvore? Brotaria, amputada, com maior violência. A
alma habita na raiz.
Mas seria
possível conjurar quatro milhões de interesses, quatro milhões de egoísmos, num
ímpeto de fé heróica e de renúncia. Era. Digo-o sem hesitar. O sibarita que
ria, o cevado que ronque. Era! O espírito, como o fogo, consome traves, calcina
pedras, derrete metais. O facho duma alma pode incendiar uma Babilónia. Um
iluminado pode abrasar um império. Tem-se visto. O cofre-forte é de ferro, a libra
é de oiro, o egoísmo é de bronze, mas a electricidade impalpável, invisível,
imponderável, volatiliza tudo num momento. Ora o espírito é a electricidade de
Deus. Nada lhe resiste. Devora séculos, evapora mundos. Jesus e Buda, – um crucificado,
o outro mendigo, – refazem o globo, põem nova máscara à criação. Joana d’Arc e
Nun'Álvares, irmãos gémeos, redimem duas pátrias. Focos ambulantes de espírito
divino, arrastam e vencem, – magnetizando. O céu é contagioso como a lepra.
Claro que o
milagre exige a fé. Nem todos os sábios juntos escreveriam os Evangelhos. A
língua do homem, sem a língua de fogo, não apostoliza, discursa. Um Doutor não
é um Messias.
A
metempsicose, em moderno, do grande Condestável, eis o meu sonho. Um justiceiro e um crente. Braço para matar, boca para rezar. Pelejas como as de Valverde só
se ganham assim: ajoelhando primeiro. O Nun'Álvares de hoje não usaria cota,
nem escudo, mas, ao cabo, seria idêntico. A mesma chama noutro invólucro. Não
combateria castelhanos, combateria portugueses. O inimigo mora-nos em casa.
Aljubarrota no Terreiro do Paço e os Atoleiros... nos mil atoleiros de infâmias
que enodoam as ruas, e obstruem o trânsito. Queríamos um justo inexorável,
um santo heróico, com a verdade nos
lábios e uma espada na mão.»
Guerra
Junqueiro («Pátria»).
GUERRA JUNQUEIRO
não é entre nós considerado um filósofo, apenas porque não escreveu livros de
filosofia. Tão mesquinho critério bibliográfico, vigente em meios
universitários, leva pelo contrário a considerar filósofos alguns professores
que nunca manifestaram autonomia, profundidade, ou originalidade de pensamento.
No entanto, ninguém que conheça medianamente as obras de Guerra Junqueiro
poderá negar que o poeta sempre se interessou com ansiedade, se não com
angústia, pelos problemas humanos, pelos segredos naturais e pelos mistérios
divinos.
Não foi Guerra Junqueiro o cantor que apenas renova a expressão poética de uma ortodoxia ou de uma heterodoxia; não escreveu escolástica poética, se assim é lícito dizer. O seu pensamento de interrogação, indagação e inquietação, em vez de se deter em teses dogmáticas ou em conceitos fixos, caminhou sempre para mais além. É fácil apontar erros a quem se desencaminha, mas é difícil traçar a topografia da aventura espiritual.
Contemporâneo
da luta entre o positivismo e o catolicismo, ou, paralelamente, entre mecanismo
e finalismo, Guerra Junqueiro situou-se no lado da fidelidade às tradições
portuguesas. Só assim é lícito interpretar hoje a sua obra satírica e polémica.
No entanto historiadores há que, na impossibilidade de apreciarem uma obra de
génio, não distinguem as intenções superficiais das intenções profundas.
Sabemos,
por exemplo, que em obra de título irreverente, Guerra Junqueiro polemizou
contra certo ensino catequístico segundo o qual Deus criou o mundo em seis dias. O poeta não pode considerar ortodoxa a
criação como acto único no passado, porque tal doutrina dificilmente se
compatibiliza com a criação da alma humana a cada momento do tempo e com o
conceito de providência. Imaginar a criação à maneira de um acontecimento que
ocorreu em longínquo ponto do espaço e em remoto momento do tempo, imaginá-la
em termos de perfeição e não em termos de actualidade, equivale a fazer passar
a religião à história.
