domingo, 21 de maio de 2017

Contra-ataque

Entrevista a Caçorino Dias




«Falo só de Portugal e para portugueses, pelo que a primeira realidade política a considerar neste debate é a Nação e o que a Nação representa para o regime. Questão talvez ociosa em tempos de unidade espiritual; hoje, questão primacial sobre que do outro lado se não podem tomar com unanimidade as posições que temos afirmado sempre.

Possivelmente para alguns associação transitória ou permanente de interesses materiais, a Nação é para nós sobretudo uma entidade moral, que se formou através de séculos pelo trabalho e solidariedade de sucessivas gerações, ligadas por afinidades de sangue e de espírito, e a que nada repugna crer esteja atribuída no plano providencial uma missão específica no conjunto humano. Só esse peso dos sacrifícios sem conta, da cooperação de esforços, da identidade de origem, só esse património colectivo, só essa comunhão espiritual podem moralmente alicerçar o dever de servi-la e dar a vida por ela. Tudo pela Nação, nada contra a Nação só é uma divisa política na medida em que não for aceite por todos. E de facto não é.

O comunismo soviético, multiforme na sua identidade doutrinal, perfilha o nacionalismo na Ásia e o internacionalismo na Europa. Os vastos movimentos que no Extremo Oriente irrompem em altas labaredas podem atribuir-se a causas diversas, e certamente as têm na sua eclosão, mas encontram na Rússia, por sistema, simpatia, auxílio, protecção. Se ali triunfa, não tardará muito que deite o fogo à África.

No entanto na Europa, a concepção orgânica russa em relação à sociedade internacional não vai por ora além da existência de uma suserania tão absorvente que as autonomias nacionais, em teórica cooperação, desfalecem, e com elas se vai sumindo no nivelamento geral o que as nações representavam de cultura, vida criadora e espírito próprio. As destruições morais do comunismo, mesmo no seio dos países que não domina, com a ideia capciosa de debelar as guerras e de firmar a paz, ideia aceite por espíritos simplistas ou inteligências comprometidas, são já tão grandes que podem fazer vacilar o Ocidente. O comunismo faz a defesa, mais que a defesa, a apologia do anti-nacionalismo, mas incoerentemente subordina os interesses da comunidade nacional aos de uma suserania estrangeira que lhes é hostil.

Este doce país que é Portugal, pequeno na Europa, grande e dilatado nos outros continentes, como árvore que, alimentando-se da seiva lusitana, espalhasse longos ramos a sóis diferentes e à sua sombra abrigasse as populações mais diversas, todas igualmente portuguesas - este pequeno país não pode, no 9.º século da sua história, duvidar da sua realidade de Nação. Esta realidade em que englobamos a independência, a unidade orgânica e a missão civilizadora é um pressuposto ou ponto de partida e foge a toda a discussão. E daqui este corolário: quem não é patriota, não pode ser considerado português. Gostaria de saber se da Oposição o problema pode ser definido em iguais termos».

Oliveira Salazar («O Meu Depoimento»).


«Publiquei dois livros sobre os movimentos associativos na África negra. Um, em 1956, sobre o problema geral em toda a África. Outro, em 1958, especificamente sobre Angola. Eu previa que iria acontecer algo do género em Angola, a partir da independência do Congo Belga. Isto porque as fronteiras políticas em África, definidas pelos colonizadores, dividiam grupos étnicos. E, no Norte de Angola, os bacongos viviam metade no antigo Congo Belga e metade no nosso. Eu previa que, havendo agitação no Congo Belga, como houve - logo nas comemorações da independência, quando o Lumumba tirou a espada ao rei -, era fatal que se estenderia para o nosso lado. Aliás Salazar dizia: "A África arde e as chamas hão-de transmitir-se a nós". Ele previu».

Silva Cunha («África a arder», in José Freire Antunes, «A Guerra de África - 1961-1974», Vol. I).




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«As Pátrias só morrem quando querem morrer ou quando o seu escol, por erro, por negligência ou por cobardia, não está à altura das suas responsabilidades».

Henrique Veiga de Macedo («A GRANDE DIVISÃO... O INTRANSPONÍVEL ABISMO» - Em Vila da Feira, no acto de posse das comissões políticas da União Nacional, realizado nos Paços do Conselho, em 17 de Outubro de 1969).


«Saí de Luanda duas semanas depois, em coluna militar. Fomos para o Norte, passei por zonas onde não sabia o que é que ia encontrar, a vegetação era fechada, havia campos de café cultivados. Com todas aquelas matanças, matava-se preto e branco, homem, mulher e criança, desde que o preto não aderisse a matar. Morreram até mais pretos do que brancos. Perante aquela matança, o preto, que não é parvo, fugiu. Uns, porque não colaboraram, fugiram para não ser mortos; e os outros, para não serem julgados cúmplices daquela matança. Passados seis meses, foi quase restabelecida a normalidade populacional, e houve um regresso maciço: do mato ou do estrangeiro, vieram milhares. A tropa dava uma segurança que a fraqueza civil não dava. Como os civis eram mais fracos do que nós, tinham que ser mais ásperos. Assim, a reacção branca, mestiça ou até dos pretos ligados aos brancos, foi muito violenta, para sobreviverem. Nós éramos profissionais militares, doutrinados para fazer uma guerra. Até chegarmos ao nosso objectivo - Vila Salazar - não tivemos contactos com o inimigo. A minha companhia, quando chegou à base que lhe foi destinada, ficou com uma área do tamanho de Portugal. Começámos por ter áreas completamente inconcebíveis. Nessa altura, a organização do inimigo era massiva. Eram nuvens de gente, ainda mal armada. O armamento deles era na base das catanas e dos canhangulos. Mas, daí a meses, começámos a ser emboscados com armamento automático, na sua maior parte soviético. Seis meses depois, numa emboscada, eles tinham mais poder de fogo do que eu. Só no princípio de 1962 é que nos deram armas automáticas; até aí usávamos armas de repetição. Estivemos durante muito tempo a usar armas de repetição e a sermos confrontados com um inimigo com armas automáticas.

No máximo actuávamos com um pelotão, embrenhávamo-nos no mato, havia alguns guias brancos que acorriam às zonas onde nós estávamos para nos ajudarem, não havia cartas, íamos explorar o desconhecido. Embrenhávamo-nos no mato durante dias, patrulhávamos, procurávamos, dentro da doutrina estabelecida, contactar com a população e cativá-la. A reacção inicial da população era esconder-se ou fugir, até por causa dos massacres, porque eram cúmplices. Por exemplo, houve um homem, que estava prisioneiro, que se ajoelhou à minha frente para eu o perdoar porque ele tinha comido carne de um sargento, porque o obrigaram a comer. Eu ia pelo mato fora e ia parar a uma povoação. Quando lá chegava via as cubatas desertas e procurava ver se estava lá alguém. Se encontrávamos alguém dizíamos para chamar o resto do pessoal, falávamos com eles, dizíamos que, se eles se sentissem em perigo, nós transferíamo-los para outra zona. Procurávamos cativá-los. A colheita de café de 1962 já foi maior do que em 1961, houve muita gente recuperada. Fez-se uma campanha enorme para receber milhares de pessoas que se apresentaram. A doutrina resumia-se, no fundo, a isto: reconquistar a população para que o inimigo armado tivesse dificuldade em obter apoio. Nesta fase tive mortos e feridos. Não por causa das minas, que só apareceram em 1962. Era nas emboscadas. Nós íamos numa coluna pelo meio da mata e de repente rebentava tiroteio à nossa volta. Eles estavam escondidos nas árvores. Quando nós reagíamos, eles fugiam, às vezes tínhamos feridos, mortos. Corpo a corpo, só no princípio, depois não, nós tínhamos mais poder do que eles. No princípio eles foram drogados, doutrinados no sentido de que as balas eram água, e houve cargas de muita gente contra a nossa tropa. Numa emboscada, eles carregavam sobre nós, como naqueles filmes sobre o Vietname, mal armados. Pensavam que as nossas balas eram maza (água, no dialecto deles). Uma vez fiz um prisioneiro numa emboscada, que tinha levado um tiro no braço, e quando o soldado que o capturou mo trouxe, eu disse-lhe: "Estás a ver, ó palerma, és estúpido, olha, é maza não é?" E apontei-lhe para o buraco que ele tinha no braço. E ele disse-me: "É sim, é maza mas é quente!" Mesmo com um tiro no braço, disse-me que aquele buraco tinha sido feito por água quente.

