«(...) António Sérgio era adverso às ditaduras militares (embora tivesse recebido militar educação na Marinha, educação essa por vezes transparecendo de sua certa rispidez de modos), mas, tal como outros muitos cidadãos, admitia a necessidade de uma Ditadura transitória, que pusesse ordem e devolvesse o país à Democracia. Esta díade explica porque, em tempo, conspirou (1927) contra a ditadura militar de 1926, distinguindo-se de Fernando Pessoa, que a defendeu no manifesto O Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal, (1928); por outro lado, tal como os católicos, os monárquicos e republicanos prudentes, acreditou que o peso civil trazido pelo Professor Salazar à Ditadura, seria a promessa de um saneamento lúcido, com breve retoma das práticas democráticas. Bem analisadas as linhas e as contas, o que no pensamento político sergino emerge é uma União Nacional. Salazar estava informado do sentimento geral quanto à necessidade de uma "união" acima dos Partidos. E muitos acreditaram, só que, uma vez a "união" estabelecida, a sua remoção tornou-se impraticável. Pouco tempo depois, Afonso Lopes Vieira e Sérgio admitiam ter sido enganados e, com efeito, Sérgio tornou-se opositor a Salazar».
Pinharanda Gomes («A "Escola Portuense"»).
«... Em numerosos países, e em Portugal sem dúvida, a noção, o espírito, a finalidade dos partidos corromperam-se e as agremiações partidárias converteram-se em clientelas, sucessiva ou conjuntamente alimentadas pelo Tesouro. Findo o período romântico, ou até antes disso, que se segue às revoluções ditas liberais do começo do século XIX e em que os debates parlamentares revelavam com erudição e eloquência preferência pelas grandes aspirações nacionais, a realização partidarista começou a envilecer-se. Duvido se alguma vez representou o que se esperava; desde os meados do século passado até 1926 - em monarquia e em república - a vida partidária tem seus altos e baixos mas deixa de corresponder aos interesses políticos e distancia-se cada vez mais do interesse nacional. A fusão ou desagregação de partidos, as combinações políticas são fruto de conflitos e de paixões, compromissos entre facções concorrentes, mas nada têm que ver com o País e os seus problemas.
Aqui e além tenta-se regulamentar, moralizar, constitucionalizar a vida partidária. Tudo embalde. Um partido, vários partidos dispõem do poder - são governo; mas não se encontra, como poderia supor-se, relação concreta nem entre os actos de governo e os programas partidários nem entre os programas e as exigências da Nação. Nós chegámos aos últimos extremos na república parlamentar com 52 governos em menos de 16 anos de regime.
A única conclusão possível é que a fórmula partidária faliu e de tal modo que apregoá-la como solução para o problema político português não oferece o mínimo de base experimental que permita admiti-la à discussão. Mas pode ir-se mais longe e invocar para contra-prova a experiência de mais de vinte anos de política sem partidos, de política nacional simplesmente.
O espírito de partido corrompe ou desvirtua o poder, deforma a visão dos problemas de governo, sacrifica a ordem natural das soluções, sobrepõe-se ao interesse nacional, dificulta, se não impede completamente, a utilização dos valores nacionais para o bem comum. Este aspecto é para mim dos mais graves».
Oliveira Salazar («O Meu Depoimento», Discurso de S. Ex.ª o Presidente do Conselho, na Sessão Inaugural da II Conferência da União Nacional, no Porto, em 7 de Janeiro de 1949).
Orlando Vitorino (prefácio in Stuart Mill, «Ensaio sobre a Liberdade»).
Orlando Vitorino |
O magistério de António Sérgio
António Sérgio, pensador, ensaístico e crítico, desde muito novo começou a manifestar o seu talento de escritor. Dirigiu a revista Serões, colaborou em A Águia, publicou opúsculos na Renascença Portuguesa, dirigiu a revista Pela Grei, e trabalhou no Anuário do Brasil. Atraído a Lisboa pelos fundadores da Seara Nova (1921), com eles alinhou o autor dos Ensaios a colaborar na revista de doutrina e crítica, onde fixou tópicos de valência e vigência nos decénios seguintes (1).