Descrever a
criação do mundo como facto histórico, com os verbos no indicativo e no
pretérito, parece-nos inadequada expressão de um mistério, porque a história só
começa na inveja, na queda, no pecado original. Também nos parece errónea a
confusão entre analogia e catalogia, entre o análogo e o catálogo,
o imaginar o homem criado segundo o tratado de anatomia do ilustre Testut.
Projectar a figura do homem histórico sobre a forma do homem pré-histórico
significa desconhecer a verdade católica de que Deus formou o homem à sua
imagem e semelhança, ou desconhecer as consequências teológicas dessa verdade.
O
acontecimento histórico a considerar
no centro da teologia católica é a encarnação de Cristo. Antes e depois de
Cristo não há limites de cronologia de que possamos falar com certeza
suficiente, e muito menos poderemos descrever em linguagem positivista o que
aconteceu e acontecerá nos conjecturados extremos. Aplicar os esquemas de
quantidade, espaço e tempo à ordem dos mistérios divinos será sempre
contraproducente em apologética.
Segundo a
interpretação tomista do Padre Sertillanges, a criação significa apenas o
mistério da dependência em que o mundo se encontra em relação com Deus [1]. O
cristão crê em Deus criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, mas para
transformar a crença em ciência socorre-se da filosofia aristotélica. Sem a
noção de actualidade, superior às dimensões do tempo, afigura-se-nos erróneo
pensar o criacionismo.
O mistério
da encarnação relaciona-se, aliás, com o mistério da maternidade. Guerra
Junqueiro, de harmonia com a tradição portuguesa, considerava a maternidade
superior à virgindade e, portanto, o casamento superior ao celibato. A moral
convencional, contradizendo a sublimação dos instintos naturais em virtudes
éticas, aparece subtilmente personificada nas sátiras de Guerra Junqueiro.
Se
pudêssemos dizer que a maternidade é material e que a paternidade é espiritual,
compreenderíamos o lugar que a Pátria
ocupa na obra de Guerra Junqueiro. Entre a matéria e o espírito existe, porém,
a mediação do verbo, porque só a palavra significante, ascendente e
descendente, pode evitar que a dialéctica anule a religiosidade dos seres. A
obra de Guerra Junqueiro, exaltando a maternidade, a heroicidade e a santidade,
representa para todos nós um dos mais belos casos de inspiração epopeica.
Ninguém
nega que Guerra Junqueiro tivesse sido dotado de imensa opulência verbal,
conseguindo com suas palavras, imagens e rimas escrever alguns poemas que
encantam quem os ouve ou lê, poemas que nunca mais esquecem, poemas que por
isso podem ser considerados imortais. Do que muitos duvidam, porém, é de que o
verso bem acentuado e bem metrificado possa acelerar a inteligência na
indagação da verdade. Contra a dúvida, nenhum exemplo mais alto existe na
língua portuguesa de que a arte de poetar é também a arte de filosofar.
Toda a obra
do poeta, apesar das irregularidades e vicissitudes, se escala na difícil
gradação que vai dos problemas humanos aos segredos naturais, e dos segredos naturais
aos mistérios divinos. Sociólogo a princípio da sua carreira, muito preocupado com as instituições, as doutrinas e os
homens, quando chegou à maturidade reconheceu que lhe cumpria procurar a
verdade num plano superior ao da vida social, e aproximou-se do estudo da
Natureza. Em breve verificou, porém, que as ciências positivistas nos dão
apenas uma fenomenologia superficial, ou artificial, sem acesso ao íntimo da
realidade.
Diremos
que, para o poeta, a Natureza deixa de ser estudada em termos biológicos,
próximos de mais das metáforas literárias, para ser estudado em termos
materiais; sim, para o nosso poeta, o principal problema está em explicar a
matéria à luz de Deus. A matéria, que observamos no estado sólido, líquido e
gasoso, nos limites teóricos da doutrina clássica, pressupõe o elemento ígneo
ou etéreo, sempre considerado pelos discípulos de Aristóteles. Assim, ao estudo
do magnetismo, da electricidade e da luz, estudo que se desenvolve
paralelamente com o pensamento romântico, sucedia o estudo da radioactividade a
que Guerra Junqueiro prestou muito especial atenção.
