segunda-feira, 15 de junho de 2020

O Sacrifício

Escrito por Elaine Sanceau



Promontório de Sagres























Infante D. Henrique (quadro de Malhoa). Ver aqui



«D. Henrique não cultivava as intimidades - nem com os irmãos que amava, nem com os pais a quem era dedicado, nem com os amigos e criados a quem pudesse estar profundamente afeiçoado. D. Henrique não confiava a sua alma a ninguém. Não nos deixou qualquer livro tão revelador como o "Leal Conselheiro" de D. Duarte; nem a manifestação das suas opiniões em qualquer assunto, como fez D. Pedro na "Virtuosa Benfeitoria". Este membro duma família comunicativa manteve sempre a sua reserva até ao fim, e levou para o túmulo os segredos da sua alma.»

Elaine Sanceau («D. HENRIQUE, o Navegador»).


«O Infante de Sagres encarna um caso feliz e superior da mistura de sangues, como aliás a "ínclita geração" a que pertenceu. Entre latino e anglo-saxão, o seu génio, dos mais completos da História, é o de um "apaixonado metódico". Nele se confunde monoliticamente a sonhadora ebulição e o ardor da vontade dos meridionais, com a persistência e o espírito prático dos fleumáticos, capaz de subordinar a afectividade aos rumos intelectuais de acção e às exigências desta.

Místico e negociante, cruzado e sábio, motor imóvel de navegações, sonhador e calculista da Aventura, teve de fazer a ciência, os homens e o dinheiro que um sorvedouro implacável consumia. Até o monopólio da indústria dos sabões obteve, a braços com enormes despesas, num orçamento que as altas receitas jamais equilibrariam, tão ilimitada era a empresa.

Metido no seu promontório de onde custava arrancá-lo, torre de comando feita de rochas a pique avançando sobre o mar, aí lhe principiava o mundo só de oceanos e terras virgens. Espírito fervente e solitário, movia sistematicamente uma devassa geográfica sem par e a valorização das terras novas. Em tudo pensava numa entrega total.

Ocorre duvidar-se dos sentimentos desse homem, sacrificando um irmão cativo em Tânger, não diligenciando o bastante para evitar o desastre do outro em Alfarrobeira. A sua absorção na empresa marítima porém explica tudo, mesmo essas falhas de afecto. Deu-se com o Infante uma especialização da emotividade pelo estreitamento do campo da consciência que naturalmente o inibia para o que não estivesse no interesse fundamental.»

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).


«Os geógrafos medievais parece que tinham conhecimento da existência de ilhas no Atlântico, pois as salpicavam com exactidão variável nos seus mapas. O que os historiadores ainda não averiguaram é precisamente até que ponto tal conhecimento era experimental. Encontram-se tão poucos documentos autênticos relativos ao assunto, a questão tão emaranhada com lendas e conjecturas, que as investigações foram dar a becos sem saída, ou deixaram o investigador perdido num labirinto.

Quem foi o primeiro a ver as ilhas encantadas do Oceano? A história dos seus primeiros tempos poderia escrever-se na névoa marinha. Tais fragmentos da perdida Atlântida, luminosos como país das fadas, que se erguem perante a visão dos mareantes como miragem acima das vagas ou desaparecem na névoa azul para lá dum rasto de espuma, têm andado nas lendas europeias desde os tempos mais remotos. As Hespérides, as ilhas dos Bem-Aventurados, a ilha das Aves de S. Brandão, as ilhas Afortunadas - parece que se perderam e acharam e tornaram a perder de espaço a espaço, durante mais de dois mil anos. Tão próximas da Europa ou da África do Norte, que um navio costeiro levado pela tormenta poderia facilmente ser impelido para as suas costas, e tão pequenas, não obstante, e tão isoladas por léguas de mar desconhecido, que um marinheiro pouco hábil que desse com elas uma vez por acaso poderia nunca mais conseguir lá voltar.

Estas ilhas pairaram assim durante séculos na orla dos conhecimentos europeus, até que o grupo das Canárias, que estavam relativamente perto do continente, foi o primeiro a surgir da lenda para a luz. Exactamente quando ou como isto se deu é vago, mas ao tempo de D. Henrique haviam já sido conhecidas de várias gerações - quase tão bem como nós hoje conhecemos os arquipélagos mais isolados do oceano Pacífico.»

Elaine Sanceau («D. HENRIQUE, o Navegador»).


