quinta-feira, 18 de maio de 2023

Dois caracteres da geografia portuguesa que mais prepararam a diferenciação política de Portugal na Península Ibérica

Escrito por Jaime Cortesão




«Durante o período galaico-moçárabe constituem-se, pois, as bases da futura língua portuguesa, que surge já então diferenciada como um forte dialecto românico, denunciando a existência duma comunidade social e espiritual entre as populações do Ocidente; e dá-se um novo arranjo no povoamento, com a concentração das populações nos estuários navegáveis, por meio de uma actividade marítima, ainda que de carácter irregular. Estes factos (...) dão, a nosso ver, um aspecto novo ao problema das origens da Nação. Nem Herculano, nem Oliveira Martins estavam na razão, um ao negar nexo essencial entre Portugueses e Lusitanos, outro quando atribuía a formação de Portugal a um acto de vontade individual dos barões portugalenses, isento de toda a influência da geografia e duma comunidade social anterior.

Antes que ao conde D. Henrique fosse atribuído o governo do condado portugalense havia-se lentamente realizado um facto, de maior alcance, para o futuro, que todas as iniciativas imediatamente posteriores dos indivíduos: a constituição dum núcleo social, um povo unificado pela língua e pronto a adquirir, pela arrumação sobre o território, o carácter atlântico essencial à definição suprema da Nação. No Ocidente da Península havia desde já a possibilidade em marcha dum novo Estado. Os chefes do século XII e dos seguintes foram (o que não lhes apouca a estatura), sim, os suscitadores dessa promessa.»

Jaime Cortesão («Os Factores Democráticos na Formação de Portugal»).


«Exprime-se a história pátria em movimento, com dilatação espacial sucessiva, quase sem continuidade terrestre, do território e das áreas de influência de um povo a assimilar outros, a contornar ou iludir obstáculos ante poderosas forças naturais e políticas adversas, mas reservando o ataque para momentos supremos ou propícios. Nessa história que manifesta surpreendente vitalidade, age uma linha de força vigorosa bastante para superar as depressões temperamentais da psique, não poucos erros e crises gravíssimas, e se definir ainda em criação civilizadora.

Isso fixou-se no idioma, já muito antes individualizado, em riqueza e plasticidade dos verbos; a língua lusa espelha fielmente um povo que se atirou à acção, inconformado com a sua pequenez, cujo espontâneo recurso esteve na multiplicação pelo heroísmo, no entendimento e mistura com os demais povos. Daí o seu valor existencial.

São abundantes os verbos, extremamente flexuosos, complexas as formas verbais, decerto porque a acção teve de ser a cada passo elástica, enleante, dissimulada, que não rectilínea. Expressões matizadas corresponderam a outros tantos modos e oportunidades de fazer, – de ir fazendo gradualmente, sinuosamente, ou de rompante, num relâmpago impetuoso.

Algo de aquático há na língua portuguesa independentemente das metáforas e “locuções do mar e da terra”, tónicas fortes contrapostas a vogais surdas, timbres reduzidos cuja frequência é notória; serena maioria de palavras graves, variedades dos timbres vocálicos, nasalizações e ciciamentos; avessa à nitidez sónica das substâncias duras, sem o cortante dos metais e o fragor dos embates metálicos; envolvente mas discreta e confidencial, nela responder não tem a sonoridade estrídula do contestar castelhano. “Una lengua que es un halago, sobre todo para los que tenemos hechos los oídos al recio martilleo del huesudo castellano”, disse Unamuno.

Língua de “povo secreto”, a expressão oral é dificilmente captável pelos estrangeiros, ainda que familiarizados com a escrita, por que aos seus ouvidos o português “come” grande parte das vogais e as frases aparecem-lhes quase reduzidas ao “esqueleto” consonântico. Pouco solene para o drama, presta-se à poesia, ao segredo e à ternura, dispondo para isso do recurso de vocábulos em extremo suaves, umbrosos (saudade, meiguice, soturno, luar, nevoeiro, mágoa, voo, dor, devagar, entre os anotados por estrangeiros) alguns intraduzíveis, e de muitos diminutivos carinhosos. Refractária, dado o seu carácter existencial, aos absolutismos e esquemas do pensamento abstracto e linear; ou dificultando-os, serve maravilhosamente as reticências, o claro escuro do processo reflexivo. Orgânica, não geométrica, aplica-se-lhe a instintiva catilinária de Aquilino contra as frases curtas, trinchantes, e a favor da semelhança que a elocução verbal deve manter com o arranjo biológico, distribuída “em pernadas, ramos, folhas, como as árvores”.

