domingo, 30 de julho de 2023

Os Portugueses nos mares do Oriente

Escrito por António Sérgio





«Naquela noite de sexta-feira, 26 de Abril de 1521, em que Magalhães embarca com sessenta homens para atravessar o pequeno estreito que separa as duas ilhas, os nativos afirmam ter visto, poisado sobre a cobertura de uma cabana, um estranho pássaro preto, desconhecido, semelhante a uma gralha. E na verdade, de repente, sem ninguém saber porquê, todos os cães começaram a uivar; assustados, os espanhóis, que não eram menos supersticiosos do que os nativos, fazem o sinal da cruz. Mas aquele homem, que ousara aventurar-se na maior viagem marítima do mundo, por que razão havia ele de recuar agora perante uma escaramuça com um chefe e com a sua desprezível escumalha, só por um corvo qualquer ter crocitado?

Por fatalidade, contudo, aquele chefe insignificante encontra um aliado de peso na estrutura peculiar da costa. Dado que os recifes de coral avançam pelo mar dentro e os batéis não podem chegar suficientemente perto da praia, os espanhóis vêem-se, desde logo, impossibilitados de recorrer ao meio de combate que mais efeito faz: ao mortífero fogo à distância, disparado por mosquetes e por arcabuzes, e cujo simples ribombar já é, regra geral, suficiente para pôr os indígenas em debandada. É com despreocupação que os sessenta homens fortemente armados – os restantes ficam nos batéis – prescindem desse apoio de retaguarda e saltam para dentro de água, tendo à cabeça Magalhães que, segundo escreve Pigafetta, “como bom pastor, não queria abandonar o seu rebanho”. Com a água a dar-lhes pela cintura, passam a vau o longo percurso até à costa, onde os espera uma enorme horda de indígenas ululantes, girando e agitando os escudos. O embate entre os dois adversários não tarda.

A descrição mais fiável, das várias existentes sobre esta luta, deve ser a de Pigafetta que, tendo ele próprio sido atingido gravemente por uma seta, se manteve até ao último momento ao lado do seu amado capitão. “Saltámos para dentro de água, que nos dava pela cintura, e tivemos de passar a vau uma distância equivalente a dois bons tiros de besta, pois os nossos batéis não puderam seguir-nos devido aos recifes. Chegados à margem, encontrámos mil e quinhentos insulanos divididos em três bandos que arremeteram contra nós em terrível gritaria. Dois bandos atacaram-nos pelos flancos, o terceiro pela frente. O nosso capitão dividiu os tripulantes em dois grupos. Os nossos mosqueteiros e arcabuzeiros abriram fogo durante meia hora a partir dos barcos, mas nada conseguiram alcançar, porque as suas balas, flechas e lanças não conseguiam perfurar os escudos de madeira a uma tão grande distância ou, quando muito, feriam apenas os braços dos inimigos. Por isso, o capitão ordenou em alta voz que não se disparasse mais (manifestamente para poupar munições para o combate final), mas não lhe obedeciam. Quando os insulanos viram que os nossos tiros pouco ou nenhum dano causavam, não voltaram a recuar. Gritando cada vez mais alto, saltando de um lado para o outro para escapar aos nossos tiros, foram simultaneamente chegando mais perto, protegidos pelos seus escudos, arremessando setas, chuços, lanças de madeira endurecidas no fogo, pedras e também dejectos, de forma que mal conseguíamos defender-nos. Alguns arremessaram mesmo lanças com pontas de bronze contra o nosso capitão.

“Para os assustar, o capitão mandou alguns dos nossos homens incendiar as casas dos ilhéus, o que ainda os enfureceu mais. Alguns correram em direcção ao fogo que consumia vinte ou trinta habitações, e ali mataram dois dos nossos. Os outros atiraram-se a nós ainda com maior sanha. Quando repararam que os nossos corpos estavam realmente protegidos, mas que as pernas não tinham cobertura, fizeram delas o seu alvo principal. O pé direito do capitão foi perfurado por uma seta envenenada, pelo que ele deu ordem de se ir recuando aos poucos. Mas quase todos os nossos homens começaram a bater em retirada, precipitadamente, de forma que quase não ficaram mais de seis ou oito com ele (ele que, há muitos anos era coxo, estava manifestamente a atrasar a retirada). Então ficámos expostos, de todos os lados, às lanças e às pedras, arremessadas contra nós pelo inimigo, e já não conseguíamos opor resistência. As bombardas que tínhamos nos batéis não podiam vir em nosso auxílio, porque a água pouco funda as mantinha demasiado longe. Assim, esforçámo-nos por nos afastar cada vez mais da praia, ao mesmo tempo que, combatendo sempre, íamos recuando passo a passo, e já nos encontrávamos afastados da costa à distância de um tiro de besta e já tínhamos a água pelos joelhos. Mas as gentes da ilha perseguiam-nos sem dar tréguas e voltavam a apanhar as setas que anteriormente tinham atirado contra nós, de forma que podiam disparar cinco ou seis vezes a mesma seta. Ao reconhecerem o capitão, tomaram-no como alvo principal; duas vezes lhe derribaram o capacete, mas ele, juntamente com alguns de nós, manteve-se no seu posto, como indómito cavaleiro, sem tentar recuar mais, e assim combatemos durante mais de uma hora, até que um dos índios conseguiu lançar um projéctil por um cano ao rosto do capitão. Na sua ira, o capitão trespassou imediatamente o peito do agressor com a sua própria lança, mas esta ficou presa no corpo do morto, e quando o capitão tentou puxar da espada, só conseguiu desembainhá-la por metade, porque um ferimento causado por um chuço lhe tinha paralisado o braço. Ao verem isto, todos os inimigos se lançaram contra ele e um deles causou-lhe tal ferimento na perna esquerda com um golpe de sabre que o capitão tombou e caiu de borco. De imediato todos os índios se precipitaram sobre ele, trespassando-o com lanças e com todas as outras armas que possuíam. E assim nos levaram a vida daquele que era o nosso espelho, a nossa luz, a nossa consolação, o nosso devotado chefe”.

[...] Ninguém sabe o que aqueles miseráveis selvagens fizeram com o corpo de Magalhães, a que elemento devolveram os seus restos mortais, se ao fogo, à água, à terra ou ao efeito desgastante do ar. Não nos ficou nenhum testemunho, perdeu-se a sua sepultura; desapareceu misteriosamente no desconhecido o rasto do homem que arrancou o último segredo ao oceano sem fim que envolve a nossa Terra».

Stefan Zweig («MAGALHÃES. O Homem e o seu Feito»).


Estreito de Magalhães (imagem de satélite).


«Fechou-se para Portugal, no último quartel do século XX, um ciclo da sua história. Com a revolução de 25 de Abril de 1974, praticou-se com o passado um corte cerce. Muitas forças tentaram conseguir que, além de drástico, fosse absoluto esse corte: uma ruptura com todo o passado, não apenas com um certo ou algum passado. Foi posto em causa o facto nacional, e portanto o homem português na sua dimensão sociológica, cultural, psicológica, histórica em suma, e como homem diferenciado e com alicerces autónomos. Das paixões desencadeadas na ruptura crepuscular, dos sofrimentos impostos, das tibiezas e das arbitrariedades, ocupar-se-á o curso do tempo, e a História fará o seu juízo, acaso com prémio, possivelmente com desfavor para alguns. Entretanto, o corpo moral da Nação padeceu o seu maior traumatismo de todos os tempos: e esta ficou resumida nos seus limites territoriais e cingida a uma dimensão política mínima entre as Nações. Mercê do peso que era o seu, dos recursos de que dispunha, dos interesses que representava, da força que possuía, a Nação não sucumbiu aos transes históricos sofridos. Mas não se afigura que o homem português, neste ciclo de que não tem experiência e sob pena de entrar num ocaso definitivo, se possa permitir mais desvios: a sua vulnerabilidade é hoje absoluta: e novo passo em falso poderá ser o último. Decerto: importa não desconhecer que esta perspectiva deixa frios e indiferentes quantos desejaram a ruptura absoluta, e julgam que a vida começa com eles. Aliás, o marxismo-leninismo fez já uma confissão histórica: admitiu a sua falência em criar o homem novo, sem raízes nem compromissos com o passado. Esses não se sentiam partes de uma herança a defender e a transmitir, e por ignorância ou atitude negavam ou desprezavam o passado, sem capacidade para sentir que por este facto ficavam mais pobres. Esses não se apercebiam das consequências das suas atitudes, das suas palavras, das suas decisões; também não viam o que estava oculto nos gestos dos outros, nem pressentiam sequer o seu significado e intenções; e perante tudo eram cegos, e sobretudo embevecidos e deslumbrados. E assim Portugal caminhou de crise em crise, como se esperasse e até desejasse o seu fim. E com efeito, e por doloroso que seja, não é lícito esquecer um facto: perante mutações menos profundas do que as sofridas por Portugal, desapareceram pátrias; não existe lei providencial ou positiva que consagre a perenidade de Portugal e do homem português; e, a existir, nada garante o respeito de terceiros por essa norma, se o não impuserem os Portugueses. Estar a caminho de nove séculos de história, ter na história uma intervenção que ao menos tornou o mundo diferente do que teria sido sem ela, haver sempre assumido um destino ou uma missão específica – são realidades que impõem, ou deveriam ser aceites como impondo responsabilidades morais, cívicas, e até políticas. Mas não são realidades que, por si e em si, garantam a sobrevivência de Portugal. É de repetir: as pátrias desaparecem: e na crónica da humanidade grandes pátrias, quando carcomidas no seu cerne e perdidas na sua alma, foram destruídas, ou esvaíram-se exangues, ou foram absorvidas e anexadas por outra ou outras, quase sempre as vizinhas mais fortes. Parece assim haver vantagem em identificar o enquadramento de uma independência nacional, e inventariar as vulnerabilidades internas, e as ameaças externas de Portugal. Pelo menos não se vê que a tentativa possa acusar mal ou prejuízo a alguém.

