domingo, 28 de junho de 2020

Causas da Independência de Portugal e da Formação Portuguesa do Brasil

Escrito por Jaime Cortesão



Agostinho da Silva. Ver aqui, aquiaqui e aqui






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«O que Portugal fez de maior no mundo não foi nem o descobrimento, nem a conquista, nem a formação de nações ultramarinas: foi o ter resistido a Castela. O ter mantido, através de sangue e fogo, o princípio da independência dos territórios periféricos. E o ter mostrado, naquilo que cabia em suas forças, e mais do que isso, porque verdadeira história só se faz assim, naquilo que estava muito para além das suas forças, de que modo uma Espanha livre e convivente poderia ter transformado a face do mundo. Aceita-se hoje em história de Roma que o assassínio de César, impedindo-o de levar por diante o seu projecto de romanização do mundo europeu, do Báltico aos Urais, veio pôr depois todos os problemas que resultaram da existência de bárbaros não romanizados; veio pôr o problema da Prússia e veio pôr o problema da Rússia. Uma Península livre e una, com regiões culturalmente autónomas e com descentralização administrativa; uma Península a que se tivesse estendido o sistema de governo peculiar da Idade Média portuguesa, isto é, o de, numa prefiguração da Commonwealth, haver uma companhia de repúblicas unificadas por uma coroa; uma Península que tivesse conservado aquele gosto de conversação, de "vida conversável", como diria mais tarde um navegador, para cristãos, judeus e árabes, essa Península, para lá de todas as contingências económicas, teria dado modelo ao mundo. Teria, como numa renda de bilros, dado o "pique" ao mundo. E o dito mundo, Europa inclusive, se podiam depois ter dado à tarefa de ir plantando alfinete e lançando ponto. Que foi decerto modo, o que fizeram, mesmo só com o trabalho de Portugal.

Por ter garantido a possibilidade, pelo menos em amostra, de arquitectar o que teria sido um universo verdadeiramente católico, vejo eu Aljubarrota como a maior batalha da história, a par daquela outra em que Constantino venceu Justiniano. Não apenas por isso, no entanto. Mas igualmente porque é só em Portugal que as outras nações da Península podem ver uma esperança e um ponto de apoio para uma futura liberdade. Por circunstâncias próprias, e evitarei o mais possível dizer da raça, ou de ambiente ou de economia ou de missão divina, e por vontade intrínseca e ainda por longo treinamento, porque estas coisas na realidade não se aprendem na fantasia, mas vendo e pelejando, Portugal, é, de todos os cantos da Península, o único que tem verdadeiramente génio político, talvez, de todas as gentes que falam latim pelo mundo, o único real herdeiro do povo romano.»

Agostinho da Silva («Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa»).


«A oposição mar e terra foi congraçada. Aperreados no solo, firmados em centena e meia de castelos, servimo-nos do elemento fluído oceânico, praticamente mar de ninguém na sua mais ampla extensão, para os contactos exteriores e como via pela qual nos indemnizássemos da exiguidade territorial e obtivéssemos o equilíbrio geo-político.

O êxito das devassas marítimas arrastou-nos ao limiar de gigânteas empresas cujas perspectivas saíram tais que não pudemos recuar; envolvidos no imprevisto das situações inéditas a rasgos de sonho e audácia, era espantosa a contradição entre a grandeza da obra começada e a escassez dos recursos de toda a ordem. Superar os números pequenos, multiplicá-los para serem grandes foi empresa de génio; poucos homens, pouco dinheiro, poucos, inadequados navios ao princípio, insuficiente ciência e técnica.

Só a valorização humana salvaria, pela reflexão, pela mobilidade, pelo heroísmo. Uma super-estrutura épica respondeu ao fundo lírico, um processo de sublimação quase reduziu a letra morta as embaraçosas condições iniciais.

Cálculo e aventura, paciência e temeridade, sonho e matemática, exemplarmente conciliados forçaram as portas à Idade Moderna, com o derrube de quantas colunas de Hércules vedavam os caminhos do Globo.»

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»). 


«Durante muitos anos, os marinheiros que iam e vinham das Ilhas Ocidentais sabiam bem da existência de terras mais distantes. Nos arquivos de D. Afonso V, há muitas concessões de terras a ocidente dos Açores feitas a marinheiros que se propunham achá-las. A Coroa, porém, jamais auxiliara activamente a busca, deixada por completo à iniciativa de aventureiros particulares.»

Elaine Sanceau («Vasco da Gama: O Caminho da Índia»).


«A expressão especulativa do génio manifestado nos Descobrimentos só mais tarde, e de outras fórmulas, poderia surgir.

(...) Agora, a problemática filosófica, resultada da crítica aos erros dominantes nos três séculos passados, oferece ao espírito português a possibilidade de verificar a compatibilidade do aristotelismo dos coimbrões com o mais elevado e o mais recente voo do pensamento especulativo.»

Álvaro Ribeiro («O Problema da Filosofia Portuguesa»).







«Em 1496, Vasco da Gama tinha menos de trinta anos e estava ainda solteiro. Moreno e de sólido arcabouço, fisicamente duro como ferro, moralmente de retidão inconcussa, possuía um temperamento violento que sabia dominar quando era preciso e uma vontade férrea, ante a qual todos teriam de curvar-se ou quebrar. Duro comandante, severo em castigar, muito para recear quando irado, e todavia justo, era mais obedecido do que amado; inspirava, porém, cega confiança, porque nenhum perigo o fazia perder o ânimo, nenhuma dificuldade o vencia, nenhum embaraço jamais o fizera hesitar.»

Elaine Sanceau («Vasco da Gama: O Caminho da Índia»).


«(...) A tempestade no mar não se forma de repente; primeiro, sob a acção do vento, produzem-se "pequenas ondulações" imperceptíveis que, reunindo-se a outras ondulações idênticas, formam "uma mareta". Ora, o marinheiro habituado a observar as ondas percebe que essa "mareta" anuncia o mar bravo, porque a esta, embora fraca, virão juntar-se-lhe outras sucessivamente, e ao fim de algum tempo haverá grandes vagas.

Este fenómeno da tempestade, como todos os outros fenómenos da natureza, explicam-se, segundo Pinheiro Ferreira, pela "acumulação de pequenos e insensíveis fenómenos homogéneos". O todo é pois para Pinheiro Ferreira, como para Leibniz, a soma de partes infinitamente pequenas.

Como fundamento deste terceiro argumento, apresenta a teoria das acções e reacções sucessivas e diz: Se é pela acumulação de pequenas ondas que se forma a tempestade, para evitar que se venha a produzir essa grande força das ondas, bastará uma pequena força que destrua a força igualmente pequena das primeiras vagas e das que seguidamente se lhe venham juntando. Assim, estas, não encontrando as primeiras, são tão fáceis de destruir como cada uma delas separadamente.

Como o azeite, sendo um corpo oleoso, se mantém à superfície da água para evitar a tempestade será suficiente "uma simples garrafa de azeite lançada junto ao navio" mal se forma a primeira onda mais forte. O azeite destrói-a "com o seu próprio peso, e em virtude da coerência que lhe é natural com o resto da lâmina oleosa, que unida ao costado do navio se estende até uma grande distância pela superfície do mar".

Este exemplo que hoje nos parece ingénuo era considerado, por Pinheiro Ferreira, como dos mais elucidativos para demonstrar como a acção de qualquer fenómeno aparentemente insignificante se reflecte em todo o universo.