No princípio nós tínhamos a noção que era a FNLA. Depois começámos a perceber que havia uma guerra entre eles. Cheguei a alguns objectivos e vi que alguém tinha lá chegado primeiro do que eu e feito mortos e feridos, queimado cubatas, etc. Depois, através de prisioneiros, vim a saber que tinha sido um grupo diferente. Como combatente no mato, o MPLA apareceu-me como um adversário mais importante do que até aí tinha sido a FNLA. Mais tarde houve zonas de maior influência do MPLA e outras da FNLA. Através dos prisioneiros e dos documentos capturados, começámos a aperceber-nos de que havia dois grupos: a FNLA, com auxílio americano, e o MPLA com auxílio soviético. Os americanos intervieram tanto como os soviéticos. As matanças de Março em Angola devem-se aos americanos. A UPA foi financiada pelos americanos, foi uma corrida que os EUA fizeram, perante os processos em curso de descolonização. Não querendo ficar atrás da União Soviética, aceleraram o processo com o Holden Roberto, servindo-se inclusive das missões protestantes. As missões católicas eram identificadas comigo, mesmo que não fossem portuguesas (também havia italianas), tinham uma conduta idêntica à minha. As protestantes não, as protestantes auxiliavam o inimigo, reabasteciam-no, informavam-no. Nunca entrei em choque com ninguém dessas missões, porque com o tempo e com a própria conduta deles deixou de haver missões protestantes em Angola. Em 1962 cheguei a uma área em que a missão católica, de padres italianos, estava destruída, mas a missão protestante não estava, embora os missionários se tivessem ido embora. Porquê? Porque os protestantes os tinham ajudado. Os católicos não tinham nada a recear de nós, mas os protestantes, pela sua conduta, julgaram logo que tinham algo a recear e por isso foram-se embora. As missões protestantes tinham mais meios do que as católicas. E eram um veículo de rebeldia contra a nossa soberania. Eram muito activos. Os padres católicos eram mais humildes.

Morte em Quitexe


Estrada cortada pela UPA



Nord evacuando civis para Luanda



[...] Em Luanda, quando me fizeram um briefing, disseram-me que no Norte de Angola havia umas ilhas de população branca, mas não tinham a certeza se ainda existiam. A tropa começou a subir e foi ao contacto das populações. No caminho, ouvíamos o rádio e, por exemplo uma mulher que dizia: "Estamos aqui abandonados, cercados, somos oito. Filhos da mãe, ninguém nos vem salvar. Venham depressa para aqui". Os civis juntavam-se na igreja, na casa do administrador, que normalmente era num alto, e viveram meses daquela maneira. Nós íamos para normalizar essas situações. A mancha militar começou a alastrar e as coisas começaram a normalizar-se. Em muitos sítios do Norte de Angola, em cidades pequenas, estiveram meia dúzia de portugueses isolados durante muito tempo, sem contarem com ninguém, até nós chegarmos. Este isolamento criou nos cérebros militares a noção de que eles estavam em todo o lado. Nambuangongo foi eleita, quer pelo nosso conceito, quer pela propaganda deles, porque era uma área no centro de uma zona florestal muito densa. Era uma povoação no centro dos Dembos, que foi uma das zonas mais afectadas e que é relativamente perto de Luanda, e por isso é que a guerra em Angola é muito diferente da guerra em Moçambique; um moçambicano não sabia o que era a guerra e atirava pedras aos militares. Em Angola não, todo o angolano do Norte esteve em perigo e, portanto, estava do lado da tropa e cooperava. Eu passava por um sítio de brancos e, sem me cobrarem nada, davam comida à companhia, 160 homens. Não é por acaso que alguns escritores defenderam que Angola era a mais portuguesa das províncias ultramarinas.

Criou-se a noção que o inimigo tinha um centro seu, Nambuangongo. Por uma questão moral, era preciso ocupar Nambuangongo. Por isso fez-se uma operação especial, onde entraram três colunas. A minha companhia foi encarregada de fazer uma manobra de diversão. Estava na área de Quitexe, Aldeia Viçosa, Vista Alegre. Para Nambuangongo convergiram três colunas. Um batalhão de Cavalaria, que saiu de Luanda, comandado pelo actual general Oliveira Rodrigues. Uns dos comandantes de companhia era o brigadeiro Tomé Falcão, que teve bastantes baixas numa emboscada. A frente dele foi atacada na estrada por uma massa ululante, que carregou sobre as viaturas. Morreram centenas de inimigos, mas também nos mataram doze homens. Havia um outro batalhão, de Infantaria, que estava estacionado na área de Quibaxe, e que era comandado pelo então tenente-coronel Maçanita, um homem muito desembaraçado, que tinha um conceito de disciplina muito próprio. Era muito engraçado, um pouco self-made man, no sentido de disciplina, e era um aventureiro. Depois havia uma força sob o comando de um capitão. Estas duas forças eram pesadas, tinham muitas camionetas, muitos reabastecimentos, não eram bem adequadas para aquele tipo de avanço. Havia também uma unidade, mais bem constituída, que saiu do Ambriz, de oeste para leste, comandada pelo então capitão Rui Abrantes. Um oficial que viveu muito este problema foi o coronel Ruben Domingos, que na altura era alferes. Esta unidade era mais bem organizada, tinha artilharia, cavalaria, autometralhadoras dos Dragões de Luanda, cuja sede de instrução era em Silva Porto, mas tinha um esquadrão em Luanda.

A certa altura, pensou-se que a unidade que chegaria a Nambuangongo seria a do tenente-coronel Oliveira Rodrigues. Mas Oliveira Rodrigues era um homem do Estado-Maior, muito metódico, militarmente culto, preocupava-se com a retaguarda. E aquela guerra não era bem assim. Verificou-se que, até pelo tal ataque muito forte a esse batalhão, que ele não chegava a Nambuangongo. Para chegar lá tinha que atravessar uma mata virgem do tamanho do Alentejo. O batalhão de Oliveira Rodrigues e do capitão Tomé Falcão teve um atraso, mas continuou. Acabaram por perder um bocado de tempo porque ia a coluna toda: camionetas, reabastecimentos, etc. A coluna que vinha do Ambriz, do capitão Ruben Domingues, era uma unidade melhor. Nambuangongo estava ocupada pela UPA e era apresentada como o seu quartel-general. O objectivo era entrar em Nambuangongo e dizer: "Nambuangongo é nossa!" Foi o que se fez: uma unidade chegou lá, e tomou Nambuangongo. As forças da UPA lá existentes fugiram. A UPA só reagiu nas emboscadas que ia fazendo pelo caminho. Nem podia ter resistido, nós tínhamos mais poder. A coluna de diversão não chegou a actuar. Julgou-se que quem chegaria a Nambuangongo era a companhia que vinha do Ambriz, até porque o Maçanita, como era um homem muito especial, que tinha muito carisma junto dos seus, era pouco ortodoxo. Ninguém esperava que o Maçanita lá chegasse, se calhar até se iam zangar se ele lá chegasse. Mas quando o Maçanita pensou que tudo aquilo era para o queimarem, arregaçou as mangas, foi para a frente da coluna dele, fez de soldado e de cabo, andou a derrubar árvores e, surpreendentemente, quem chegou a Nambuangongo foi ele, o menos bem-visto. A minha companhia foi mandada pelo norte, a fim de criar actividade militar porque, dentro do nosso conceito, Nambuangongo não era uma praça forte e diluiria a resistência. Só que Nambuangongo não era uma praça forte. Era uma área não ocupada por nós, onde a UPA estava a dormir. Nem depósitos de armas lá tinham. Nambuangongo era só um mito.

[...] Foi em Carmona e nas terras ali perto, Songo, etc., que foram mortas mais pessoas nos massacres de Março. Era a capital do café, tinha muitas fazendas, que foram assaltadas e massacradas. Carmona era a capital da zona do Uíje. Era uma vila civilizada. Houve resistência e muitos mortos à volta de Carmona. Não propriamente na cidade. É evidente que na cidade vivia-se com a espingarda à espera do que podia acontecer, mas em Carmona, antes dos massacres, já havia um batalhão, que actuou. Foi este batalhão que, entre Aldeia Formosa e Cobué, foi levantar os cadáveres do capitão Castelo da Silva, que foi esquartejado - cortaram-lhe o sexo, espetaram-lhe paus - e dos seus acompanhantes, que tinham ido fazer uma patrulha na área do Dange. Esta fase da guerra foi toda obra da UPA. Só mais tarde, em fins de 1961, é que começou o MPLA. A nossa doutrina era cativar as populações, pondo-as do nosso lado, isolar o inimigo das povoações e neutralizá-lo, não dizimá-lo. Capturar-lhe as armas, tornar-lhe a vida impossível, cortar abastecimentos. Hoje em dia aparecem nas rádios e nas televisões uns patetas, uns frustrados, alguns dos quais nem estiveram na guerra, que falam na guerra criminosa. Fala-se muito de Wiriyamu. Mas Wiriyamu não tem nada a ver com os massacres, que eu conheço, feitos por eles. O inimigo disfarçava-se entre a população, matava militares, e é claro que os militares reagiam contra quem lhes dava tiros. Os rebeldes, neste tipo de guerra, não andam fardados. Só na Guiné é que vi gente fardada e uma certa organização. Em Angola e Moçambique eram civis armados, embora com instrução: tinham estado na Rússia, na Arábia, na Suécia. Não eram uma tropa profissional como a nossa. Estavam bem armados, mas não estavam fardados.






