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quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Da índole amorosa do português

Escrito por Francisco da Cunha Leão


Serra do Marão

«(...) À voz do sangue responde a voz da terra; e este diálogo misterioso mostra os caracteres da nossa íntima fisionomia portuguesa.

A Ibéria foi primitivamente povoada por diversos Povos de que descendem os actuais castelhanos, vascos, andaluzes, galegos, catalães, portugueses, etc.

Aqueles Povos pertenciam a dois ramos étnicos distintos, diferenciados por estigmas de natureza física e moral.

Um dos ramos é o ariano (gregos, romanos, godos, celtas, etc.); e o outro, é o semita (fenícios, judeus e árabes).

O Ária criou a civilização greco-romana, o culto plástico da Forma, a beleza concebida dentro da Realidade próxima e tangível, o Paganismo; o Semita criou a civilização judaica, a Bíblia, o culto do Espírito, a unidade divina, a beleza concebida para além da Matéria.

O Ária cantou, nos cumes do Parnaso, a verde alegria terrestre, a infância, a superfície angélica da Vida; o Semita glorificou, nos cerros do Calvário, a dor salvadora que nos eleva para o céu, o céu da Redenção, pelo sacrifício do individual ao espiritual.

Vénus é a suprema flor do Naturalismo grego; a Virgem Dolorosa, a suprema flor do Espiritualismo judaico. A primeira simboliza o amor carnal que continua a vida, esta, o amor ideal que a purifica e diviniza.

O Ária (celtas, gregos e romanos) trouxe, portanto, à Ibéria o Naturalismo, e o Semita, (árabes e judeus) o Espiritualismo.

Povos destes dois ramos étnicos tão diferentes, misturam-se na Península, originando as antigas Nacionalidades que Castela submeteu à sua hegemonia, com excepção de Portugal. Todavia, conservam uma certa independência moral revelada pelos idiomas ainda hoje falados na Espanha.

Portugal resiste, há oito séculos, ao poder absorvente de Castela. Demonstra este facto que, de todas as velhas Nacionalidades peninsulares, foi Portugal a dotada com mais força de carácter ou de raça.»

Teixeira de Pascoaes («Arte de Ser Português»).

 

«Se o corpo de Vénus é feito de espuma do mar, a Virgem Maria é a mais alta e translúcida espuma da Alma.»

Leonardo Coimbra («Camões e a Fisionomia da Pátria»).


O Nascimento de Vénus, do pintor William-Adolphe Bouquereau.

«A arte de amar, ensinada por vários tratadistas que se limitam a explicar o que é explicável, não preceitua mais do que exercício incessante da imaginação. Quem pela primeira vez declara o amor, por palavras bem ou mal inspiradas, assume o compromisso de repetir diariamente essa declaração, mas obriga-se também a inventar processos sempre diferentes de manifestar a fidelidade e a lealdade ao ente amado. Fazer voto de amor, por qualquer fórmula de juramento, é devoção que logo se transforma em obrigação.

Toda a arte do homem amante está em fazer louvar a mulher amada, em evitar a repetição que mecaniza, banaliza e adormece a vida sentimental, em reconhecer a gradação subtil dos diferentes vínculos de amor. A graciosidade da linguagem do adolescente que perpassa na dialéctica dos amantes, o ideal de fidelidade electiva que enobrece e sublima os mútuos juramentos, o encanto sentimental que se corporiza no apogeu da volúpia, constituem graus de uma fenomenalidade que só o escritor de génio pode exprimir sem banalidade, estultícia ou profanação. Torna-se patente a inépcia do romancista que se demora no descritivo e no narrativo, por preconceitos naturalistas ou realistas, quando seria o momento literário de vencer o empirismo pelo raciocínio e o realismo pela imaginação.

Na penumbra propícia a um ritual sagrado existem segredos naturais que o literato vulgar não sabe descrever. Quem não os respeita, reverencia e venera, quem sobre eles se propõe projectar a cruenta luz meridiana, confessa por isso não compreender a analogia profunda da morte com o amor, patenteia ignorar a significação da palavra metamorfose. Confessa assim, e também, que ainda não soube atribuir significado religioso aos actos habituais da vida quotidiana.

Conhece talvez o literato a antiquíssima comparação do sono com a morte, mas não aproveita, antes despreza, essa comparação que a literatura tornou banal. Nunca meditou, porém, na analogia do cerrar dos olhos com a cerração da noite, do leito com o túmulo, dos brancos lençóis com os alvos mármores. Ao despir-se, ao deitar-se, o homem desenvolve-se das roupas que o aquecem, protegem ou mascaram; goza um prazer que não é mais do que alívio do sofrimento inconsciente que lhe deu a canseira do trabalho quotidiano; não repara, porém, que no acto prefigura o despir das faculdades vigilantes que a alma há-de perder para atingir a nudez esotérica.

O artista que não respeita o ritual da desnudação, é artista que não compreende o nascimento, o amor e a morte; não sabe distinguir a verdade nua da verdade revelada; tenderá sempre a descrever o encontro dos amantes em termos de pornografia ou, seja, de profanação. Não compreenderá a beleza secreta da palavra sacrifício, nem, portanto, o encanto eloquente da renascença ou, que o mesmo é dizer, da ressurreição.»

Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).


Marte sendo desarmado por Vénus, por Jacques-Louis David.


Da índole amorosa do português


«De amor escrevo, de amor trato e vivo.»

Luís de Camões


O carácter do amor foi por nós observado, a traços largos, numa rubrica de «O Enigma Português, onde vincámos neste aspecto e sobre o fundo comum peninsular, a diferença entre portugueses e castelhanos, tão denunciada na literatura e na história.

Aliás esse carácter é dos mais versados pelos estudiosos das nossas letras. Na definição das linhas míticas em que se dispuseram determinadas tendências nacionais fixámos uma que respeita à sublimação da mulher e outra à supervivência do amor [1].

Interessa-nos agora focar as contradições estranhas que a sensibilidade e o comportamento dos portugueses neste capítulo retratam.

Embora menos estremados que nos castelhanos o amor e a sexualidade, esta distorsão não deixa de nos aparecer, às vezes, em termos chocantes.

Logo na poesia trovadoresca se bifurcam duas linhas com atitudes diametralmente opostas em relação à mulher – o que foi observado por numerosos críticos. Uma de idealidade, em que a mulher querida é como que entronizada, posta em adoração, e objecto de culto cujo teor se apresenta devotado e casto; boa parte dessas cantigas – as «de amigo» – coloca o troveiro na boca da namorada, protagonista de um sentimento que então já se revela inquieto, magoado – o amor saudoso. «Quem tem amores não dorme» viria a traduzir a sabedoria do povo, num conceito que os poetas esgotadamente glosariam – eles e os novelistas.