Há portanto uma ligação entre todas as partes do universo, e todos os fenómenos que nele se verificam são na verdade testemunhos dessa ligação, dessa lei cosmológica que, com estes exemplos, Pinheiro Ferreira se propôs demonstrar: "qualquer fenómeno, por mais pequeno que ele seja, assim como é efeito da reunião de todos os que lhe têm precedido na vasta extensão do Universo, assim também está ligado a todos os futuros, como razão parcial de todos eles".

É este, para Pinheiro Ferreira, o verdadeiro sentido da teoria de Leibniz, e conclui: Assim como a inteligência humana, ao observar um fenómeno, pode calcular um certo número de acontecimentos futuros, tal como o marinheiro que anuncia a tempestade, "facilmente se concebe que uma inteligência de ordem superior à humana inteligência" ao considerar o estado actual de uma das partes que compõem o sistema do mundo, nela veria representado, "como o efeito o é na sua causa" o futuro de todo o Universo.»

Maria Luiza Cardoso Rangel de Souza Coelho («A Filosofia de Silvestre Pinheiro Ferreira»).


«Os mercadores de Marrocos nas suas viagens iam até muito longe - atravessavam o Sara e o Sudão até ao Mar Vermelho passando ao oceano Índico pelo Bab-el-Mandeb. Não é de estranhar, pois, que um se encontrasse em Moçambique; o estranho seria que um habitante de Fez não conhecesse um português quando o visse. Ele devia ter sentido uma impressão desagradável ao encontrar-se com os conquistadores de Arzila e de Tânger, que andavam em guerra constante com o rei de Fez, num porto tão remoto como Moçambique. A penetração dos Portugueses no oceano Índico era um feito de grande gravidade, que não podia deixar de encher de consternação todos os verdadeiros filhos do Islão. Quando entre os mercadores do porto se espalhou a novidade, a amizade que até então haviam demonstrado pelos estrangeiros "se lhe tornou em ódio e desejo de os matarem".

Foi isto que um dos pilotos comunicou a Vasco da Gama, enquanto o seu colega se encontrava em terra, acrescentando que o sultão estava já a meditar no processo de assassinar os intrusos e queimar-lhes os navios.»

Elaine Sanceau («Vasco da Gama: O Caminho da Índia»).


«Dobrado o cabo a 22, no dia 25 fundeavam na baía de S. Brás onde as calmarias os forçavam a demorar-se até 7 do mês seguinte. Navegando uma semana ao longo da costa austral de África, chegam a 15 aos ilhéus Chãos, derradeiro termo da viagem de Bartolomeu Dias. Começavam agora a seguir as instruções do Covilhã, o piloto ausente pelas terras do Preste-João, a quem demandavam. Queriam seguir ao longo da costa, mas as correntes, a que haviam grande medo, lançavam-nos para o pélago do sul, vasto e perdido. Os marinheiros revoltam-se inutilmente: Vasco da Gama, como um destino, inexorável e prudente na sua audácia, venceu as revoltas e as correntes [Pela localização desta suposta revolta (depois da angra de S. Braz), vê-se que o Autor segue, neste ponto, o relato de Gaspar Correia. Estudos relativamente recentes, em particular, os de Pereira da Silva e Fontoura da Costa, vieram demonstrar a não ocorrência de qualquer revolta nesta viagem].

Saíam por fim do Mar Tenebroso, e só agora se podia considerar vencido o temível Cabo. As tempestades e as correntes amansaram. De dia a calma e o céu de azul puro; à noite por duas ou três vezes, no topo dos mastros, brilhava a luz de S. Fr. Pedro Gonçalves, o Sant'Elmo de Lisboa. Tudo eram promessas de bonança. Subiam aos mastros a ver os sinais do milagre, e traziam, com devoção, os pingos de cera verde que o santo lá deixara. Às vezes chegavam a brigar contra algum incrédulo, e mais de um desses pagou por ello. Os marinheiros recordavam-se piamente do seu santo, que ficara em Lisboa, e de Xabregas, onde cada ano o levavam em procissão, vestindo o melhor que tinham, pondo os seus ouros, coroados de coentros e flores, com bailes, músicas, folias e merendas, pelas hortas do arrabalde. O bom santo protegia-os: já se não rebelavam, e alegres prosseguiam, confiados também na perícia e valor do capitão, que os domava com intrepidez.

A 10 de Janeiro tomavam terra em Inhambane, comunicando com os cafres; a 22 tinham subido até Quelimane, onde vêm visitá-los a bordo fidalgos, com toucas de seda lavradas na cabeça. Pela primeira vez chegavam à Índia. Viam gentes diversas, e sinais dessa civilização distante, demandada com tanto ardor. Emergiam do mar de África e da obscura sombra do continente negro. Esses fidalgos, para quem olhavam, porém, quase com amor, como irmãos, seriam os seus mais cruéis inimigos.



Província de Inhambane em Moçambique


Gravura belga de 1598 (Petrus Kaerius).


Ilha de Moçambique


Guarita

Capela de Nossa Senhora do Baluarte






Pormenor da abóbada



Troneira. Ver aqui



Fortaleza de São Sebastião




Palácio dos Capitães-Generais




Vista da Ilha de Moçambique


Ficam um mês em Quelimane, para reparar os navios e restaurar a saúde, porque o escorbuto começara a lavrar com força nas tripulações; e, partidos, chegam em 2 de Março a Moçambique [isto é: à ilha de Moçambique]. Os sintomas anteriores aumentam: vêm mais, muitos fidalgos: estão, decididamente, às portas da Índia! Vão afinal chegar ao império do Preste!

(...) Em volta da esquadrilha fundeada vogavam os navios da terra, sem coberta nem pregaria: as tábuas cosidas a ouro, e velas de esteiras de palma. Os mouros vinham mercadejar com eles. O próprio sultão em pessoa quis cumprimentar Vasco da Gama, que o recebeu a bordo. Pediu-lhe pilotos que o guiassem à Índia, à terra do Preste-João; pediu-lhe informações acerca do famigerado imperador. O mouro disse-lhe que o Preste era um poderoso príncipe, com muitas cidades naquela costa, grandes navios e muita cópia de mercadores: foi, pelo menos, isso que o Vasco da Gama percebeu, e tais novas encheram-no de alegria.»

Oliveira Martins («História de Portugal»).


«Aquelas naus [ancoradas em Melinde] eram as que os portugueses supunham propriedade de cristãos e por eles tripuladas. Os indianos foram visitar Vasco da Gama e o irmão [Paulo da Gama]. Eram homens de aspecto grave e barbados, de cor acobreada, altos e bem-feitos, vestidos com roupas de algodão branco; o cabelo, usavam-no como as mulheres, saindo-lhes as compridas tranças dos turbantes. Falavam um árabe arrevesado, explicando que aquela não era a sua língua. Pareciam ter má opinião dos "mouros", dizendo que os portugueses faziam bem em não acreditar em nada do que os Muçulmanos dissessem, pois as suas palavras nunca se encontravam de acordo com o que sentiam. Um conselho destes era quase desnecessário. Se eles tinham os "mouros" em má conta, Vasco da Gama não podia deixar de concordar com eles.»

Elaine Sanceau («Vasco da Gama: O Caminho da Índia»).


«Mostrou-se depois o sultão pérfido, e a esquadrilha, sem os pilotos, foi seguindo, costeiramente, até Mombas [Mombaça] (8 de Abril) [aliás, 7], onde um acaso a salvou da traição que os mouros lhe preparavam. Eles tinham descortinado já perigosos concorrentes nesses homens vindos por mar às regiões que, desde a Arábia, o Egipto e a Núbia, eram até aí império seu e indisputado. Salvo por um milagre, Vasco da Gama seguiu a Malinda [Melinde] (15), onde o sultão o acolhe bem; mas não confiando mais nesses fidalgos do Zangebar [Zanzibar], aproveitou de um mouro que se deixara ficar a bordo em Moçambique, e que sucedeu conhecer a rota para Kalikodu [Calecute]. Fizeram-se ao mar, e em vinte e seis dias (24 de Abril a 19 de Maio, estavam na Índia [Vasco da Gama avistou terra a 17 ou 18, e só fundeou a armada em Calecute, a 20. Note-se que o Autor até a 3.ª ed. da sua obra deixou escrito 20. A passagem para 19 fez-se de seu punho do exemplar que serviu à 4.ª]. Durara a viagem dez meses e onze dias.»