Novas
hipóteses científicas permitiam, no fim do século XIX, renovar a doutrina da
unidade da matéria, a qual, destituída das formas substanciais que caracterizam
e distinguem os átomos, logo se dissolvia como acontece ao conceito
impredicável. Outras hipóteses, mais audaciosas, previam o desaparecimento e até inexistência da matéria, ao
fim de biliões de séculos de evolução, e o energetismo parecia sistematização
suficiente para intelecção dos fenómenos físicos. Nesta dissolução de todas as
forças que as ciências a seu modo hierarquizam, a imaginação e a inteligência
de Guerra Junqueiro admitiam a permanência de uma substância infinita, a
presença de Deus.
Imediatamente
ocorre à lembrança a doutrina de Espinosa e a consequente acusação de acosmismo
e de panteísmo. Esta observação erudita não colhe, porém, porque o pensamento
de Guerra Junqueiro, longe de ser uma doutrina metafísica com indiferença pela
acção e pela paixão, é uma doutrina religiosa. A doutrina a lembrar seria a de
Hegel, para quem Deus não era substância, mas consciência ou pessoa.
Tão alto
pensamento, para o qual Deus é amor, vontade e inteligência, não pode ser
considerado panteísmo. É claro que tais atributos divinos asseguram a
possibilidade de conceber Deus como criador e a sua relação analógica com a
criatura. Mas convém também lembrar que o infinito é uma linguagem para dizer
que tais predicados são transcendentais.
Parece-nos
injusto considerar Hegel um panteísta. O significado da lógica de Hegel, opondo
a noção do infinito à dialéctica, equivale a estabelecer a transcendência que
Kant havia negado na Crítica da Razão
Pura. Tornando possível a transcendência, deixam os supremos valores de ser
considerados subjectivamente, nos limites em que Kant circunscrevia a
sensitividade.
Todos os
sentidos que são dados à nossa percepção, tenham duração instantânea ou duração
permanente para que os julguemos corpos, são entes limitados e finitos. A
majoração ou a minoração das imagens, segundo o princípio de continuidade, não
as torna infinitas. Não há verdadeiro infinito do tempo e do espaço, mas apenas
infinito intelectual para compreensão das séries numeráveis.
O corpo
humano é uma imagem que aparece e desaparece entre as outras imagens que
constituem o mundo. A dissolução de um corpo menor em um corpo maior não pode
servir de símile para comparar a relação da consciência humana com a
consciência divina. A religiosidade tem de ser imaginada e inteligida fora das
condições do tempo e do espaço.
O infinito de Hegel não é um infinito de número mas um infinito de palavra. É a relação do
verbo com a oração. Também para Guerra Junqueiro o infinito se exprime muito
mais por actividade do que por quantidade.
A relação
aristotélica entre o acto puro e a pura potência é renovada por Guerra
Junqueiro em termos de luz e matéria. As formas, as figuras e as imagens são
entes intermediários numa escala que desce até à negridão do sólido, neste teatro
de dor, de sofrimento e de morte que é a terra. Mas a consciência humana,
iluminada pelo verbo, pode estar relacionada com a luz perpétua.
A oração é
acto genesíaco de que surgem os poemas e os filosofemas. A arte de orar
antecede a arte de poetar. Os poemas, perdendo em ritmo o que ganham em nitidez
intelectiva, traduzem-se em filosofemas.
Entre
Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro a semelhança de pensamento filosófico não está
oculta, nem é renegada, pela diferença das expressões literárias. Ambos, pensadores
evolucionistas, dividem o drama cósmico em três actos: no primeiro o mistério
insondável, de que as teogonias oferecem o exemplo passado; no segundo, de que
a humanidade está sendo espectadora e actora, cruza-se a dor com o amor, vão
diminuindo o erro e o mal; no terceiro, com o esperado advento da figura
messiânica, dár-se-á o regresso ao homogéneo absoluto ou à unidade do ser. Mas
enquanto Guerra Junqueiro, firmado na crença que lhe restava da fé que perdera,
ia imaginando o poema do regresso de Jesus à terra, Sampaio Bruno, criando até à
intuição do avatar, profetiza a vinda de um novo Cristo.