Nós fizemos uma guerra muito pouco bárbara, por causa da captação da população, ao contrário deles. Eles tinham um espaço de manobra muito maior do que o nosso para fazerem barbaridades. A guerra foi muito mais violenta da parte deles, para intimidar a população, do que pela nossa parte, porque queríamos captar a população. O tipo de guerra era muito diferente. Quando fazíamos prisioneiros, dizíamos-lhes para eles voltarem para o mato, e eles não queriam, porque seriam mortos. Alguns portugueses, como o célebre grupo de Argel, que andavam na política, faziam coro com eles. Diziam que nós éramos uns criminosos. A guerra não é um ambiente divertido, é um ambiente muito intenso, com grande carga de emotividade e também com uma grande carga de solidariedade e sobretudo de camaradagem. Eu não tenho saudades da guerra, mas eu e os meus soldados ficámos amigos até ao fim da vida. Por exemplo, um soldado da minha companhia, depois da guerra, emigrou para França onde lutou pela vida e atingiu um lugar onde ganhou muito dinheiro. Quando eu estava com residência fixa, depois do 11 de Março, esse militar veio cá de férias e soube que o "seu capitão" estava de residência fixa. Foi visitar-me a minha casa, onde muitos amigos meus tiveram medo de ir. À saída, chamou-me à parte para a minha mulher não ver, tirou do bolso um livro de cheques, todos assinados e disse-me: "Eu calculo que o meu capitão vai ter muitas dificuldades na situação em que está, portanto tem aqui um livro de cheques para usar se tiver alguma dificuldade".

Em 1961, na área dos Dembos, um soldado chamou-me a dizer que estava ali um miúdo escondido. De facto lá estava um miúdo, com uns quatro anos, todo nu, com uma corda atada à cintura, que faz parte daqueles feitiços que eles têm, e em pânico. Eu lá disse para eles trazerem o miúdo, que estava muito debilitado. Os serviços trataram bem dele, com vitaminas e boa alimentação, e o miúdo ficou operacional. Os soldados dedicaram-se ao miúdo, que virou a mascote da companhia e, sobretudo, educaram-no muito. Ficou tão bem educado como os meus filhos, que tinham a mesma idade. Aprendeu a falar português correctamente, dormia na caserna dos soldados numa cama para ele. E o curioso é que lá havia um papagaio sempre a dizer palavrões, e o miúdo nunca disse um palavrão. Até que resolvemos dar-lhe um nome, registá-lo e baptizá-lo. Nunca soubemos nada dele: ou era orfão ou tinha sido abandonado. O miúdo foi evoluindo e os soldados começaram a dizer que traziam o miúdo para Lisboa. Eu disse que não podia, que já tinha quatro filhos. Fomos esperando até que um alferes me veio dizer que a mãe se responsabilizava pelo miúdo. A mãe dele era viúva, com quatro filhos, mas vivia no Norte sozinha e dispunha-se a tratar dele como de um filho. Assim foi. E começou-se a ver que o miúdo era espertíssimo. Eu fui falar com o ministro Luz Cunha e ele deu ordens pessoais para ele ser admitido nos Pupilos do Exército, onde foi um óptimo aluno. Uns anos depois fui aos Pupilos e encontrei-o altíssimo e espigado, com excelentes notas. Entrou para o Instituto Superior Técnico, onde se formou em Engenharia Electrotécnica, sem perder um ano. E é hoje um senhor engenheiro em Portugal. Está a ver o que é a humanidade. Hoje é engenheiro da nossa praça e ainda por cima proprietário de umas terras. Se não tivesse vindo para cá, imagine agora a vida horrível que ele teria tido. Provavelmente estaria morto no Huambo».

Ricardo Durão («Os centuriões», in José Freire Antunes, «A Guerra de África - 1961-1974», Vol. I).


«Marchei para Angola com o meu batalhão, o 325, uns meses depois do batalhão 96 ter já desembarcado em Luanda. Foi na altura do desastre do Chitado, quando um avião caiu no Sul de Angola e morreram dezanove oficiais, entre eles o general Silva Freire. O Batalhão 395 ainda lhes prestou honras fúnebres. A seguir, em Outubro de 1961, mandaram-me tomar conta do Batalhão 96. Desenvolvemos missões de pacificação, de contenção da guerrilha, procurando destruir os seus núcleos activos, capturar os seus elementos e destruir o seu potencial ofensivo e operacional. Não direi que houve combates importantes, porque não os tivemos nessa época, só na época anterior à minha. Quanto ao estado de espírito dos soldados e dos oficiais, nunca me apercebi que não fosse de aceitação do sacrifício que nos impunham, apesar das dificuldades e dos problemas. Contrariamente ao que muitas vezes se julga, nós, os militares, não gostamos de andar "à trolha", não temos vontade de deixar várias viúvas, figurar na lista dos mortos. Mas pela nossa formação militar, e como éramos voluntários a servir no Exército, aceitávamos como missão assegurar a soberania e proteger as populações. Não havia resistência, havia era um desconhecimento da parte dos soldados. Por exemplo: ao desembarcar, quando o navio se aproximava de Luanda, de madrugada, as luzes ainda estavam acesas, eles ficaram abismados e diziam: "Ó meu comandante, então Luanda é isto, é formidável!" A ideia que eles tinham do Ultramar é que aquilo era tudo só sanzalas e pretos. É claro que não expressavam um entusiasmo como nas cruzadas primitivas, mas também não vi uma rejeição do esforço que se lhes pedia para a luta. Empenharam-se com ardor, combatividade, sacrifício, heroísmo até».

Carlos de Costa Campos e Oliveira («Operação Viriato. Retoma de Nambuangongo», in José Freire Antunes, «A Guerra de África - 1961-1974», Vol. I).


«Fiquei activo na UPA até 1963, saí em 1964. Eu, como estudante, educado pelo meu pai para a luta, e que me tornara também militante da Federação dos Estudantes da África Negra, com sede em França, não estava conformado com o tipo de orientação da UPA. Em 15 de Março de 1961, quando eles começaram a guerra na Fazenda Primavera, no Norte, estive com eles e apoiei, mas depois viu-se que a UPA não tinha uma filosofia política. O meu problema era a filosofia política. Não havia discussão política para eu poder dizer naquela altura, como jovem, qual era o próximo passo a dar na luta. Limitávamo-nos a fazer uma gestão do dia-a-dia. Arranjávamos logística, organizávamos os soldados, criámos uma base militar. Mas, do ponto de vista da discussão filosófica e política global, não havia nada. Eu não posso acusar o Holden de ser tribalista, porque ele começou na área dos quicongos, só. Os que apoiavam o Holden no Congo, hoje Zaire, também eram quicongos. Logo, eu não posso acusá-lo de ser tribalista, porque ele só tinha aquele meio, era o meio onde ele trabalhava. O que mais criou frustração entre nós, os quadros idos de Angola para a UPA, é que o Holden nos considerava portugueses, dizia que nós tínhamos preparação portuguesa e que, portanto, não tínhamos boa preparação política. Nós dizíamos que não, que tínhamos vindo de Angola exactamente para termos ali uma outra preparação. Como o Holden cresceu na Bélgica, ou no Congo Belga, pensava que os belgas eram superiores aos portugueses. Fossem ou não superiores, isso ofendia-nos a nós, os quadros jovens, porque afinal de contas queríamos encontrar no Holden um bom acolhimento. Éramos jovens, com certeza sem experiência, ele tinha mais experiência do que nós, mas ofendia-nos a acusação de sermos inferiores porque vínhamos da colonização portuguesa. O colonizador em Angola foi o português, e nós tínhamos que ter mesmo a maneira de pensar dos portugueses. Foi mais isto que nos levou a sair da UPA. Mas não penso que o Holden fosse tribalista.

ANGOLA: urbanização portuguesa



Luanda








Guarda de Honra da 4CCE ao Comandante da III Região Militar General Venâncio Augusto Deslandes (1961).



Guarda de Honra à chegada do Paquete Vera Cruz (estandarte do RIL - Regimento de Infantaria de Luanda).



Banco de Angola


Marginal - Baía de Luanda


Ponte de acesso à "Ilha de Luanda"


Pista de aviação



Visita do Presidente Américo Thomaz a Luanda (1963).



Nessa altura, na nossa formação ideológica, incluindo a do próprio Holden, o Patrice Lumumba teve muita importância. O Lumumba tinha um discurso muito poderoso, um discurso anticolonial muito forte. Ele nos prometia, a nós directamente, porque ia até ao nosso escritório em Kinshasa, que depois de consolidar a independência no Congo Belga iria ajudar os angolanos. Lumumba teve uma influência muito grande sobre todos nós. Nessa altura, em Kinshasa, conheci Frank Carlucci, que estava na Embaixada americana. Conheci também o Herman Cohen, mais tarde secretário de Estado adjunto para os Assuntos Africanos, e que era então o cônsul americano no Catanga, como se chamava. Naquela altura, o presidente Kennedy tinha uma política favorável aos nacionalistas. Mas Kennedy queria resolver o problema de Angola, ou das colónias, ou da descolonização, apenas entre a América e as potências coloniais, e não directamente entre a América e os movimentos de libertação. É verdade que através dos seus agentes, através dos responsáveis para os assuntos africanos tivemos alguns contactos, mas o Kennedy não tentou projectar os movimentos políticos na cena política internacional. Queria que fossem os americanos a discutir com Portugal o caso de Angola e não encorajava a UPA a ser conhecida internacionalmente. Kennedy não nos apoiava directamente como, por exemplo, o Reagan apoiou a UNITA. Os americanos criavam certos organismos indirectos, como se fossem de ajuda humanitária, e através desses organismos, não só encaminhavam fundos, mas também criavam lobbies para exercer influência. Se foi útil para alguns, eu considero hoje que foi prejudicial para nós. O mais que Kennedy podia fazer, não era bem dar o dinheiro, que era necessário, mas era ajudar os movimentos a projectarem-se com identidade própria. De qualquer maneira, os americanos encorajaram muito e, no fim de 1961, foram eles que organizaram a fuga de mais de duzentos estudantes angolanos de Portugal para França. Isto e tudo o resto não agradou ao governo de Salazar.