Oliveira Martins («História de Portugal»).


«Se Vasco da Gama quisesse dar um presente ao samorim, mandasse-lhe ouro. (...) Vasco da Gama achou insuportável o desprezo, corou e zangou-se. Os mercadores e os negociantes levavam ouro, respondeu com altivez, mas ele era embaixador! Os embaixadores não andavam carregados com o vil metal.»

Elaine Sanceau («Vasco da Gama: O Caminho da Índia»).


«Por esse tempo, na Índia - e com este nome designamos todas as costas e ilhas incluídas entre os meridianos de Suez e de Tidor, e entre 20.º de latitude S. e 30.º N., teatro das campanhas portuguesas - na Índia, dizemos, raças estranhas impunham uma espécie de domínio em tudo semelhante ao que foi depois o dos portugueses: um monopólio comercial-marítimo, e como consequência dele feitorias, colónias e Estados. Os povos que nós íamos despojar desse domínio eram os árabes e os etíopes, os persas, os turcomanos e os afegãs, que, descendo do Mar Vermelho e do Mar da Arábia confundidos na onda religiosa do islamismo, tinham avassalado a península do Indo ao Ganges, e a África Oriental desde Adal até Monomotapa. Estendendo-se para o Extremo Oriente, iam, como nós fomos, até Camboja e Tidor nas Molucas, através do Arakan e do Pegu, da península de Malaca, e de Birma e Shan (Sião) no continente, através de Sumatra e Bornéu e pelo meio do arquipélago de Sunda. A todas essas gentes chamaram os portugueses mouros, expressão genérica já usada na Europa para designar os sectários do Islão, e por isso também adoptada agora que, tão longe e através de tantos mares, íamos encontrar-nos de novo, frente a frente, com o turco, antagonista do cristão em todo o mundo.

"Al diablo que te doy! Quien te trouxe acá?" assim um mouro de Túnis, em Kalikodu, cumprimentava o português: e como em Moçambique e em Mombas, os mouros (usaremos doravante esta expressão genérica, já explicada) induzem ou obrigam o Samudri-rajá (Samorim), rei ou conde - a Índia vivia num regime símile-feudal - de Kalikodu, a exterminar os portugueses. Kalikodu era o empório comercial da costa do Malabar, e os domínios do seu rajá formavam o chamado reino de Canará.»

Oliveira Martins («História de Portugal»).


«Em contacto permanente com a Árabia, o Egipto, a Pérsia e a África Oriental, Calecute foi visitada, já no tempo de Ibn Batuta, por mercadores da China, de Samatra, de Ceilão e das ilhas Maldivas, chegando a ser o principal empório da costa indiana. Em cada ano chegavam ali mais de seiscentos navios, não havendo qualquer produto asiático que ali se não encontrasse. Ao mesmo tempo que a pimenta indígena, o gengibre e a canela, que foram levados primeiro pelos árabes àquela costa, e especiarias como cardamomo e cana fístula e o tamarindo, podiam-se comprar ali a noz-moscada, o cravo, a cânfora, o sândalo, o âmbar, o marfim e os mais finos tecidos de algodão, seda e brocados, laca e porcelanas e outras mercadorias tão finas como estas, provenientes do Extremo Oriente e da China.»

Elaine Sanceau («Vasco da Gama: O Caminho da Índia»).



O Forte de Angediva construído pelos Portugueses














«Convencido ou violentado, o rajá manda perseguir os navegantes, que embarcam e se defendem (Agosto 30). Depois de uma estação de alguns meses na ilha de Angediva, sobre a costa, Vasco da Gama decide voltar; e fez-se de vela para Portugal em 10 de Julho de 98 [A largada de Calecute verificou-se em 29 de Agosto. Não se compreende que O. M. diga que a partida de Angediva se fez aos 10 de Julho desse ano, tanto mais sabendo que reconhece ter-se demorado a armada algum tempo em essas ilhas. A verdadeira data da largada para Melinde é a de 5 de Outubro de 1498]. Um ano depois, no mesmo dia, chegava a Lisboa [Aliás, quem nesta data (10 de Julho de 1499) chegou a Lisboa foi Nicolau Coelho. Vasco da Gama só chegou em fins de Agosto ou começos de Setembro. Note-se que o A. antes assinalou a partida de Lisboa como realizada em 8 de Julho]. Na viagem, separou-se da frota Nicolau Coelho em Cabo Verde e Vasco da Gama veio pela Terceira, sepultar aí o irmão que morrera no mar [Paulo da Gama morreu na própria ilha Terceira].»

Oliveira Martins («História de Portugal»).


«Angediva ["Anche-diva" - as cinco ilhas], que outrora fora um florescente posto avançado do reino de Bisnaga, declinara desde que os Muçulmanos haviam começado a navegar entre a Índia e o Mar Vermelho. O distante reino hindu apenas mantinha uma vaga autoridade na costa, e os Árabes acharam a ilha um útil ponto de abastecimento de madeira e de água para as suas esquadras. Fazendo-o, vexavam e tiranizavam os indígenas hindus, até que a maior parte deles abandonou a ilha, indo para o continente. Os sectários do Profeta tinham conscienciosamente destruído o templo dos Descrentes, que jazia em ruínas, mas o povo ainda ia em piedosa romaria, atravessando o braço de mar, para orar perante aquelas pedras negras que haviam sobrevivido ao naufrágio.»

Elaine Sanceau («Vasco da Gama: O Caminho da Índia»).


«O empirismo suscita frutos na cosmografia e na arte de navegar. O movimento dos Descobrimentos recapitula a experiência templária, mantida em rigoroso sigilo no património da Ordem de Cristo.»

Pinharanda Gomes («Empirismo», in «Dicionário de Filosofia Portuguesa»).


«Não me falta na vida honesto estudo/ com longa experiência misturado/ nem engenho.../ cousas que juntas se acham raramente.»

Luís de Camões («Os Lusíadas», Canto X).


«Foi realmente uma espantosa viagem. Nada de igual se vira no mundo antes. Só na ida, Vasco da Gama e os seus homens andaram quatro mil léguas seguidas. A viagem completa, de ida e volta, tinha maior comprimento do que o equador à volta da terra.

(…) A de Colombo - trinta e seis dias de simples navegação à vela, ao sabor dos ventos alísios - não pode comparar-se, como demonstração de perícia náutica, à de Vasco da Gama para dobrar o Cabo, longa, difícil e sinuosa.»

Elaine Sanceau («Vasco da Gama: O Caminho da Índia»).


«Três tradições concorrem na formação do pensamento português: a judaica, a cristã e a islâmica. Difícil será determinar, na história da Península Ibérica, quais os filósofos mais estudados antes da Reconquista Cristã.

(...) Convém lembrar que o Infante D. Henrique foi protector dos estudos teológicos que, no seu tempo, já eram professados na Universidade Portuguesa. A preocupação do Aquém e Além-Mar, de desvendar os mais terríveis segredos da Natureza, torna-se ocupação dominante da razão que pretende resolver os problemas humanos. A descoberta do caminho marítimo para a Índia, de nova relação do Ocidente com o Oriente, tem um significado mais alto do que aquele que pode ser registado na unificação moderna da geografia com a astronomia.