Sampaio
Bruno reconheceu o valor da obra filosófica de Guerra Junqueiro, e declarou-o
num juízo admirável pela exactidão predicativa:
«O nosso
grande poeta Guerra Junqueiro, atingindo a maturidade de razão adulta,
revelou-se uma mui rara intuição filosófica, tornando incisivo o pensamento
metafísico, que nele é sempre profundo, mercê nítida flagrância de uma
imaginação igualmente opulenta na concepção e na expressão.
«Conexo com
a interpretação do pecado original... de Deus, com a definição imprevista do
Demónio, Guerra Junqueiro ascendeu a culminâncias transcendentes em sua doutrina
da moral cósmica. Assim é legítima a ansiedade que se consagre ao aparecimento do
volume em que vem arquivando as suas longas meditações» [2].
O livro,
que deveria ficar intitulado A Unidade do
Ser, continuou inédito. Guerra Junqueiro não influiu teoreticamente sobre
os seus contemporâneos. Não influiu como filósofo, mas apenas como prosador.
Cônscio de possuir, aliadas, a inteligência aquilina e a força leonina, o poeta proclama
em voz suasiva, encantadora, imperiosa, o verbo revolucionário, enquanto
Sampaio Bruno timidamente murmura numa conversa a meia voz, em frases ora
sincopadas, ora sinuosas, a doutrina excelsa que explica a história pela
tradição. Guerra Junqueiro promove, impulsiona, acelera a obra filosofal,
mediante a introdução na prosa portuguesa dos ritmos apropriados ao movimento
sintético, e corta assim muitas dificuldades estilísticas que obstam ao
pensamento o voo especulativo. Gratos ficaram a Guerra Junqueiro os escritores
seus discípulos, que assim se viram adestrados a constituir um estilo ágil,
capaz de perseguição aérea às intuições mais fugidias, e de alcançar na penumbra
as noções subtis que não podem ser dadas à luz diurna.
O léxico de
Guerra Junqueiro, dos mais opulentos que se encontram em poetas portugueses,
delicia os leitores que amam a beleza, a variedade e a força do nosso idioma,
que não as queiram deixar desfalecer na hora cinzenta do linguajar plebeu. Mas
se é um vocabulário rico de termos utilizáveis pelas obras literárias, não é
muito variado em termos de filosofia. Foi, todavia, no capítulo do léxico que o
excelso prosador veio a dar lição aos escritores especulativos.
O estilo
filosófico de Guerra Junqueiro é escasso de neologismos, mas abundante de
locuções raras, porque o poeta, no ímpeto para teorizar tudo quanto descrevia
ou narrava, consegue dar aos escolhidos vocábulos a velocidade superior do pensamento.
A sua adjectivação procede no sentido contrário ao da escola realista: em vez
de acumular epítetos delicados, irónicos e misantrópicos, vai articulando numa
gradação ascensional as qualidades dos seres que sofrem mas que se redimem pelo
amor. Guerra Junqueiro, fiel à mensagem romântica, procurou exprimi-la numa
linguagem científica e filosófica, no tempo em que os literatos escreviam
realismo e positivismo.
Guerra
Junqueiro, se adjectivasse apenas por exigência de prosódia, para encantar o
leitor e assim lhe infundir em sonho as noções que a consciência crítica e
vigilante se recusa a contemplar, mereceria por isso a admiração que é devida
aos grandes artistas. Mas o pensador sabia que o adjectivo é uma palavra
medianeira que vale pela alusão a um saber que o substantivo condensa e o verbo dissolve. Por isso na prosa de Guerra Junqueiro o que menos se encontra é a proposição clássica, na qual o substantivo fica como que para
sempre sujeito a um só adjectivo qualificativo, como um mundo crucificado onde
já não tivesse lugar a liberdade pessoal.
Em Guerra Junqueiro impressiona-nos a mestria na colocação das preposições, processo sintáctico em que raros escritores chegam a ser bons aprendizes, e admiramos a feliz assimilação dos adjectivos aos particípios verbais, e, por consequência, a acção pela qual efectua a solicitação ao pensamento – solicitação irresistível – dos substantivos complementares. O evolucionismo de Guerra Junqueiro, longe de ser nebuloso ou dissolvente, tende sempre para a estrutura das formas paradigmáticas. Exemplificaremos apenas com este período admirável: «A vida vertiginosa, tumultuosa, entrelaçada, contínua, patética, infinitiforme, a vida latejante de seiva, incubada de sonho, fulva de luz, cega de espantos, ébria de beijos, trémula de morte e grávida de amor, a vida eterna, divina e formidável, que nasce da vontade e da emoção, aparece na obra do filósofo descrita por cálculos, ordenada por argumentos e por ideias» [3].