O gosto de sofrer aliado ao gosto de amar em termos de «amar é sofrer» vem salientado por José Régio e Alberto de Serpa na antologia que organizaram da nossa poesia de amor [2]. Nas palavras introdutórias a esse trabalho, também se fala do «dom de sublimação do instinto primário», da «transfiguração do desejo em admiração e saudade» como traços característicos. «Min tormenta», lá diz João Lobeira nos lais de Leonoreta. «Morte, morte de amor melhor que a vida!» (Bocage) exprime o pathos erótico de um povo a que não falta certo masoquismo e saboreada renúncia [3]. O «morrer de amor» é uma das características da literatura portuguesa, segundo Carolina Michaëlis.

A extrema vivência amorosa ressalta da «pequena história» às vezes decisiva, tornada grande, ilustra a poesia e a novelística, dos Cancioneiros e do Amadis, à lírica de Camões, às églogas, a Gonzaga e Bocage, às Cartas de Soror Mariana, às novelas de Camilo, a João de Deus, Nobre, Florbela, etc...


Não minguam testemunhos de vária procedência acerca disso, a começar pelos Espanhóis, que personalizavam a obsessão amorosa, galanteadora, a um tempo intrépida e torturada, em portugueses. Esse renome passou os Pirenéus e a Mancha para exprimir um determinado tipo de amor «à portuguesa».

Anote-se a primazia, mesmo a realeza do amor na temática do género literário que mais nos distingue. Sem aquela especial compleição amorosa teríamos sido tão grandes em Poesia? Decerto que não, pois se eliminarmos do nosso florilégio a lírica de amor ele fica extraordinariamente empobrecido [4].

O facto de na contemporaneidade alguns dos melhores poetas terem fugido ao tema, ou iludido o tema, por influxo de moda universal, não invalida a afirmação. É avultada a legião dos que graças ao amor entram a versejar.

Muitos dos principais poetas continuaram a sacrificar-lhe poemas dos melhores como Teixeira de Pascoais (leia-se a genial «Elegia do Amor»), Afonso Duarte, José Régio, o próprio Torga, cuja «Ode a Vénus» é uma das mais belas sublimações do «génio da espécie»; e o tema subsiste de primeira plana com aspectos novos também, no sentido de evitar a monotonia que afectara a lírica amorosa, em David Mourão-Ferreira e Tereza Horta, por exemplo.

Apesar do grande esforço de renovação desta poesia, menos estremada do sexo, mais intelectualizada ou ironizada, o velho fundo absorvente e idealista mantém-se. Na sua própria degradação, o fado reflete-o, nostálgico de pureza.

A outra corrente, da sátira também de amor, tende ao obsceno, é com frequência grosseira e pornográfica. A mulher que não corresponde àquela idealidade, ou a trai, aparece desrespeitada em termos boçais e bem assim o marido enganado ou condescendente. Aí o trato é assoalhado ao vivo e com a mais desbocada linguagem. Os cancioneiros medievais e a obra de Bocage são exemplos flagrantes desta extremação [5] que tantas vezes co-habita em paredes meias.

Dificilmente se encontram a picante malícia, os subtis mal-entendidos das letras francesas. Dos satiristas do amor e da mulher, bem poucos, além de Augusto Gil, e nem sempre, conseguem aproximar-se desse espírito. O cosmopolita Feijó não deixa de ter a mão pesada.

Não que a sensualidade abandone a poesia sublimadora do amor. Ela entrelaça-se num tipo de lirismo de teor dominantemente casto, e a partir dos mesmos trovadores. Na sua forma espiritualista é o que o ensaísta galego Daniel Cortezón chama «amor-saudade», tem carácter avitalista, em contraposição ao amor biológico, subordinado ao «génio da espécie» [6]. Exemplifica o primeiro caso Macias, o Namorado, famoso poeta. No segundo, podemos incluir o mitológico D. João Tenório, em que a sexualidade totalmente se extrema, tomando ganas de força devastadora e subversiva das barreiras ético-sociais.



Quando estranha ao factor sentimental, a sensualidade dos portugueses mostra-se pouco selectiva, indiscriminada, o que os favoreceu no entendimento com os povos de cor e esteve na base da extensa mestiçagem que prestes franjou, consolidando-a, a fixação lusíada nos trópicos, onde surgiram numerosos grupos étnicos, de ligação com as sociedades aborígenas da Ásia, África e América, nas quais o elemento europeu comum garante um mínimo de unidade inter-continental com fulcro metropolitano.

Não são propriamente as ligações ilícitas que o escandalizam, e muitas foram admitidas sem chalaça. Não respeita, porém, a poliandria, nem mesmo casamentos, além do segundo.

Implacável na exigência do amor, desde que o reconheça vê nele um sinal de predestinação, admite-o como coisa séria, tocada de transcendência, que invalida os juízos dos mortais. Foi o caso dos amores de Dom Pedro e Dona Inez, feitos florir pelo tempo fora, em sequência condigna do louco enlevo e fidelidade cega desses amantes, cuja trágica desgraça respeitou e redimiu, transmudando-a em mito de amor eterno.

Neste país onde uma adoração amorosa abundante e obsessiva marcou a expressão literária, é de estranhar o prosaísmo, a reserva mental, o tom sardónico do seu adagiário a propósito da mulher. São de velha data usuais anexins como estes: «A mulher e o pedrado quer-se pisado», «Ainda não é nascida, já espirra», «O homem na praça, a mulher em casa», «Mula que faz him e mulher que fala latim, raramente tem bom fim», «A mulher e a galinha, com o sol recolhida», «A mulher e a cachorra, a que mais cala é a mais boa», «De má mulher te guarda e de boa não fies nada», etc...

Ditos deste jaez, classificáveis em marialvismo e machismo, se adoptássemos a acepção de Cardoso Pires [7] dariam longo rol. Machismo, sem dúvida, e estremado, que é de homem suspeitoso, ciente dos seus costumes abusadores e do semelhante, este que reduz a fêmea, cativa ou a trabalhar para ele, que lhe desdenha a ilustração e se teme da sua tagarelice [8].

Os hábitos já evoluíram mas sem alteração substancial da mentalidade, porquanto no sub-consciente de muitos portugueses, até dos que se ufanam de liberais e progressistas, chibantemente engravatados, em maior ou menor grau ainda perdura.

Em que medida os costumes sarracenos teriam influído nesse espírito restrito da liberdade feminina? É possível que no rastro de uma dominação mourisca demorada nos ficasse tal herança, a par das «mouras encantadas».