Dotada ainda com muitos vestígios de rústica simplicidade, não será da sua índole a descarnada expressão, no entanto conseguida por alguns poetas, tal como outros escritores conseguiram ductilizar-lhe as rudezas da construção primitiva. E a gama correntemente neutra, mortiça da nossa fala permitiu, não obstante, a móbil magnificência, com sonoridade oceânica, da épica de “Os Lusíadas”.

Ao considerar sua pátria a Língua Portuguesa, Fernando Pessoa dilatou legitimamente as fronteiras da pátria às da nação psicológica e espiritual possibilitada pela utilização de um idioma como o nosso – joeirado repositório dos interesses, predilecções, experiências e convívios, de estados de alma, atitudes mentais, instintos e inibições, apurado ou ganho e junto a viver à parte, mas abarcando o Globo. Grande nação psicológica, e actuante, está sem dúvida num idioma cujo multiplicador de expansão fora do País e do continente de origem é o maior de todos: - 10 (9 milhões de indivíduos que o falam na Europa e 90 nas outras partes do mundo)».

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa», 1971).



«Quando, com D. Afonso Henriques, o Condado Portucalense se torna o Reino de Portugal, é a re-sacralização do território, uma re-sacralização cristã, que vai dar-lhe legitimidade transcendental, introduzindo-o, por assim dizer, numa nova história escatológica.

O espaço territorial luso-galaico tinha (...) tradições míticas e sacrais antiquíssimas, mas elas perdiam-se na noite dos tempos e não afloravam à consciência cristã da nova monarquia, da nova nobreza e das ordens religiosas e de cavalaria, que traziam os valores místicos e cavaleirescos de Cluny, de Cister e do Templo. O seu trabalho subterrâneo ao nível do inconsciente continuou (...) a persistir, mas afeiçoado à saga da reconquista e do espírito de cruzada.

Por outro lado, numa época em que não havia ainda história, os tempos anteriores, o romano, o suevo, o visigótico, eram confusos, eram caóticos. O adversário estava nomeado: era o mouro. Estamos perante uma guerra de religiões.

Motivo tanto mais imperioso para que o reino recém-nascido à revelia de muitos interesses criados e até, a princípio, sem a sanção da Santa Sé, procurasse firmar-se a um nível que não podia ser somente o do voluntarismo político.

A independência confirmava por certo uma originalidade cultural com raízes fundas no contexto peninsular, uma diferença caracterizada por diversos factores e que já existia, como vimos no Livro I, desde o período dolménico, quando no nosso sudoeste ibérico se desenvolvera uma original civilização megalítica, em contraste com a rude “cultura de las cuevas” do resto da Península. Os próprios lusitanos já se tinham distinguido dos outros povos ibéricos, tanto pela sua cultura como por terem sido os que mais resistiram ao domínio romano.

Mas a independência não seria um factor suficiente se as origens de uma nação, a sua génese, a sua própria existência não tivessem a envolvê-la uma atmosfera numinosa. Era necessário fazer ascender o reino a um estatuto carismático, dentro do sistema religioso cristão. Era perante este que a autonomia precisava de justificar-se. Portugal nascera, não pela vontade de poder de um Príncipe, mas porque tinha um destino, uma missão, uma finalidade superior, de ordem religiosa. O Príncipe era mais do que um senhor feudal aspirando a ser o rex, era um princípio, era ele o portador de um carisma ou de uma graça, era um predestinado.

(...) Não nos interessa rastrear com rigor a génese das lendas áureas que deram a D. Afonso Henriques a auréola de um herói agraciado, protagonista de um clássico mito das origens. O importante é mostrar como elas surgiram muito cedo no imaginário dos Portugueses e como estavam já estabelecidas nas épocas decisivas de afirmação da nossa personalidade nacional, para que contribuíram decisivamente.

Efectivamente, se o reino era de fundação divina e se o nosso primeiro Rei não recebera a investidura de sua própria Mãe, nem de Afonso VII, Rei de Leão e de Castela, Imperador de Espanha, em ambos os casos revoltando-se contra o direito feudal, nem sequer da Santa Sé, que tardaria cerca de 40 anos a como tal reconhecê-lo, mas sim do Altíssimo que sobrenaturalmente o elegera e protegera, tínhamos então já a primeira premissa para a criação de uma transcendental confiança nos destinos da pátria, garantida pelas divinas promessas, na expressão de Sampaio Bruno, que efectivamente acompanhou os Portugueses na maior parte do seu percurso histórico.»

António Quadros («Portugal, Razão e Mistério. O Cálice da Última Tule», Terceiro Volume).







