domingo, 14 de maio de 2023

Prevenção sobre a O. N. U.

Palavras pronunciadas por Franco Nogueira em 3 de Outubro de 1961 aos microfones da Emissora Nacional e da Televisão


«Quando nos mantemos no âmbito dos princípios, toma-se posição anticolonialista porque somos contra a opressão e a repressão; porque defendemos os direitos humanos, favorecemos a liberdade individual, queremos proteger a dignidade de cada homem; porque pretendemos o desenvolvimento educativo, sociológico e económico dos povos; e finalmente por ser moda. Estes são os princípios ocidentais; são as ideias que o Ocidente afirma pretender implantar em África; e esses são os princípios em nome dos quais se ataca Portugal, porque Portugal, segundo é alegado, não os estaria difundindo naquele continente. E todavia posso assegurar-vos o seguinte: quando avaliamos os resultados das políticas ocidentais em África temos de aceitar a conclusão de que não têm sido um êxito. Nunca, nem mesmo nos mais tenebrosos tempos do domínio colonial do século XIX, se produziu em África uma tão crua opressão e uma tão brutal repressão, como se processa nos novos países africanos independentes; nunca como agora foram os direitos humanos e a liberdade individual tão completamente denegados; as sociedades africanas, ao invés do progresso cultural e económico que se deseja, estão retrogradando na realidade. É este o quadro, e todos que conhecem a África sabem que é fiel.»

Franco Nogueira («Novo Debate no Conselho de Segurança», texto baseado nas palavras pronunciadas perante o Conselho de Segurança, em 9 de Dezembro de 1963, in «Debate Singular»).

 

«A pequena escala da origem portuguesa reflectiu-se num homem que cedo tomou consciência da modéstia quantitativa do agregado pátrio. Mas não a aceitou, virilmente se lhe contrapôs no campo da acção. Como diz Fidelino de Figueiredo [“Últimas aventuras”] “nenhum povo foi mais inconformado com a sua pequenez”. A nossa história exprime-se em sobre-humano esforço para sair de um círculo estreito. Esforço de compensação que teve continuidade pertinaz, jugulando as intermitências depressivas. A defesa esteve na luta aos elementos sitiadores ou restritivos (os mouros, Leão, Castela, o Oceano, a O. N. U.), ataque, negociação, habilidade, mas sempre numa exigência de sobrevalorização do homem nas escalas do heroísmo, da táctica política e da compreensão mútua. “Raça... idealista na alma, e afirmativamente heróica” segundo Oliveira Martins [“A vida de Nun’Álvares].

Foi pelo universal que nos furtámos à condenação de um menor inseguro regionalismo europeu

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).

 