Ver aqui

Não obstante do Noroeste, e desde épocas imemoriais, veio-nos uma tradição de matriarcado, atestada por arqueólogos como Caro Baroja, e confirmada pela história. A preponderância das mulheres foi grande no priscialinismo e nunca deixou de exercer-se na faixa ocidental, especialmente na Galiza. A poesia dos Cancioneiros documenta-a, como vimos. Até o extraordinário culto de Nossa Senhora denuncia uma étnica tendência para a sublimação da mulher.

A nossa história, com mais ou menos fantasia, floresce de heroínas. Não lhe falta um longo friso de mulheres ilustres, do povo às mais altas estirpes. Nomeá-las seria fastidioso, mas o seu renome vai dos feitos da defensão militar e ultramarina, às práticas virtuosas, à iniciativa de obras sociais, às letras, às artes, aos actos de governo. Mostraram heroísmo tanto na guerra e no amor, quanto em santidade.

O maior poeta da Galiza foi mulher – Rosalia –, igualmente o maior romancista: Emilia Pardo Bazán, Entre as combatentes, Maria Pita, defensora da Corunha contra os ingleses. Unamuno, verificando essa importância da mulher, entende ser característica de raça velha, cansaço de civilização.

Oliveira Martins também chamou a atenção para a importância da mulher do Minho, a propósito de «Maria da Fonte», a Joana d’Arc do Setembrismo», no que foi chasqueado por Camilo, chamando à mulher do Minho «besta de carga» e à lendária cabecilha do movimento patuleia nada menos que «beberrona e malandra» [9]. D. António da Costa chega a dizer: «Nesta província... a mulher é que toma verdadeiramente o lugar do homem, e o homem não passa de acessório» [10].

Deste novelo de factos e comportamentos antagónicos, bastante poderá inferir-se numa tentativa de interpretação. O português é de índole amorosa, vive com intensidade os seus afectos, insofrido, sôfrego, absorvente na fase da efervescência do amor, cujo objecto poeticamente exalta, mesmo nos desvairos sensuais. Mas se a dona o desilude, facilmente descamba para a recriminação satírica, tanto mais que não admite no sexo feminino a volubilidade carnal que ao macho reserva, e de que tem mais ou menos consciência. Há nesta atitude, em transposição colectiva, o que os psico-analistas chamam processo de «projecção», de que atribui a outrem intenções que se nega a reconhecer em si mesmo, ou defeitos que pressente possuir.

O temperamento apaixonado, exclusivista dos portugueses faz deles grandes amorosos e porventura, na continuidade, incómodos amantes. De um ponto de vista libertino, do erotismo intelectual puramente hedonista, do prazer pelo prazer, são maus amantes, porque emotivos em demasia. Amor que «não sossega a coisa amada» servindo-nos de uma expressão de Vinícius de Morais.


D. Juan, no momento da luta.

Haverá no entanto amor digno desse nome, verdadeiro amor, sem busca desesperada e ardente do absoluto? Não estará nisso a mais bela transcensão do homem, o aniquilamento na realização plena? Tal procura, não tem entre nós o cunho elementar só de extremismo físico, a sanha de fornicação do galaroz D. Juan Tenório. A compleição afectiva interfere no sentido de uma posse mais total, em humana plenitude, cópula de corpos e almas; subtiliza, comove a crueza do sexo. Bem viu um actual ficcionista português no incontestável donjuanismo autóctone, feição de compromisso, com amolecimentos sentimentais e sociais, que lhe minoram a «crueldade testicular» e o apartam do genuíno donjuanismo, repelido e satirizado cá [11]. Porventura a aceitação, o êxito amoroso do português (o «portuguesismo valente») provenha de ser um sedutor incorrigível, atrevido, mas facilmente enamorável; de constituir uma presa possível como afinal o rei D. Fernando tão amador de mulheres e «achegador a elas», mas sua vítima, ainda que formoso e inconstante.

No amor consolidado pelo casamento ou ligação estável, acentua-se o preconceito do prestígio masculino que o meio aliás impõe ao homem, pelo que este se encosta aos ditames de uma sabedoria vulgar assente na autoridade do pater e na suspicácia dos defeitos da mulher («As verdades são dos homens, as mentiras das mulheres»).

Tal reserva em parte demonstra, pelo carácter de defesa, certo reconhecimento implícito do valor do outro sexo, cujo vantagem chega a ser temida, em alguns aspectos.

A despeito da fraseologia sentenciosa e mordaz, fruto de um realismo rural cônscio da sujeição biológica da fêmea e da sua fraqueza provocante em relação ao ímpeto e à mobilidade natural do macho, e apesar do brio varonil muito agudo em povo criado no prez das coisas másculas e pronto a captar o ridículo, aquela sisudez também se filia no ideal do lar com fulcro na virtude da mulher, cuja inspiração cristã é evidente. Vê na esposa, ou nela exige ver, depositária das virtudes tradicionais da gens – a mãe que prolonga outra mãe cujo exemplo é exalçado – e que mantém na ara doméstica um fogo paralelo ao dos altares.

As famílias assim robustas aglutinam-se como corais e proliferam. Nelas estão os viveiros do génio terrantês e os abrigos seguros dos filhos ainda que pródigos.

Houve quem denunciasse na mulher portuguesa um ressaibo oriental; a meiguice dos olhos, uma doçura de ser, a um tempo grave e submissa que é de quem nasceu para ser amada («para la caricia y el rendimiento», observou Unamuno).

Ao centro: Miguel de Unamuno.

Dos olhos vem por transparência muito da vida interior. Não é o brilho intenso e dominador das espanholas que «barren la calle com sus miradas», nem o picante frívolo e inteligente das francesas, nem aquele olhar que nas britânicas tem «um arcanjo e um demónio a iluminá-lo» misto de angélico devaneio e frieza, ou a bruma indecifrável das nórdicas e seus relâmpagos de iniciativa.

Abandono sonhador e uma ajuizada ternura denunciam a mulher portuguesa. Em novas são garotas, meninas ou raparigas, termos que impressionam Valéry-Larbaud [12]. Capaz de heróica devoção, resistente, sofrida, revela-se realista no casal e defende, pela pressão dos sentimentos, o seu domínio. Este aspecto celoso foi notado há muito pelos nossos vizinhos [13].

Em que medida tais caracteres determinam o comportamento do homem e as contradições discernidas? O citado grande pensador espanhol inclina-se a explicar pelo nosso tipo feminino o tom erótico-patético do lirismo.

Reflectindo um pouco, vê-se que o amoroso que exalta a namorada e a conduz à igreja para uma união definitiva, não tarda em apossar-se do comando, em reaver, cauteloso, uma situação de que só transitoriamente abdicara.