Dois caracteres da geografia portuguesa que mais prepararam a diferenciação política de Portugal na Península Ibérica

Num pequeno estudo, que recentemente publicámos sobre O Problema das Relações entre a Geografia e a Autonomia Política de Portugal,[1] fizemos notar que os dois caracteres da geografia portuguesa, que mais prepararam a sua diferenciação política na Península, são aquilo a que chamamos o contacto cruciforme entre os seus diversos elementos geográficos e a convergência atlântica dos seus caracteres. Seja-nos lícito transcrever desse estudo as palavras que se lhes referem:

«I – Assente no flanco ocidental da meseta, numa longa vertente preenchida pelas planícies de aluvião, considerado em conjunto e grosso modo, o território de Portugal realiza um contacto cruciforme entre uma série de elementos geográficos diversos: de oeste a leste, e entre o mar e a planície, e entre esta e as diversas formações do seu relevo bem como do da Península; do norte a sul, entre a região de aquém do Tejo, de forte altimetria e abundante pluviosidade e irrigação, e as planícies e as pleniplanícies adustas de além do Tejo. Na realidade o contacto é mais complexo e dá-se de norte a sul e de oeste a leste, entre uma diversidade riquíssima de elementos, formando uma espécie de mosaico de terrenos geológicos, de regiões e paisagens, em contraste com a maciça uniformidade dos planaltos interiores da Península.

«II – Este contacto de elementos vários por outra forma se enriquece e, por assim dizer, ganha sentido: no seu conjunto os caracteres da constituição geográfica de Portugal unem-se naquilo a que chamaremos uma convergência atlântica:

a)   A posição geográfica de Portugal tornava os seus portos, além de estações forçadas da via marítima, que une o Sul e o Norte da Europa, as melhores escalas de comércio e navegação deste continente para a África, a América Central e Meridional e a Ásia;

b)  O território português forma uma longa faixa rectangular no sentido da fronteira atlântica, facilitando o contacto duma grande variedade de terrenos com o oceano;

c)   No seu conspecto orográfico essa longa faixa rectangular forma um anfiteatro irregular, voltado para o Atlântico, situação privilegiada de exposição que explica o seu clima temperado e marítimo e a sua riqueza fluvial. Ajustando-se a esta faixa anfiteátrica, os rios do Norte de Portugal, como o Vouga e o Mondego, descem do N.E. para S.O., e os do Sul, como o Sado e o Mira, de S.E. para N.O., dispondo-se no conjunto como as varetas de um leque a que tivessem partido as extremidades convergentes;

d)    Não só por este motivo o território português é extremamente rico de rios que nascem dentro do seu solo; como o pendor ocidental da meseta faz que quatro dos maiores rios da Ibéria venham desaguar nas suas costas, uns e outros fertilizando o solo, abrindo portos e auxiliando a fixação humana na beira-mar;

e)   Uma grande estrada geográfica, próxima e paralela à estrada marítima, estabelece comunicação fácil entre o Norte e o Sul do País, permitindo um estreito contacto entre as populações costeiras;

f)       Finalmente o litoral era durante a Idade Média muito mais articulado: mais vastos e fundos, os estuários permitiam que o mar penetrasse até longe no interior das terras; e a costa desdobrava-se num maior número de obras e portos naturais, favorecendo uns e outros o aumento de população interessada no trabalho e no comércio marítimo.»

No rápido estudo, donde transcrevemos este passo, tentámos, partindo dum facto conhecido, encontrar a sua explicação parcial pelos factores geográficos. Aqui, ao contrário, abstraindo do facto histórico, pretendemos estabelecer a teoria da sua formação pela pura determinação dos factores geográficos, esquecendo por agora as restantes causas que a podiam influir. E, sendo assim, deve dizer-se que, se encararmos o actual território português nas suas relações com as províncias espanholas mais próximas, a oposição dos caracteres geográficos respectivos, olhados em seu conspecto, se observa de oeste para leste, mas não entre a Galiza e as províncias portuguesas que lhe são fronteiras. Apenas o litoral é diverso do rio Minho para o norte, mas nada no relevo, na constituição do terreno, no regime orográfico, no clima e nas capacidades agrícolas do solo distingue essencialmente aquela província espanhola das portuguesas fronteiriças...

(In Jaime Cortesão, Os Factores Democráticos na Formação de Portugal, Portugália Editora, Lisboa, 1964, pp. 20-23).


Estátua de Gualdim Pais e a torre da Igreja de S. João Baptista. Ver aqui



[1] Seara Nova, n.º 201, de 20 de Fevereiro de 1930.

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