«Direi uma palavra ao delegado da Malásia. Devo esclarecer desde já que, ao escutá-lo, a minha estupefacção cresceu com surpreendente intensidade. Durante momentos sem fim, julguei estar vivendo em outro mundo, como se fantasmas idosos e decrépitos emergissem de súbito de cantos invisíveis desta sala, e como se o calendário das Nações Unidas houvesse regressado a muitos anos atrás. Quero tributar a minha admiração ao esforço feito pelo delegado da Malásia, e à sua rigorosa análise e interpretação do artigo 73.º da Carta; e também admirei, sem dúvida como todos em torno desta mesa, o brilho do seu raciocínio e a confiança que parece ter depositado no valor e na originalidade das suas conclusões. Mas, Senhor Presidente, todos devemos ser caridosos e compreensivos: a Malásia só há pouco foi admitida na Organização e o seu delegado é novo nestes debates. E também devemos todos ser generosos: o representante da Malásia não teve tempo para a adequada preparação e para a ampla pesquisa de elementos, e é óbvio que uma coisa e outra lhe são muito necessárias. E por isso eu apenas direi que o artigo 73.º da Carta tem sido discutido há mais de quinze anos, e debatido, comentado, interpretado e comparado, desde a Conferência de S. Francisco. Juristas, delegados, autoridades de direito internacional, governos, instituições nacionais, têm analisado o artigo 73.º. Volumes e tratados foram escritos sobre a matéria, e o reportório das Nações Unidas e os debates da Quarta Comissão quanto a este ponto ocupam muitos tomos. Não foi por isso sem alguma melancolia que escutei o delegado da Malásia dirigir-se ao Conselho como se estivesse discutindo e interpretando o artigo 73.º pela primeira vez, e como se para todos nós fosse novidade esta questão. Sublinharei dois pontos somente. Primeiro: a interpretação inicial do artigo 73.º, adoptada pela maioria da Assembleia, era no sentido de que o preceito deixava à competência da Potência responsável definir o estatuto político dos seus territórios e decidir discricionariamente que informações acerca dos mesmos deveria submeter às Nações Unidas; e isto é o que claramente dispõe o texto; e foi esta a opinião que Portugal partilhou. Mas a partir de 1959-1960, com a entrada de novos membros, modificou a Assembleia a sua interpretação (sem que a lei fosse alterada) e chamou a si a competência que anteriormente reconhecia ao país responsável. Portugal manteve o primeiro ponto de vista e não aderiu à opinião ulterior: é tudo: e tudo isto é antigo de muitos anos. E em segundo lugar quero registar os meus reparos pela incorrecção do delegado da Malásia ao truncar, distorcer e adulterar as passagens que do meu livro quis ter a amabilidade de citar. Mas o representante da Malásia, com o seu lúcido espírito legalista, preocupou-se ainda com a Constituição Portuguesa, e invocou os artigos 133.º e 141.º para sublinhar com horror a palavra “colonização” inserta naqueles preceitos. Admitirá o delegado da Malásia que eu conheça a língua portuguesa, e por isso decerto aceitará que eu o informe de que em português há diferença substancial entre colonização e colonialismo, entendendo-se pela primeira o desenvolvimento e povoamento de uma região e pelo segundo o sistema económico e político de domínio e exploração de um território dependente. No meu país existe mesmo uma Junta de Colonização Interna cuja actividade se desenvolve na metrópole. Mas, havendo o representante da Malásia escalpelizado a Constituição Portuguesa, por que razão mencionou somente os artigos 133.º e 141.º? Esqueceu-se do artigo 1.º, que define o território português; e do artigo 3.º, que define a Nação Portuguesa e como se compõe; e do artigo 7.º, que estabelece a cidadania portuguesa; e do artigo 72.º, que regulamenta a participação de toda a Nação nos actos supremos da vida política. Tudo isto omitiu o delegado da Malásia, e haveremos de considerar a omissão como imperdoável num jurista tão distinto.»

Franco Nogueira («Contra-Ataque no Conselho de Segurança», texto baseado nas palavras pronunciadas perante o Conselho de Segurança, em 10 de Novembro de 1965, in «Debate Singular»).

 

«A ferocidade que intimida só teve de Angola efeitos contraproducentes para os que a atiçaram. O esbulho do Estado da Índia Portuguesa, não foi oficialmente aceite em Lisboa, nem pelos seus naturais em qualquer parte do Mundo. Mantém-se a província humana, como se tivesse o território de que foi privada. Os hebreus aliás provaram durante dezanove séculos ser possível manter-se uma nação sem território, para tanto basta a população e o vivo desejo de ser à parte. No maremoto industânico a gota goesa continua insolúvel.»

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).