O prosaísmo suspeitoso que ressuma do adagiário e o comportamento vulgar do marido traiem assim, como observámos, intenção defensiva perante o ascendente inicial da donzela-dona. Este é susceptível de reforço para o que indirectamente concorrem a volubilidade do homem e um espírito de aventura que em vários aspectos, até no económico, o afecta enquanto viril.

Uma filosofia prudente, apoiada no consenso moral, ajuda-o a restringir o poder feminino além do círculo estreito do lar. Não falta quem pendure, logo à entrada da porta, um azulejo de mau gosto onde se lê: «Cá em casa manda ela, mas nela mando eu». Jactância, ao fim e ao cabo subvertida pela emoliente erosão das mulheres, mais persistentes no seu fito, mais concretas.

O homem vai «em contrapartida procurar no café ou em reuniões de homens a expressão da sua personalidade viril» diz um autor contemporâneo [14], no que afinal confirma a estranheza de muitos estrangeiros pela superabundância de homens nos lugares públicos.

Paul Descamps, em livro de 1935, apontou entre nós a radicação de costumes que insere em matriarcais, tais como o papel primacial da mulher na educação dos filhos e a frequente designação destes pelos nomes das mães (e até dos maridos pelos nomes das mulheres), muito usada nalgumas províncias. Não somos apesar de tudo, o país da Lei Sálica e do monsieur-dame.




A mulher espera, sabe esperar, eminentemente conservadora da etnia nacional, e a verdade é que pela confiança, nem sempre só com os anos [15] ou a viuvez, consegue uma situação de chefia, apoiada na maternidade, cujo prestígio é enorme em povo comovediço, radicalmente cristão. Ela prolonga a família, elemento estável que em regra sobrevive ao consorte, e refaz os patrimónios tantas vezes comprometidos pelo marido estroina.

(In Francisco da Cunha Leão, Ensaio de Psicologia Portuguesa, Guimarães Editores, Lisboa, 1971, pp. 105-117).



[1] Ver «Linhas míticas da História nacional», no volume «O que é o Ideal Português» – Edições Tempo, 1961.

[2] «Alma minha gentil...» – Portugália Editora.

[3] Alguns psicanalistas (Freud, Helene Deutsch) estabeleceram conexão entre masoquismo e feminilidade, o que foi confirmado em motivações mais culturais que sexuais por Karen Horney, revisionista da Psicanálise (Ver: «El nuevo Psicanálisis», da autoria de Karen Horney, tradução do inglês – Fondo de Cultura Economica – México – Buenos Aires). Tem sido observado no temperamento português algo de feminino, o que pode estar em secreta relação com o amor torturado que tanto o caracteriza.

[4] Denis de Rougement no livro «L’amour et l’Occident (Livraria Plon – Paris) observa: «Ce qui exalte le lyrisme occidental ce n’est pas le plaisir des sens, ni la paix féconde du couple. C’est moins l’amour comblé que la passion d’amour. Et passion signifie souffrance».

Isto é dito a propósito da sua profunda análise do mito de Tristão, em que há o acordo do Amor e da Morte. No entanto se é característica ocidental ela deve singular vivência entre nós, onde o velho mito céltico se repetiu com nova formosura na história de Dom Pedro e Dona Inez. Ressonância étnica profunda?

[5] Ver a notável edição crítica das «Cantigas de escárneo e mal dizer» de Rodrigues Lapa.

[6] «De la Saudade y sus formas».

[7] «Cartilha do Marialva».

[8] Francisco Xavier de Oliveira, apesar de homem do Século das Luzes, tem opiniões como esta: «Verdadeiramente a mulher é ligeyríssima por natureza, e emprega-se gostosamente nas cousas de pouca importância pela debilidade do seu juíso». «Cartas familiares, históricas e críticas».

[9] «Maria da Fonte» – Lello & Irmão – Porto.

[10] «No Minho».

[11] Urbano Tavares Rodrigues, «O mito de D. João e o donjuanismo em Portugal» – Livraria Ática.

[12] «Divertissement philologique».

[13] Ver «Portugal e os portugueses em Tirso de Molina» por Manuel de Sousa Pinto – 1914.

[14] Ruben A, «Autobiografia», vol. I, p. 34.

[15] Liberdade e iniciativa que «apenas ganham quando caducas», segundo o mesmo escritor, acima citado.





sexta-feira, 2 de junho de 2023

A supervivência do amor português

Conferência lida por Francisco da Cunha Leão em 7 de Julho de 1961


«Toda a concepção dualista, maniqueísta, vê na vida dos corpos a infelicidade; e na morte o bem último, o resgate da falta de se ter nascido, a reintegração no Uno e na luminosa indistinção. Aqui, por uma ascensão gradual, pela morte progressiva e voluntária que a ascese representa (aspecto negativo da iluminação), podemos aceder à Luz. Mas a finalidade do espírito, o seu objectivo, é também o fim da vida limitada, obscurecida pela multiplicidade imediata. Eros, nosso Desejo supremo, só exalta os nossos desejos para os sacrificar. A realização do Amor nega todo o amor terrestre. E a sua Felicidade nega toda a felicidade terrena. Considerado sob o ponto de vista da vida, um tal Amor só poderia ser uma infelicidade total.

Tal é o fundamento do paganismo oriental-ocidental sobre o qual o nosso mito [de Tristão e Isolda] se destaca.

Mas, justamente, porque é que ele se “destaca”? Que ameaça, que interdição, obrigou a doutrina a velar-se, a confessar-se apenas por símbolos enganadores – a seduzir-nos apenas através do encanto e da secreta encantação dum mito?

(...) Prólogo do Evangelho de São João:

“NO PRINCÍPIO ERA O VERBO E O VERBO ESTAVA JUNTO DE DEUS E O VERBO ERA DEUS (...) NELE ESTAVA A VIDA E A VIDA ERA A LUZ DOS HOMENS. A LUZ BRILHOU NAS TREVAS E AS TREVAS NÃO A RECEBERAM” (1: 1-5).

Tratar-se-á ainda do dualismo eterno, sem remissão, da irrevogável hostilidade da Noite terrestre e do Dia transcendente? Não, porque eis o seguimento da passagem:

"E O VERBO SE FEZ CARNE E HABITOU ENTRE NÓS; E VIMOS A SUA GLÓRIA, UMA GLÓRIA COMO A DO FILHO ÚNICO VINDO DO PAI, CHEIA DE GRAÇA E DE VERDADE". (1: 14-15).

A Incarnação da Palavra no mundo – da Luz nas Trevas – eis o acontecimento inaudito que nos liberta da infelicidade de viver. Tal é o centro de todo o cristianismo e o fulcro do amor cristão que as Escrituras chamam agapè.

Acontecimento sem precedente e “naturalmente” inacreditável. Porque o facto da Incarnação é a negação radical de toda a espécie de religião. Ele é o supremo escândalo, não só para a nossa razão, que não admite essa indispensável confusão do infinito e do finito, mas sobretudo para o espírito religioso natural.