Sistema de certezas íntimas, agregado de segredos conhecidos colectivamente, conjunto de emoções vividas em comum, rede de interesses partilhados por todos: uma pátria. E os cidadãos de uma pátria, se ainda a sentem, têm de partir do pressuposto da sua viabilidade. Deste modo, e no que respeita aos Portugueses, há que basear tudo nesta premissa simples: Portugal é uma nação independente e soberana, tem a viabilidade de continuar a ser independente e soberana, possui os meios de se fazer respeitar. Parece vedado a qualquer português deixar-se permear por ideias suicidas em relação a Portugal: não se afiguram lícitas dúvidas quanto às raízes nacionais; e não se julga curial que qualquer português, que sinta Portugal, possa negar ou não viver a solidariedade nacional. Além de tudo, aquelas premissas alicerçam-se em factos irrefutáveis: Portugal possui uma língua, uma cultura, uma religião, e uma história apenas sua. Está-se perante uma quantidade política e sociológica que, por isso mesmo, desencadeou os meios de se afirmar no tempo e no espaço, e de garantir a sua sobrevivência.

Portugal tem uma língua própria. Desde o século XIII, certamente desde o século XIV, a língua portuguesa aparece diferenciada dos demais idiomas de matriz latina. De há séculos está perfeitamente caracterizada e autónoma. Enquanto a versão latino-galaica ficou estacionária, e sofreu a penetração e o quase esmagamento por Castela, a versão portuguesa acompanhou o caminho para o sul e, ao mesmo tempo que se enriquecia com os falares moçárabes, dominou-os; e de toda essa evolução surgiu um idioma claramente distinto dos outros falares latinos, e não só da Península como da Europa. Pela expansão ultramarina, foi a língua portuguesa ainda tornada mais opulenta; e mostrou a sua flexibilidade e plasticidade com o seu afeiçoamento a novas realidades, a novos modos de dizer, e criou novas palavras para referir novos objectos e instrumentos, e que incorporou na sua raiz vernácula. Pode afirmar-se que a língua portuguesa, com toda a sua tipicidade e autonomia sem embargo dos modismos locais, é hoje falada por quase duzentos milhões de pessoas e compreendida por outras tantas. Na transição do século XX para o século XXI, a língua portuguesa é a quarta ou quinta língua de âmbito mundial, em número dos que a praticam.




Portugal tem uma cultura sua. Da língua e de mil factores partiu Portugal para uma cultura diferente de outras, e que lhe é inerente. Há uma expressão portuguesa em prosa como a há em poesia. Não é somente uma expressão em língua própria; é uma expressão em linguagem própria. Decerto: nos seus primórdios sofreu influências, embates, interpenetrações, como acontece em todas as formas culturais vivas. Mas desde muito cedo se afirmaram características suas apenas. Isto é, há uma maneira portuguesa de exprimir ideias, comunicar sentimentos, descrever factos, reconstituir ambientes. Há um matiz ou um estilo português de recriar realidades. Fernão Lopes já é claramente português na sua expressão, e não é como outro. Fixam os grandes cronistas posteriores uma língua e a matriz própria de a utilizar culturalmente. Camões assenta firmemente não só a língua como a poética portuguesas e, muito mais do que isso, talha um modo português de ver, de sentir, de comunicar, de interpretar; e a tal ponto que, sem embargo de haver absorvido a grande cultura do seu tempo, ficou medularmente português, e por essa via soube reflectir ressonâncias universais. Deu à cultura portuguesa uma actualidade permanente e um valor planetário; e os símbolos camonianos são assim válidos para as literaturas cultas. E depois é todo um vasto friso de escritores que, reafirmando-a ou renovando-a, tem assegurado a vivência da cultura portuguesa. Produziu o século XIX um homem, Eça de Queirós, que é hoje património do mundo culto, e textos seus são rotina em manuais de literatura ou antologias inglesas, francesas, americanas, latino-americanas, outras ainda; e o mesmo há que dizer de um homem do século XX, Fernando Pessoa, havido hoje por poeta da humanidade em mais de uma literatura. Há assim, para além de qualquer dúvida, uma forma cultural portuguesa, que apresenta continuidade ainda que intercalada de longos silêncios.

Portugal tem uma religião. Da esmagadora maioria dos Portugueses o culto é o católico, de obediência à Santa Sé e de fidelidade ao Bispo de Roma. Neste particular, Portugal segue a linha de muitos outros países católicos. Mas há também um estilo português de ser cristão, de ser católico, de ser religioso. Não são os Portugueses religiosos como os Britânicos, ou os Franceses, ou os Espanhóis, ou ainda outros povos, salvo talvez, por razões óbvias, os Brasileiros. Não cabe aqui investigar os motivos históricos, culturais e sociológicos que explicam ou impuseram essa diferença: basta verificar e sublinhar a realidade. No catolicismo português podem descobrir-se traços únicos: moderação e tolerância; anticlericalismo cíclico; culto mariano fervoroso; providencialismo (que no plano sociológico e político acabaria por se confundir com o sebastianismo); pompa exterior combinada com o populismo da religiosidade (romarias, procissões, peregrinações, ornamentação festiva e quase pagã a rodear actos de culto, etc,); unidade com a Sé Apostólica; crença e confiança no milagre; uma quase confusão entre fé e superstição; esperança permanente num amanhã melhor, tanto no plano divino como no terreno; sentido missionário; e o serviço de Deus como um dever nacional. Por fim, catolicismo coincide para os Portugueses com a afirmação da grei e constitui base de coesão moral.

Portugal tem uma história – muito sua e exclusiva. Quero dizer: não é a história ligada à de alguns ou subordinada à de terceiros, ou conduzida tendo outros por companhia ou apoio. Não: assenta na iniciativa portuguesa: e é vincada a autonomia de decisão e independência de execução. Portugal sempre teve um projecto português, ainda que obnubilado e em surdina nos períodos de crise mais funda. Desde os primeiros reis, a evolução portuguesa aparece diferente da de outros e mesmo oposta. Afonso Henriques compreendeu que tinha de criar uma nação: era a forma de corresponder a uma consciência colectiva nacional que se havia gerado e queria afirmar-se. Nas cortes convocadas pelos imperadores das Espanhas, jamais o primeiro rei compareceu; sempre ficou devoluto o lugar reservado a Portugal; e nunca foi sequer hasteado o pendão português. De Oviedo ou de Leão, das Astúrias ou de Castela, deslocaram-se sempre os seus monarcas às cortes; e assim prestavam a sua vassalagem e exprimiam a sua solidariedade com a ideia da Hespanha ou das Hespanhas. E como Afonso Henriques procederam os seus sucessores. Desde a fundação, há assim uma consciência de autonomia e destino separado. Desde D. Dinis há a vontade colectiva de executar essa missão e cumprir esse destino. E assumiram deste modo características especiais as navegações, os descobrimentos, e o apostolado português: além de um conceito geoestratégico mundial (a visão de D. João II e de Albuquerque), os objectivos económicos e militares, presentes sem dúvida, seguiam a par de propósitos morais e espirituais (recordem-se as bulas pontifícias) e humanos (lembrem-se a noção de igualdade racial, os casamentos mistos encorajados pela Coroa, entre outros traços). Foi um acto de audácia a empresa no seu conjunto; e também revolucionária, no plano político e até no terreno científico. São muitos os que hoje sustentam, pelo mundo, que o método usado por russos e americanos para conquista do espaço é o mesmo, exactamente o mesmo que foi criado e prosseguido pelos Portugueses: sucessivas missões demarcadas com rigor; executadas somente até ao limite definido; estudo, análise e crítica de cada missão; consoante as conclusões apuradas, assim se ordenava a missão ulterior; e deste modo se ia progredindo até ao objectivo último. Segundo os estudiosos destas matérias, não é ocasional nem resulta de simples coincidências a analogia do método português e o de americanos e russos: é consequência de estudo aturado feito por estes. Não se resumiu a esse período, todavia, a capacidade criadora portuguesa. Toda a obra missionária e apostólica, e toda a actividade civilizadora, são válidas até aos nossos dias; e ainda nesse espírito se filiam as campanhas de África dos séculos XIX e XX. Em verdade, pode afirmar-se que sem a aventura portuguesa teria sido diferente a história do Mundo; e parece lícito concluir que se Portugal fosse destruído, não seria de somenos a alteração do rosto da Europa, e até de algumas paragens para além daquela.