«Em face do desastre de vastas proporções e do logro a que foi conduzida uma África traída ergue-se a política portuguesa, tradicional e renovada, simultaneamente apegada ao passado, e até saudosista, e ao mesmo tempo audaciosa e com rasgos de política de vanguarda e que, para mais, é uma política realista, profundamente humana, com os defeitos e as virtudes de uma obra humana. Não vou aqui pormenorizar todas as características dessa política. O seu multirracialismo e a sua democracia racial são pontos básicos de orientação que, logo a partir do século XV, foi dada pelos Reis de Portugal aos seus capitães do Ultramar; e são numerosas as instruções expedidas com o objectivo de corrigir abusos, de sanear defeitos de administração ou desvios individuais de algumas autoridades. Mas o multirracialismo português não é simples e pacífica coexistência étnica, o que já seria muito, mas implica uma interpretação de raças e de culturas, e como que a criação de um tipo humano novo. Aqui se aplica a expressão de Gilberto Freyre, que tem corrido mundo: é o homem luso-tropical. Quer isto dizer que não estamos apenas em face de um fenómeno sociológico de aculturação, de movimentação e transporte de culturas através do mundo. Verdadeiramente, o luso-tropicalismo é isso mesmo: um veículo transmissor de culturas. Na expressão não se contém somente um significado geográfico: não estamos somente em face da fixação lusíada no trópico; e este não é apenas uma coordenada geográfica ou uma expressão climática. Do trópico fizeram os portugueses uma expressão cultural e atribuíram-lhe uma dimensão de civilização. Porque fundamentalmente tratou-se de criar um homem novo que, partindo do trópico, pudesse caminhar para o universal. Esse homem é tolerante e, sendo cristão, admite e respeita outras formas religiosas; é de raiz ocidental mas compreende, aceita e integra técnicas e civilizações não ocidentais; e sendo educado e formado com um certo estilo de vida entende e adapta-se a outros estilos, noutros meios não tropicais e consegue não só sobreviver como prosperar e até triunfar. É um homem que ignora o preconceito rácico; que fraterniza humanamente para além das classes sociais ou do nível cultural; e que se comporta naturalmente, por todo o lado onde for mundo português ou onde houver uma comunidade portuguesa. Não se pode dizer com verdade que o português haja sido ou seja um promotor de conflitos no mundo, nem que o seu procedimento tenha contribuído para criar estados de tensão entre os homens. De um lado, o português cria uma rotina, e entrega-se-lhe, e nessa rotina baseia a sua convivência humana, a sua feição familiar, a sua lenta mas firme adaptação ao meio local. Por outro lado, o português está aberto à aventura, aos grandes rasgos audazes, aos largos movimentos de conjunto. Neste último sentido se pode e deve dizer que a empresa ultramarina foi um vasto impulso colectivo de que todos participaram; de todo o povo provinham os missionários e comerciantes, os guerreiros e os heróis obscuros, os mártires e os aventureiros, os sertanejos rudes e os cientistas esclarecidos, num caldeamento misterioso e profundo entre todos e com os meios locais; e isso explica que, desde os primeiros reis das navegações, o poder real procurasse defender e manter intransigentemente a unidade moral e espiritual da nação em torno do fenómeno do Ultramar. Foi assim que se construiu o mundo português, e que o mesmo se mantém através de todas as vicissitudes. Não há muito, compulsando um livro hostil, deparou-se-me a afirmação, que o autor fazia aliás com relutância, de que “os portugueses tinham afinal de contas sabido criar um mundo à parte, em que era difícil penetrar, mas de que ainda mais dificilmente se sairia uma vez que se houvesse entrado”. Desse mundo português fazem parte as comunidades portuguesas dispersas no mundo. São uma quantidade integrante, e mesmo essencial, daquele mundo. Peregrinar é inerente aos portugueses, e as comunidades lusíadas em solo estrangeiro constituem um foco ou expoente de portuguesismo e ao mesmo tempo um elemento de desinteressada defesa perante perigos. Veja-se como o homem goês, que se encontre livre da dominação indiana, exprime e transporta acima de tudo um valor português: sente-se muito mais em família trabalhando em Angola ou em Cabo Verde do que vivendo em Nova Delhi ou Calcutá. Esta afirmação, de resto, é válida para todos os portugueses de todas as províncias, e para todos os portugueses de todas as nossas comunidades disseminadas pelo mundo.»