[...] Quando chegámos ao fim de 1973, princípios de 1974, a UNITA estava absolutamente sozinha no terreno face ao Exército português. Não havia quase ninguém do MPLA no interior. [...] A UNITA, antes do 25 de Abril, ficou forte por causa da SWAPO, que precisava de nós para abrir um corredor em direcção à Namíbia. A SWAPO fornecia-nos todo o armamento que queríamos. Tínhamos dois mil homens, no máximo, mas estavam bem armados. Nós conseguimos abrir de facto o corredor para infiltração na Namíbia. O primeiro ataque que eles fizeram dentro da Namíbia, em 1972, foi graças ao corredor que nós abrimos. Os nossos ataques eram poucos, mas eram ataques feitos segundo o tipo de guerrilha chinesa. Podíamos passar dois meses só a observar o adversário, sem atacar, mas quando atacávamos conseguíamos resultados. A nossa guerra foi imensamente mais eficiente do que a dos outros, e tínhamos poucas armas. Considero que, em termos puramente de guerrilha, e a guerrilha tinha e tem vários escalões, a arte chinesa é a mais eficiente. Tecnicamente, os chineses simplificaram os combates, não complicaram a logística, as tácticas eram mais simples e apoiavam-se sobretudo no homem, no elemento humano. O homem é que era o centro, é que fazia a guerra. Não era bem o armamento. O homem, apoiando-se em si próprio, estava muito mais predisposto a sacrifícios do que se se apoiasse sobretudo nas armas. Ao contrário das concepções dos soviéticos, para os quais a arma é que era o elemento decisivo.

Até ao 25 de Abril, a UNITA adquiriu uma solidez militar maior do que a do MPLA, porque este estava fora e nós estávamos dentro. O MPLA tinha sido militarmente derrotado. Eles tinham saído de Angola, tinham abandonado o país. Com certeza que isso se deveu à eficácia das tropas portuguesas, e mesmo o MPLA tem de aceitar que assim foi. As tropas portuguesas conheciam o terreno muito bem e foram tropas muito melhores que os cubanos. Eu também combati os cubanos, depois de 1975, e posso dizer que os portugueses eram muito melhores do que os cubanos, tinham uma capacidade de deslocação da tropa de um ponto para outro que os cubanos nunca conseguiram».

Jonas Savimbi («Arte de Resistir», in José Freire Antunes, «A Guerra de África - 1961-1974», Vol. I).


«Aí há uns três anos, o Savimbi deu uma entrevista na televisão, em que prestou homenagem aos comandos. Ele próprio não acreditou quando a seguir ao 25 de Abril lhe entregámos Angola. Em Angola, no Leste, nós fazíamos todos os anos operações, os chamados Siroco. O terreno aí era plano, não tinha vegetação, nós andávamos de helicóptero, localizávamo-los, cercávamo-los e causávamos grandes baixas. Com a 2.ª Companhia de Comandos falhei a captura do Savimbi. A primeira operação que se fez no Leste de Angola foi em Fevereiro de 1966; nós entrámos e eles fugiram à nossa frente. Segundo constava, o Savimbi estava lá. Foi na área do Lucusse. Atacámos uma base, de noite. Os rios, em África, tão depressa estão secos como têm três metros de altura a seguir às chuvadas. Na altura, não se previa chuva, mas por acaso levávamos colchões pneumáticos. Mesmo assim, tínhamos previsto atravessar o rio em cinco minutos e demorámos quatro horas. Ainda por cima, uma companhia de artilharia que deveria ser uma barreira para agarrar o inimigo enganou-se, avançou por ali dentro e foi dar com o sítio do lado errado. Nessa operação apanhámos muito material. Eles fugiram e deixaram tudo. Ainda estavam os potes a ferver. Eram muitos. Era uma base muito grande da UNITA, com umas centenas de pretos, onde era dada instrução. Falhámos. Se não tivéssemos falhado, a história de Angola talvez fosse hoje diferente. Constava que o Savimbi estava lá. A operação falhou porque houve um atraso da nossa parte e porque essa companhia de artilharia avançou mais uns seis quilómetros do que devia. Mas ainda apanhámos uma série de "turras". Rio-me quando recordo que regressámos dessa operação, desde Nova Lisboa até Luanda, em luxuosos autocarros da empresa Eva.

«Melhores que os cubanos»: comandos portugueses em acção na mata.







[...] Eu entrei no 25 de Abril convictamente, com um grupo de comandos e um pequeno grupo de oficiais. Pesou em mim o que vivi em África e a maneira como os militares vindos da Índia foram recebidos e tratados pelas autoridades militares. A minha convicção pessoal era de que a Guiné estava perdida, e Moçambique, por aquele andar, também estava. Não tenho dúvidas de que Angola nunca se perdia. Mas não houve coragem de alguém dizer: "Alto, Angola é nossa". A Guiné estava arrumada. O que era a Guiné? Era uma machamba da CUF, estávamos lá a guardar os amendoins da CUF. Praticamente não havia população branca na Guiné, e os poucos que lá estavam eram funcionários do Estado. Moçambique tinha alguns brancos, mas foi-se perdendo gradualmente. De tal maneira que, em 1966-1967 havia duas bolsas definidas e em 1974 os tipos da Frelimo já iam a caminho da Beira. Mas Angola era diferente. Depois do 25 de Abril, aquilo foi entregue de bandeja, o Savimbi nem queria acreditar. As pessoas têm a memória curta e, hoje em dia, diz-se muito: "O preto, coitadinho, foi sempre explorado". Mas anda aí muita demagogia acerca disso. Muitos brancos que eu conheci e vi nos matos de Angola e Moçambique, entre os quais muitos transmontanos meus patrícios, viviam em condições de isolamento e até um pouco cafrializados. Vinham a Portugal, ao "puto", como lhe chamavam, de tantos em tantos anos, "mostrar" à terra que tinham dinheiro. E depois regressavam, muitas vezes antes do tempo previsto, e se calhar já se lhes tinha acabado o dinheiro, porque sentiam saudades. Quando eu desembarcava em Angola, sentia-me em Portugal. Pelo que eu lá vi e passei, não há dúvida que todos os portugueses que lá trabalhavam e viviam mereciam uma melhor descolonização. Tenho sido convidado para ir à África do Sul, a Angola, etc., talvez para "vender" a minha experiência. Mas eu digo sempre que não, porque quando lá estive foi a defender Portugal, a minha Pátria. Como não sou mercenário, não me vendo».

Jaime Neves («Mama Sume!», in José Freire Antunes, «A Guerra de África - 1961-1974», Vol. I).


«No início daquele ano de 1974, em Angola a guerra estava ganha, social, económica, política e militarmente, enquanto em Moçambique os esforços inimigos eram sustidos. Já na Guiné a situação militar afigurava-se mais séria, muito longe, porém, de configurar um fracasso, como alguns queriam fazer parecer. O último governador e comandante-chefe, general Bethencourt Rodrigues, retratava-a pragmaticamente da seguinte forma:


"No campo rigoroso do concreto, nega-se frontalmente a veracidade de algumas afirmações que sobre a Guiné têm sido feitas. Nomeadamente, aponta-se como rotundamente falsa que, no 1.º trimestre de 74, dois terços do território estivessem sob o domínio do PAIGC; que as tropas portuguesas estivessem entrincheiradas em algumas cidades e algumas bases; que as Forças Nacionais estivessem acantonadas na Capital e em mais dois ou três pontos. Pelo contrário, afirma-se sem receio de desmentido, que as tropas portuguesas tinham acesso a quase todos os pontos do território, com medidas de segurança de intensidade variável; que os comboios auto de reabastecimento circulavam pelas estradas; as tropas se movimentavam em campo aberto, com maiores ou menores dificuldades, efectivos mais ou menos desenvolvidos; que as Forças Nacionais ocupavam, com guarnições militares, 225 localidades... Funcionavam os orgãos do governo próprio; a rede administrativa cobria todo o território; os orgãos de administração local exerciam as suas funções de gestão; os serviços de saúde e de educação cumpriam as suas missões próprias; as comunicações de transportes e relação asseguravam os contactos entre as localidades e garantiam os circuitos de comercialização no interior e no exterior; estavam em curso obras de fomento nos sectores da educação, saúde, vias de comunicação, agricultura e melhoramentos rurais e urbanos; a produção agrícola satisfazia parte das necessidades da população; cobravam-se impostos; cumpria-se um orçamento"».

Rui Hortelão, Luís Sanches de Baêna e Abel Melo e Sousa («Alpoim Calvão. Honra e Dever»).





Contra-ataque


Ferido várias vezes em combate, a última das quais em 1965, o coronel José Caçorino Dias acha que a guerra não se perdeu militarmente e que a subversão comunista da retaguarda foi o factor decisivo. Viveu os eventos de 4 de Fevereiro em Luanda, como elemento da Polícia Militar, disponibilizou-se para o mato e fez uma operação de comandos antes mesmo de existirem comandos. Viu morrer um amigo na idade em que pensava que os homens eram imortais. Fala da desproporção entre as forças em combate e a extensão dos territórios: 100 homens para cobrir uma zona do tamanho do Alentejo. Enaltece o patriotismo demonstrado pelos combatentes, pensa que há uma empolação intencional, por razões ideológicas, do número de desertores, e conclui que a subversão interna foi eficaz.