População e território: se no cômputo anotarmos apenas a gente de aquém-fronteiras, poderá dizer-se que são pouco mais de dez milhões os Portugueses. Deste ponto de vista, há base mais do que suficiente para sustentar uma comunidade à parte. São de população inferior numerosas nações; algumas não excedem as centenas, mesmo as dezenas de milhar de habitantes; mas a sociedade internacional reconhece-lhes a soberania, defende-lhes a independência. Seria grotesco e humilhante que dez milhões de pessoas, unidas pela mesma língua, cerzidas pela mesma cultura, crentes na mesma religião, forjadas pela mesma aventura, herdeiras do mesmo passado, detentoras dos mesmos interesses essenciais, duvidassem de que possuíam a estrutura que basta para constituir uma comunidade independente e soberana. Nas comunidades portuguesas dispersas pelo mundo – entre três a quatro milhões – poderá e deverá encontrar e desenvolver pontos de apoio político e de expansão cultural que não serão indiferentes. Decerto: Portugal, como os demais Estados, haverá de ter uma política demográfica; esta jamais deverá procurar reduzir o número de habitantes; porque importa não só evitar o envelhecimento como estimular uma sadia percentagem de população nova. É ainda o homem, e acaso será sempre, o maior bem de um país, a sua maior riqueza, a sua força mais eficaz. E o seu território? Este confina-se hoje àquele que tem sido o de Portugal quase desde os primórdios da nacionalidade e dos primeiros passos oceânicos: Continente, Açores, Madeira. Constitui o conjunto uma expressão territorial mínima: abaixo desta, à nacionalidade portuguesa seriam retirados os elementos indispensáveis à soberania independente. E há que insistir num traço já atrás esboçado: o território geoestratégico é hoje formado pelo vasto triângulo que tem como vértices o Continente, a Madeira e os Açores. Que quer isto dizer? Dispõem as Forças Armadas Portuguesas – terrestres, aéreas e navais – de um largo campo de manobra, para defesa em profundidade, que excede muito o território que se encontra entre o Caia e Lisboa, porque abrange o espaço dentre o Caia, a ilha da Madeira e a ilha do Corvo; e as suas estruturas técnico-militares haverão de se adaptar a esta realidade. Do mesmo passo, a posição internacional portuguesa, observada a esta luz, ganha relevo novo; e, se suscita ambições de terceiros, também permite a defesa perante estes e negociar concessões contra vantagens e garantias. [Estou consciente de que abordei muitos destes problemas de forma rápida e simplista. Não era meu propósito tentar um ensaio sobre a língua, a cultura, a história de Portugal, mas somente enunciar os traços fundamentais como pressupostos de uma nacionalidade; e chamar a atenção para aspectos que muitos por vezes esquecem]».

Franco Nogueira («Juízo Final»).


 Os Portugueses nos mares do Oriente


O império, nos últimos dias de Albuquerque, conheceu horas triunfais. De toda parte lhe pediam «cartazes» (passaportes do mar) para navios que navegavam, comerciando, desde Ormuz até Malaca. Os soberanos orientais enviavam embaixadores e pagavam páreas. Veio a Goa o do rei da Pérsia; a Lisboa foram os do soberano de Calicute e da rainha da Etiópia; em Malaca, onde governava Rui de Brito, apresentaram-se embaixadores do rei de Sião, do de Pão, do de Andraguiri, do de Menancabo, do de Ciai, do de Campar.

Os Portugueses espalharam-se pelo Oriente, – navegando, comerciando, combatendo, – numa vida espantosa de aventureiros, cheia de lances dos mais romanescos, toda imprevisto e variedade, toda pitoresco e energia heróica, de que ficou um relato surpreendente no livro Peregrinação de Mendes Pinto. Ao mesmo tempo, pelas viagens das armadas do reino e pelos cruzeiros das de guarda-costa ia-se completando o conhecimento de todas as regiões orientais.

D. Lourenço de Almeida, filho de D. Francisco, aportara em 1505 a Ceilão, e chegara em 1507 às Maldivas; em 1506, Tristão da Cunha descobrira as ilhas que têm o seu nome; em 1507 percorre Albuquerque, descobrindo e avassalando ao mesmo tempo, a costa meridional da Península Arábica, desde o golfo de Aden até Ormuz; em 1513, Pedro de Mascarenhas descobre as ilhas Mascarenhas, entre as quais avultam as conhecidas hoje pelos nomes de Maurícia e Reunião. [Foi nesse mesmo ano de 1513 que Jorge Álvares aportou à China, levantando um padrão cerca do porto de Ta-mang, a 18 km de Cantão.] Diogo Lopes de Sequeira chegara a Malaca em 1509, e estivera antes em alguns portos de Samatra. Conquistada Malaca em 1511, sai de ali uma expedição destinada ao descobrimento das Molucas, ou «ilhas das especiarias». António de Abreu, que a comandava, esteve primeiro num porto de Java, depois em Amboína, e visitou em seguida as ilhas de Banda, donde regressou para Malaca. O seu companheiro Francisco Serrão foi mandado prosseguir na mesma empresa; naugragou numa das ilhas do arquipélago de Banda; tendo salvo, porém, as armas, conseguiu intimidar os naturais, e, fazendo-se à vela numa embarcação indígena, chegou finalmente a Ternati e a Tidor, das Molucas propriamente ditas, onde pouco depois os Portugueses se estabeleceram. Desta ocupação, e das viagens contínuas entre Malaca e as Molucas, resultou o conhecimento de numerosas ilhas, entre as quais as da especiaria. Foram assim conhecidas Bornéu, Celebes, (Gomes de Sequeira, 1518), e Papuásia (D. Jorge de Meneses, 1527). Em 1518 mandou o governador da Índia a D. João da Silveira que visitasse a costa do Coromandel; seguindo para o norte, chegou às bocas do rio Ganges; de aí desceu pela contracosta, tocando em vários dos seus portos.

Em 1517, Fernão Peres de Andrade partiu de Malaca para uma expedição às costas da China, indo fundear no porto de Cantão; um dos seus subordinados visitou as ilhas de Ciu-Quiu, que se estendem para o sul do arquipélago japonês. Com as notícias da expedição, e os navios carregados de produtos chineses, voltou Andrade até Malaca, e de aí até à Índia, aonde chegou em 1519, partindo depois para Lisboa, a dar conta ao rei de mais esse avanço. Ao Japão chegaram em 1542 António da Mota, Francisco Zeimoto e António Peixoto, e pouco depois Fernão Mendes Pinto, o autor da Peregrinação. Ali se desenvolveu o cristianismo, levado pelos missionários, ao passo que os negociantes portugueses chegaram a ter em Nagasáqui uma feitoria fortificada, muitíssimo importante.

Já dissemos que os Portugueses procuraram desde princípio chegar à Índia por ocidente, projecto em que mais tarde insistiu Colombo. A existência dessas ideias de navegação por oeste é testemunhada [por uma viagem com os dinamarqueses à Gronelândia, ainda no tempo do infante D. Henrique, e] por uma carta dirigida pelo astrónomo florentino Toscanelli ao português Fernão Martins, com data de 25 de Junho de 1474. Diz Toscanelli: «Soube com satisfação do teu valimento e intimidade junto do vosso generosíssimo e magnificentíssimo soberano (Afonso V). Falei já contigo sobre um caminho marítimo para o país das especiarias, mais breve do que o que buscais pela Guiné. Por isso o teu sereníssimo rei me pede agora explicações suficientemente claras para que até os de medíocre saber possam compreender a existência de tal caminho» (texto copiado por Colombo).