Ao contrário da revista A Águia, que subordinava a política à pedagogia, e a pedagogia à filosofia, a revista Seara Nova subordinava a pedagogia à política, o que concretamente se revela na obediência da escola à oficina, pela tese de que ao ensino compete antes de mais a formação de técnicos para as indústrias, factores de progresso económico, de acumulação de riqueza, de elevação do nível de vida. Em vez de pedagogia preferiam os colaboradores de Seara Nova escrever a palavra cultura. Deste modo abafavam a palavra filosofia, aliás inconveniente e incómoda numa sociedade positivista, porquanto parecia colidir com a crítica anticlerical e anti-religiosa, tão grata ao pensamento dos velhos republicanos.
Afastando-se da política ideológica, tal como fora concebida no século XIX, para a política técnica, menos atenta à cultura do homem do que à cultura da terra, e exibindo o que mais tarde se designou por sentido das realidades, os dirigentes de Seara Nova preocupavam-se com as habilitações profissionais dos portugueses, com a programação didáctica na sequência das disciplinas úteis, com a estruturação das escolas técnicas. Era assim confiada à pedagogia a função de dominar a psicologia, segundo um voluntarismo abstracto, muito adequado ao ideal utópico da escola única, quer dizer, em realizada ignorância da diferenciação natural dos temperamentos, dos caracteres, dos sexos e das idades. A educação liberal, no seu conceito de desenvolvimento e aperfeiçoamento de individualidades superiores à mediocridade social, foi desde logo refutada como adversa ao socialismo ateu e ao socialismo cristão.
António Sérgio, já em opúsculos editados pela Renascença Portuguesa, se manifestara afim desta tendência, mas começou a ver os seus méritos de pedagogista reconhecidos pelo grande público. Os seus ensaios razoados, lúcidos e diáfanos distinguiam-se na revista sobre os artigos de colaboradores diletantes e estetizantes, como sobrelevam sobre muitos sueltos de passionalidade agressiva, sectária e fútil. A pouco e pouco se enobreceu António Sérgio, como verdadeiro mestre na arte de discutir e de pensar, com inegável preceptorado sobre grande número de estudantes universitários.
Eça de Queirós |
Quanto à dialéctica, a qual, na acepção aristotélica, é a arte de anular a argumentação alheia, já António Sérgio nem sempre seguia as directrizes e as linhas da razão, e claudicava por vezes em quanto os escolásticos chamavam ignoratio elenchi. Na vivacidade do seu estilo contundente, embaraçava o adversário que desconhecia as regras do trívio, e vencia-o mais por artifícios de estilo do que pela análise metódica dos juízos alheios. Teses verdadeiras, a que estavam ligadas as tradições intelectuais do nosso povo, caíam sem que ninguém as soubesse defender dos golpes alegres que lhe eram atestados pelo ilustre polemista.
José Régio sofreu e aceitou a disciplina de António Sérgio. Ele próprio confessou em um escrito célebre: «Desde bem novo tive António Sérgio por um dos meus mestres portugueses no meu pequeno esforço, tantas vezes frustrado, por pensar clara e criticamente. Por tal o continuo a reconhecer hoje» (2). Verdade é essa que ainda em livro publicado em 1964, José Régio a confirma ao exaltar o mérito de António Sérgio que, em vários ensaios, se apresentou como intérprete do misticismo de Camões (3).
Convém, todavia, rememorar que em 1925 eram tidos por maiores poetas Júlio Dantas, Eugénio de Castro e António Correia de Oliveira, por maiores prosadores Aquilino Ribeiro, Samuel Maia, Carlos Malheiro Dias, sem que o prestígio desses escritores deixasse na sombra o nome dos poetas Afonso Lopes Vieira, João de Barros e Cândido Guerreiro ou dos prosadores Henrique Lopes de Mendonça, Brito Camacho e Joaquim Manso. Floresciam também muitas escritoras cujos retratos e nomes ficaram registados em folhas mortas que o historiador poderá revolver, mas tal publicidade não significava mais do que gentileza, galanteio ou cortesia do espírito varonil para com as damas que aspiravam a imitar os homens no exercício da composição literária. Eram aqueles os escritores modelares, cujos livros editados por empresas que tinham seus escritórios perto do Chiado, lhes davam jus a serem consagrados pelos sócios correspondentes e efectivos da Academia de Ciências de Lisboa.