Tinha 24 anos e fazia parte de uma unidade da Polícia Militar, treinada para resolver conflitos urbanos. Chegou a Angola exactamente 20 dias antes do assalto à cadeia de Luanda, em 4 de Fevereiro de 1961. Fez, a 300 quilómetros de Luanda, aquela que considera ter sido a primeira operação de comandos, antes de existirem comandos. Caiu numa emboscada, onde um amigo seu morreu.



Localização da região do Alentejo



Caçorino Dias, Polícia Militar (Angola, 1961).


O ambiente em Luanda era descontraído, quando lá cheguei. Eu e um amigo meu tínhamos alugado um quarto na Avenida Marginal. Na noite de 4 de Fevereiro fui acordado por ele dizendo que havia tiros na cidade: era o assalto à prisão de Luanda e ao quartel da Polícia Móvel. Saí, com uma pistola de defesa pessoal, apanhei um táxi e fui para o quartel. O motorista do táxi, alarmado, disse haver muitos mortos e feridos e tiros em várias zonas da cidade. Mas, como é evidente, não eram informações precisas. Após os acontecimentos de 4 de Fevereiro gerou-se entre a população um ambiente bastante tenso, sobretudo nos muceques. A circulação nessas zonas passou a ser perigosa. Até aí, os portugueses de África, brancos ou pretos, tinham mantido uma relação franca e cordial. Havia, de facto, um verdadeiro clima de fraternidade e confiança mútuas. O ambiente hostil que se pretendeu criar depois do 4 de Fevereiro não tinha justificação. Foi por isso que se decidiu lançar uma campanha para criar novamente um ambiente de sã convivência entre todos. Desencadeámos algumas acções específicas. Por exemplo, um torneio de futebol entre equipas dos muceques e a equipa da minha unidade. Os muceques tinham a sua própria equipa - normalmente com os nomes das grandes equipas nacionais. O torneio decorreu nos muceques onde, pela primeira vez após o 4 de Fevereiro, fizemos questão em entrar desarmados. Lembro-me do pasmo de um jornalista do Notícias de Angola, que deixara Luanda no período mais quente e regressou precisamente na altura do torneio, perante o espectáculo da camaradagem que se havia gerado entre os militares e os populares. As festas, tão do agrado da população africana, foram retomadas. Pouco antes de deixar Luanda, participei numa dessas festas, uma «rebita», muito animada. Já então se andava nos muceques com total à vontade. Viam-se soldados brancos, de lambreta e desarmados, levando um preto atrás.

Fazíamos operações de vários tipos: rusgas, patrulhamentos, escoltas. Por exemplo, um amigo meu morreu numa operação a cerca de 300 quilómetros de Luanda. Era tenente de Cavalaria, chamava-se Jorge Cabeleira Filipe. Foi para Angola já depois de ter rebentado a guerra, na mesma unidade de Polícia Militar. Nós andávamos sempre à caça juntos, cometíamos imprudências próprias da juventude, íamos à caça para zonas perigosas. Quando o Jorge tinha uma operação difícil, em regra, desafiava-me para ir com ele e vice-versa. Tinha sido apanhado uma sentinela inimiga que disse que se tinha vindo apresentar porque estava em desacordo com as tropas com quem estava, mostrando-se disponível para nos conduzir ao aquartelamento do inimigo. Esta foi uma das primeira operações de comandos - ainda não havia comandos - e foi feita durante a noite. Até aí evitávamos andar à noite, porque os trilhos eram desconhecidos, e pelo imprevisto que o combate à noite representava. Ele foi-me buscar e desafiou-me para ir com ele. Disse-me para eu escolher os meus três melhores soldados e, ao todo, éramos oito. O nosso comandante, na altura um capitão, autorizou a operação, que era muito fora da nossa área de acção. A nossa ideia era localizar um grupo terrorista que, segundo as informações, teria 500 homens. Havia uma companhia de Infantaria que tinha responsabilidade sobre aquela área. Íamos nós os oito mais o terrorista que se tinha apresentado, que servia de guia. Mal tivéssemos localizado a zona onde eles estavam pediríamos ajuda à outra companhia, já com um efectivo maior, e atacávamos o quartel inimigo. O que aconteceu foi que, ou porque o guia nos traiu, ou por coincidência, caímos numa emboscada antes de chegarmos ao aquartelamento. Era uma zona muito arborizada, os terroristas punham umas barricas em cima das árvores onde tinham comida, munições, etc., sentavam-se lá em cima e ficavam à espera. Era difícil localizá-los. Mas nós fomos localizados e fomos depois atacados por um grupo mais numeroso.

Calculávamos que eles teriam sentinelas, mas estava muito escuro. Eu ia à frente e levava o guia comigo. Nós tínhamos a convicção de que a progressão durante a noite seria facilmente detectada pelo barulho que fazíamos. Por sugestão do Jorge Filipe, que dizia que era assim que os ingleses faziam na Birmânia, fomos de calções. De calções, como nos picávamos com mais facilidade, mais cuidado tínhamos à medida que progredíamos no terreno. Caímos numa emboscada e tivemos de retirar rapidamente. Não faço a mínima ideia de quantos eles seriam. O guia morreu imediatamente. Na altura eles já tinham armas automáticas. Não foi muito fácil retirar. Eu vinha em segundo lugar, o guia vinha em primeiro, depois vinham os meus três soldados e depois o Jorge Filipe e os soldados dele. Vínhamos afastados uns dos outros. Depois do primeiro embate estranhei o facto do Jorge Filipe não dar nenhuma ordem de comando. Mandei retirar da zona. Reparei então que o Jorge Filipe estava ferido, com dois tiros no abdómen. Evacuámo-lo dali. Morreu o guia, morreu ele e, mais atrás, na companhia de Infantaria que estava relativamente perto, havia mais dois mortos. O Jorge Filipe não morreu logo, chegou a ser operado mas no dia seguinte morreu. A revolta que senti na altura foi mais ao aspecto humano. Na altura fiquei chocado com isto e não com a guerra em si. Já tinha lido O Fio da Navalha, de Somerset Maugham, e comparei-me um bocadinho com um dos personagens. Pensei na morte dele como numa injustiça: ele era um indivíduo bem formado. Naquela idade acreditamos que os homens são imortais.


Voluntariou-se para o mato e embrenhou-se na guerra a sério. Deu instrução ao primeiro grupo de comandos numa zona de combate. Acompanhou Dante Vacchi, um repórter do Paris-Match que colaborou na formação das tropas especiais. Diz que foi errada a decisão de proibir os ataques aos santuários da guerrilha situados para além das fronteiras. Enaltece os comandos africanos.

Comandos africanos


No mato, a guerra começou em 15 de Março, com aquela enorme e brutal matança. Mas, entre o 4 de Fevereiro e o 15 de Março, apareceu em Luanda, no quartel-general, um homem chamado Matos, que era topógrafo. Tinha 60 anos de idade e 40 anos de mato e conhecia muito bem toda aquela gente. Naquele período, entre o 4 de Fevereiro e o 15 de Março, ele notou que havia um ambiente diferente, qualquer coisa de anormal. Tinha sido aconselhado várias vezes por nativos a não voltar lá, o que achou estranho, e então procurou a unidade onde eu estava e foi contar-nos aquelas histórias. Sugeriu que alguém fizesse um reconhecimento para ver o que se passava. Até ali nós só tínhamos vivido os acontecimentos de 4 de Fevereiro em Luanda e não tínhamos noção de que no mato se iria passar o que se passou. Peguei no Matos e levei-o ao quartel-general para falar com o chefe do Estado-Maior, que se mostrou um pouco indeciso porque não tinha gente e porque não estava a ver como é que podia efectuar o reconhecimento. Na altura eu era alferes, era novo, havia um outro alferes, e oferecemo-nos para ir em reconhecimento com o tal senhor Matos para saber o que é que se passava no Norte. Partimos pouco antes do 15 de Março. Estava lá há pouco tempo, mas senti o fascínio de África. Ia com o senhor Matos, íamos àquelas aldeias, sentavámo-nos com os nativos, com os homens mais velhos e ficávamos a conversar sem tempo, sem necessidade de ir a correr para lado nenhum, sem ouvir nenhum barulho. Falávamos com os régulos, eles diziam muitas coisas que eu não entendia, porque falavam sobre a vida deles e eu estava lá só há um mês, não tinha sequer capacidade para entender. O senhor Matos conhecia-os a todos e lá ia fazendo as suas perguntas. Concluiu que tudo aquilo lhe cheirava a esturro.