As três tradições portuguesas decorrem à margem da disciplina clássica e impregnam muito mais a alma popular (como se verifica pela análise linguística, estilística e literária) do que o humanismo espanhol, francês ou italiano, de falsa imitação dos autores gregos e latinos. A distinção entre a filosofia mediterrânea e a filosofia atlântica ainda caracteriza o reinado de D. Manuel I. Depois a mitologia humanista vai a pouco e pouco tomando nas artes a preponderância que antes pertencera às três tradições portuguesas.»

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).


«Ali, onde o largo rio entra no atlântico, e os navios de todo o mundo vêm a Lisboa com gente de todas as nações, a primeira vista de Portugal havia de lhes mostrar uma igreja magnífica, toda branca, monumento de agradecimento ao Céu, hino de louvor de pedra. (…) Os seus ornatos seriam todas as maravilhas do mar; conchas e algas das profundezas marinhas enfeitar-lhe-iam as colunas; âncoras e cabos de navios enroscar-se-iam à sua volta. Na porta principal, Henrique, o Navegador, mostrar-se-ia de pé, segurando a espada de cruzado e olhando para o mar. Um pouco menos, em destaque, D. Manuel, junto da rainha, apareceria ajoelhado, ao lado da porta menor, em frente do altar.

No primeiro mês do primeiro ano do novo século abriram-se os alicerces de pedra da grande igreja. À beira do rio azul, sob o céu azul, ela lá está, batida de luz dourada, edifício de sonho, fantástico, profusamente ornado, exuberante, corporizando uma visão do oceano e dos pontos remotos da Terra.

No mundo cansado dos nossos dias, ante os olhos de gerações desiludidas pelas bênçãos (e os horrores) do progresso, a igreja de D. Manuel em Belém conserva, como num sacrário, a esperança e a fé sempre jovens, maravilha e êxtase de um povo ainda impoluto, a contemplar a alvorada de uma nova era.»

Elaine Sanceau («Vasco da Gama: O Caminho da Índia»).



Mosteiro dos Jerónimos



Infante D. Henrique (Portal Sul).
Afonso de Albuquerque. Ver aqui e aqui



«Os navegadores portugueses descobriram o caminho marítimo para a Índia, fazendo o percurso pelo cabo da Boa Esperança, em 1498. Em face dos documentos coevos, pode assentar-se que era triplo o objectivo que levara os Portugueses ao Oriente - comercial, político e religioso, este estreitamente ligado ao fim político. Desviou-se deste modo o comércio do Oriente com a Europa, feito por Suez e pelo Mediterrâneo, e traçou-se-lhe uma nova rota pelo Atlântico, fazendo de Lisboa um empório comercial. O facto traria a decadência às repúblicas italianas e diminuiria o poderio turco. Por outro lado, enfraquecer o poderio turco, tornando insegura a retaguarda no mar Vermelho e no Índico, e aliviar assim a pressão exercida na Europa, consideraram-no os Portugueses da época mais eficaz que a resistência frontal que foi durante muitos anos a estratégia das potências do Ocidente. Por último, "fazer cristandade", missionar os povos, levar-lhes a mensagem de Cristo era como um imperativo da Nação portuguesa, fielmente traduzido nas ordens emanadas dos Reis. Quando se lêem, por exemplo, as cartas de Afonso de Albuquerque (1507-1515) e de D. João de Castro (1538-1548), mais vivas por sua natureza que os depoimentos dos historiadores, é-se empolgado pela largueza das concepções políticas, pela audácia e ao mesmo tempo realismo dos planos e por essa ânsia de levar a todo o Oriente a fé, a cultura, a alma ocidental. O empreendimento revela-se, no fundo, mais idealista que utilitário: o monopólio comercial não era, enquanto pudesse manter-se, senão a fonte indispensável dos recursos para fazer face às duas outras finalidades.»

Oliveira Salazar («Portugal, Goa e a União Indiana»).


«Com a irrupção dos Portugueses na cena da Índia, desaparecera para sempre a soberba confiança do poderio islamita. Nunca mais dominaria todo o comércio da Ásia; nunca mais barraria o acesso às terras das especiarias; nunca mais poderiam os seus exércitos ameaçar a Cristandade, seguros de terem todo um continente atrás de si. De futuro, embora o império do poderio otomano aumentasse, o sultão sempre se voltava inquieto para o Ocidente onde no coração do Islão se introduzira um inimigo que podia, em qualquer ocasião, esmagar as forças do Crescente pela retaguarda.

Fora essa solução que a Cristandade sonhara. Já no século XIV, quando o poder do Egipto se tornou ameaçador, o dominicano Guilherme Adam insistira com Génova para construir uma esquadra no Golfo Pérsico, e mais tarde um colega seu, Jean de Soverac, propusera que se contruíssem navios junto da costa da Índia. Todas essas ideias eram fantasiosas e impraticáveis num período em que às costas do oceano Índico apenas havia chegado viajantes isolados e por terra. O descobrimento do caminho marítimo à volta do Cabo trouxera-as ao caminho da realidade. Claro que a luta não acabara ainda. Ainda se travavam batalhas nos confins da Cristandade, mas, como o poderio cristão já assentara posições no Oriente, não havia dúvidas quanto ao resultado final. A Europa não seria devastada e dominada pelas hordas da Ásia.

Quer se previsse quer não este resultado a largo prazo, os resultados económicos da viagem da Índia tornaram-se visíveis desde o início. Com a chegada da esquadra de Pedro Álvares a Lisboa, mudou-se o eixo do mercado da pimenta.

Ali estavam toneladas de pimenta para vender - por um preço insignificante em relação ao habitual! E a canela, "dicono o comprano um canter di canela per un ducato et meno", queixava-se o embaixador de Veneza em carta para a Senhoria. "Felicite-me!", respondeu D. Manuel com suavidade ao italiano. E propôs que Veneza mandasse as suas galés a Lisboa para obter especiarias!

A notícia aterradora espalhou-se pelos portos do Mediterrâneo oriental, onde o preço de todas as especiarias armazenadas imediatamente baixou! A pimenta, o gengibre e a canela viriam, de futuro, directamente, das regiões produtoras. As grandes repúblicas italianas, que haviam enriquecido com o negócio das mercadorias orientais, que chegavam ao seu poder por muitos e vários caminhos, encontraram-se a braços com a ruína.

Mas aquilo seria pimenta autêntica? perguntavam os desconfiados mercadores do Norte. Talvez não fosse da mesma que costumava vir do Levante. Mas o artigo demonstrou ser autêntico e a resposta dos capitais foi imediata. Os grandes banqueiros António Welser e os irmãos Fugger de Augsburgo, que pensavam abrir uma sucursal em Génova, estabeleceram-se antes em Lisboa.

Naquela época, houve uma corrida geral para Lisboa. Florentinos e flamengos, alemães e holandeses, apresentavam-se com o seu capital para especularem no mercado das especiarias, enquanto Veneza multiplicava os seus espiões e peitas para obter segredos geográficos e comerciais, mas em vão - o Adriático já não podia rivalizar com o oceano.

Continuavam a afluir ao Tejo todos os anos todas as qualidades de especiarias. Dali eram expedidas ao longo da costa do Atlântico para Bruges e Antuérpia, que se tornaram centros distribuidores. O eixo económico da Europa oscilou do Oriente para o Ocidente.