Vejamos
agora se Guerra Junqueiro, ao construir a oração, a proposição, o período, pelo
ritmo frásico, nos dá alguma lição válida para o estilo especulativo. Com
efeito, vemos que a oração mais simples é constituída pela ligação de dois
infinitos verbais, na qual o prosador, usando a parataxe, literariamente nos
sugere a mobilidade eurítmica mas serena: «Viver é conviver. Viver é amar.» A
seguir, para evitar a repetição que, tornando monótono o ritmo, decairia no
compasso que adormece o pensamento, vai variando o discurso com frases mais
complexas. O verbo ainda predomina, mas a frase prolonga-se, densifica-se, como
nos exemplos seguintes: «Sentir é compreender com todo o corpo», «Cantar é
divinizar o som».
O infinito
verbal é substituído depois por um substantivo abstracto que, no mais fundo dos
seus significados, nos lembra a acção ou a paixão. A frase, para subir a segundo
estádio do pensamento, adquire maior energia: «A dor é escada de fogo que nos conduz
à vida eterna.» «A arte é o culto mágico de Deus.» «A revelação é Poesia, a
teologia é Estética.»
O
substantivo concreto passa a significar o agente ou o paciente, personificando
as ideias que figuram os verbos de harmonia cósmica. Junqueiro escreve agora
frases deste tipo: «A raiz chupa ao lodo a flor que nasce da vergôntea»; «Um ai
de mendigo pode valer todas as sinfonias de Beethoven»; «O artista, criando
beleza, cria amor, porque a beleza é expressão rítmica do Bem, é o amor a
cantar na forma e no som, no verbo e na luz».
Outro
aspecto do ritmo de Guerra Junqueiro é o encurtamento das frases pela
incidência sucessiva de pontos finais, e, assim, as palavras que coordenam e
subordinam as frases umas às outras são eliminadas, omitidas ou substituídas
por sinais gráficos. As articulações metálicas que escruturavam as vestes dos
tropos – os advérbios, as preposições e as conjunções – são frequentemente
eliminadas; a pontuação é, consequentemente, simplificada, deixando aparecer
hiatos na continuidade melódica das metáforas, e mostrando as palavras isoladas
na beleza da nudez intelectual. O discurso torna-se mais rápido, as frases mais curtas vão a compasso da respiração
ofegante, o pensamento adquire a cadência de um rítmico adejar pela fluidez dos
elementos, desprendendo-se da terra com desdém pelo seu habitante meditabundo.
Deste
estilo, que a breves traços pretendemos esquematizar, foi contestada a
legitimidade, a utilidade e o valor da sua aplicação à filosofia. A crítica
condenou a prosódia que denominou «sonoridade oca», e se, por vezes, admitiu a
metrificação harmoniosa no labor poético, julgou os efeitos de som perniciosos
para o alinhamento das ideias claras, precisas e distintas. A mobilidade da
sintaxe, e, consequentemente, os tropos que permitem ao pensamento o progresso,
a elevação e a transcendência, foram considerados como meros efeitos de
retórica pelos quais as palavras sem brilho real esconderiam o mais vazio
pensamento.
Tal não
acontecia, porém, nas liberdades poéticas de Guerra Junqueiro, que conseguiu
manter a sua inspiração num alto nível de pensamento, tal não aconteceria
também com a prosa filosofal [4].
Os críticos mostraram apenas não gostar da reforma estilística do grande poeta,
ou pretenderam vedar caminhos novos à filosofia portuguesa. Veremos, porém, que
se da obra do poeta de Os Simples
resultou uma renovação da poesia, como disse Raul Proença [5], também
da sua obra em prosa resultaria um inegável impulso para o pensamento
português.