Pedi para sair de Luanda. Tinha 24 anos, era solteiro, tinha um espírito aventureiro e sentia que tinha de fazer a guerra a sério. Quando a minha unidade foi chamada para desempenhar aquilo que seriam as suas missões normais de Polícia Militar - andar pela cidade a resolver conflitos de bar - descobri que não tinha vocação para isso. A minha missão era estar numa zona difícil. Entretanto, tinha sido ferido um capitão, Xavier de Brito, que pertencia ao batalhão do tenente-coronel Spínola. Pedi para ir para esse batalhão, que estava no Norte, em Bessa Monteiro. O chefe do Estado-Maior, tenente-coronel Bethencourt Rodrigues, não me deixou ir. Mas, entretanto, pouco tempo depois, foi ferido um alferes do batalhão que era comandado por um irmão, que já morreu, do marechal Costa Gomes. Esse alferes comandava um pelotão isolado no mato, perto de Mucondo. O tenente-coronel Bethencourt Rodrigues, que me tinha dito que não me deixava ir para o Norte, chamou-me e perguntou-me se eu queria ir comandar esse pelotão. Eu disse que sim e parti no dia seguinte. O pelotão estava perto de Mucondo. Entretanto, apareceu em Angola um repórter fotográfico italiano do Paris-Match, que veio com uma jornalista chamada Anne Gauss. O Dante Vacchi apareceu para fazer umas reportagens e contava muitas histórias: que tinha estado na Indochina, na Argélia, etc. Não sei se essas histórias eram verdadeiras. O que é certo é que, a determinada altura, o Dante Vacchi foi chamado a Luanda e perguntaram-lhe se ele não se importava de colaborar na formação de uma tropa especial, os comandos. Ele terá dito que sim.

Posteriormente saí da unidade que era comandada pelo irmão do marechal Costa Gomes. Chamaram-me para ir para Luanda dar instrução ao primeiro curso de comandos. O primeiro curso de comandos tinha um conjunto de instrutores, gente que foi escolhida em combate, e entre eles estava o Dante Vacchi. A primeira coisa que fiz foi precisamente comandar um grupo que ia para o Norte, no qual estava incluído o Dante Vacchi, que não queria ir comigo. Eu e ele tivemos alguns desacordos. Era um homem de língua fácil. Começou por dizer que era coronel do Exército português e que eu era só alferes. Ia eu a comandar uma unidade que não conhecia, de dezoito homens, para uma situação muito difícil, e o Dante Vacchi ia comigo. O que me disseram foi que o levasse e que o ouvisse em tudo, porque ele era um homem com muita experiência de guerra. Militarmente, eu não sabia bem o que era ouvir tudo, alguém tinha que mandar. Falei com o tenente-coronel Bethencourt Rodrigues, que acabou por dizer que quem comandava era eu e não o Dante Vacchi, que não era coronel do Exército português. Quando chegámos à última parte do percurso, a uns oitenta ou noventa quilómetros, onde existia de facto uma situação de guerra, passámos pela unidade que tinha estado lá poucos dias antes e que contava cobras e lagartos sobre a situação naquele troço, entre Mucondo e Zenha. Neste local, corriam boatos sobre o poder do inimigo. O Dante Vacchi foi ouvindo isto e, ou porque ficou com medo ou por outra razão, não queria ir. Como me tinham dito que tinha que ir e que tinha que o levar, quase que o levei à força. Ele ia para colaborar na instrução. Havia um comandante, um segundo-comandante e alguns oficiais instrutores. Ele seria mais um instrutor. Era uma instrução dada em zona de combate. Tínhamos uma dupla missão: pacificar a zona e instruir os grupos de comandos que se estavam a constituir.

A ideia do nosso Estado-Maior para fazer face à subversão que estava no horizonte, embora não tão próxima como veio a acontecer, foi a de criar unidades de caçadores especiais, que estariam espalhadas pelo mato, e unidades de Polícia Militar, vocacionadas para a luta de rua nas cidades. O que aconteceu foi que, com o decorrer do tempo e da guerra, percebeu-se que as unidades idas do Continente não tinham preparação para aquele tipo de guerra. Os reabastecimentos, por exemplo, eram operações muito vulneráveis, e o facto de vivermos nas cidades ou em zonas mais civilizadas dificultava-nos a vida. Um dia, o general Deslandes passou por uma zona no mato, no rio Dange, e encontrou uns três ou quatro brancos que viviam numa situação exactamente igual à dos africanos, sem necessidade de ir buscar nada às cidades. Subsistiam como os africanos. Pensou que era preciso gente daquele tipo, gente que tivesse capacidade para viver ali sozinha. Então emitiu uma ordem de serviço a oficiais, sargentos e praças dos três ramos das Forças Armadas que estivessem na disposição de participar em operações que ele chamava de especiais. Ofereceram-se pessoas, entre as quais eu, e fez-se uma experiência, que não resultou.

Desbravando a mata: Caçorino Dias de vigia.


As missões especiais, tal e qual o general Deslandes as tinha concebido, nunca se concretizaram. Ele tinha pensado em constituir unidades que iriam por períodos determinados de tempo para o mato e ali viveriam. Entretanto, houve a ideia no quartel-general de constituir uma unidade de presidiários, a exemplo do que outros fizeram, de pessoas que estavam condenadas a penas grandes e que nada tinham a perder. Esta ideia começou a ganhar corpo no quartel-general de Angola. Na altura foram escolhidas duas pessoas para tomar conta desta unidade: o capitão Manuel Cruz Azevedo (penso que vive no Brasil) e eu, que na altura era alferes. Ainda fizemos algumas propostas relativamente à orgânica da unidade, ao tipo de relacionamento, ao tipo de disciplina. Mas a unidade nunca se veio a constituir porque se dizia, e eu acredito, que as leis internacionais proibiam a constituição de unidades deste tipo. Diz-se que Salazar teria intervido nesse sentido, o que estava muito dentro do espírito dele. Penso que uma das razões por que perdemos a guerra - não perdemos a guerra militarmente mas politicamente - foi a proibição sistemática de se fazerem operações fora do território nacional. O normal seria sairmos do território e atacarmos as bases do inimigo onde ele era mais vulnerável. Nós fizemos algumas, devo dizer que eu também as fiz, mas sempre por conta e risco próprios. Salazar era muito respeitador e não queria críticas internacionais em relação ao modo como nos comportávamos em guerra.

Na altura, o facto do Dante Vacchi ter feito uma ou duas operações a comandar soldados portugueses em Nóqui - teoricamente, porque havia um alferes a comandar - fez com que fosse chamado a Luanda e fosse convidado a participar na instrução que iria ser dada aos futuros grupos de comandos. A ideia consistia em seleccionar em cada batalhão um grupo que fizesse operações de comandos. Nem sequer foi definida a dimensão humana desses grupos. Por exemplo, o grupo com quem eu fui tinha dezanove homens, mas havia outros grupos que tinham à volta de trinta. Em relação ao Dante Vacchi, penso que o então major Pedro Cardoso foi a Paris na altura para o contactar e recrutar. Devo dizer que, infelizmente, os grupos que foram constituídos para operações do tipo comandos, operações com pequenos efectivos, para missões muito específicas e com objectivos muito importantes e até decisivos, nunca funcionaram. Porque as missões de que foram incumbidos eram fora do território nacional, destinavam-se à captura de importantes chefes inimigos, que às vezes podiam estar a milhares de quilómetros do território nacional. Fizeram-se muito poucas verdadeiras operações de comandos durante toda a guerra. A operação na Guiné-Conakry foi tipicamente uma operação de comandos, mas foi uma das excepções.

Participei naquelas operações de helicóptero que fizemos no início. Chamo-as de comandos porque tinham as características de comandos: eram grupos muito pequenos, porque os helicópteros que nós tínhamos não permitiam levar grupos numerosos. Levavam em regra três ou quatro pessoas, o que significava que íamos nove ou doze pessoas no máximo. Normalmente éramos lançados em zonas que a pé eram de acesso quase impossível. O helicóptero aproximava-se da zona de lançamento e, quando estava a apenas uns metros de altitude, nós saltávamos. Eram saltos desagradáveis porque eram grandes, por baixo havia capim que era muito alto e muitas vezes nem sequer tínhamos a noção da altura a que saltávamos. Os helicópteros aproximavam-se da zona de lançamento e estavam ali durante um período muito curto porque eram um alvo muito vulnerável. Só muito tarde é que o treino dos comandos incluiu pára-quedismo e era quase como um hobby. Desde o primeiro dia foi sempre nossa intenção ter pára-quedismo porque, na realidade, os comandos deviam estar em condições de intervir em qualquer parte e de qualquer maneira. Diz-se que foi porque os pára-quedistas queriam o monopólio do pára-quedas.

Se lhe disser que o dia-a-dia nos comandos, de um modo geral, era bem disposto e feliz, não acredita. Vou contar-lhe sobre o primeiro pelotão em que estive, um pelotão que estava isolado. Normalmente escolhia-se um sítio que fosse de fácil defesa, alto, com bons campos de visão e de tiro. A seguir construíam-se uns abrigos com sacos de terra ou troncos. Muito raramente estivemos acampados em tenda, a tenda era só usada em situações esporádicas. Em geral ocupávamos uma zona. Por exemplo, em Moçambique comandei uma companhia que tinha sede em Nova Coimbra. Havia uma cantina, uma espécie de taberna mercearia, no meio do mato. Dispunha de uma ou duas casas desocupadas que aproveitámos para depósito, enfermaria, etc. À volta construímos uma cintura de abrigo onde dormíamos e combatíamos. Íamos buscar os abastecimentos em colunas de reabastecimento ou então reabastecíamo-nos entre os nativos. O máximo de tempo que eu estive no mato foram quatro meses. Mas quarenta rapazes novos não tinham dificuldade em divertir-se: íamos à caça, jogávamos, falávamos sobre a guerra, dávamos instrução, falávamos de raparigas, muitas vezes dávamos aulas. Praticamente todo o tempo que estive em unidades estive a ensinar. Abríamos inscrição e quem não tivesse a 4.ª classe inscrevia-se, quem quisesse fazer o 2.º ano do liceu inscrevia-se. Isto até ao 5.º ano do liceu. Entre nós, oficiais, dividíamos as matérias. Durante o dia ocupávamos uma dada zona. Tínhamos uma missão geral: pacificar a zona. Para isso recorríamos aos nossos ensinamentos tácticos e à imaginação. A imaginação era uma componente muito importante na guerra. A guerra era um pouco a caça entre o gato e o rato. Queríamos encontrar o inimigo numa situação em que estivesse descalço e ele queria a mesma coisa. Como estávamos em territórios grandes, nunca conseguimos fazer aquilo que era a grande ambição do general Deslandes, de estarmos isolados e independentes. Era quase impossível que o inimigo não nos localizasse. Normalmente tínhamos uma base com as características que referi e era daí que partíamos para operações tendentes a destruir o inimigo.