Localização da Gronelândia

Existe prova, além disso, de que os governantes portugueses consultavam já Toscanelli em 1459. Já se não pode duvidar hoje de que estas ideias passaram de projecto, e de que houve quem tratasse de lhes dar realização. Em 1452, isto é, ainda em vida de D. Henrique, Diogo de Teive, seu escudeiro, partiu dos Açores em direcção dos quadrantes de oeste, segundo testemunho do próprio Colombo, e viu terras. Sem insistir nas viagens prováveis que deram origem a concessões a ocidente a Fernão Teles (1475) e a Fernão Dulmo (1486), nos casos de Gonçalo Fernandes (1460-1461) e João Vogado (1462), aquelas viagens de combinação com o soberano da Dinamarca, estudadas por Sofos Larsen, nem em indicações cartográficas da primeira metade do século XV, podem considerar-se como certas as expedições de Pedro de Barcelos e de João Fernandes Labrador (o qual deu o nome à «Terra do Labrador») de 1492 a 1495, viagens «para a parte do Norte», para as quais zarparam anteriormente a Colombo. Estas tentativas para oeste (assim como também outros factos e projectos da política dos Descobrimentos) eram mantidas secretas na medida do possível, a fim de evitar a competência estrangeira.

Por 1500, Gaspar Corte Real, homem de família nobre e de cerca de 50 anos de idade, cujos irmãos (Miguel e Vasqueanes) desempenhavam cargos importantes na corte de D. Manuel, solicitou privilégio deste rei para novas empresas de descobrimentos. Outorgou-lhe o monarca as cartas-patentes necessárias, com a doação das terras e ilhas que descobrisse (carta de doação de 11 de Maio de 1500). Aparelhou Gaspar um ou dois navios, com os quais partiu (de Lisboa? da ilha Terceira?) no Verão de 1500. Regressou no Outono seguinte, depois de haver visitado ao ocidente uma terra «mui fresca e de grandes arvoredos», como diz Damião de Góis.

Animados por este êxito, trataram Gaspar e seus irmãos de preparar nova viagem, com três navios que largaram de Lisboa em Janeiro de 1501, para aportarem às regiões que aquele descobrira pouco antes.

Segundo uma carta do italiano Cantino, domiciliado em Lisboa, ao duque Hércules de Ferrara, os descobridores navegaram na direcção do norte uns cinco meses, ao cabo dos quais encontraram grandes massas flutuantes de gelo que iam impelidas pelas águas. Pouco depois, viram o mar completamente gelado. Isto os induziu a mudar de rumo para noroeste e para oeste. Ao fim de três meses de feliz viagem foram dar com uma terra muito extensa, sulcada de grandes e pitorescos rios, com frutos excelentes e variados, com árvores elevadíssimas. Os indígenas viviam da caça e da pesca. Apoderaram-se os expedicionários de uns quarenta, para os levar ao rei. Decidiu Gaspar Corte Real ficar por ali algum tempo, para explorar as costas com a sua nau, e mandou regressar as outras duas. Uma delas chegou ao Tejo a 9 de Outubro, e a outra a 10.

Um mês passou; passaram-se dois, três e quatro meses, e a nau de Gaspar não apareceu. Miguel, aflito, equipou então três caravelas, e foi-se em busca de Gaspar. Mas também ele não regressou, nunca mais. Por fim, o mais velho dos três irmãos, apesar de sexagenário e de pai de família com oito filhos, resolveu cruzar também os mares, e ir à busca de Miguel e de Gaspar. Porém o rei não o consentiu, decidindo enviar caravelas às paragens onde haviam navegado os desaparecidos. Estas regressaram sem notícias deles, nem dos seus companheiros, nem dos seus navios.

Agora, transcorridos quatro séculos, afirma o professor Edmundo Delabarre que uma das inscrições gravadas no rochedo da praia de Dighton se refere a Miguel Corte Real. Essa rocha, que só é inteiramente visível na baixa-mar, apresenta petróglifos na face que diz para o oceano, petróglifos que ocasionaram controvérsias entre os cientistas da América do Norte. Segundo Delabarre, uma parte deles contém, não só o nome de Miguel Corte Real, mas também a indicação de que este veio a ser ali, chefe de uma tribo indígena.


A Pedra de Dighton no estuário do rio Taunton, em Berkley, Massachusetts, antes de ser removida em 1963 como objecto protegido pelo Estado de Massachusetts.


Museu da Marinha (Lisboa).



Estátua de Gaspar Corte-Real, na cidade de St. John's, Newfoundland.

Ter-se-iam os Corte-Reais traçado por objectivo o caminho da Índia pelo noroeste? O certo é que os únicos caminhos práticos, pelo menos, foram descobertos pelos Portugueses: o do sueste, como vimos, por Bartolomeu Dias; o do sudoeste, por Fernão de Magalhães.

Acentua o erudito Harrisse, em um dos seus trabalhos sobre as navegações, o facto de que na expedição de Fernão de Magalhães, português ao serviço de Castela, tomaram parte os pilotos portugueses Carvalho, Estêvão Gomes, Serrão, Vasco Galego, Álvaro e Martim de Mesquita, Francisco de Asseca, Duarte Barbosa, António Fernandes, Luís António de Beja, João da Silva. E, comentando este facto, diz o seguinte: «Assim, este memorável empreendimento, realizado sob a bandeira espanhola, não contou menos de catorze pilotos portugueses; e se a esses acrescentarmos o comandante em chefe, os cosmógrafos encarregados da parte técnica (Rui e Francisco Faleiro), assim como os três cartógrafos que forneceram os elementos (Pedro Reynel, Jorge Reynel e Francisco Faleiro) todos nascidos em Portugal, veremos aí um facto, honroso para este país, que não deve ser esquecido pelos historiadores das navegações».

A primeira viagem em torno do globo, com efeito, integra-se no conjunto dos trabalhos dos Portugueses, e tem cabimento, por isso, em uma história de Portugal.

Magalhães nasceu em 1480, e embarcou em 1505 na armada de D. Francisco de Almeida, quando este foi para a Índia como seu primeiro vice-rei. Era então um aventureiro obscuro. Três anos depois estava de volta a Portugal. Em 1508 alista-se outra vez na frota da Índia, achando-se em 1509 na viagem a Malaca, sob as ordens de Diogo Lopes de Sequeira. Regressado à metrópole, conquistou um lugar na corte, «andando no livro dos moradores da casa de El-Rei [D. Manuel] com bom foro». Em 1513 alistou-se na expedição de D. Jaime de Bragança a Marrocos. De volta, não conseguiu do rei uma melhoria de situação que pretendia. Isto levou-o a expatriar-se (1518). Uma vez em Castela, tratou de pôr em execução o seu projecto do descobrimento das Molucas pela via de oeste, pois se convencera de que essas ilhas pertenciam, conformemente à partilha de 1494, ao reino de Castela.

Conhece-se essa partilha. Pela sentença do Papa Alexandre VI, o mundo a descobrir fora dividido entre os reis de Portugal e de Castela, segundo o meridiano que passa a 370 léguas a oeste [da ilha mais ocidental do arquipélago] de Cabo Verde. As Molucas, de onde vinham a noz e o cravo, estariam no hemisfério castelhano? Estariam no português? Pelos cálculos de Magalhães, ficavam no de Castela. Rui Faleiro, «grande homem na cartografia e astrologia e outras ciências humanas», que vivia na Covilhã e era talvez mestre de Magalhães, pensava da mesma forma; Serrão, companheiro do navegador no Oriente, e que ficara em Ternate, carteava-se com ele e fornecia-lhe elementos sobre a posição geográfica das Molucas. O continente americano, ao que pensavam, devia adelgaçar-se para o sul, terminando em cabo, como a África, a Índia e a Indochina. Cumpria dobrar esse cabo, e de aí passar à Ásia. Reaparecia assim, sob nova forma, a antiga ideia [portuguesa] de atingir a Índia por ocidente, em que insistira Cristovão Colombo.

Tidore, vista de Ternate (uma ilha vulcânica do arquipélago das Molucas, na Indonésia).


Magalhães chegou a Sevilha em Outubro de 1517. Travou relações de amizade com a família dos Barbosas, também portugueses e homens do mar. O casamento com a filha de Diogo tornou-o cunhado de Duarte Barbosa, que andara na Índia (sobre a qual escreveu um livro muito interessante), e que veio a participar na viagem de circum-navegação.

Em fins de Fevereiro de 1518 achavam-se Magalhães e Faleiro na corte de Carlos V, protegidos pelo bispo de Burgos e por um burocrata que haviam comprado, prometendo-lhe a oitava parte dos lucros da sua empresa. Conseguiram, assim, assinar com a Coroa o ambicioso contrato.

Concedia-lhe esta a vintena de tudo o que descobrissem, e licença para levarem anualmente para as terras descobertas o valor de mil cruzados de fazenda, empregando-a na troca do que quisessem, sem pagarem mais do que a vintena; obrigava-se, outrossim, a armar cinco naus para a viagem, abastecendo-as e tripulando-as.