Franco Nogueira («No Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa», palavras pronunciadas em 21 de Julho de 1967, no Forte de S. Sebastião da Ilha de Moçambique, por ocasião do encerramento do II Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa, in «Debate Singular»).



PREVENÇÃO SOBRE A O. N. U.


I

Parece útil procurar esclarecer, no momento actual, alguns aspectos da nossa política externa. Nem tudo poderá ser dito, decerto: porque muitos dos problemas não são apenas nossos, e ao exame público de outros opõe-se o interesse nacional. Para além destes limites, todavia, fica uma larga margem, e nessa medida afigura-se haver vantagem em proporcionar as informações possíveis. De posse de elementos de apreciação e julgamento, sem dúvida poderá a opinião pública conceder maior anuência a decisões e atitudes que de outro modo poderiam não ser claramente entendidas.


Ao espírito de todos logo ocorrerá o problema das Nações Unidas. Tiveram há pouco o seu início os trabalhos da XVI Assembleia Geral, e imediatamente o bloco afro-asiático, firmemente apoiado pela delegação soviética, solicitou a inscrição na ordem do dia de três assuntos que directamente nos respeitam: os refugiados portugueses no Congo, os acontecimentos de Angola, a nossa recusa em submeter ao julgamento da Assembleia a administração do Ultramar português. Em forma espectacular, foi pedida e aceite a inscrição, e o que deveria ter sido uma questão de processo serviu já de pretexto para alguns ataques. Nada nos deve surpreender, nem será motivo para que nos impressionemos, além do mais porque teremos de estar preparados para enfrentar, no decurso de toda a Assembleia e no futuro, novos ataques, que serão ásperos, virulentos e prolongados. Ser-nos-ão lançadas as mais graves acusações: do alto das tribunas daquela organização da paz pronunciar-se-ão brados de guerra contra Portugal; e será sugerida a aplicação das mais drásticas medidas à Nação portuguesa. Tudo isso tem importância, e comporta até algum risco, mas não exageremos uma coisa ou outra. Temos naturalmente a tendência para avolumar o que nos respeita, e o facto é compreensível; mas não devemos perder de vista que não somos as únicas vítimas. Têm sido e continuam a ser vilipendiadas a França, a Bélgica, a Holanda, a Grã-Bretanha, outros mais, e até os próprios Estados Unidos, porque não está em causa uma política ultramarina determinada, mas interesses e posições ideológicas que para triunfo de outros têm de ser subvertidas. Aproveitam-se os adversários dos nossos princípios e ideias, e usando o terreno parlamentar tentam destruir uns e outros. Em nome da liberdade têm sido esmagados povos; em nome do nacionalismo têm sido abafadas nações; e em nome da autodeterminação têm sido negados os direitos humanos. Mas não consentem os adversários que lhes apliquemos o que procuram impor só a nós, e por isso é dupla a medida de julgamento em relação a casos idênticos. Dominar o terrorismo que se infiltrou ao norte de Angola e restabelecer a lei e a ordem constituem repressão colonial e ameaça à paz do Mundo; mas a guerra sem quartel que há sete anos a União Indiana conduz para esmagar o povo Naga constitui mero caso de polícia e sobre ele faz-se silêncio; e a trucidação dos húngaros pelos tanques russos está transformada num legítimo auxílio que um governo amigo presta a outro. Mas tudo as Nações Unidas tem consentido, e pode-se dizer com fundamento que os quinze anos de vida da organização têm correspondido ao retrocesso da verdadeira independência dos povos e ao cerceamento dos direitos humanos. Agrava-se o problema, porém, ao vermos que são os próprios atacados a sustentar e a apoiar o organismo que desfecha o ataque, e a procurar fortalecê-lo e prestigiá-lo, quando precisamente aquele os pretende destruir. Este ângulo ultrapassa-nos, todavia, e a outros pertence a responsabilidade maior. Nem por isso, no entanto, deixaremos de ser atingidos, e por entre a confusão da demagogia e da irresponsabilidade não perderão as Nações Unidas o ensejo de discutir e votar algumas violentas resoluções contra nós. E devemos estar preparados para as vermos aprovadas por esmagadora maioria, porque inimigos e amigos se confundem na submissão e no pavor perante o terrorismo psicológico e as vozes tumultuárias da Assembleia Geral. Assente a poeira do debate, contudo, o resultado genérico terá sido um contributo para o empobrecimento progressivo do Ocidente, um desgaste dos princípios e dos valores humanos, uma diminuição do que deveria representar a verdadeira autoridade e a eficácia da organização. Para os que no Ocidente depositam nesta as suas esperanças, ou lhe confiam a sua política, ou lhe subordinam as suas decisões, será mais uma séria perda e uma desilusão. Por isso os atacados seremos nós, mas os derrotados serão outros.