Regresso ao aquartelamento. Foto: Álvaro Geraldo.



As nossas relações com os nativos eram, de um modo geral, boas. Mas o peso das etnias era muito grande. Havia umas etnias que estavam cem por cento connosco. Em Moçambique, os ajauas estavam do nosso lado e os guerrilheiros eram quase todos recrutados entre os nianjas. Estamos a falar de Moçambique, e aqueles que nos procuravam e eram nossos amigos lutavam connosco, faziam operações ao nosso lado quase sem lhes pedirmos, e dávamos-lhes armas com a maior das facilidades, sem preocupação de eles se poderem virar contra nós. Os comandos na Guiné, tirando alguns graduados, eram todos africanos e a confiança em acção era total. Nunca ninguém ia com medo que, porque o outro era africano, lhe desse um tiro. Devo dizer que a subversão tinha tomado conta de alguns sectores, limitados da população, já em 1961, o que era resultado do trabalho junto de alguns grupos étnicos. Já há alguns anos que o comunismo e o capitalismo internacionais andavam a trabalhar sectores da população. Havia zonas onde a subversão era mais nítida e onde já era possível o recrutamento de guerrilheiros. Havia populações que estavam completamente do nosso lado, por exemplo, os bailundos que se armaram por si e constituíram um grupo que combatia totalmente fiel à sua condição de portugueses.

O ambiente natural de África era fascinante. Isto explica porque é que havia muitos brancos espalhados sozinhos pelo interior, numa cantina. Às vezes eram só o homem e a mulher, muitas vezes a mulher era africana, e viviam ali sozinhos, harmonizados com a população. A gente de África recebia geralmente bem, tanto os africanos brancos como os pretos. Às vezes andávamos muitos quilómetros, sobretudo quando íamos para a caça, e quando chegávamos a uma fazenda as pessoas desfaziam-se para nos receber bem. Normalmente tinham quartos para hóspedes, ofereciam-nos comida. Por exemplo, se tivéssemos um problema com o carro no mato, não havia ninguém que não parasse para ajudar mesmo que isso lhes custasse estar ali três dias. Havia de facto uma solidariedade muito grande entre a gente do mato, isso dava-lhes uma grande hospitalidade. Era interessante lidar com gente que vivia no interior: brancos e pretos. O povoamento branco era baixo em Moçambique, mas em Angola não. A colonização portuguesa era especial: os portugueses entravam de um modo geral pelo mato dentro e às vezes viviam sozinhos, incluindo pessoas provenientes de boas famílias. O mato exerce um fascínio especial e é possível apaixonarmo-nos por ele. Porquê não sei... É o clima, é a paz que há no ar, é o ambiente, não sei o que é, mas não há dúvida que África tem um fascínio que outros continentes não têm.

A entrada de africanos nos comandos não foi exactamente da mesma maneira. Os comandos nasceram em Angola e foram recrutados entre os batalhões que estavam em Angola. Os resultados positivos que eles obtiveram levaram a que a Guiné e Moçambique mostrassem desejo de criarem unidades parecidas. Foram então enviados da Guiné alguns indivíduos para Angola. Na Guiné, nas primeiras experiências com comandos, apareceram alguns africanos. O famoso Marcelino da Mata era africano, era um grande guerreiro e apareceu neste período. Foram criados centros de instrução de comandos em Angola, em Zemba, na Quibala e em Luanda. Depois surgiram comandos em Bissau, na Guiné, e em Moçambique, penso que em Porto Amélia. No entanto, a primeira experiência de comandos em Moçambique, com boina vermelha, foi em 1964. O comandante de então, o general Caeiro Carrasco, ultrapassando todas as regras mandou distribuir boinas àqueles grupos de comandos. Antigamente, as boinas no Exército eram todas iguais, toda a gente usava boina castanha. O Dante Vacchi, depois do sucesso em Angola, foi fazer umas conferências em Moçambique. Eu também fiz uma, em Lourenço Marques, sobre a actuação dos comandos em Angola. Depois foi uma questão de mais um ano ou dois e formaram-se os comandos em Moçambique. As tropas que se constituíram já eram mistas, porque havia um recrutamento local em regime voluntário. Os comandos da Guiné eram constituídos por voluntários africanos.


A guerra de África não foi perdida no terreno, em termos militares, foi perdida na retaguarda, devido à subversão interna. Caçorino Dias argumenta por isso que esta foi uma guerra subversiva e atribui um papel importante ao Partido Comunista. Para ele foi pequeno o número de jovens que se recusaram, por motivos políticos, a ir à guerra.

Obtínhamos informações de diversas origens. Umas vinham através do meio militar, ou pela captura de um correio, ou de um quartel inimigo. De um modo geral, a informação mais importante era aquela que nós recolhíamos localmente, à medida que íamos apanhando um inimigo, um correio, um elemento da população. A PIDE-DGS colaborava com as informações de Estado. Havia um serviço que centralizava as informações todas, da polícia, da PIDE e das Forças Armadas. Essas informações eram coligidas e eram distribuídas conforme os interesses. Em Angola chamava-se Serviço Centralizador e Coordenador das Informações de Angola (SCCIA), que foi chefiado pelo então major Pedro Cardoso. É evidente que este serviço recolhia informações vindas dos orgãos mais diversos, até do estrangeiro. De qualquer modo, o melhor serviço de informação para as unidades era sempre o local, porque era aquele que nos permitia imediatamente explorar uma informação: quando apanhávamos um terrorista e ele dizia onde é que estava o quartel, de um modo geral partíamos imediatamente para lá. Para além disto, fazíamos operações praticamente diárias. Cada unidade de quadrícula tinha uma zona definida e, por isso, não havia o risco de interferirmos numa zona de outra unidade. Normalmente o inimigo ocupava as zonas limites entre unidades, porque eram de mais difícil acesso e, em princípio, nem uma unidade nem outra ia lá com muita frequência. Se precisássemos da Força Aérea, tínhamos a possibilidade de pedir apoio aéreo imediato. Na Guiné, dadas as características do território, a cooperação entre o Exército e a Marinha era muito maior. No meu caso, quando estava em Moçambique e comandei uma companhia de Cavalaria, tive a sorte de ter um excelente pelotão de fuzileiros debaixo da minha alçada, para fins operacionais.

Fuzileiros navais em exercício





General Thomas White, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas americanas, com Kaúlza de Arriaga, secretário de Estado da Aeronáutica. Ver aqui


Silvino Silvério Marques


As guerras recebem um nome, dependendo da sua componente mais importante. Esta recebeu, a meu ver, o nome de guerra subversiva, porque a subversão era a parte mais importante da guerra, não era a parte militar propriamente dita. De facto, quando se diz que o número de pessoas que morriam na guerra era inferior ao número de mortos nas estradas de Portugal, é verdade. Não era pelo número de mortos que nós iríamos perder a guerra. O inimigo sabia disso, sabia que militarmente nunca nos iria vencer. Mas a guerra podia ser perdida se o inimigo conseguisse subverter a população, de onde provinham as Forças Armadas. Se subvertesse, se criasse a dúvida na população que combatia, venceria - e foi essa a razão da sua vitória. Eis o motivo por que quem fez a subversão em Portugal foram o Partido Comunista e o comunismo internacional. Sabiam bem que o mais importante era subverter a elite intelectual, dado que os nossos soldados estavam em sintonia com a guerra. Foi por isso que os comunistas subverteram as universidades. Muitos dos oficiais subalternos, a sua quase totalidade, eram recrutados, penso que erradamente, pelo seu grau cultural. Um rapaz que estivesse inscrito na universidade ia para um curso de oficiais milicianos. Isto queria dizer que quem tivesse o 7.º ano, e estivesse matriculado na universidade, tinha virtudes para ser chefe. Às vezes não tinha. Mas os subvertores, sabendo disso, insistiram em trabalhar nas universidades, criando todas aquelas dúvidas que foram implantadas na população.