Soube-se disto em Portugal, onde se receava que os Castelhanos chegassem às Molucas, navegando no hemisfério que lhes pertencia. O rei português tentou convencer Magalhães a desistir de tal propósito, por intermédio do seu feitor em Sevilha. Magalhães resistiu, trabalhou no apercebimento da sua armada, e combateu contra as intrigas e embaraços em todo o resto do ano de 1518 e na primeira metade do ano seguinte.

Largara de San Lucar a 20 ou 21 de Setembro [1519]. Os navios eram cinco: Trindade, do comando de Magalhães; Santo António, de João de Cartagena; Conceição, de Gaspar Quesada; Vitória, de Luís de Mendonça, e Santiago, de João Serrano. Os Reynéis e Diogo Ribeiro fizeram as cartas, as agulhas, as esferas e os quadrantes.

A 13 de Dezembro estavam na baía de Guanabara, e a 10 de Janeiro de 1520 no rio da Prata, donde saíram, depois de visitar as costas, na primera quinzena de Fevereiro. Entraram a 31 de Março no porto de S. Julião (49º 30’ S.), e, por estar o tempo muito agreste, foi resolvido esperar aí.

Na noite de 1 de Abril os castelhanos descontentes conseguiram revoltar as naus Trindade, Santo António e Vitória. Era seu intento regressarem a Castela com o chefe preso, porque este, ao que alegavam, «os levava todos a perder». O capitão-mor, à frente dos portugueses, meteu-se num batel e foi-se às naus, onde subjugou os revoltosos. Então, a Conceição e a Santo António pretenderam fugir pela barra fora. Magalhães cruzou-se à entrada do porto com os navios que lhe obedeciam, abriu fogo sobre aqueles, e tomou-os de abordagem.

Subjugada a revolta, fez-se à vela. Perto do rio de Santa Cruz (59º S.) naufragou a Santiago. Foi-lhes necessário regressar ao porto, porque o tempo continuava áspero; o frio gelava as mãos. Zarparam a 24 de Agosto. Um temporal, porém, obrigou-os a meter de capa à sombra da terra de Santa Cruz. Impossível, pois, prosseguir por enquanto. Nova espera, até 18 de Outubro. Então levantaram ferro. Ao fim de três dias de navegação, chegavam à boca de um braço de água. Aí, consegue fugir a Santo António. Os restantes navios aproam à entrada, com os batéis à frente para fazer sondagens. Vêem-se engolfados num estreito lúgubre, de margens alterosas que se erguiam a prumo. Na bruma álgida, rugindo e negro, o mar reboa com rumor soturno. Avançando, – rompeu em salvas. No ar, de súbito, estouram os tiros de canhão das naus: voam, ecoam, reecoam, somem-se, – e perdem-se enfim nas vastidões do ermo, confundindo-se, – longínquos, – com o sussurrar das ondas... Dia após dia, gastaram no estreito para cima de um mês. Por fim, uma nau desembocou no oceano imenso, – um oceano calmo, lânguido, [rejubilante], e de águas pacíficas sob a luz claríssima, em que se espelhava o Sol. Era a Vitória.



Localização das Filipinas

Rumaram ao norte, para o paralelo das Molucas. Os mantimentos escasseavam; a aguada, agora, estava podre: roíam, por isso, o couro dos mastros, depois de mergulhados por alguns dias; tragavam serradura para iludirem a fome. As gengivas inchavam com o escorbuto; e a morte, ceifando constantemente nessa tripulação de moribundos, semeava de cadáveres as singraduras das três naus. Com corrente favorável e com vento largo, chegaram a 6 de Março às ilhas Marianas, ou dos Ladrões; aportaram depois a uma Filipina, e por fim a Mazaguá e a Zebu. Uma desavença com um régulo indígena levou Magalhães a desembarcar uma manhã em uma praia esparcelada de Mazaguá, onde teve de combater, mergulhado na água, contra uma multidão de gente selvagem que caiu sobre ele e o matou[, no parcel da praia], às setadas e às lançadas. «Assim morreu», diz Pigafeta, «o nosso guia, nosso amparo e nossa luz»...

Para a História, estava concluída a sua mensagem. Fora-se por oeste, enfim, às paragens onde já tinham chegado os compatriotas de Magalhães, navegando no sentido oposto. Em volta do globo, com esteiras de naus, fechava-se o anel das Navegações, e rematava-se assim um primeiro ciclo da função histórica dos Portugueses. A estes, resta-lhes abrir uma nova era, em que logrem transportar para a vida do espírito (para o campo das reformas da sociedade, para o da ciência e da filosofia) a missão descobridora que lhes coube em sorte, – para que se possa afirmar em futuros tempos que também nos domínios da investigação científica, da ética, da pura interioridade, do ideal humano,

 

«novos mundos ao mundo irão mostrando»...

 

(In António Sérgio, Breve Interpretação da História de Portugal, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 14.ª Edição, 1998, pp. 77-84).


Mosteiro de Santa Maria de Belém

quarta-feira, 26 de julho de 2023

A memória das raízes

Escrito por Franco Nogueira


O Gigante Adamastor



Alberto Franco Nogueira tripulando o seu veleiro "Corsário", algures junto à costa portuguesa.



«Da alteração da estrutura do Estado, como pretendem alguns, passar-se-ia à alteração do que é essencial na ordem económica e social existente. Não se trataria somente de remediar abusos, sanar injustiças, emendar erros, acusar incompetências, satisfazer queixas legítimas. Não se trataria apenas de acelerar o desenvolvimento, aumentar a produtividade nacional, melhorar a justiça social, repartir mais equitativamente a riqueza, expandir a educação e a cultura de massas, pôr enfim o progresso ao alcance de quantos constituem, a igual título, a comunidade nacional. Tudo isto deve ser feito; mas não é isto que está em causa. É outro o objectivo: dar à sociedade portuguesa uma configuração socialista, porventura na sua mais extrema expressão, e modificar em conformidade a estrutura social e económica. Não se procuraria somente corrigir excessos do capitalismo. Seria o desaparecimento da sociedade de competição, fundada na iniciativa pessoal e na propriedade privada, que daria lugar à absorção do indivíduo no Estado. Negar-se-ia a liberdade de espírito; não haveria margem para a aventura e a fantasia pessoal; e ignorar-se-ia o estímulo que representa a conquista de um benefício pelo esforço individual. Seria a abolição de toda a hierarquia impulsionadora; e toda a vida pública e privada e a própria alma humana seriam tecnicamente enquadradas e orientadas. Alguns, receosos destes resultados extremos, julgam poder parar em meio caminho, e sugerem a adopção de alguns ângulos do socialismo, rejeitando por outro lado alguns dos seus princípios básicos. Mas aqui temos de ver que se são possíveis as contradições no pensamento, estas não são viáveis quando se passa à acção. A uma política social tem de corresponder uma política económica, e com esta tem de alinhar uma política financeira, e todas têm de encontrar o seu fundamento numa estrutura do Estado, da moral colectiva, e da sociedade. Acima de tudo, interessa o comportamento do Estado em face do indivíduo, e neste particular não parecem viáveis quaisquer compromissos. Um povo e uma Nação não são apenas um conjunto de homens a trabalhar mecanicamente e um território não é apenas uma oficina: são igualmente uma alma, um espírito, e acima de tudo um destino que se sente, se pratica e se cumpre em comum. Negar-lhos, igualá-los a todos os outros, é anulá-los. Sem dúvida: um Estado moderno pode e deve ser social, no sentido de garantir o bem comum, arbitrar os conflitos de interesses, assegurar a justiça distributiva, manter a igualdade na aplicação da lei. Mas há um abismo entre o Estado social, que respeita a pessoa humana, e o Estado socialista, que a esmaga. Não está no carácter dos portugueses sujeitarem-se a este último.»

Franco Nogueira («Fecho de um Debate», texto baseado nas palavras pronunciadas em Lisboa, no cinema Tivoli, no decurso de uma reunião política, em 23 de Outubro de 1969, in «Debate Singular»).