E a vida europeia sofreu uma modificação. A ligação do subcontinente ocidental com o mundo asiático não só rasgou horizontes até então nebulosos e obscuros, mas trouxe até novos padrões de vida. O que noutro tempo havia sido o luxo dos ricos tornou-se amenidades vulgares do povo simples. A pimenta, o gengibre e a canela enchiam as despensas da dona de casa da classe média; um aluvião de musselinas finíssimas de Bengala entrou em casas que até então apenas conheciam os pesados panos de linhos; os delicados tecidos de Cambala tornaram-se familiares a toda a gente, com o nome de cambraia; os tapetes orientais substituíram as esteiras sobre a fria pedra do chão; uma grande quantidade de ervas medicinais enriquecia os armários dos boticários; o chá e o café fizeram a sua aparição com o decorrer do tempo; e a transparente porcelana chinesa começou a ver-se ao lado da louça de ouro e prata nas mesas dos ricos.»

Elaine Sanceau («Vasco da Gama: O Caminho da Índia»).







«Sei perfeitamente que não tenho autoridade alguma para tratar dos problemas de organização política de Portugal, mas não será por isso que deixarei de expor aos Amigos, nesta e noutras Cartas, as ideias que me forem surgindo sobre o assunto. Quanto à sua história, tal como a vejo, e podem decerto discordar os especialistas, creio que o Estado Português se pode olhar como que em duas faces distintas: foi a primeira, de Afonso Henriques, ou mesmo de Dona Teresa, até Dom Dinis, aquela em que teve como preocupação máxima a de estabelecer, desde o que o Noroeste da Península lhe deixasse até o mar do Algarve, e desde o vizinho espanhol, ou antes, castelhano até à costa atlântica, um perfeito jardim, na sua original e dupla significação de alimentícia horta com algum bosque e de paraíso de flores e perfumes e cores, como tal o resguardando o último rei citado, uma vedação de castelos vivos, de pinheirais que não permitissem a invasão das areias. Assim poderia ter continuado até hoje, assim porventura o quereria Herculano, mas rumaram os tempos de outro jeito, e o Estado que veio depois, com Afonso Quarto, e até nossos dias se manteve sem modificações de real importância, foi o que se lançou, fora de Portugal, ao maior empreendimento que jamais tentou e realizou a humanidade, a ela própria alargando do que pensavam as estreitezas da Assembleia de Atenas ou do Fórum Romano ao infinito de estruturas e faces e culturas que nunca tinha sido imaginado. Dentro do País, porém, tudo foi doutra forma, e talvez não pudesse ter sido diferente: o mais desastroso possível para os portugueses que, por inércia ou amor ao ninho, se não aventuraram ao mar e às terras descobertas nem tiveram grande interesse pelas novas estrelas: se aniquilaram os melhores pela obscuridade ou a perseguição e uma estagnada mediocridade a tudo recobriu. Ao que esse Estado criou fora não podemos senão admirar, ao que impediu dentro só temos por dever o libertar e o desenvolver com rapidez e decisão: acho que o é possível e pelo menos, se não possível, obrigatório, podendo o trabalho não ser de muita demora desde que não tenhamos pressa de mais. Aventura, agora, a nós guardada.»

Agostinho da Silva («Carta Vária»).







Jaime Cortesão



CAUSAS DA INDEPENDÊNCIA DE PORTUGAL E DA FORMAÇÃO PORTUGUESA DO BRASIL


Em anos recentes dois dos maiores pensadores e historiadores espanhóis, discordando embora na forma de encarar e definir a essência e a estruturação histórica de Espanha, num ponto estiveram de acordo: segundo eles, a formação de Portugal como Estado independente foi obra do acaso, mero acidente, fruto amargo de circunstâncias infelizes.

Advirta-se, para nos darmos bem conta da importância deste parecer, que os dois historiadores, a que nos estamos referindo, Américo de Castro, mais filósofo e historiador da cultura, e Cláudio Sanchez-Albornoz, medievalista eminente, são ambos de passado e tendências liberais. Não os ofuscam veleidades tardias de imperialismo. As suas obras, mau grado discordâncias fundamentais, atestam agudo lume de entendimento e uma vastíssima base de erudição.

O primeiro, em seu trabalho, tão original como discutido, Espãna en su Historia, Cristianos, Moros y Judios, aparecido em 1948, inclui um capítulo com este sugestivo título: «A Portugal lo hacen independiente». Do segundo, em Espãna, un enigma historico, obra-polémica, visando refutar as conclusões da primeira, publicada em 1957, há todavia, um capítulo que não discrepa do primeiro e assim chamado: «Portugal, un azar historico».

Para Américo de Castro, Portugal nasceu como resultado da ambição individual do conde D. Henrique, vigorosamente sustentado pela política do abade D. Hugo de Cluny e da Casa de Borgonha, assim como graças à debilidade de Afonso VI, debatendo-se em meio das terríveis dificuldades da guerra civil. Sem os condes borgonheses, Portugal não teria existido como nação independente. Eis, nas suas linhas gerais, a sua tese.

Não destoa, nem pela epígrafe do capítulo, nem pela essência e o tom depreciativo, Sanchez-Albornoz. Pequenas divergências separam os dois. Portugal, segundo ele, nasceu por obra da ambição e da habilidade manobreira de Henrique de Borgonha e de sua mulher D. Teresa, que se aproveitaram com êxito das guerras intestinas, que perturbaram o reinado de D. Urraca; e pelo talento político, a energia e os dotes militares do filho de D. Henrique e de D. Teresa. «Poucos momentos históricos, escreve, terão sido mais propícios à separação de uma comunidade humana regida por um caudilho audaz e capaz.» A separação de Portugal teria sido, pois, em seu entender, um fruto peçonhento da guerra civil.

Extremista dentro desta corrente de opinião, Oswaldo Spengler, o autor da Decadência do Ocidente, foi ao ponto de afirmar que, sem a vinda para Espanha do conde D. Henrique, não existiria hoje o Brasil, como Estado de formação portuguesa, na sua origem, e a própria comunidade luso-brasileira, património comum de civilização, evoluindo para uma estruturação política apropriada, são da mesma forma artifícios do acaso, que não existiriam sem o alto devanear de um abade clunisiano e as ambições de um conde borgonhês.

Aqui roçamos já pelo delírio do erro, ou seja, considerar o nascimento de uma nação como um simples acto de vontade individual, produto de circunstâncias fortuitas, desligado de todo o condicionamento da geografia, das peculiaridades económicas e dos antecedentes espirituais.

Todavia, a indiscutível autoridade dos dois primeiros, autênticos mestres do pensamento e da história de Espanha e o prestígio literário do segundo merecem particular atenção. Haverá no que dizem toda ou uma parte de verdade?

Que um conjunto de circunstâncias políticas de ordem peninsular - o advento da cultura francesa (incluindo a expansão da ordem de Cluny em abadias vassalas) e a desagregação da primeira tentativa de imperialismo castelhano tenham favorecido a formação de Portugal, como Estado independente, é irrecusável. E esta confusão entre o espiritual e o temporal com subordinação deste àquele, haviam de favorecer também, por intermédio da Ordem de Cister, as pretensões de D. Afonso Henriques. As igrejas românicas do Norte (Cluny) e a gótica de Alcobaça (Cister) testemunham e exaltam essa intervenção.



Brasão de Cluny







Cristo congraçando São Bernardo de Claraval, por Francisco Ribalta



Mosteiro de Alcobaça









Implantação dos Cistercienses na Borgonha do século XII



Que uma comunidade básica de cultura assinale a pré-história, a proto-história e, ainda que em menores proporções, a história dos povos peninsulares, é igualmente indiscutível. A história de Portugal, como a de Aragão ou a de Castela, só pode compreender-se no âmbito de um esquema comum, em que a etnografia, designação ultrapassada, tem de ceder a palavra à antropologia cultural, e de um paralelismo oscilatório de tendências. Portugueses e Castelhanos, Galegos e Andaluzes, são ramos do mesmo tronco. Netos dos mesmos Avós. E renegam-se a si próprios, numa parte da sua humanidade, os que tentem recusar essa profunda irmandade hispânica. Não hesitaríamos até em subscrever a frase de Albornoz: «São comuns a todos os povos da Hispânia os êxitos e as derrotas de cada um deles».