Guerra
Junqueiro abriu caminho a um estilo profético mais poderoso do que o dos
simbolistas, estilo em que a adjectivação surpreende quando aparentemente
errónea, absurda, incompreensível, mas que, na sequência do discurso, ganha e
adquire significação altamente inteligível para, com ela, iluminar o período
inteiro. O leitor, dócil a essa retrospecção cognitiva, verá compensada assim
pela inteligência a sua pitagórica virtude de credulidade silente, e
exercita-se, pouco a pouco, a suprir mediante interpretação própria todos os
hiatos expressivos com valor estético de função excitante e artística. As
palavras que deveriam estar num texto explicativo, mas que desapareceram por
quebra de ritmo ou por artifício de estilo, não fazem falta a quem sabe ler
para entender, e nesse entender familiarizar-se com novos raciocínios.
A prosa
rítmica – métrica ou simétrica – pode impedir que o leitor analise detidamente
o assunto, e até retirar às palavras usuais a sua significação didáctica. A
incompatibilidade com o esquema clássico, – sujeito, cópula, predicado –
representativos da ortodoxia e do passado, pode até ser garantia de libertação
do pensamento especulativo. Mal vai a quem julgar superior aquele estilo sóbrio
em que as frases não dizem nem mais, nem
menos do que o escritor pretendia transcrever de um pensamento anteriormente
determinado.
Ser
inteligente não é compreender o que num texto se encontra muito bem explicado, nem ainda o que se encontra
deficientemente explicado, nem ainda o que seria de difícil explicação. Ser
inteligente é acertar na escolha do que ninguém escolhe, é ler o que ninguém se
preocupa de soletrar, é ver no aspecto nocturno das coisas a sua nova dimensão
auroral. A prova de inteligência nunca poderá ser dada na discussão presente,
mas apenas no êxito futuro; por isso a inteligência, que é acima de tudo
prognose e profecia, não se confunde baixamente com o cálculo utilitário.
O poeta
escreve numa vivência subconsciente que resulta da inspiração, e, quando retoca
de artifício o verso formulado, reconhece ter recebido de graça o pensamento que exprimiu. O escritor vulgar transcreve
na sua prosa o pensamento que previamente adquiriu por adaptação ao ambiente
social ou por penoso trabalho de cultura superior. O prosador autêntico
reconhece que escrever consiste em submeter as palavras a experiências
estilísticas, na confiança, na esperança, na certeza de que invocará os
segredos propulsores da vida mental.
Destarte
Guerra Junqueiro nos ensina como da filologia se transita para a filosofia. A sua
revolução estilística iria facilitar revolução gnósica. Libertando as palavras,
libertava também os conceitos, para que o pensamento filosófico, em vez de
contemplar uma galeria clássica de estátuas frias, atendesse à musicalidade
reveladora do significado, da vida e do destino das imagens.
Assim, ao
proceder por uma seriação de epítetos o filósofo não oferece o estendal de uma
poderosa luxúria de poder melódico; profundo conhecedor da língua portuguesa,
não efectua uma aglomeração casual de epítetos; mas procede a intensificação
gradativa, enumeração de séries já conhecidas, e ascende a subtil
fluidificação. Decerto, nessa sublimação vocabular, o pensamento eleva-se até
se perder em termos que descousificam, indefinem, idealizam todas as formas e
todas as forças, sacrificando até a significação verbal do sólido na inefável
misticidade. Mas ao estudioso do estilo logo se afiguram as frases do ritmo
junqueirista como ampliantes séries atributivas que dependem de uma oração
principal, e esta, em cada caso, parte sempre de um substantivo ou de um verbo
substantivado, para que da intuição original decorram torrencialmente os
predicados definidores e concretizantes.
Raul Brandão |
Sirva de
exemplo o admirável prefácio que o autor de Os
Simples antepôs a Os Pobres de
Raul Brandão, texto a todos os títulos digno de figurar numa antologia da
filosofia portuguesa [6].
Nesse escrito, o uso magistral das palavras com prefixo in (impalpável, incerto, ilusório, ilimitado,
etc., mas, e principalmente, infinito),
longe de preencher as lacunas do pensamento com sonoridades vocálicas, tem por
fim exprimir pela negatividade a dissolução que incessantemente facilita a
realização cósmica e que permite, ao homem interventor, inserir no mundo dúctil
o calor da sua espiritualidade. Há, decerto, nesta visão evanescente uma
unilateralidade que ao filósofo competirá corrigir, mas não se pode, por isso,
negar ao pensamento junqueirista o mérito de ter expresso uma face da verdade,
em termos apropriados, correctos, inteligíveis, e, além disso, agraciados de
notável beleza.