 

«Num texto elaborado e recentemente publicado pelo Ministério da Educação para orientação dos professores do ensino secundário, podemos colher, entre muitos outros exemplos análogos, este modelo de estultícia pedagógica e mental: “Dá-se um zero a um aluno que não sabe quem escreveu 'Os Lusíadas'. Pois que se dê também um zero a um aluno que não sabe como se faz o queijo”. O Ministério da Educação ignora assim ou procede como se ignorasse, que saber o que são "Os Lusíadas" constitui um saber de carácter universal, implica valores universais como são os valores poéticos, cuja aprendizagem através de "Os Lusíadas" é a via que, por excelência, os portugueses têm a felicidade, ou a virtude histórica, de possuir, via que tem na adolescência a idade propícia para ser iniciada, pois é essa a idade na qual o ser humano pode concentrar todas as suas virtualidades somáticas, sentimentais e intelectuais na descoberta da poesia, como as pode concentrar na descoberta do amor. Por outro lado, "fazer o queijo" é coisa que em qualquer idade, por quem quer que seja e seja qual for o seu grau de ignorância ou sabedoria, de estupidez ou inteligência, pode ser imediatamente aprendida. E a terem de saber os alunos “como se faz o queijo”, então teriam de possuir também, e pelas mesmas razões, o conhecimento de uma infinidade de outros particulares e equivalentes conhecimentos, o que leva à conclusão de não haver no mundo homem algum que não fosse “chumbado” caso se aplicasse tal preceito escolar.»

Orlando Vitorino («Exaltação da Filosofia Derrotada», 1983).


« – Na situação de crise em que Portugal se encontra [estava-se então em 1978], fala-se muito dos riscos de uma perda da independência nacional. Há, por um lado, a transferência dos centros de decisão vitais para além-fronteiras, o que em certos casos é já um facto. Mas, para além desse ponto, crê que pode colocar-se, num prazo mais ou menos longo, o perigo dum desaparecimento de Portugal?

– (...) Os perigos, os riscos a que se refere são reais, dolorosamente reais. Há a ideia, segundo parece, de que Portugal, por ter mais de oitocentos anos de existência, é automaticamente eterno. Eu não conheço nenhum decreto que prescreva a eternidade de Portugal; e se o houvesse ainda era preciso que os demais respeitassem esse decreto; e a História mostra-nos países que apareceram e desapareceram, e até em épocas bem próximas de nós o facto se tem dado. Por que seria Portugal uma excepção? E atente nisto: Portugal é hoje um país empobrecido, muito para além da realidade aparente. Abandonámos o Ultramar, simplesmente, sem negociação; e estamos endividados para gerações: Repito: para gerações. Isto basta para nos aterrar, para nos alarmar. Mas há muito mais. Estamos a aplicar os empréstimos em salários e bens de consumo, e muito pouco em equipamentos e investimentos. Perdemos milhares e milhares de quadros  professores, engenheiros, médicos, gestores técnicos, etc. – que foram expulsos, destruídos: e cumpre não esquecer que um homem, sobretudo um homem qualificado, é o bem mais precioso e o investimento mais caro de um país. Depois, por falta de confiança, fugiram de Portugal alguns milhões de contos: não estou a justificar o facto: estou a apontá-lo. É incalculável o que saiu do país em obras de arte, jóias, mobílias, pratas: devem estimar-se em vários milhões de contos também. Embora fossem propriedade privada, pertenciam ao património cultural e artístico do país, e mais tarde ou mais cedo encontrariam o seu lugar em museus portugueses. Muito mais seria possível acrescentar. Parecia-me vantajoso que a massa dos Portugueses tomasse consciência destes aspectos para se aperceber de quanto o país foi e está sendo depauperado. Não são apenas os centos de milhões de contos que devemos e que, é bom não esquecer, temos de pagar. Há que entrar em linha de conta com os prejuízos a que aludi atrás. A vulnerabilidade de Portugal é portanto imensa. Para além de tudo, todavia, o facto decisivo é este: a vontade dos Portugueses. Se essa vontade for vigorosa, e firme, e tenaz, Portugal pode sustentar a sua independência, e retomar a sua autonomia em relação aos centros de decisão hoje exteriores. Recorda-se de que Herculano dizia que somos independentes porque o queremos ser? Eu tenho esperança de que saberemos continuar a querer. Ou seremos então a geração que vai trair todas, todas as gerações anteriores? Eu vejo que na União Soviética se exaltam e veneram as grandes figuras da História, desde Ivan o Terrível a Pedro o Grande, desde Catarina II a Tolstoi. Vejo que os Estados Unidos celebram todos os dias os seus grandes vultos, os seus grandes valores. Na Inglaterra, os grandes nomes – Isabel I, Shakespeare, Nelson, Wellington, mil outros – são sagrados, e são apontados diariamente à veneração pública. E é então num momento em que por toda a parte se proclama o nacionalismo, a independência dos povos, que nós vamos abdicar? Temos acaso vergonha de um Nuno Álvares, de um Camões, de um Infante, um D. João II, um Albuquerque? Acho que se impõe um regresso aos valores autênticos, permanentes, e há que proclamá-los mesmo perante os sorrisos sardónicos e benevolentes das mentalidades superiores. Das mentalidades daqueles que têm muitas teses intelectuais mas não sentem nada; e daqueles que por ignorarem tudo julgam saber tudo; e de quantos pensam ter a vida começado com eles sem ao mesmo tempo admitirem, para serem lógicos, que a vida também acabará com eles. Ou estará o dinheiro estrangeiro a influenciar a inteligência portuguesa. E a juventude portuguesa? Já não estremece e palpita com Portugal?

(...) – Pensa que é hoje importante o empreendimento do combate cultural pelos sectores mais jovens?

– Sim, sem a menor hesitação. Não acredito que as ideias se combatam com a força, e que sejam vencidas pela violência e pela repressão. As ideias combatem-se e destroem-se com outras ideias. Atrever-me-ia a dizer que, neste ponto, e em certo sentido, muito parece estar simplificado: a falência cultural da esquerda é patente, e não só em Portugal, aliás. Já reparou que as ideias, o vocabulário, os conceitos, até os slogans usados pelos nossos responsáveis de esquerda, são os mesmos, rigorosamente, os mesmos de há trinta, quarenta, cinquenta anos? Não há uma novidade de consequência, não há um pensamento que aponte caminhos além dos já experimentados e que comprovadamente falharam em toda a parte. Sim, o combate cultural é fundamental: nas escolas, nas universidades, nos meios sindicais, em toda a parte, em suma, há que denunciar os sofismas, os erros, os falsos princípios. Não com arrogância, nem como quem quer impor a sua verdade. Esse totalitarismo é apanágio da esquerda, de uma esquerda imaculada, única detentora da verdade, da isenção, do desinteresse, da santidade em suma. Apenas se deve proceder através da análise fria, do exame documentado, das conclusões objectivas já autorizadas pelos factos e pela história. Não importa, penso eu, a especulação ideológica, a criação brilhante das grandes abstracções intelectuais; importa mais demonstrar a inoperância, o não fundamento, as consequências funestas dos ideais de esquerda. O que se disse, o que se afirmou, o que se acusou, o que se tripudiou em Portugal, o que se defendeu, o que se atacou!! Recordo-me de que um jornal, cujo nome não cito, publicou em Maio de 1974 um artigo condenando as touradas, por alienantes, e que terminava assim: "o primeiro fascista português foi Afonso Henriques". Recordo-me de uma emissora dizer que Camões fora um poeta menor ao serviço de imperialistas. Que efeito teria hoje lembrar e documentar tudo isto?».

Franco Nogueira («Juízo Final»).




«Se, mesmo esquecendo de momento a catastrófica descolonização, a tentativa neo-totalitária de que o país foi alvo ou a desorganização da nossa economia e produtividade, é objectivo afirmar que o 25 de Abril representa efectivamente a mudança da ditadura para a legitimidade democrática, o certo é que, em si e por si não é uma data que simbolicamente identifique a pátria portuguesa; é uma data de significado conjuntural, mas não de significado essencial...

“A poesia é mais verdadeira do que a história”, disse certeiramente Aristóteles; realmente a história, inquérito nunca objectivo sobre o passado (jamais inteiramente documentável e cientificamente interpretável) é um conto narrado de forma diferente por cada época, por cada historiador, por cada prisma filosófico ou ideológico. Daí a fortuna e a desfortuna de sucessivas datas políticas tão depressa exaltadas como combatidas ou esquecidas...

O certo é que nós esquecemos todas as datas políticas da agitada história helénica, mas não esquecemos Homero, Ésquilo, Sófocles, Platão ou Fídias. Havia uma sabedoria nacional em ter-se compreendido que a nação portuguesa era simbolizada com muito mais verdade por um poeta ou por um poema, do que por uma efeméride política; sabedoria que parece ter-se perdido neste intuito de algum modo manipulatório de ritualizar o 25 de Abril, acontecimento tão enorme, que mereceria ser sobreposto a todos os outros de que a existência portuguesa foi fértil.

Ora, sendo perfeitamente legítimo que a comemoração do 25 de Abril tenha vindo substituir a do 28 de Maio, já não o parece que a tenham preferido à do 10 de Junho, que para muitos portugueses, senão para a maioria, continua a ser o verdadeiro Dia de Portugal...

(...) “O rito é o mito em acto”, citei, atrás, não por acaso.