Dentro das Forças Armadas também era possível fazer subversão. Por exemplo, criando um mau viver, desconfianças entre postos, entre oficiais milicianos e sargentos do quadro. Porque o oficial miliciano era um homem que não tinha qualquer cultura militar. Tinha feito o liceu, tinha-se inscrito na universidade e, quando ia cumprir o serviço militar obrigatório, tornava-se alferes. O que fazia com que sargentos batidíssimos, cheios de formação militar, dependessem deles. Isto não criava problemas porque os bons sargentos eram homens disciplinados e, em regra, obedeciam aos alferes. Simplesmente, era fácil criar divisões entre eles e procurar por todos os meios fazer a divisão. A divisão entre brancos e pretos, entre etnias, entre sargentos do quadro e oficiais milicianos, entre soldados e graduados, etc. A subversão serviu-se de todas as armas para criar mal-estar. Um militar estava normalmente dois anos e meio em comissão, depois vinha à Metrópole onde, em regra, ficava um ano. Quando cá chegava gostava de ser colocado numa unidade perto da sua terra, e penso que isso era de bom tom, até para manter o moral da tropa, se ele fosse colocado perto da sua terra. Mas não era isso que acontecia com frequência. Aconteceria propositadamente ao contrário? É como aquela história: se passar por um deserto e vir marcas de patas de camelo, não viu o camelo mas tem a certeza que ele por ali passou. Não vou dizer abertamente se era assim ou não, mas devo dizer que, após o 25 de Abril, tive ocasião de constatar que, quer nas 2.as Repartições, a parte das informações, quer nas 1.as Repartições, a parte do pessoal, onde normalmente se fazia a colocação do pessoal, estiveram sempre oficiais que mais tarde apareceram ligados ao Partido Comunista. A subversão foi eficaz.

Após os primeiros dois anos de guerra, a Nação envolveu-se totalmente e estava em sintonia com a vontade política de fazer a guerra. Mas o tempo jogava a favor de quem lançava a subversão e não daqueles que a combatiam. Com o tempo, eles foram trabalhando a população branca e preta, exactamente como dizia Mao Tsé-Tung: «A população está para o guerrilheiro como a água está para o peixe». Isto era verdade, o guerrilheiro ia buscar à população muitas coisas. A própria população, ou estava em sintonia com a guerra, ou dificultava a condução de uma guerra com aquelas características. Sempre achei que devíamos ter desenvolvido três tipos de acção. A primeira, e mesmo que isso nos trouxesse críticas internacionais, era atacar o inimigo nas suas bases, fora do território nacional. A segunda era recorrer a acções de simulação. A terceira, e porque se tratava de uma guerra subversiva, era atacá-los como eles o faziam, isto é, levar a subversão ao seu seio para lhes minar a confiança e roubar a iniciativa. Dou dois exemplos, um que poderá ser considerado como uma vitória e o outro que poderá ser considerado uma derrota. A ambos presidiu o mesmo princípio, o mesmo esquema mental no aspecto táctico. Era um esquema que, no meu entender, deveria ter sido muito utilizado e que infelizmente não foi. De um modo geral cada unidade tinha uma área que lhe era atribuída e a sua missão era pacificar essa área. Dado que nós somos um país pequeno e aqueles territórios eram muito grandes, às unidades, quer em Angola quer em Moçambique (na Guiné não), eram geralmente atribuídas áreas muito extensas. Por isso, aquela guerra foi do tipo «gato e rato»: nós íamos procurar o inimigo numa situação em que ele estivesse em inferioridade e ele fazia exactamente o mesmo. Por isso, em regra, eles atacavam-nos em missões de reabastecimento. A nossa guerra deveria ter sido o contrário: andar à procura deles era estúpido porque bastavam meia dúzia de sentinelas colocadas em determinados locais, onde nós obrigatoriamente teríamos de passar, e rapidamente, com um aviso, eles ficavam alerta e iam-se embora. Procurá-los sistematicamente num território tão vasto não dava resultado. Infelizmente muitas operações eram feitas com estas características. Eu não fazia operações deste tipo.

Caeiro Carrasco e Caçorino Dias trocam impressões. Fonte: Revista MAMA SUME, Associação de Comandos.


Por exemplo, a dada altura resolvi, no espírito que havia sido definido pelo general Deslandes, agarrar em «armas e bagagens», partir com a minha tropa e só voltar depois de ter obtido alguns resultados. Escolhi um sítio do mato e fui para lá. Era uma aldeia abandonada, com um rio muito perto, facilmente defensável e na qual eu ia fazer base para proceder a operações na área. Estava longe da minha base habitual e estava no limite da minha área de actuação. Estive lá quinze dias mas os resultados até aí obtidos eram poucos, só tínhamos conseguido abater um ou dois terroristas. Como não estava a obter grandes resultados, resolvi planear uma operação. Sabia que a segurança deles ouvia as nossas conversas e, por isso, espalhei por todos os militares da minha unidade que nos íamos embora no dia seguinte, que íamos voltar a Vila Cabral. Na véspera mandei carregar todas as viaturas. A minha própria tropa estava convencida de que íamos embora. Quando chegou a noite chamei um dos meus alferes, o Pestana, e disse-lhe que todos nós íamos embora menos o grupo dele. Havia uma mata ao lado de um rio, uma ponte de bambu, e disse-lhe para ocupar aquela zona e montar uma emboscada porque, com certeza, quando nós saíssemos, eles entrariam. Assim aconteceu. No dia seguinte arranquei com as viaturas, que já estavam carregadas de véspera. Ainda não tínhamos andado uma hora quando o grupo guerrilheiro que estava naquela zona entrou na aldeia que eu tinha abandonado. Infelizmente fizemos uma quantidade de feridos entre os terroristas, mas não matámos ninguém. O que aconteceu foi que um soldado meu, por qualquer razão, abriu fogo antes do grupo inimigo estar na zona de morte, quando ele não poderia abrir fogo antes da ordem do alferes. Mas houve ainda outra razão: estávamos num campo de mandioca e a raiz desta planta forma grandes altos que impedem uma progressão em linha recta. Assim, ao fugir, o inimigo fazia-o em ziguezague, tornando-se um alvo difícil de alcançar.

Houve uma outra operação que planeei, na zona de Nova Coimbra. Tinha chegado uma outra unidade que foi ocupar uma zona a norte de Nova Coimbra, Miandica. Entre Nova Coimbra e Miandica eram umas dezenas de quilómetros. Também aqui não queria ser eu a andar atrás do inimigo. Simulei então uma acção de reabastecimento, sabendo de antemão que iria ser atacado. Havia uns quatro ou cinco locais que eu temia. Pedi a uma unidade, colocada mais a norte, que cobrisse esses locais. Quando o inimigo lá chegasse seria surpreendido pela presença da nossa tropa. Lá seguimos, confiantes. Porém, e contrariamente ao que esperávamos, os tais pontos não estavam nas mãos da nossa gente mas sim do inimigo, que atacou com armas automáticas, lança-granadas e granadas de mão, provocando alguns mortos e bastantes feridos na nossa coluna. Felizmente, a nossa rápida reacção acabou por os pôr em fuga. A nossa prática corrente era a de contra-atacar, senão ficaríamos lá todos. Nós contra-atacámos. Eles fugiam sempre ao contacto corpo a corpo, penso que havia um certo complexo de inferioridade. A primeira imagem que tenho é de um terrorista que ficou completamente cortado ao meio com uma rajada de metralhadora. Quando ataquei vi um só soldado. Convenci-me então que os outros não vinham porque estavam com medo. Quando voltei para trás é que me apercebi que eles estavam mal. O capitão estava deitado no chão, de barriga para baixo. Quando o virei vi que ele tinha a pistola completamente enterrada na barriga, mas não morreu. Para os terroristas a guerra era fácil; até uma criança podia pôr uma granada. Já viu o que é, por exemplo, só haver cem homens para pacificar uma extensão do tamanho do Alentejo? Para o inimigo, este tipo de guerra era fácil de fazer. Ganhava-se porque, como lhe disse, a principal componente da guerra não era a militar.

Na comunicação social tem havido uma intenção quase doentia, uma intenção que envolve interesses ideológicos, de dar a entender que os jovens não queriam ir para a guerra e fugiam da guerra. Isto não é verdade. A quantidade de rapazes que vinha de fora para fazer o serviço militar era muito grande. A selecção era feita normalmente do seguinte modo: um batalhão tinha cerca de 550 homens e eram recrutados cerca de 750, o que significa que 250 ficavam cá. Os que não iam eram normalmente aqueles que tinham encargos familiares ou aqueles que eram militarmente menos aptos. Havia outras maneiras de não ir. Por exemplo, era obrigatório saber ler e escrever e ter o diploma da 3.ª classe. O Exército era obrigado a dar a 3.ª classe porque senão a recruta não ficava completa. Portanto, havia várias maneiras de não ser mobilizado. Quando chegou a altura de embarcarmos, o comandante de batalhão de então disse àqueles que não quisessem embarcar que isso seria levado em consideração. Só apareceu um, e esse tinha razões grandes para não ir. Por exemplo, havia um que era casado e que tinha um filho, e nós, naturalmente, queríamos que ele não fosse. Na semana seguinte apareceu uma declaração da mulher dele, reconhecida pelo notário, em que ela afirmava que queria que o marido fosse combater para África. Claro que houve muita gente que se foi embora. Contudo, muitos por emigração pura, não para fugir à guerra. Houve alguns que fugiram à guerra e alguns foram-se embora por razões políticas, mas pode crer que uns e outros formaram uma percentagem mínima (Testemunho oral: José Pedro Simões Caçorino Dias. Lisboa, 14 de Julho de 1994. Coronel do Exército, com especialidade em comando, nasceu em 1937. Fez comissões em Angola (1961-1963) e em Moçambique (1964-1966). Estava na situação de reforma extraordinária quando foi entrevistado - in José Freire Antunes, A Guerra de África - 1961-1974, Círculo de Leitores, Vol. I, 1995, pp. 231-242).







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