Posto isto, à laia de exórdio, estarão Américo de Castro, Sanchez-Albornoz e Spengler na razão, quando levam às últimas consequências da interpretação do passado, aquela comunidade de cultura pré-histórica e fraternidade ibérica, implícitas na história peninsular?

Acusa Sanchez-Albornoz os Portugueses contemporâneos, que não reconhecem o carácter fortuito do nascimento de Portugal, de sofrerem de sarampo nacionalista. Fora o caso de nos perguntarmos se não seriam antes os dois eminentes pensadores espanhóis a sofrer do morbo imperialista, endemia castiça, sempre pronta a exasperar-se nas almas dos Castelhanos.

Por muito respeito que nos mereçam aqueles dois mestres e a admiração que tenhamos pelas congeminências pessimistas do terceiro, certo é que, à luz da compreensão contemporânea da História, aqueles pensadores procedem como um botânico que tentasse definir e classificar uma planta, abstraindo das raízes e sem a menor ligação com a terra em que bebem a seiva. A acreditarmos os três, o povo e o Estado portugueses seriam entidades abstractas, peninsulares por única e última essência, a que tanto dava ter nascido no finisterra atlântico da Europa, como na meseta ou nas ribas levantinas da Ibéria. É desde logo desconhecer esta verdade elementar: quanto mais o passado do homem recua no tempo, tanto mais a História se molda sobre a geografia.

Um ilustre historiador contemporâneo, Fernando Braudel, criou até um neologismo - a geo-história - para designar as primeiras idades do homem, em que ele obedece estritamente às determinantes do meio físico. Só mais tarde, e pouco a pouco, o homem se liberta desse pesado fatalismo, para inserir na vida a sua vontade criadora e humanizar a terra. Mas a geografia prefigura a história e a estirpe vital dos povos afunda as raízes na leiva em que nasceram.

Da estreita penetração entre a Terra e o Mar vai, pois, nascer o Português com os seus modos de vida típicos, o seu carácter, o seu idioma, a sensibilidade religiosa e as expressões artísticas, flor suprema de uma espiritualidade própria.

Tanto a formação de Portugal, como Estado independente, não é obra meramente circunstancial que, a meio das divagações negativistas, da pena de Américo de Castro salta esta centelha de verdade: «Portugal nasceu e cresceu pela sua vontade de não ser Castela». E acrescenta: «...ao que deve indubitáveis grandezas e também algumas misérias».

Se Portugal nasceu e cresceu pelo desejo de não ser Castela, donde lhe vinha essa pertinacíssima vontade?

A resposta ou antes um começo mínimo de resposta dá-lhe Sanchez-Albornoz, quando afirma que D. Afonso Henriques começou por «explorar a animosidade de Portugueses e Galegos, para exaltar o sentimento localista das suas gentes». E se havia um sentimento localista que inimizava os Portugueses contra os Galegos, quanto mais forte não seria ele contra os Leoneses e Castelhanos?!

Sentimento localista antigalego é, ao fim e ao cabo, a forma depreciativa de esconder uma realidade fundamental. O que, na verdade, impeliu a grei portucalense do conde D. Henrique de Borgonha, e, por consequência, a de seu filho, foi um sentimento de ocidentalidade atlântica, pré-e-proto-nacionalista. Entre os luso-galaicos desde o Minho ao Tejo e os Moçárabes do Alentejo e Algarve havia uma comunidade de cultura e sentimento que se traduzia já então pela irmandade de dois dialectos, distintos do romance da meseta. Desde o I até o III Afonso, os monarcas portugueses puderam conquistar e assegurar a posse das províncias do Sul, graças à contínua cooperação das populações moçárabes. O conde D. Sesnando para o centro do País, Gonçalo Sem-Pavor para o Alentejo e o mercador Garcia Rodrigues para o Algarve são os representantes históricos e os símbolos de uma comunidade, tão antiga e sólida, que não fora sequer destruída pela profunda aculturação islâmica.

Alentejo


Cidade de Portalegre








Imagem de Satélite da Península Ibérica







Essa irmandade ocidental obedecia às linhas gerais da geografia e, por sua vez, da economia.

De todas as regiões da bordadura hispânica - a Cantábria, a Catalunha, Murcia e Valência, Andaluzia e a faixa ocidental atlântica, nenhuma mais diferenciada da meseta central do que a portuguesa, pelo contacto mais íntimo e prolongado com o Atlântico. Um grande número de caracteres geográficos de Portugal funda-se naquilo a que chamamos uma convergência atlântica.

Antes de mais, a sua posição geográfica na ponta sul ocidental da Europa e à beira da estrada marítima formada pela corrente das Canárias e os alisados do nordeste, tornava os seus portos, além das escalas forçadas da via marítima que une o Sul ao Norte daquele continente, o seu melhor cais de embarque para a África, as Américas Central e Meridional e a Ásia. Ocupados que fossem os arquipélagos dos Açores e Cabo Verde, Portugal possuía ainda as projecções europeias mais próximas do Novo Mundo, excelentes escalas e bases navais para alcançar o continente americano. Rasgado com frequência por estuários mais ou menos largos, uma estrada geográfica, próxima e paralela à estrada marítima ocidental, estabelece comunicação entre o Norte e o Sul de Portugal, facilitando assim a unidade de formação dos seus núcleos humanos.

Teobaldo Fischer emitiu a opinião, partilhada por J. Brunhes, da semelhança de «a situação geográfica entre Portugal independente em relação à Espanha, com a da Holanda independente em relação à Alemanha», sublinhando que nenhuma «outra região da Península, como Portugal, está intimamente ligada ao mar, que pelos grandes estuários penetra profundamente até o interior das terras». Com maioria de razão os dois geógrafos teriam salientado aquele facto, se houvessem conhecido que durante a Idade Média quase todos os estuários dos rios portugueses eram muito mais largos e profundos, permitindo um contacto maior do homem com o mar; e que um grande número de portos então existentes desapareceram completamente devido às transformações seculares que têm regularizado as costas portuguesas. Antes que os progressos do assoreamento obstruíssem os seus estuários, o Minho, o Lima, o Vouga, o Mondego, o Tejo, o Sado, a ribeira de Portimão e o Guadiana permitiam a navegação em profundidade até o interior do território português. E por uma feliz disposição da natureza, a meio da costa ocidental, uma baía admirável, defendida pelo estrangulamento de um estuário, o do Tejo, permitiu capitalizar em Lisboa, com a produção e o tráfico, a direcção do Estado e torná-la, em dado momento, a grande metrópole marítima e cosmopolita do Ocidente, onde se concentraram produtos e fundiram influências da Europa, da África, da América e da Ásia.

Largando de uma grande testa de estradas marítimas, a expansão portuguesa no Mundo fez-se sobre as grandes linhas naturais de navegação intercontinental, traçadas pelos ventos e as correntes. Antes de descobrir e colonizar os outros mundos, Portugal descobriu e traçou as estradas, que aí levavam. Quando os Portugueses, para colonizar os Açores e comunicar com as feitorias-fortalezas de Arguim e da Mina, descobriram o turbilhão de ventos e correntes da bacia média do Atlântico, que descreve uma elipse entre as costas de Portugal e o golfo das Antilhas e estas e o ponto de partida, haviam traçado o esquema em que veio assentar a primeira viagem de Colombo. Por sua vez, a formação portuguesa do Brasil estava implícita nos alisados do nordeste, que nascem nas costas de Portugal e na corrente equatorial do sul, que arrasta irresistivelmente os veleiros para as costas brasileiras. A fundação de Moçambique e da província do mesmo nome, como, a seguir, a de Luanda e de Angola, nasceram do aproveitamento de duas escalas insulares entre a estrada marítima de Lisboa para a Índia e do Brasil para a África.