II

E quanto às acusações que nos forem lançadas? Sem desvio da compostura e dignidade que são timbre nosso, mas com o vigor que for requerido, responderemos aos ataques, se isso for do nosso interesse, e quando o for; e isto porque não deveremos dar ao adversário a escolha exclusiva da oportunidade do diálogo, nem consentir que este nos seja imposto a seu bel-prazer; e poderá acontecer que conveniências de táctica parlamentar levem à nossa ausência de alguns debates ou a deixar sem réplica alguns ataques. Constitui método muito usado na demagogia das Nações Unidas, com efeito, formular um primeiro ataque, simplesmente provocador, na esperança de uma resposta que permita depois, para fins de propaganda, repetir e ampliar as acusações num segundo ataque mais violento. Por isso melhor servirá muitas vezes o interesse do País, além de se frustrar o intento do adversário, se perante a provocação mantivermos o silêncio, e apenas quebrarmos este quando for vantajoso. De longe, muitos parecem pensar que as Nações Unidas são comício público, e que a cada ataque que nos seja desferido há que fazer réplica imediata, sob pena de ficar diminuído o prestígio do País e afectada a sua dignidade. Não é assim. Porque esses que assim julgam esquecem que os atacantes são numerosos, e todos se repetem, e que mais se ganha em deixar que se esgotem no ataque para então se formular por nossa parte uma resposta final que a tudo responda e nos deixe a última palavra, em vez de esgotarmos o nosso poder de refutação num só golpe ou dispersando-nos em numerosas réplicas e concedendo aos outros a última palavra. E esquece-se também que o bloco soviético e o bloco afro-asiático dominam inteiramente as Nações Unidas, onde constituem maioria, e que é esta que estabelece as regras de processo, pelo que o contra-ataque dos que estão em minoria só é viável quanto para tanto houver força política parlamentar, e esta apenas poderia provir da firmeza do Ocidente, e da sua solidariedade, e da sua intenção de levar a luta ao campo do adversário no plano parlamentar da Organização. Não são estas, no entanto, as realidades actuais, e o Ocidente retrai-se, e transige, e até apoia o que representa violação da Carta da O. N. U., na convicção, ingénua nuns casos, nem sempre pura de intenções noutros, de que esse será o seu supremo interesse e de que assim ganhará na Assembleia o concurso de popularidade junto dos afro-asiáticos e a boa vontade destes. Nem a recente Conferência de Belgrado, onde não se proferiu uma palavra de simples reparo contra a União Soviética, nem o progressivo domínio da África por aquela, parecem ter sido bastantes para esclarecer os que, naquele continente e no Mundo, têm perdido uma após outra todas as posições, sem benefício dos princípios, nem da moral, nem dos direitos e da liberdade individual. Será decerto diferente no futuro, quando as grandes potências retirarem à O. N. U. o poder que agora lhe dão, e transferirem para o plano bilateral a regulamentação dos negócios mundiais.