Todas as religiões conhecidas tendem a sublimar e levam a condenar a sua vida “finita”. O deus Eros exalta e sublima os nossos desejos, reunindo-os num Desejo único que conduz à sua negação. O objectivo final dessa dialéctica é a não-vida, a morte do corpo. Sendo a Noite e o Dia incompatíveis, o homem criado que pertence à Noite só pode encontrar a salvação deixando de existir, “perdendo-se” no seio da divindade. Mas o cristianismo, pelo seu dogma da incarnação de Cristo em Jesus, altera completamente essa dialéctica.

Em vez de a morte ser o termo último, ela passa a ser a condição primeira. Aquilo a que o Evangelho chama “morrer para si próprio” é o começo duma vida nova, a partir de agora. Não é a fuga do espírito para fora do mundo mas o seu regresso em força ao seio do mundo! Uma recriação imediata. Uma reafirmação da vida, não certamente da vida antiga ou da vida ideal, mas da vida presente que o Espírito recupera.

Deus – o Deus verdadeiro – fez-se homem e verdadeiro homem. Na pessoa de Jesus Cristo, as trevas “receberam” verdadeiramente a luz. E todo o homem nascido de mulher que creia nisso, renasce do espírito a partir de agora: morto para si mesmo e morto para o mundo na medida em que o eu e o mundo são pecadores, mas restituído a si mesmo e ao mundo na medida em que o Espírito quer salvá-los.

A partir de agora, o amor deixa de ser fuga e perpétua recusa do acto. Ele começa além da morte mas volta-se para a vida. E essa conversão faz aparecer o próximo.

Eros

Para Eros, a criatura não era mais que um pretexto ilusório, uma ocasião de exaltação; e era preciso desembaraçar-se dela em seguida, porque o objectivo era arder de paixão, cada vez mais, até morrer! O ser particular não era mais que um defeito e obscurecimento do Ser único. Como amá-lo verdadeiramente, tal qual era? Estando a salvação no além, o homem religioso desviava-se das criaturas ignoradas pelo seu deus. Mas o Deus dos cristãos – e só ele, entre todos os deuses que se conhecem – não se desviou, pelo contrário: “ELE AMOU-NOS PRIMEIRO” na nossa forma e nas nossas limitações. Foi a ponto de revesti-las. Revestindo a condição do homem pecador e separado, mas sem pecar e sem se dividir, o Amor de Deus abriu-nos uma via radicalmente nova: a da santificação. O contrário da sublimação que não era mais que fuga ilusória para lá do concreto da vida.

Amar torna-se então uma acção positiva, uma acção de transformação. Eros procurava a transfiguração no infinito. O amor cristão é obediência no presente. Porque amar a Deus é obedecer a Deus que nos ordena que nos amemos uns ao outros.

Que significa: Amai os vossos inimigos? É o abandono do egoísmo, do eu de desejo e angústia; é uma morte do homem isolado mas é também o nascimento do próximo. Àqueles que lhe perguntam ironicamente: “Quem é o meu próximo?” Jesus responde: “é o homem que tem necessidade de vós”.

Todas as relações humanas, a partir desse instante, mudam de sentido.

O novo símbolo do Amor já não é a paixão infinita da alma em demanda da luz, mas é a união de Cristo e da Igreja.

O próprio amor humano se encontra assim transformado. Enquanto as místicas pagãs o sublimavam até fazer dele um deus ao mesmo tempo que o votavam à morte, o cristianismo recoloca-o na sua ordem e aí o santifica pelo casamento.

Tal amor, sendo concebido à imagem do amor de Cristo pela sua Igreja (Ef. 5: 25), pode ser verdadeiramente recíproco. Porque ele ama o outro tal como é – em vez de amar a ideia do amor ou a sua mortal e deliciosa queimadura. (“Mais vale casar do que abrasar”, escreve São Paulo aos Coríntios). Além disso, é um amor feliz – apesar dos entraves do pecado – pois que conhece a partir desta vida, na obediência, a plenitude da sua ordem.

O dualismo do Dia e da Noite, levado ao seu extremo lógico conduzia, do ponto de vista da vida, à infelicidade absoluta, que é a morte. O cristianismo só é uma infelicidade para o homem separado de Deus, mas uma infelicidade criadora e bem-aventurada a partir desta vida para o crente que se “apodera da salvação”.»

Denis de Rougement («O Amor e o Ocidente»).


«A raiz da paixão mortífera e insanável, o estímulo nascente da infelicidade conjugal, a impossibilidade da realização do amor terreno, são traços que determinam, no essencial, o mito europeu de Tristão e Isolda – o mais oposto de todos ao amor e saudade trágicos que ligam Pedro a Inês.

(...) O mito de Pedro e Inês é, imediatamente, da sobrevivência do amor, mas, na substância, da saudade, porque nela reside a causa superadora da morte e a convivência possível do género trágico com o sentimento redentor cristão.»

Afonso Botelho («Saudade, Regresso à Origem»).




 

«Nenhuma história nacional ou de povo, equivale, em movimento, à portuguesa.

Ocorre falar em paralelo com a história do povo hebraico.

Muito diverso é o caso e convém discernir.

Os judeus expandiram-se, forçados pela destruição da sua pátria, votada ao extermínio.

Perseguidos, espalharam-se pelo mundo, tornaram-se maleáveis, suspicazes, preferindo a riqueza móvel à imobiliária, que lhes tolheria a fácil evasão – facto que nunca deixaram de prever. Conseguiram formar uma nação sem território, mantida pela raça – mais pela raça que pela religião. Esse racismo, que é o mais ferrenho de todos os povos, permitiu-lhes reaver, ao cabo de dezanove séculos, o solo pátrio – quase já sem religião nem língua comum.

O caso português é de contínuo trânsito geográfico através dos mares, de ocupação de ilhas e finisterras, de perfurações continentais, à maneira de cruzeiros marítimos, – em superação vigorosa dos obstáculos da natureza, em extravasa dos limites corpóreos da pátria.

O aventurismo antropológico dos Cabos do Mundo – nesta única finisterra que logrou organizar-se em Estado com pertinaz sequência – ganhou carácter ecuménico.

A adesão às novas terras foi natural, voluptuosa, mesmo de amor. Se éramos portadores do incomparável ideal ecuménico do Cristianismo, essa mensagem universal e humana sem par dispôs no caso português, de antropológica matéria-prima que muito concretamente e através de uma cobiça do mundo irrefreável, do amor ao exótico, da capacidade de afirmação heróica, de simpatia coadjuvada intensamente pelos elementos sensuais e sexuais, conseguiu integrar, muito concretamente, como dissemos, outros povos, outras culturas, e transmitir uma psique, uma atitude humana e étnica sobrepostas a corografias e raças, em triunfo espantoso do verdadeiramente humano, bastante forte e seguro de si, para, na generalidade da acção, se desprender das próprias matrizes.