Por sua vez, a formação portuguesa do Brasil, tal como hoje se contém dentro das suas fronteiras, adaptou-se à grande unidade da floresta tropical de planície, que se alarga entre as bacias do Amazonas e do Prata e sobre a qual se fundara igualmente uma unidade cultural indígena e pré-histórica. A geografia e a antropologia cultural daquele continente prefiguravam, antes de Cabral, o Estado Brasileiro.

Ter dado, em todos estes casos, expressão humana e política às determinantes naturais pela vontade de não ser Castela, ou melhor, de ser ele próprio, eis o factor máximo da independência de Portugal e, permita-se a expressão, a grande afirmação do génio nacional.



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Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Ver aquiaqui, aqui e aqui






E, pois que a poesia é uma das formas de captar a oculta realidade, socorramo-nos de Camões:


Eis aqui quase cume da cabeça,
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a Terra se acaba, e o Mar começa,
E onde Febo repousa no Oceano...


Mas corrija-se o verso definidor do Épico. É na Espanha que se acaba a Terra; e só o Oceano começa em Portugal. Vénus tinha razões de sobra para proteger os Lusíadas, como faz no poema. Irmãos da Deusa Anadiómena, eles nasceram também do Mar.

A História de Portugal assenta e desenvolve-se sobre os fundamentos geográficos e os humanos da pré-e-proto-história. Os lusitano-celtas, romanizados e cristianizados, segundo tendências próprias, são os mais antigos avós dos Portugueses; e desde logo se distinguem dos povos da meseta hispânica. O género de vida típico da Nação, formado na escola de Normandos e Árabes, ou seja o comércio marítimo a distância, alargado a todo o litoral português, que durante a Idade Média se estende até os portos atlânticos e mediterrânicos da Europa, torna-se impulso vital dos Descobrimentos; a língua portuguesa, cujos caracteres originais remontam ao século X, ganha, pelas suas locuções específicas, sabor de vivência náutica; e na sequência da religião dos Celtas e do priscilianismo, tão impregnado de laicismo e amor à Natureza, um cristianismo profundamente franciscano, alma cordial da Grei, dá sanção religiosa à expansão ultramarina dos Portugueses.

Estas influências projectam-se no além-mar e nas criações humanas da expansão. O Estado do Brasil, como Gabriel Soares de Sousa já no último quartel de Quinhentos lhe chamava, obedece nas suas origens ao mesmo género de vida típico da Nação. O Brasil nasce na beira-mar, com a plantação da cana sacarina e o comércio marítimo intercontinental do açúcar.

Uma formação espiritual idêntica marca a sua história. O próprio fenómeno do bandeirismo, ou seja a expansão do Brasil até as suas fronteiras naturais, facto que, segundo Rui Barbosa, melhor definia a história brasileira, tem a marca de origem portuguesa. Falaram Rui Barbosa e Alcântara Machado da identidade profunda entre o marinheiro e o sertanista. Assinalou o segundo que ao capitalista da bandeira se chamava armador e ao aviamento armação, como se de navios se falasse; e que à bandeira se chamou também frota e descobrimento.

Recordemos, por nossa parte, que varar e varação no varadouro, manobra de passagem das canoas por terra de um rio para outro, prática tão corrente entre os bandeirantes, são termos náuticos; que ao traçado do caminho da bandeira se chamou roteiro; que as monções, frotas de canoas que partiam em época certa de São Paulo para Mato Grosso tomaram o nome dos ventos alternados do oceano Índico onde os Portugueses formaram a palavra sobre a raiz indígena; e que as minas gerais, assim como os campos gerais, típicos do Estado do Paraná, evocam o mesmo nome com que os pilotos lusos designavam os ventos alisados, que sopram regularmente sobre vastas regiões dos oceanos. Num documento dos começos do século XVIII fala-se na beira das minas de oiro e campos gerais, «a que chamam vulgarmente a ressaca». Finalmente, dava-se o nome de restingas às formações de mato, isoladas no campo, ou ao rebotalho das terras lavradas, onde os mais pobres iam minerar. Quer dizer: as palavras que significam método, organização, continuidade e as que definem caracteres de produção e acidentes de relevo são portuguesas e importadas da marinharia; põem na formação da bandeira a marca indelével de um povo de cultura náutica; e denunciam no bandeirante um sentido de espaço, enriquecido pelas viagens interoceânicas.

Portugueses e brasileiros natos, tornados bandeirantes, conservam-se fiéis ao mar e à linguagem de bordo. Passaram a navegar os sertões em frotas humanas, ao ritmo certo das monções, e alargando as gerais através das restingas até os limites estéreis donde se regressa na ressaca.

Não é menos frisante do ponto de vista religioso essa continuidade essencial. Um grande historiador brasileiro, Capistrano de Abreu, postulou com autoridade de mestre, ainda que por vezes arbitrária, que não podia escrever-se a história do Brasil, antes da história da Companhia de Jesus. Este parecer peca apenas pela excepção, pois estaria mais certo dizer-se que não podia escrever-se sem a história de todas as ordens, que marcaram o espírito do Português e do Brasileiro; que auxiliaram a tornar sedentário o índio, que atenuaram o choque entre os aborígenes e o adventício; e ajudaram o desbravador civil a assentar no fundo do sertão os padrões que demarcaram as fronteiras.

Ao que nos parece, o que na história da formação espiritual do Brasil, se atribui a Santo Inácio deve-se mais a S. Francisco. Dir-se-á que a Ordem dos Menores não teve em terras de Santa Cruz uma acção tão extensa e intensa, como a da Companhia. É certo. Mas na medida, - e foi decisiva - em que o Português contribuiu para a formação do Brasil, essa participação fez-se sob a inspiração do Poverello.

Francisco de Assis, pintura de José Benlliure y Gil


O Português, cujo carácter nacional se formou durante os primeiros séculos da sua história, foi educado em duas escolas: a da cavalaria andante, disciplinada e dirigida contra o Islão, e a do franciscanismo - as duas fortes raízes em que mergulha a sua acção de povo descobridor e colonizador de outros mundos. Pelo espírito cavaleiroso confunde-se o Português com o Espanhol. Pelo franciscanismo, diferencia-se. Ambos são capazes de empunhar a lança de D. Quixote para lutar e perder-se por um ideal. Mas, enquanto o Espanhol, por uma tendência inata à transcendentalização do real estará sempre pronto a atacar os gigantes que visiona por detrás das velas do moinho, o Português, mais humana e humildemente, ao passar, com frequência encosta a lança à porta para aproveitar o ensejo feliz de moer o seu grão.

No fundo é esta a mesma diferença que vai de Santo Inácio a S. Francisco. Um quer o triunfo, a exaltação e glória de Deus ad majorem dei gloriam, programa de milícia, que não esquiva, antes busca o combate, o outro: realizar a Cristo na Terra, pelo regresso às virtudes simples e humildes do Evangelho.

O que no Brasileiro, como no Português, há de fraternidade cordial, de tendência à tolerância e ao perdão compreensivo, de optimismo confiante, jovialidade e efusão generosa, de simplicidade terra-a-terra, filia-se no cristianismo franciscano, em que durante séculos, em Portugal, se educaram todas as classes desde o rei ao vilão.