III

Neste clima da Assembleia serão decerto aprovadas resoluções ásperas contra Portugal. Teremos de examiná-las consoante os nossos princípios e à luz dos interesses da Nação, e só na medida de uns e outros as poderemos encarar. Nem se compreende por que deveria ser de outro modo quanto a Portugal, nem por que haveríamos de nos impor sacrifícios ou transigências que nos são pedidos em nome de violações da Carta das Nações Unidas e de interesses ilegítimos de outros. Neste particular, estaremos aliás em companhia excelente. Não declarou há pouco o Chefe do Governo Russo [1] que a União Soviética não prestaria a menor atenção a qualquer resolução da Assembleia que ferisse os seus interesses, ainda que fosse aprovada por unanimidade, e que resistiria pela força se necessário? Não tem a União Indiana repetidamente afirmado que o facto de a maioria possuir um ponto de vista não significa que tal ponto de vista seja justo e de respeitar? Não sublinhou o Chefe do Governo da República da Guiné que as maiorias automáticas da Assembleia não têm valor político nem autoridade moral? Reclamamos para nós, portanto, os mesmos direitos e faculdades que outros se arrogam e praticam sem que alguém faça reparo. Não nos perturbemos pois com eventuais resoluções da Assembleia. E não nos preocupemos mesmo em cumpri-las porque, ainda que o pudéssemos ou quiséssemos, não se saberia como fazê-lo, visto a coerência e a lógica não pertencerem ao domínio da Assembleia: enquanto uns pedem a nossa expulsão, outros solicitam que cooperemos com o organismo, submetendo-lhe relatórios sobre o Ultramar. Em que ficamos? São sem dúvida espectaculares os debates nas Nações Unidas, e sem dúvida desagradáveis, e não se lhes negará significado. Mas não devem levar-nos a pensar que a nossa posição no Mundo, e no plano bilateral de governo para governo, é análoga à que enfrentamos nas Nações Unidas. Porque estas não são espelho fiel das forças mundiais e dos interesses verdadeiros: reflectem um clima e uma atmosfera que não têm correspondência na vida real dos povos. Por isso não tiremos por agora conclusões precipitadas, nem nos atemorizemos com os votos da Assembleia.


IV

Põem alguns entre nós o problema de saber se não seria viável modificar a nossa posição parlamentar na O. N. O. Se a prática da Assembleia fosse respeitada, a Carta cumprida, os princípios observados, decerto poderia ser afirmativa a resposta, e a situação actual não se teria mesmo suscitado. Mas não sucede assim: não pretendem de nós relatórios, nem cooperação, nem esclarecimentos; nem desejam saber se observamos a ética da Carta; e nem tão-pouco querem apurar se a nossa administração é sequer aceitável. Poderíamos fazer tudo isso, e seria inútil. Porque o objectivo é anexar os territórios do Ultramar; o fim é alargar o âmbito do expansionismo imperialista; o intento é enfraquecer ainda mais o Ocidente. Todas as modificações que introduzíssemos na nossa actuação em Nova Iorque, todos os relatórios que fornecêssemos, toda a cooperação que prestássemos, todas as declarações de política a longo prazo que produzíssemos, não alterariam um só voto, porque o propósito é destruir a Nação Portuguesa, e sem demora. Não encarar o problema assim no Ocidente é prova de ingenuidade, ou de intenções dúbias de alguns que talvez julguem, também ingenuamente, que poderão participar no negócio da distribuição. E estas mesmas realidades deverão constituir resposta bastante àqueles de entre nós que, conhecedores dos factos e das nossas razões, se perguntam por que não fazemos um trabalho de esclarecimento junto de outros governos e povos, de modo a evitar que estes nos acusem do que é falso e injusto. É legítima a pergunta, e assiste a esses o direito de saber que tem sido feito e está sendo feito esse trabalho, incansavelmente, e não se passa um dia nem uma oportunidade sem que todas as nossas missões diplomáticas e consulares façam nesse sentido esforços supremos junto de governantes, departamentos, imprensa e noutros meios. Mas existe um abismo entre conhecer a verdade, e haver interesse em aceitá-la, ou utilizá-la, ou respeitá-la. Mesmo que todos estejam suficientemente elucidados, atente-se em que os esclarecimentos são inúteis para os que não estiverem de boa fé, ou para aqueles que julgam ver a concretização dos seus desígnios nacionais através de outros caminhos, embora manobrem ocultamente sob a capa de uma solidariedade que pretendem fazer jogar apenas em seu exclusivo benefício. Por isso todos os pretextos de ataque são válidos; a deformação da realidade é havida como lícita; e a mentira tem hoje livre curso internacional, e não por descuido ou inadvertência mas com pleno conhecimento de que se está mentindo. A esta luz tem de ser visto o nosso esforço de esclarecimento, sem prejuízo de nele persistirmos tenazmente, como cumpre ao interesse nacional, e até ao do Ocidente, segundo alguns já vão compreendendo.