Para se desprender, excepto pela Saudade.

Caso que na história do mundo em grande escala é ímpar, e bem explica a reacção única dos lusíadas de Angola. Esses colonos e agricultores do Congo, os poucos funcionários administrativos brutalmente surpreendidos por assaltos maciços de bandoleiros negros, vindos ou animados de fora, intencionalmente exercitados, no ódio racial e na prática imediata das mais execráveis barbaridades, em que a mutilação dos corpos antecede o assassínio, a sua reacção instintiva não foi fugir mas defenderem-se e... ficar.

Nas dispersas fazendas, nas pequenas póvoas do mato, ainda que desamparados militarmente, e antes de qualquer decisão nacional (ainda que pronta), a sua tenção nunca foi ceder.

Indiferentes ao número de fanatizados atacantes, surdos a uma apregoada corrente da história de desistência ocidental, enjeitando os numerosos exemplos de abdicação, eles, verdadeiros portugueses universais por instinto e sentimento, responderam à intimidação do choque emocional terrorista, com a réplica violenta de uma indómita energia. Refluindo para se agrupar, essa gente não permitiu que a maquinação internacional em curso conseguisse desbaratar a estrutura da ocupação portuguesa, que aguentou, sem ceder qualquer vila ou cidade propícia à sede de um governo separatista dentro do território, até que os reforços militares os foram socorrer.

Estranha epopeia em Angola se tem escrito com corpos e almas. Nela colaboram, como há três séculos no Brasil, os diversos elementos étnicos numa frente comum. Mais uma vez os portugueses fazem história, quando a ela lhes não convém ceder.



Nova fase de reflexão e aventura conseguimos iniciar.

Dilatar foi o verbo empregado por Camões, para significar a expansão portuguesa, que é de confluência entre a Europa e os outros continentes.

Este verbo serve-nos. Dilatar pelo calor – calor de corpo e alma, é de amor prodígio conquistando espaços e homens.

A expressão mais alta, grandiosa e sem par desta verdadeira comunhão com os mundos novos, está no Brasil que sociologicamente reproduz o milagre da multiplicação dos pães.

Reconhece-se a excelência da obra do Brasil, mas, entra-se na injustiça quando se afirma que, noutros pontos do Globo, incluindo as actuais províncias ultramarinas, pouco fizemos ou pouco nos esforçámos.

O juízo será mais justo, se reflectirmos alguns minutos que seja, no que foi a criação ciclópica do Brasil e na absorção que por mais de três séculos, ela representou para metrópole tão pouco numerosa e relativamente pobre. A construção de um estado unitário tamanho – quase do tamanho da Europa – toma aspectos de trabalho de Hércules, exaustivo, fabuloso. Por isso, desde que se atenda ao precedente americano, o que fizemos e queremos continuar fazendo em África e Ásia, significa pelo menos o alicerce de novas, grandiosas construções de uma política plurirracial, hoje em perigo no Mundo, mas essencial para a Civilização.

Pelo trânsito histórico, o luso-galaico, o português, tornou-se lusíada. No conteúdo lusíada, o primitivo povo não passa já de parcela, a alimentar aglomerados maiores em que outras raças participam numa simbiose de sensibilidade e ideal que as aproxima, destacando-as dos seus próprios meios naturais. Melhor termo não há que o “lusíada” camoniano, para designar um caso etno-cultural de encontro de continentes e povos – único na História!

É evidente que o carácter português decisivamente influiu no ideal – o carácter originário e o adquirido.

Povo propenso à aventura, a aventura o exacerbou, sem que o forte realismo dos seus fecundos viveiros rurais o deixasse perder-se, desordenadamente, senão aparente, nas inúmeras atmosferas, por mais díspares, a que se expôs.

A riqueza, a plasticidade dos verbos, ficou-lhe marcando no idioma a vivência da aventura. E a prolixidade dos substantivos concretos, a par de alguns abstractos, individualizados como se concretos fossem, acusa a filiação nas terronhas nunca enjeitadas de um realismo possante.

Já com preocupação sistemática esquematizámos elementos para a caracterologia do povo português, anotando a existência de algumas constantes entre os extremos do trânsito histórico, e as vanguardas ultramarinas de que Lisboa tem centralizado o fluxo e o refluxo.

Neste último caso estão o manuelino que mete na pedra o turbilhão do mar e do exotismo, e o fado, essa ressaca das vidas destroçadas pelo mundo, posta em canção.

São escassos os trabalhos deste género em língua portuguesa. Alguém disse que a absorção das tarefas mundiais, nos desviou do estudo de nós próprios, não nos deu ensejos de introspecção – razão que é de aceitar. Os espanhóis, pelo contrário, preocupam-se muito em conhecer-se, especialmente a partir da geração de 98, após o desastre de Cuba, que veio despertar a adormecida consciência nacional. De então para cá, deflagrou abundante egoísmo à volta da temática do carácter espanhol, da Espanha como problema e posição mundial.

Servimo-nos do castelhano para anotar, por contraste, em relação ao português, diferenças importantes no fundo comum ibérico, considerados estes dois povos contrapolares na Península.

Vimos no castelhano, em seu comportamento mais alto, um agente do ideal.

Homem agente do ideal – de um ideal preciso, de cavaleiro cristão, bem definido por Garcia Morente, Ganivet, Valdecaras e outros.

Homem agente do ideal. Vida como afirmação e luta.

Em confronto, consideramos o Português “homem-estado de alma, vida afirmando-se pelo sentimento e assimilação humana”, com carácter muito menos acentuado na exterioridade, mas, renitente e inconfundível na sua profundeza e dinamismos teleológicos. Assim, à teimosia aberta corresponde entre nós uma teimosia surda, cuja eficácia a excede, já que mais interiorizada e reflectida.

O espanhol, mormente o castelhano, espírito categórico e ardente, vê com precisão o ideal e segue militando sem tergiversações.



O Português, mais dubitativo e sonhador, sente profundamente o ideal, mas, sem o esplendor de certezas solares com que ele se apresenta ao castelhano. A diferença dos caracteres reflete-se na concepção dos ideais.

Os elementos indefinidos, futurantes do ideal português, são porventura os mais dinâmicos. A fé cristã, o amor da Pátria, constituem ingredientes muito importantes desse ideal, bem radicados, fundamentais, cuja expressão dinâmica Luís de Camões sintetizou em dilatar a Fé e o Império.

