Oração de Jesus Cristo no Jardim de Gétsemani |
"A divisão faz aparecer o número fraccionário. A radicação o número irracional. E, com o irracional, aparece abertamente a ideia de infinito".
Esse "Irracional" apresenta-se, então, como a "ideia" de um incomensurável Infinito; incomensurável, porque não pode ser medido por qualquer fórmula, não pode ser esgotado por "conceitos" ou "acções já realizadas". Deus não se esgota num momento histórico, e não cabe em nenhuma "fórmula" transmutável, pronta para um idêntico resultado - assim, por exemplo, como uma "teoria da relatividade" ou uma fórmula H2O.
O espírito humano é activo, é criação, um incessante mobilismo - esse é o princípio que se impõe ao Criacionismo. Transportar, pois, o espírito humano para um "reino" fora deste mundo (como querem, a seu ver, os intelectualistas) é conhecer um "criado" inerte e imóvel. Aos "intelectualistas" opõe-se o "irracionalismo". Só este pode garantir a liberdade criadora da própria "criação". A "criação" é o "mar imenso e profundo da Vida"».
Miguel Spinelli («A Filosofia de Leonardo Coimbra»).
«Ao fim de qualquer processo filosófico parece surgir sempre a mesma conclusão: as matemáticas são, de todas as ciências humanas aquelas em que melhor se espelha a mais alta teologia. Substituir a teologia pela metafísica, como fez o iluminismo, ou pela sociologia, como fez o positivismo, no quadro das ciências filosóficas, é impiedade que equivale a embaciar para sempre, o espelho da verdade. Assim interpretamos a admirável analogia que Leonardo Coimbra escreveu em A Alegria, a Dor e a Graça: "O matemático que dispensa a hipótese Deus é como o homem que, junto ao lume do carvão, dispensa o calor do solo"».
Álvaro Ribeiro («As Portas do Conhecimento: Matemática e Metafísica»).
Leonardo Coimbra |
E só assim Deus pode existir sem eliminar as criaturas. De outra forma seriam as criaturas determinismos sem autonomia, máquinas tombadas da absoluta vontade divina. E, como o querer absoluto fora do saber e amar coincide com o capricho, as criaturas seriam caprichos divinos, o que equivale a dizer que não seriam. Eis os motivos por que à velha palavra demos um novo sentido.
A filosofia criacionista não recebe por acção exterior o motivo da inflexão da sua trajectória. Foi a dialéctica científica que a levou à pessoa, que a Arte conserva e engrandece. O pensamento, chegado ao seu foco, reflecte, e a pessoa ainda é a palavra da síntese filosófica.
Não precisamos de sobrepor à síntese objectiva uma síntese subjectiva. A realidade não se divide nas duas coisas - sujeito e objecto. O sujeito e o objecto são vagas anunciações da pessoa activa e livre tendo como instrumentos de acção os determinismos subordinados. A trajectória do pensamento científico inflecte-se naturalmente para a irredutível realidade - a pessoa».
Leonardo Coimbra («O Criacionismo: Síntese Filosófica»).
Oração
Eu adoro e temo o senhor meu Deus, porque Ele é doce e terrível.
Só Ele é: e tudo quanto existe assenta na sua mão poderosa.
Ele espalhou os mares sobre a face da terra e arremessou as montanhas para as alturas dos céus.
Ele pode apertar em sua mão, aniquilando-os, os mundos que uma vez dispersou pelo Espaço.
A voz do trovão e do relâmpago, os clarões da terra incendiada, as lavas que vomitam as feridas da terra, os ventos galopando cortantes, a terra tremendo em seus alicerces e os mares expulsos de seus leitos não custam um estremecimento à sua tranquilidade terrível.
Ele manda, e, no Espaço, os mundos chocando-se fazem um formidável dilúvio de fogo; Ele manda e dos mais profundos pélagos surgem os dorsos corcovados dos planetas; Ele manda e essas mesmas montanhas são poeira tombando de seus alicerces de granito.
O tufão cresce, avança sobre nós, torna em seus invisíveis braços as árvores mais gigantes e arranca-as como penugem de andorinha adormecida; sopra e das casas desmoronadas fogem espavoradas as cinzas do último fogo que reunira a família. Mas o tufão cresce ainda e não são os alicerces dos planetas que estremecem, é o Sol, imensa fornalha ardente que vomita farrapos de fogo maiores que os próprios mundos...
Cresce ainda e não são as cidades da terra e os seus milhões de habitantes que tombam à cólera de seu sopro, e não é o Sol que abre em chaga formidável seu manto de fogo, são os sóis, as nebulosas, os lumes e as monstruosas trevas do Espaço que se chocam e comovem levadas em seu sopro como o cadáver da gaivota na onda da tempestade.
Meu Deus, meu Deus, como é terrível a força do teu braço, como é terrível o assopro da tua cólera.
Não são os montes que saltam em suas bases de rocha, são os mundos que flecham em suas órbitas transviadas.
O caminho passa e quem sabe de que mundos mortos é a poeira que se lhe prende nos cabelos. Os pés do peregrino pisam na terra poeira de mundos mortos, apagados nas densas estepes das alturas.
A criação ri e o raio que lhe doira os cabelos e afeiçoa a boca é uma gota de sangue do nosso melhor Sol agonizante, e ó quantas faces cadavéricas, quantos mundos sem vida já não beijou essa gota de sangue que nos chega agora a cintilar oiro num sorriso de criança?
Meu Deus tua força é terrível e a cólera de teus olhos é mais cortante que o gume duma espada num campo de batalha!
O trovão que nos estala sobre a cabeça é um eco amortecido da tua voz justiceira, a língua de fogo que repassa e funde as rochas e os metais mais fortes é o reflexo apagado do teu olhar ardente"
- Caim, Caim, que é de teu irmão Abel?
E onde se sumirá Caim de ante a tua face?
Caim matando Abel |
Mas não são eles, os mundos, obra da tua vontade soberana, não és o senhor deles?
Quem pode pôr barreiras no campo que te pertence? Não terá o oleiro o direito de partir, amassar e reamassar os barros que amodelou?
Os mundos são teus que neles se faça a tua indomável vontade misteriosa.
Mas as almas, Deus meu?
Flores do teu jardim que tua mão semeou na vida e que tua mão vem colher tão cedo...
Que vem fazer a Morte, que é esta vida , às sementes da vida eterna que são as almas?
Ascender na podridão a beleza desse instante?
A simples fosforescência no monturo?
Meu Deus, meu Deus, como são terríveis os caminhos da tua vontade!
E as sementes que são colhidas mal iam desenovelando a morte das criancinhas?
Que estranho cacto vermelho não será a chaga dum coração materno!
As crianças morrem para Deus ter anjos e os corações maternos ficam chagas de luz a gritar no Espaço!
Os mundos que são obra da tua mão omnipotente não te conhecem, ó que importa, pois que os arremesses num ou noutro sentido?
Mas as almas, meu Deus, conhecem-te e conhecem-se; ó para quê semear almas e vir colhê-las antes que abram, para reunir corações e dispersar cadáveres? (in Miguel Spinelli, «A Filosofia de Leonardo Coimbra», Braga, 1981, pp. 271-273).
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