Talvez que a intenção tenha sido afinal a de mitificar o 25 de Abril, inserindo-o a partir de agora no ritual da nossa liturgia cívica e esperando-se que a repetição, a solenidade e o ditirambo acabem por fazer esquecer aos portugueses o reverso da medalha.

E talvez que se procurasse também (matando dois coelhos com a mesma cajadada), desmistificar o nosso nefando poeta colonialista, que encheu de quimeras a cabeça tonta dos portugueses, fazendo-os acreditar que este povo significou alguma coisa na história universal precisamente com a gesta (para alguns ainda indigesta!) da expansão marítima, que nos teria desviado do nosso destino peninsular e europeu.




Mas ao contrário, é precisamente na substância mítica, psicológica e filosófico-histórica de uma epopeia como “Os Lusíadas”, actualizada por Fernando Pessoa na “Mensagem”, que é possível discernir o carácter e a identidade do povo português, ou a sua estrutura cultural sublimada; e isto é verdadeiro, mesmo a partir da hodierna perspectiva anti-colonialista, tão certo é que ambos os poemas exprimem a motivação profunda da personalidade e da independência de Portugal: o não ter sido esta meramente vegetativa e antes ter sido uma entidade colectiva motriz da evolução humana e social, uma pátria ecuménica que efectivamente “deu novos mundos ao mundo”.

E esta perspectiva sobre a identidade portuguesa não terminou o seu ciclo; fomos sempre europeus, e é precisamente como europeus, mas da espécie portuguesa, que estamos ainda, e estaremos, nos cinco continentes, embora com um outro estatuto político.

Não há contradição entre a nossa europeidade e o nosso ecumenismo; “essência da Europa”, de Portugal disse Reinhold Schneider, já que aqui, na periferia e à beira do Atlântico, se desvendou a fundamental vocação europeia: descobridora, universalizadora, promotora de uma nova dinâmica das civilizações.

Mas esvaziem-nos da nossa identidade, aniquilem a nossa memória colectiva, destruam o nosso orgulho de sermos pátria independente, cortem-nos da nossa universalidade, encerrem-nos num figurino pré-fabricado e obedientemente talhado segundo as ideologias da hora, e que seremos então?

Na “Análise Espectral da Europa”, com a sua habitual agudeza, Keyserling apontou o claro-escuro da personalidade nacional: por um lado a “explosividade”, que nos lançou imparavelmente na aventura cósmica; por outro lado a “crispação com a qual e na qual se desperdiçam, sem finalidade”, as forças dos portugueses.

Somos um povo que ora se supera e transcende, ora se divide e paralisa ao afastar-se da sua identidade real para se mascarar do que não é. Somos um povo hoje tenso e crispado, à procura de si próprio e regressado de muitas ilusões.

É por isso que, neste ano de 1977, se começa mais cedo a comemorar Camões... discutindo uma rejeição, que subitamente o torna mais vivo do que nunca!».

António Quadros («A Arte de Continuar Português»).





A memória das raízes


Não se apurou ainda – e acaso jamais será possível fazê-lo – se a história é realmente feita pelos povos, cabendo depois a alguns homens registá-la e descrevê-la, e à maioria dos homens esquecê-la. Mas a crónica da realidade humana diz-nos que efectivamente, de tempos a tempos, surgem homens que apontam caminhos não trilhados, e que os povos seguem. Esses homens constituem emanação de uma força colectiva: sintetizam os sentimentos da grei, interpretam e exprimem com lucidez as aspirações por vezes confusas da comunidade, arrastam esta para novos ideais que sabem insuflar-lhe, são capazes de superar o imediato para antever um futuro largo, conseguem libertar-se do contingente ou acessório para atingir o que é essencial e é duradouro, ou mesmo permanente. Esses homens, criando nos demais a convicção de que têm a consciência superior das coisas, aliciam os espíritos, mobilizam as vontades, firmam novos padrões de valor; e a estes, nos momentos de crise, de dúvida, de angústia, outros homens se acolhem e amparam; e aí buscam o conforto das certezas interiores, tomando como seus os objectivos por que valha a pena lutar, e morrer. A esses homens chamamos então homens de génio; e a realidade que deixam atrás de si ao desaparecer, não é igual à que encontraram e fica enriquecida para gerações, ou pelo menos diferente para largo tempo. Dir-se-ia que o homem comum é mais pobre do que a realidade encontrada, e é esta que o afeiçoa e valoriza; o homem de génio é mais rico do que a realidade que se lhe depara, e imprime nesta o seu cunho. Decerto: todos os homens têm de ser havidos por iguais perante a lei, e no acesso às oportunidades da vida, e perante a justiça social. Mas os homens de génio existem, e bem acima dos demais; e uma igualdade artificial, imposta para além daqueles domínios, se não é simples demagogia e procura converter-se em direito, estiola o progresso, mata a liberdade, destrói o poder de criação, aliena os homens. Nesse caso, poderia estar-se a mascarar a formação de uma classe de privilegiados que não se funda em trabalho ou mérito mas em poder político, quase sempre conquistado por cima de ruína, violência, agressão de consciências. Mas voltemos aos factos: no mundo, no seio de comunidades nacionais, se estas mantêm intactas as suas forças e se não estão afectadas as suas estruturas morais, têm surgido sempre e hão-de surgir homens de génio – aqueles que rompem os quadros usuais, traçam as suas próprias coordenadas, desvendam ou criam realidades insuspeitadas e até aí inexistentes, e apontam aos outros homens novos caminhos, por vezes bem ousados, e ásperos de trilhar.

Luís de Camões foi um daqueles homens. Foi um daqueles seis ou sete portugueses sem cuja obra, exemplo ou acção, Portugal não seria o que tem sido, e o que ainda é. Podemos e devemos exaltar em Camões o poeta lírico, o poeta épico, guerreiro, o humanista, aquele a quem na vida não faltou «honesto estudo, com longa experiência misturado», como nos diz no final dos Lusíadas; podemos e devemos fazer o historial do homem e a exegese da obra; mas o que importa é salientar um outro traço da sua personalidade. Além do poeta de génio e do humanista, há que sublinhar em Camões o português que teve consciência do que é Portugal. Escreveu Oliveira Martins que Os Lusíadas andavam dispersos no pensamento de todos os Portugueses: Camões foi o verbo nacional que exprimiu o sentimento colectivo (O. M., Camões, 63). Camões revela-nos, com efeito, o segredo da nacionalidade portuguesa (O. M., ob. cit.). Creio mesmo que esta é a grande criação de Camões e a sua permanente mensagem: a consciência de uma consciência nacional. Sem dúvida: esta já se havia formado, e imposto em Aljubarrota, e traduzido em cultura, e manifestado com originalidade e audácia nas descobertas e navegações. Mas é justamente quando essa consciência entra em declínio que se ergue Camões – para a sublimar, para a fixar em termos que não poderiam morrer, para a transmitir aos vindouros.