Algo torna contudo inquieta, dorida, a consciência religiosa, algo transcende mátria e pátria para contornos dilatados que chegam a esperancismo ucrónico, alargando a missão universal trans-patriótica.

A crença num reino do Espírito Santo e num V Império, unindo longinquamente religião e pátria, projecta para transcensões intemporais a história de um povo que age existencialmente.

Esse agir existencialmente renova o ideal, a fim de que responda às inseguranças próprias de cada época.

Na prefiguração lusíada do futuro, persistem como expressões limites, solucionadoras últimas da angústia, do mal e da guerra, aquele Reino do Espirito Santo e aquele V Império, o que tudo é fruto de estrutural saudade.

O apego dionisíaco à natureza e à vida, com pungente nostalgia de um paraíso que se perdeu, ou de um valor que se não cumpre, quando o mal é flagrante e a cisão irremediável, alimentam indomável esperancismo só resolúvel de vez naquelas situações limites da história universal, em que tudo será resgatado.

Tais posições pressentidas apenas intuitivamente pelo povo, transluzem nas linhas míticas da existência colectiva e chegaram a ser ideadas por lusíadas de escol, entendendo que o escol não reside necessariamente em qualquer areópago provincianamente soberbo dos seus fornecimentos europeus.

O escol, num povo de história movimentada, forja-se nas vanguardas da acção, digerindo mundos e desgraças, está no português universal ou virado ao universo.

Portugueses universais, isto é lusíadas, foram por exemplo, o Infante D. Henrique, Luís de Camões, Fernão de Magalhães, Fernão Mendes Pinto, o Padre António Vieira, Fernando Pessoa

Francisco da Cunha Leão (in «O que é o Ideal Português»).





A supervivência do amor português


Supervivência tanto significa intensidade, vivência superlativa, como superação da morte, vida perene.

Um mito de fatalidade amorosa que é céltico, foi renovado, em termos trans-sociais e transcendentes, por dois amantes, um príncipe de Portugal e uma fidalga da Galiza. Sequência trágica, a dos amores entre altos personagens de uma e outra banda do Minho (Rainha Dona Tareja-Fernão Pérez de Trava; Príncipe Dom Pedro-Dona Inês de Castro; Rainha Dona Leonor de Telles-Conde de Andeiro).

Sobremaneira fatal, irregular e trágico foi este. O príncipe, uma vez rei, desenterrou o corpo da amada, reabilitou loucamente, pomposamente, o seu amor, entronizando rainha de Portugal, com as devidas honras aquela que seu coração elegera e lhe ficara impressa para sempre no pensamento e na carne.

E nos túmulos de pedra lavrada, ao Juízo Final se entrega o mais fervoroso, o mais louco arrebatamento de todos os tempos.

A história e lenda de Inês de Castro exprime a importância absorvente que tem o amor na existência do nosso povo. Segundo D. Francisco Manuel de Melo, era notória a índole amorosa do português, e Jorge Ferreira de Vasconcelos faz dizer a uma personagem da Eufrosina que o amor é português. A poesia de amor na língua pátria é copiosa e inconfundível. Também a prosa está enxameada com documentos dessa inebriante absorção.

As expressões mais altas, mais típicas do amor português estão em D. Diniz, Camões, Bernardim, Cristovão Falcão, Tomaz Gonzaga, Florbela, Pascoaes (elegia do amor), etc...

Tem valor para o caso a fala do Cardeal na Ceia de Júlio Dantas.

As cartas de Soror Mariana, a despeito das ressalvas que se lhes faça quanto à autoria, constituem dos testemunhos mais impressionantes do amor português.

O nosso romantismo é de raiz: por isso precede séculos o chamado movimento romântico, excedendo-o até aos nossos dias, tanto em Portugal como no Brasil.

O lema camoniano da linda Inês a cada passo renasce em nossa literatura, feito motivo perene.

Das circunstâncias da existência colectiva e das formações míticas enunciadas, um ideal antropológico se desprende. Interessa adiantar que o povo português é sensível à afirmação do valor pessoal; propende a admiti-lo e a admirá-lo. Pouco lhe interessa o vago ou genérico valor do homem, tal como a filosofia abstracta ou o filantropismo. Comove-o, sim, o caso concreto de cada homem, a marca, a dimensão, o drama da pessoa. Prefere o soldado conhecido, ao desconhecido, aquele que tem mãe e noiva ou mulher e filhos, uma aldeia, uma história. Os povos elegem heróis à sua feição, e um ou outro por antinomia, como Joana d’Arc em França e D. João II em Portugal, pelo contraste providencial que exerceram.

Toda a história de França obedece ao cálculo; os seus políticos, os seus militares são acima de tudo raciocinadores lúcidos, verdadeiros cartesianos a agir. Os sentimentos aparecem-nos doseados, sumidos perante a razão do Estado. Homens como Luís XI, Filipe o Belo, Mazarino, Richelieu, Colbert, Luís XV, Foch e De Gaulle, denotam uma linha de razão esclarecida em que o equilíbrio, o sentido das proporções, predomina.

Joana d’Arc, Carlos IX, Napoleão, constituem excepção, pela aura mítica ou estilo aventuroso que rodeou tais figuras, ainda que o genial corso, a par da intrepidez de actos e palavras, equacionasse com extremo rigor os problemas da guerra e do governo.

Na história de Portugal tais figuras aparecem intermitentemente como excepções necessárias, quais agentes refreadores, correctivos das mais pronunciadas oscilações do sentimentalismo.

O homem preferido pelo português é o herói iluminado, cuja acção, tantas vezes intrépida, tem auréola de missão, um halo de poesia ou de transcendente destino.

Ver aqui, aqui e aqui

Oliveira Martins, ao observar que o fundo céltico se manifesta em alto grau nos tipos humanos excepcionais da história pátria, como Nun’Alvares e D. João de Castro (este na sua ingénua ternura pela natureza), teve a intuição perfeita do herói português.

Logo no Amadis, esse ideal antropológico se evidencia, todo pureza e sonho.

O herói iluminado não é simples impulsivo nem mero militante. Cabe aqui distingui-lo do tantas vezes temerário espanhol, propenso ao militantismo extremo, seguro do seu ideal enfático de personalidade.

O introspeccionismo saudoso e as inferioridades numéricas, de que nunca esta nação se libertou, concorriam para preencher reflexivamente os entreactos da aventura, tornando-a eficaz. Há sinceridade na máscara do herói português. Basta olhar a face dos figurantes que povoam os painéis de Nuno Gonçalves. É resignado o rosto dos nossos Cristos, intimamente sofredores, em contraste com os espanhóis, tétricos, espectaculares.

O heroísmo foi inscrito por João de Castro Osório como característica dominante dos portugueses.