Símbolo dessa educação foi e é o culto, tão solidamente arreigado no coração do povo português e brasileiro a Santo António, ou melhor a Santo Antoninho, isto é, não ao santo real e histórico, mas ao que foi moldado e adoçado, conforme o modelo popular e franciscano de santidade.

Durante os quatro séculos da sua história, os dois cultos mais populares do Brasil foram o de Santo António e o do Espírito Santo, ambos de origem portuguesa e medieval. É que o franciscanismo, embora formado durante a Idade Média, foi, na verdade, a aurora do Renascimento e, como tal do Brasil.

Eis as razões que nos levam a propor esta rectificação da história: o Franciscanismo foi e é alma do Brasil; o germe primitivo, que resistindo a tantas intempéries, veio crescendo até hoje; o impulso, que vai desde a primeira missa rezada por um franciscano no ilhéu da Coroa Vermelha, no Porto Seguro, até as orações cívicas de Rui Barbosa, que definiu o espírito civilista e liberal, o sentido de solidariedade americana e o universalismo próprio da civilização brasileira, como foi da portuguesa.

Se há na vida portuguesa alguma actividade que nos seja própria, que represente continuidade histórica e se nos tenha imposto como um imperativo nacional, essa é a da nossa existência como nação daquém e dalém-mar. Assim se explica que tenhamos preservado até hoje na defesa do património ultramarino com uma obstinação, por vezes mais de instinto que da consciência de uma necessidade vital ou razão profunda de Estado.

Todavia, na cartilha do cidadão português deviam figurar em lugar primacial as razões que nos levaram noutros tempos à obra de expansão nos demais continentes, onde nos desdobrámos em Estados ou germes de Estados; e quanto se nos impõe o dever de conservar e actualizar esse património, acomodando-nos ao ritmo da civilização a que pertencemos.

Na discussão das causas que determinaram a nossa expansão além dos mares, com frequência se esquece uma das razões essenciais e que poderíamos enunciar pela seguinte forma: os Portugueses foram descobrir e colonizar terras alheias para conservar a própria. A luta com o Mar foi uma continuação de Aljubarrota, como esta fora já uma reivindicação da nossa personalidade de nação atlântica.




Tem-se dito e com razão que os Portugueses, após três quartos de século de esforços, conseguiram com o descobrimento do caminho marítimo para a Índia, resolver um dos mais graves problemas que a Idade Média legara à Europa - o do comércio com o Oriente, entravado desde o século XIII e progressivamente com o desenvolvimento do poderio muçulmano. Mas, porventura, nos interessava directamente a solução do problema? Ele era vital, sim, para as repúblicas italianas, Veneza, Génova, ou para a Confederação Aragonesa, das quais o tráfego oriental se tornara a base da riqueza e poderio. A Portugal, só como escala no trânsito do comércio entre o Mediterrâneo e o Atlântico, indirecta e diminutamente interessava. Mas, do ponto de vista geográfico, da formação e vocação atlântica, nenhum outro país reunia condições tão eminentemente favoráveis para empreender a solução do grande problema do comércio cosmopolita. Éramos a base, em potência, da expansão do Ocidente e da unificação da Humanidade. A conjuntura económica e política, internacional e nacional e um cristianismo franciscano, amoroso da Natureza, impeliam-nos a realizar aquela missão.

Que se teria passado se a grei lusitana não tem assumido o papel que a geografia lhe indicava? Em verdade a situação externa de Portugal nos começos do século XV, era particularmente melindrosa, dada a sua contiguidade com a nação rival - Castela. Esta, que saíra vencida da sua primeira tentativa de absorver-nos, estava pronta a aproveitar todas as ocasiões de engrandecer-se, enfraquecendo-nos. Se não possuía as mesmas aptidões geográficas da praia lusitana, não obstante, Sevilha e os portos vizinhos da foz do Guadalquivir, assim como os do Mar Cantábrico, entretinham nesse tempo uma extensa e intensa actividade marítima e poderiam tornar-se a base de um movimento de expansão geográfica, que de facto já começara com as tentativas para dominar a navegação do Estreito e de conquista das Canárias. Se os Portugueses não houvessem, em 1415, iniciado, com a conquista de Ceuta, o seu plano de expansão territorial e marítima, ele viria muito provavelmente a ser executado por Castela. E Portugal, sem um sentido próprio e fecundo de nação, haveria mais tarde ou mais cedo regressado à condição de uma simples divisão provincial da Península, destinada a fornecer mão-de-obra marinheira a uma Espanha imperial, em plena expansão além dos mares.

Mas Castela estava fraccionada pelas lutas entre a realeza e os senhorios feudais e entestava pelo sul com o reino mouro de Granada, cuja conquista era condição preliminar da sua expansão em Marrocos e no Atlântico. Ao contrário, os Portugueses, em pleno florescimento das franquias democráticas dos concelhos, tinham adquirido uma admirável unidade política, graças à vontade de ser livres e eles próprios. E o Mar... era o seu reino de Granada.

Não teriam eles, a começar pelo Mestre de Avis, compreendido a necessidade de se anteciparem aos Castelhanos na faina de balizar o mar e ocupar as escalas das grandes estradas marítimas? A sensibilidade ao perigo castelhano era por demais aguda e comprovada a capacidade de enfrentá-lo vitoriosamente para que os Portugueses mais esclarecidos e responsáveis renunciassem às garantias de independência e grandeza que o mar lhes oferecia. E basta relancear um olhar sobre a situação interna do País para se compreender que só uma razão de salvação nacional nos poderia ter lançado naquela época a um movimento de expansão. O Reino contava um escasso milhão e poucos habitantes; charnecas, pântanos e matagais bravios cobriam a maior parte do País; paupérrimos de indústrias necessitávamos de importar os principais produtos manufacturados; e as classes imperfeitamente evoluídas formavam um corpo social mais equilibrado. Corríamos, com a aventura ultramarina, o risco de aumentar esse desequilíbrio, como veio desastrosamente a suceder. Não faltaram Velhos do Restelo com seus eloquentes avisos. Mas impunha-se-nos o dever de nos anteciparmos a Castela, afirmando a nossa personalidade essencialmente atlântica.

Hoje e decorridos mais de cinco séculos, permanece a necessidade vital de sermos fiéis às condições da nossa independência.

Quando Sanchez-Albornoz, em España, un enigma historico, denuncia o nacionalismo anti-científico de alguns historiadores portugueses contemporâneos, dá-lhe por causa, quer a falta de fé «no valor da liberdade volitiva dos povos para dispor dos seus destinos», quer o temor à crise das estruturas políticas nacionais, «em transe de verter-se em comunidades humanas mais amplas». Talvez nestas considerações, embora pequem por alheias à realidade e demasiado genéricas, se contenha um aviso salutar. Que a estrutura de Portugal ultramarino corra, na situação actual de Portugal, graves riscos, poucos o ignoram. Mas supomos que nem todos se apercebem do caminho a seguir para fazer-lhes frente.

Raras vezes na história nacional terá sido mais necessário chamar à consciência activa dos seus deveres os Portugueses, acomodando-nos, como acima dissemos, ao ritmo da civilização a que pertencemos. E isto, em consulta, mais do que de amizade, de continuidade com o Brasil. E quanto antes. (in Os Factores Democráticos na Formação de Portugal, Portugália Editora, 1964, pp. 247-265).

Ver aqui, aqui e aqui






Fotografia aérea de uma pequena parte da Amazónia brasileira próxima a Manaus, Amazonas.



Paisagem da Amazónia a Oeste de Manaus, no Brasil.


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