Daremos
como exemplo característico de Junqueiro aquela frase que, parecendo mais
insignificante, tenha merecido a atenção dos críticos: «Deus é, pois, o amor
infinito, vencendo infinitamente a infinita dor.» De encadeamento de frases
curtas, como resultado de sucessivas apreensões de atributos do mesmo conceito,
apresentaremos este modelo admirável: «Rezar o universo é polarizá-lo no
infinito amor. Cantar não basta, rezar é mais. Rezar é o superlativo divino de
cantar. A oração é a canção angelizada, a canção chorada de mãos postas.» Etc.
Finalmente, esta sucessão de aspecto revelador e admirável: «Rezar é chorar, mas
heroicamente, na acção e na luta, no mundo e para o mundo. Rezar como Nuno Álvares, entre o fogo ardente da batalha. Enganam-se os que vão para Deus,
voltando as costas à Natureza. Quem se quiser salvar, há-de salvar os outros.
Quem renegar a Natureza renega a Deus. A ascese é egoísta e anticristã. O
quietismo beato, apagando o universo, apaga a Deus. Quietismo e niilismo, –
dois zeros, dois sinónimos. O frade tenebroso, na concha da mão exangue e
paralítica, sustenta uma caveira. É o nada olhando o não-ser. O monge radiante
(S. Francisco) na dextra poderosa, em vez da caveira, tem um globo de oiro
constelado, onde se ergue uma cruz. Tem o universo e Deus» [7].
É
impossível deixar de admirar, neste trecho sóbrio, o entrelaçado de filosofemas
austeros numa linguagem correcta, excelsa e sublimante. Este estilo não deixaria
de influir nos escritores das gerações mais novas, e reaparece com muitos dos
seus característicos no Verbo Escuro
(1914) de Teixeira de Pascoaes e em A Alegria, a Dor e a Graça (1915) de Leonardo Coimbra. Em séries de
inferências que se graduam da Terra ao Céu, do Visível ao Invisível, da
Natureza à Graça, exprimem os nossos artistas um panteísmo transcendente.
As Orações de Guerra Junqueiro exerceram
tão grande influência que deram origem ao movimento cultural que da cidade do
Porto irradiou para todo o país com a denominação de «Renascença Portuguesa». A
mensagem poética de Guerra Junqueiro foi ouvida e interpretada por Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa em dois sentidos diferentes. Teixeira de Pascoes é
um naturalista voltado para o passado, Fernando Pessoa é um futurista interessado
pelo artifício, pelo que se distinguem de outros poetas que colaboraram em A Águia.
Conveniente
é notar que, sofrendo a influência do Mercure
de France, aqueles poetas portugueses preferiram ao simbolismo hermético o
simbolismo cristão. A tradição evangélica deu-lhes o emblema que serviria de
título à nova revista. Queriam, com isso, significar uma religiosidade que
excede as praxes limitadas a um ponto da Terra.
Tal como Leonardo Coimbra nos advertiu em
escrito apropriado, convém comparar Teixeira de Pascoaes com Frederico Nietzsche. A antropologia do autor de Also
Sprach Zaratustra, fantasiando a evolução animal do gnomo ao gigante,
segundo arquétipos telúricos da mitologia germânica, levou ao cúmulo as objecções
terríveis que se podem apresentar ao humanismo cristão. Teixeira de Pascoaes,
pelo contrário, concebeu a evolução humana fora do plano da zoologia, segundo
uma orientação espiritualista, e interpretou a morte iniciaticamente como
condição indispensável para uma renascença ou ressurreição.
Dando a
réplica do espírito dantesco ao espírito fáustico, Teixeira de Pascoaes
reconheceu na vida da nacionalidade portuguesa a assistência perene de uma
verdade a que deu o nome de génio.
Outros escritores inspirados, igualmente conhecedores das leis divinas,
atribuíram a essa verdade diversas denominações, mais compatíveis com a cultura
contemporânea. Estudar a expressão poética, filosófica e religiosa do Génio Português – tal era, para Teixeira
de Pascoaes, a missão mais nobre que poderia ser confiada às novas gerações de
artistas.