Heróico ou não, o comum dos portugueses só rende quanto é capaz, desde que situado em missão. O simples economismo só de níveis de vida e maquinetas, embora o interesse bastante, até pelo aspecto reclamativo social e político, não o prende totalmente. Quer missão, campanha que pode ter carácter económico e social.

Uma vez que a não sinta, degrada-se. A crise da missão histórica reflectiu-se em crise do homem. Pulularam então os subprodutos do heroísmo: – o marialva, o fadista, conforme os escalões sociais, e certos bandoleiros; entre estes últimos, José do Telhado é do tipo galaico, João Brandão, do lusitano. Já o libertinismo puro não é connosco, amorosos por natureza, apaixonadiços, inflamáveis. O cálculo frio, em amor, é-nos difícil de sustentar.

O nosso herói sem objecto não volve D. Quixote e raro suporta as couraças estóicas do vizinho Séneca, do vizinho Quevedo. Degrada-se. A religiosidade saudosa e a aguda sensibilidade do nosso povo projectam-se em obras pias, como hospitais, misericórdias e casas pias, e no carácter dos Santos; estes, nacionais ou peninsulares mergulhados na tarefa lusíada, são ecuménicos, missionários, comandados pelo coração e pela simpatia humana: Santo António, o Santo Condestável, S. João de Brito, S. Francisco Xavier, Anchieta, Beato Inácio de Azevedo, S. João de Deus e, recentemente, os Padres Cruz e Américo.

As casas do gaiato e o património dos pobres inserem-se na linha das humaníssimas fundações das rainhas Dona Leonor e Dona Maria I, e de S. João de Deus.

Naturalmente religiosos, dispensamos hermenêutica à volta da Fé, que se tem ou não tem, sentimos a religião por obras que não fórmulas, reagimos ao poderio temporal do clero.

Queremos aos escritores ou artistas místicos, apaixonados até às lágrimas, ou de realismo forte, castigador, e assim aos ironistas sentimentais, aos justiceiros truculentos espontaneamente.

Por umas e outras razões, amamos Gil Vicente, Camões, Bernardim, o Bandarra, Vieira, Bocage, J. A. de Macedo, Camilo, certo Eça e certo Oliveira Martins, António Nobre, José Duro, Florbela, Fernando Pessoa e Pascoaes.

Isso também explica o êxito entre nós de autores estrangeiros, quais Nietzsche, Zola, Victor Hugo, Tolstoi; de livros como o Werther, bem como o pouco êxito do puro esteticismo e do psicologismo, de que são exemplos Anatole e Proust.

Se em literatura nos compraz o desgarramento sentimental e o aberrante, no homem de acção apreciamos a capacidade reflexiva, a par do acto ousado e oportuno. Gostamos do escândalo, saboreamo-lo por vezes morbidamente ou como espectáculo; falso, enganoso será contudo ajuizar do êxito por isso. Diverte-nos o charlatanismo e toda a espécie de crítica mordaz bem temperada de emoção, o achincalhe, a piada oportuna, iconoclasta, sem que tal queira dizer que glorifiquemos os autores para outra coisa que não seja isso. Acabaremos por seguir o homem das meias palavras ou o espadachim iluminado e sereno. Agudo sentido do ridículo e das proporções inutiliza aos olhos do povo português o condutor espectacular e a imposição do exagero, tanto quanto a razão fria por outro lado lhe não basta e o argumento só é verdadeiramente bom se fala à sensibilidade.







Gente de finisterra é já de si gente anfíbia que foge ao Continente. Representa antropologia diferenciada, sem determinismo de raça, pois se trata de arcaicas sobreposições de povos sucessivamente integrados e amolgados num quadro físico e moral peculiar, a que se juntaram no decurso histórico outros contributos raciais em doses consideráveis.

Os povos em tais circunstâncias, sendo expansionistas – de aventura marítima e emigração – perante o ataque não tinham para onde fugir. Ficavam. Postos na antinomia do heroísmo estreme ou do estreme cálculo, não lhes era consentido meio termo.

Quando as Aljubarrotas não eram possíveis, mudava-se a capital e recebiam-se os invasores com simulada, provisória cortesia.

Entre a aventura e a reflexão andámos sempre alternados, ora em conjunção. A síntese marca as épocas áureas da história pátria – da fundação, dos descobrimentos, da restauração – aquelas em que o nosso ideal mais se enformou.

O que se está passando em Angola é prova de que ainda se mantém a capacidade que se mostrou em momentos culminantes. O agir intrépido, intimamente aliado a uma vasta, elástica reflexão que vai do prever intuitivo ao cálculo, conjugam-se neste caso como nas melhores épocas.

O povo sentiu instintivamente com todas as forças a reivindicação do que é «nosso». Empregamos a palavra povo sem intenção demagógica, mas, de substrato humano da Pátria, tão vivo por sinal nos humildes. A juventude, em contacto com toda aquela grandeza dos espaços que os seus maiores obtiveram e com as populações que haviam sangrado e suado para desbastar o mato e erigir cidades, sentiu a glória de ser portuguesa, aqueceu-se em fraternidade pátria, e dá-se à tarefa guerreira sem destoar da clássica bravura dos «avós de seus avós».

Com os soldados estão o povo português, todo o peso da história pátria, os verdadeiros lusíadas, o escol das Forças Armadas e alguns intelectuais, alguns apenas, infelizmente.

O curso da história marcha no entanto inexorável, – a nossa e a dos que decaem –, conduzido por aqueles que escrevem indelevelmente com o sangue e no sentido imposto pela vontade.

O convívio e a mistura com os outros povos, alargou-se cronologicamente para círculos cada vez mais vastos, e assim plasticidade e universalidade se inscreveram fundamente no génio nacional.

E hoje, mais do que outros povos, e perante um autêntico recuo histórico rotulado de progressismo, que é retrocesso aos exclusivismos étnicos, às raças acantonadas em continentes, nós, os lusíadas, representamos o espírito das periferias marítimas ocidentais, do convívio e interpenetração de raças e culturas.

Após a Torre de Babel, os homens, desentendidos pelos idiomas incomunicáveis, arrumaram-se nos continentes, nas entranhas dos territórios, apuraram-se em civilizações fechadas.

De Portugal saiu o esforço mais decisivo para derrubar essas muralhas europeias, de uma Europa de raça branca, para se disseminar e morrer pelo Mundo, para reincarnar em todas as outras raças encontradas pela integração do sangue e das culturas.

O ideal português do homem é o de um homem que, sendo embora português ou brasileiro, excede o conteúdo destas particularidades, pelo que universalmente significa o cidadão de uma sociedade pluricontinental e plurirracial.

(In O que é o Ideal Português, Lisboa: Edições Tempo, 1962, pp. 137-144).