Júlio Dantas |
Os ilustres escritores, que a imprensa periódica exaltava, eram apenas combatidos por certas tertúlias literárias que hostilizavam o gosto mundano e burguês da maioria dos letrados. Se a história e a crítica mais severas eliminaram os nomes dos escritores que chegaram a ser académicos, se o modernismo trocou a escala dos valores para situar outros já consagrados, não devemos confundir o que as modernas histórias da literatura de hoje nos narram com o que era ontem o panorama da opinião pública. De vinténio para vinténio, cada geração reage contra a geração antecedente, e pela leitura das revistas mais novas poderemos inferir quais os escritores que efectivamente exerceram preceptorado ou mestrado.
É um anacronismo julgar-se, por exemplo, que a geração do Orfeu, publicado em 1915, e da Athena, publicada em 1924, gozava já do crédito e da celebridade que veio a merecer quarenta anos depois, graças à vitória da estética modernista sobre as antecedentes escolas literárias. Em Portugal ninguém reconhece os valores culturais antes de passados dois vinténios sobre a sua revelação, pois é natural a dificuldade de modernizar e de actualizar de pais para filhos, e para netos, as normas e as estruturas da vida cultural. A história reconstituída para preconcebidos fins ideológicos de literatura, política ou religião é sempre uma modalidade de romance apologético.
A personalidade superior de Fernando Pessoa não era, nem mesmo entre os do Orfeu, conhecida pelo seu supremo valor de filósofo que só mais tarde foi reconhecido, pois o poeta bem sabia que a música, própria para encantar as almas, ou os animais, está ainda longe da altura profética das artes da palavra. A literatura portuguesa ainda não havia chegado à sua plenitude filosófica, prevista por Fernando Pessoa, e realizada culturalmente por influência da revista Presença. Antes de 1925 o público entendia que intelectuais eram só os letrados, e como tais desprezados pelos agitadores políticos, pelos legisladores utilitários e pelos burocratas mesquinhos, e sinal estatolátrico de aversão pela inteligência.
António Sérgio não deixou nos seus ensaios publicados em volume, nem nos artigos dispersos pelas revistas, vultoso testemunho de admiração por poetas como Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa ou Raul Leal, enfim, sobre quaisquer dos escritores admirados do primeiro modernismo. O mestrado de Cesário Verde era olhado com indiferença, como o de um poeta menor, digno de comparação com António Nobre. É preferível, por isso, procurar nos escritos de crítica e polémica a designação exacta do nome dos escritores que mais impressionavam a opinião pública.
Reagindo contra uma literatura que então primava pela riqueza do vocabulário, no cultivo máximo do arcaísmo medievalista e do regionalismo provinciano, mas ao mesmo tempo toldada por uma obscuridade que não resistia à consulta dos elucidários, António Sérgio condenava o excesso das narrativas históricas e das descrições paisagísticas onde se exercitam os estilistas sem pensamento e sem arte. Estava então na moda o romance histórico, que mais rigorosamente devia ser designado por romance anacrónico, parecendo operar-se um regresso aos temas medievalistas de Alexandre Herculano, Almeida Garrett e Arnaldo Gama, com a invocação repetidora dos seus bardos e jograis, dos seus castelos feudais, de seus dramas de cortesãs e cavaleiros, das suas igrejas românticas, góticas e manuelinas, dos seus mosteiros e dos seus oragos, para exaltação de uma humildade e de uma piedade de tempos idos. Estavam também de moda a literatura regionalista, com mulheres do campo e homens das vilas, com suas superstições, seu fanatismo e sua crueldade, num quadro em que o humanismo naturalista aparecia temperado por um cristianismo mal traduzido, santeiro, benzedeiro, milagreiro, com suas alminhas do purgatório e terrores do inferno.