Batalha de Aljubarrota

Mosteiro de Santa Maria da Batalha

Nunca se sublinhará em excesso um facto: na segunda metade do século XVI é a partir da corte, dos dirigentes, dos homens que deveriam ser responsáveis – que emanam os sinais de desagregação e decadência. O rei afortunado, D. Manuel, casara três vezes com princesas castelhanas, e estas arrastam para Portugal um acompanhamento de serventuários e cortesãos, de músicos, físicos, capelães, letrados, escudeiros, confessores, homens de palácio, todos forasteiros, e vindos de Castela; para a alta-roda de finas maneiras exprimir-se em língua alheia, sobretudo em castelhano, e deturpar e corromper o idioma próprio; prevalecia uma atmosfera de gozo eufórico; e governantes e seus apaniguados instalavam-se em grande, alimentando um luxo de minoria. Administração e corte de Lisboa, sem política e sem vontade, inutilizavam ou desaproveitavam os homens de fé e de isenção. Para lá dos mares, pela África e pela Índia, ainda se batiam alguns homens de carácter; mas a empresa das navegações, a manutenção dos domínios, a feitura das naus, haviam-se transformado em negócio especulativo e em lucro de comissões aos favoritos e oportunistas; a escolha dos capitães do mar e dos capitães de armas dependia de nepotismo, de apoio de facções ou grupos da corte, da intriga, e não de mérito ou experiência. E no reinado seguinte, de D. João III, e sem embargo das virtudes pessoais do homem, tudo se agravou. Foram subjugados pelo espírito cosmopolita, inspirados por outros e por interesses de outros, a corte, o escol, os grandes mercadores, e alhearam-se do cerne vital do país; e em causa foram postos os valores, os princípios, as bases em que assentava a própria independência nacional. Catarina de Áustria, a rainha, sempre se manteve estrangeira, e dominava o rei; e durante a sua regência entregou claramente Portugal ao poderio estrangeiro. Ficou a nobreza cingida ao papel de serventuária do Paço; no povo enfraquecera, se não se obliterara, a antiga e altiva consciência do seu valor colectivo e dos seus interesses permanentes; mas de algum modo, difuso e nebuloso, pressentia a campanha de desnacionalização conduzida pelos poderosos em nome de ambições pessoais ou de grupo, e até de mitos ocasionais. Por isso, alguns homens da arraia anónima, quando se discutia como educar D. Sebastião, exigiam: que «vista à portuguesa, com o seu camareiro-mor; coma à portuguesa; cavalgue à portuguesa; fale à portuguesa; todos os seus actos sejam portugueses; e com isto lhe fareis hábito para que tenha grande amor ao reino e coisas dele». Mas tudo isto importava aos dirigentes bem pouco. Com os seus grupos, estavam enfeudados ao estrangeiro, de que recebiam avultados fundos e a favor de cujos objectivos trabalhavam em Portugal [1]; e por isso, e pela sua ignorância ou insensibilidade perante a história, a visão que possuíam dos interesses nacionais conduzia-os a alinhar pelos interesses estrangeiros a política portuguesa. No fundo, a sua visão levava-os a julgar, ou a dizer, que o bem de Portugal consistia apenas em satisfazer o que outros afirmavam ser o interesse de Portugal sem se aperceberem de que esses outros estavam a prosseguir objectivos próprios e não portugueses. Era a obediência a pressões estranhas; era a prioridade concedida a problemas pessoais ou de grupo ou de classe, sobre questões nacionais; e era também a subserviência perante as ideias, os mitos, os objectivos a que os grandes poderes da época, para seu proveito, davam curso generalizado, pretendendo persuadir os mais fracos de que seria vantagem sua adoptá-los. Todos sabemos as consequências deste desvario da consciência nacional, deste ajoelhar perante ideias de fora, desta infiltração de interesses de terceiros: a perda da independência nacional.



Camões apercebeu-se de tudo isto? Sim: e para o documentar, com o seu génio e o poder divinatório da arte, legou-nos Os Lusíadas. Em 1568, ainda menino de 14 anos, reinava D. Sebastião, e Camões passou de Goa a Moçambique por 1569, devendo ter chegado ao reino por 1570. É ínfima a tença de 15$000 ao ano que lhe concede o rei, e que lhe é paga irregularmente durante três anos. Por isso se pode dizer que a vida de Camões no reino frisou pela miséria; e parece fundamentada a frase de Diogo do Couto, seu amigo, quando escreve: «e em Portugal morreu este excelente poeta em pura pobreza». Mas na sua última década de vida – entre 1570 e 1580 – Camões compreende bem a crise nacional, a decadência da sociedade portuguesa, e vê quanto estava carcomido o cerne e apodrecidas algumas traves mestras da nacionalidade. Num passo dos Lusíadas exclama:

 

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

Duma austera, apagada e vil tristeza.

 

Justamente, essa vil tristeza provinha do descaso atribuído aos problemas gerais. Camões era áspero na condenação:

 

Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse

A quem ao bem comum e do seu rei

Antepuser seu próprio interesse.

 

E por isso o poeta nos diz que:

 

Nenhum ambicioso que quisesse

Subir a grandes cargos cantarei

Só por poder com torpes exercícios

Usar mais largamente de seus próprios vícios.

 

E não havia homens que da história de Portugal faziam razoira sem mercê? Sim: eram aqueles que

 

...se desviam

Do lustre e do valor dos seus passados,

Em gostos e vaidades atolados.

 

Perante a queda, a inversão de valores, o abandono de pontos de referência só portugueses, Camões pergunta dolorosamente por que força do destino não tem Portugal

 

...um ledo orgulho e geral gosto

Que os ânimos levante de contínuo

A ter para trabalhar ledo o rosto.

 

Tudo isto se passa porque

 

Aqueles que devem à pobreza

Amor divino e ao povo caridade,

Amam somente mandos e riqueza,

Simulando justiça e integridade.

 

Para Camões, o uso da força e do poder tem de ser feito em prol do bem comum; e os que assim não procederem, não vencerão, pois

 

...a vitória verdadeira

É saber ter justiça nua e inteira.


Quantos frequentam os reais paços, diz o poeta, «vendem adulação» e possuem «honras vãs» e «ouro puro»; mas não dão aos homens verdadeiro valor, e por isso possuem aqueles bens sem os merecer.




Deste modo, e sem recurso a exegeses difíceis e eruditas, sabemos que Luís de Camões, regressado de além-mar, tomou consciência dos males do reino, dos vícios da governação, da falência dos dirigentes, da desagregação da sociedade, dos perigos corridos pela nação. E lançando um olhar a toda a história de Portugal, desce às raízes mais profundas do povo português, invoca os altos feitos, sublinha as grandes virtudes, assinala aqueles que por obras valorosas se foram da lei da morte libertando; mas por detrás de tudo, e como pano de fundo, está o povo, a massa do povo português. Verdadeiramente, o que o poeta canta é o «peito ilustre lusitano»; é o «amor da Pátria» «não movido de prémio vil», «mas alto e quase eterno»; é em suma toda «a gente lusitana». Verdadeiramente, o que o poeta reflecte, interpreta e exprime é uma consciência nacional que fixa numa linguagem nova, que recria em novos símbolos, que vive em novos heróis, que alicerça em novos valores só portugueses e de virtualidade permanente. «Camões e D. Sebastião, os Lusitanos e Alcácer-Kibir, eis aí os dois homens e os dois actos que ficaram para sempre gravados na imaginação colectiva, como uma fé e uma esperança, como um mandamento e um cativeiro» (Ol. Mart., Camões, 123). Já foi dito por alguém com suprema autoridade – Carolina Michaëlis – que a verdadeira figura dominante de Os Lusíadas é a Pátria Portuguesa como entidade colectiva. Por isso, Os Lusíadas, afirma-o a mesma ilustre senhora, são um livro nacional. Deste facto, aliás, se aperceberam os coevos do poeta, e aqueles que lhe sucederam, até a actualidade. E assim, pelo mundo culto, Camões foi havido como cantor da civilização ocidental, tesouro lusitano, expressão acabada do patriotismo português, expoente da consciência nacional.

Da consciência nacional. Este facto é de importância máxima. Explica o papel que há quatro séculos Camões desempenha na vida moral da nação, o lugar iminente que ocupa no nosso património cultural e espiritual, e justifica o culto que lhe é tributado em geração após geração. Explica também o motivo por que alguns entre nós quiseram, nos últimos quatro ou cinco anos [2], negar Camões e expurgá-lo da vida nacional e fazê-lo esquecer no ânimo do povo: é que o poeta representa as raízes de uma pátria, constitui base de apoio moral, no presente, alicerce fundamental para o futuro, e diz-nos que somos um povo que vem dos confins da história e que, se não trair o seu carácter nem alienar os seus valores, há-de ter um destino a cumprir em autonomia e num devir permanente. Fez esta reflexão o autor de o Portugal Contemporâneo: como Israel nos seus cativeiros sucessivos, o português, abraçado à sua bíblia e enlevado no sonho messiânico do sebastianismo, amassado com lágrimas, balbuciará as estrofes de Camões sempre que vir apontar no céu uma aurora fugaz de renascimento, e sempre que contemple melancolicamente o crepúsculo saudoso do seu passado perdido (Ol. Martins, Camões, 319). Sim: os que pretenderam negar Camões sabiam bem que objectivos prosseguiam: provocar uma ruptura de raiz e absoluta com o passado válido, destruir os caboucos do homem português, tentar criar um homem novo – sem passado, sem dimensão espiritual, sem travejamento moral, e por isso pobre e desgarrado, e à mercê de tudo. Em suma: um homem português que fosse jogo de novos valores políticos e sociais, de uma nova mística que integraria o povo português no messianismo alheio, em obediência a uma política e a centros de decisão exteriores. Era indispensável destruir a consciência nacional: destruir Camões significava largo passo nesse caminho. Outros, ao que parece, quiseram apoderar-se de Camões como se este pudesse ser propriedade de qualquer ideologia, grupo ou partido. Não. Aquele homem de génio, que morreu em pura pobreza, foi só português, cegamente português, incondicionalmente português. Afigura-se que está bem assim.

(In Franco Nogueira, Juízo Final, Civilização Editora, 7.ª edição, 2000, pp. 59-65).


Luís de Camões lendo Os Lusíadas, por António Carneiro.



[1] Ainda que não esteja absolutamente documentada, é crível a frase atribuída a Filipe II de Espanha: «Não tenho direito a Portugal? Então eu herdei-o, conquistei-o e paguei-o!».

[2] Repete-se: este texto foi composto, dito e publicado em 1980.