V

Noutra ordem de preocupações, afigura-se que muitos se interrogam sobre o significado da atitude de alguns países africanos, causando alguma surpresa o recente corte de relações diplomáticas por iniciativa daqueles. Haveria na verdade motivo para esta surpresa, sobretudo pela falta de fundamento da atitude e pelo prejuízo que o rompimento causou àqueles países mais do que a nós, e tanto é assim que estamos agora a ser solicitados para que restabeleçamos o comércio e as comunicações, e as carreiras aéreas e marítimas. Mas deixaremos de nos surpreender se tivermos em conta que os novos Estados, na sua larga maioria e tanto de África como de outros continentes, se tornam cada vez mais subordinados, e que está sendo progressivamente cerceada a sua capacidade de decisão autónoma. A determinação da sua política, portanto, é feita do exterior, e sob pressões e ameaças, e estas exercem-se em sentido hostil a Portugal. Porque se trata de executar o plano concebido para nos suscitar embaraços por toda a parte e ao mesmo tempo criar um clima político que justifique todas as medidas que se pretendem tomar noutros planos. Por nossa parte, reconhecemos esses Estados novos à data da proclamação da sua independência, e com aqueles que nos são contíguos procurámos estabelecer relações normais, porque pareceu ser esse o meio melhor de resolver com benefício mútuo os problemas decorrentes da vizinhança. Assim o entenderam também esses novos países, e corresponderam à nossa iniciativa, numa fase em que realmente ainda se determinavam com autonomia. Mas, vítimas como estão sendo de um novo colonialismo, e perdendo em favor deste a sua independência, têm de submeter-se a interesses e objectivos alheios, e nesse caminho estão prosseguindo sem disso se aperceberem, convictos de que basta poderem pronunciar na Assembleia de Nova Iorque discursos demagógicos e violentos para que sejam totalmente soberanos.





Agressões verbais virulentas na Assembleia Geral das Nações Unidas, cortes de relações diplomáticas, ataques fronteiriços por nacionais dos territórios vizinhos, campanhas de imprensa, abandono de solidariedades tradicionais, coligações ocultas de amigos que pretendem alargar ou construir impérios – tudo isso faz parte de um plano novo, geral, urdido com premeditação. Tudo isso parece novo, nunca visto na nossa história, e irresistível; mas não é. Trata-se apenas de emprestar força política ao terrorismo contra a fronteira norte de Angola e, eventualmente, a preparar outras manifestações semelhantes noutros territórios. Trata-se sobretudo de criar agitação política contra Portugal no Mundo. Trata-se finalmente de pôr à prova os nervos da Nação Portuguesa, e de procurar diminuir e gastar a sua capacidade de resistência moral, porque nesta encontram os adversários o seu grande, o seu maior obstáculo. Por isso e contra isso deveremos estar prevenidos e sempre em guarda.

(In Debate Singular, Ática, Lisboa, 1970, pp. 53-64).


Franco Nogueira discursando no Conselho de Segurança da ONU (1963).



[1] Nikita Khrouchtchev, ao tempo Presidente do Conselho de Comissários do Governo Soviético.

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