O génio é
aquele ente subtil que assiste ao homem superior. Porque temos um génio somos
um povo, porque temos um génio esperamos cumprir no mundo um destino espiritual
que mal se desenha entre névoas e sombras. A profecia ainda não se cumpriu,
aguarda o advento de uma época propícia, mas a cada geração se repete e se actualiza
num verso de um poeta ou numa frase de um prosador.
Não se
cumpriu ainda a profecia porque o povo não tem sido para ela educado. Os sistemas, métodos e processos de educação, importados ou imitados de modelos estrangeiros, apenas nos asseguram um lugar condigno no concerto das nações
civilizadas. Quando, porém, desde o ensino primário ao universitário, tudo estiver
organizado segundo o plano da filosofia lusíada ou atlântica, o povo português
poderá afirmar a sua superioridade espiritual, realizando no mesmo acto a sua
missão de qualidade divina.
É difícil
marcar termo à escala de valores poéticos e encontrar ponto em relação ao qual
se possa medir o progresso. No entanto é licito dizer que os movimentos
poéticos que surgiram depois da «Renascença Portuguesa», se renovaram o lirismo
e se deram ao drama acuidade maior, não excederam a épica religiosidade de
Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa. A expressão poética
de subjectividade humana enriqueceu-se com elementos recebidos de escolas estrangeiras e procurou seu complemento
objectivo nas ortodoxias políticas ou religiosas, pelo que se situou em plano
inferior ao «transcendentalismo panteísta», considerado por Fernando Pessoa o
grau de apogeu da poesia portuguesa.
Tem-se dito
e escrito que o movimento de A Águia
foi continuado pelo grupo da Seara Nova.
Subscreverá tal afirmação apenas quem verificar que os fundadores do
quinzenário lisbonense haviam sido colaboradores do mensário portuense; mas
quem proceder à comparação das doutrinas defendidas em uma e outra revista corrigirá
facilmente o apressado juízo dos críticos literários. Nem em literatura, nem em
política a revista Seara Nova aceitou
a inspiração patriótica de Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, porque preferiu interessar-se pelos problemas pedagógicos, técnicos e
económicos que deveriam ser resolvidos à luz da sociologia internacional.
A
«Renascença Portuguesa» foi, sem dúvida, o movimento cultural mais profundo,
sincero e original da primeira metade do século XX. Embora não lograsse êxito
no ensino público e, portanto, não beneficiasse daquela continuidade
indispensável à função educativa, representou incontestavelmente um grau de
espiritualidade superior ao do movimento das Conferências do Casino. Tanto em poesia como em filosofia, a obra
alegórica de Antero de Quental, que alguns críticos comparam à de Camões,
representa um estádio ultrapassado pela obra simbólica de Guerra Junqueiro.
(In Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, Lisboa, Portugália, 1955, pp. 173-192).
[1]
A. D. Sertillanges, O. P. – L’Idée de
Création et ses retentissements en philosophie – Paris, 1945. Este livro bem merecia ser
divulgado por tradução em Portugal. Quem o ler desprender-se-á necessariamente
de muitos absurdos que ainda vigoram na nossa apologia ou apologética
religiosa.
[2] Sampaio Bruno – A Ideia de Deus, Porto, 1902. Pág. 470.
[3] Todas as frases entre aspas
foram transcritas das Prosas Dispersas
de Guerra Junqueiro.
[4] A defesa dos valores retóricos e
estilísticos do extraordinário Poeta, contra as críticas superficiais,
tendenciosas e sectárias dos detractores da eloquência, encontra-se magistral e
definitivamente realizada no livro de Amorim de Carvalho, Guerra Junqueiro e a Sua Obra Poética – Porto, 1945.
[5] Raul Proença – Páginas de Política, 2.ª série. Lisboa,
1939, pp. 300-1.
[6] Guerra Junqueiro – Prosas Dispersas – Porto, 1921, pp.
35-65. A opinião de Leonardo Coimbra sobre este prefácio ficou exarada no seu
livro sobre Guerra Junqueiro – Porto,
1923, p. 133 e seguintes.
[7] Guerra Junqueiro – Prosas Dispersas – Porto, 1921, pp. 63-64.
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