Armas da Sereníssima Casa de Bragança, após 1581. |
António Sérgio anunciava que o essencial na obra de arte é a ideia, o ideado, o pensado, o dito, e por fim o significado ou o aludido, relegando para último lugar ou plano a indumentária de museu ou o cenário rústico. «O substancial - escreve António Sérgio em referência à literatura -, será sempre o psicológico, a pintura das paixões, a crítica da sociedade, os conflitos espirituais, a aspiração religiosa, e coisa de tal género: em suma, o homem em movimento, ou (menos mal ainda) o comentário do homem interior em movimento»(4). Esta observação visa directamente o teatro cuja dramatização filosófica, explicada por escritores como Pirandelo, Marcel e Sartre, se afasta do romance e da poesia.
Tal doutrinação mais filosófica do que filológica, era admirável nesse tempo em que a crítica literária era exercida por licenciados em direito, ou até por plumitivos sem qualquer curso superior, pelo que mal se esboçava ainda a exigência de pensamento especulativo entre as condições do exercício da literatura, sabido que no segundo quartel deste século XX se realizou inteiramente uma campanha cultural para tal fim. António Sérgio beneficiava de uma forte cultura clássica, e não é de estranhar que a nossa melhor crítica literária de fundamentação filosófica seja a de vincada tendência classicista. O crítico romântico, impressionista e modernista, variando de critérios conforme a obra que tem em presença, realiza na sua instabilidade doutrinal uma acção contrária à cultura, especialmente quando exprime a imaturidade mental dos adolescentes.
António Sérgio acusava a nossa literatura da persistência de elementos românticos. Aconselhava portanto aos estudantes, aos aprendizes de literatura como aos aprendizes de filosofia, a lição dos clássicos, predominantemente dos franceses, não para imitação de estilo, de motivos e de assuntos, mas para habilitação intelectual na apreensão dos temas e problemas nossos contemporâneos.
Difícil se nos afigura, ainda hoje, estabelecer um conceito próprio de classicismo.Não nos poderemos deter na definição corrente, se bem que verdadeira, de que clássicos são autores estudados nas classes, e propostos por modelos nas escolas. Essa definição conduz a tomar os clássicos por sinónimos de académicos, e a identificar o classicismo com o academismo.
Opondo o classicismo ao romantismo, como fizeram certos escritores em França e António Sérgio entre nós, obtém-se apenas uma doutrina negativa da repressão das paixões pelas acções, da limitação da estética pela ética, ou da subordinação do individual ao colectivo. Se ascendermos, porém, ao pensamento helénico encontraremos superior definição. Nessa filosofia da arte, ou, simplesmente, nessa filosofia, o classicismo é muito mais a conjugação harmoniosa de dois ingredientes artísticos: o infinito com o finito, o indefinido com o definido, a matéria com a forma, a sensitividade com o intelecto, a obscuridade com a clareza.
Euclides (A Escola de Atenas). |
Convém ter presente que os pensadores de mentalidade cartesiana não podem dispensar-se de imaginar que o homem seja figurável ou representável por uma máquina, um esquema geométrico, um sinal numérico, em vez de considerar nele um indivíduo, um ente vivo, um organismo que age e reage espontaneamente. A mentalidade cartesiana domina e disciplina a instrução preparatória dos engenheiros da construção e da destruição, os quais dirigem os trabalhos na empresa, e regulamentam a condição social dos operários e dos obreiros. As instituições modernas são concebidas sobre modelos mecânicos, e a ficção jurídica apoia-se nas noções complementares de esforço, força e violência.
Este predomínio cartesiano da inteligência, ou intelectualismo, neutraliza as motivações masculinas e as motivações femininas da acção humana, representadas na acção voluntariosa e na paixão sentimental. A luta contra o romantismo, contra a revolução e contra a liberdade processa-se gradual mas vitoriosamente. Tal é o que o historiador demonstra ao expor a evolução secular da filosofia alemã (in A Literatura de José Régio, Sociedade de Expansão Cultural, 1969, pp. 86-96).
Notas:
(2) Leonardo Coimbra, Testemunhos dos seus contemporâneos, Porto, 1956, p. 27.
(3) José Régio, Ensaios de interpretação estética, Lisboa, 1964.
(4) Lusitânia, Fascículo I, p. 108.
José Régio |
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