«O rei D. Duarte aparece-nos como sentimental. Emotivo muito secundário, hesitante e frouxo de vontade. A sua verdadeira vocação era o estudo, o espírito pendia-lhe à melancolia. O desastre de Tânger e especialmente o cativeiro de D. Fernando levantaram-lhe problemas morais que, incapaz de resolver, lhe amarguraram a vida que assim foi breve. Príncipe esclarecido e justo, deixou-nos a marca da sua sabedoria em livros e leis.

Traços evidentes de fleumático apresenta o Infante D. Pedro. Activo, pouco emotivo, extremamente secundário. Avesso à demagogia, interessado mas isento, desprezando as honrarias, com a consciência perfeita, sempre igual, dos ditames do dever e das obrigações sociais dos dirigentes. Constante no trabalho e no temperamento, incorreu, ao menos uma vez, na desastrada explosividade dos frios, feita de ressentimentos dominados. O valor intelectual e moral fez dele uma das figuras mais nobres e clarividentes da época, vitimada contudo pelas ambições que não reconheceu e pelas intrigas de que se alheava. A mesma ordem de ideias exigiria o temperamento mais forte de seu sobrinho neto, D. João II, com actos de raposa e de tigre, a fim de ser imposta ao nosso meio.»

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).


«A alma do Infante tem de procurar-se noutra parte. Um reflexo dela deu-no-lo para sempre Nuno Gonçalves no seu tríptico admirável, que representa os cavaleiros e mareantes da corte de D. Afonso V ajoelhados perante S. Vicente. Entre os adoradores vê-se D. Henrique - homem que já não é novo - gravemente vestido de preto. Tem a testa profundamente enrugada, boca triste firmemente fechada e olhos fitos no espaço.

É esse quadro o que mais nos aproxima do Infante de Sagres. De todos os grandes homens que alteraram o curso da História, D. Henrique é o que mais estranhamente se isola. O que ele realizou está escrito em letras de luz - a sua personalidade escapa-nos.

III - Painel da Aliança no Espírito Santo e IV - Painel da Missão das Ordens de Cristo e de Aviz


Em volta da esfíngica figura lavram as controvérsias - argumentam os historiadores e os psicólogos não se entendem. Foi exaltado até aos céus e venenosamente criticado desde o seu tempo até hoje. Envolto na sua impenetrável reserva, passa indiferente, enquanto uns queimam incenso e outros lhe atiram pedradas.

Nunca homem público algum procurou tão pouco a luz da ribalta. Filho, irmão, e tio de reis, sucessivamente, poderia ter desempenhado papel primacial na política. Propositadamente, afastou-se sempre e levou vida isolada. Ajudou os irmãos, quando o dever o pedia, prestou ao sobrinho o auxílio que lhe requereu, mas as suas aparições na cena pública eram uniformemente breves. Na primeira oportunidade virara costas à corte e concentrava-se na sua tarefa preferida.

Até nesta parecia não procurar glória para si. A sua paixão era puramente objectiva, e, enquanto outros realizavam os feitos, ele contentava-se com ser o seu promotor oculto. Ler a história de D. Henrique é ler o que outros homens fizeram sob a sua inspiração.

Encontra-se sempre na sombra, mas a sua presença adivinha-se. Os seus mareantes sentiam a força impulsora que os não deixava descansar, enquanto não tivessem descoberto. Ano após ano, via partir as suas frotas em busca das terras ocultas para lá do horizonte azul, e, ano após ano, as caravelas de regresso entravam na baía de Lagos, e os marinheiros desembarcavam trazendo narrativas inflamadas e ricos troféus - ou a relação de um fracasso - ao homem silencioso de Sagres. E ele escutava-os serenamente, e nunca deixava de louvar, quando o louvor era merecido, nem tinha jamais uma palavra áspera para os mal-sucedidos. Mas quer voltassem das terras luminosas quer de inúteis errores no mar salgado, as suas exortações a todos eram sempre as mesmas: "Voltai", dizia, "voltai, e ide ainda mais longe!"

Homem duro, frio e severo, dizem-no alguns autores modernos - mas sê-lo-ia de facto? Não parece que os contemporâneos pensassem assim. "Havia o gesto assossegado e a palavra mansa […]", diz-nos Zurara, e "nunca em ele foi conhecido o odio nem má vontade contra alguma pessoa, por grave erro que lhe fizesse". Nem dizia mal de nenhum, nem cubiçava a nenhum mal", é o testemunho de D. Gonçalo de Sousa, que foi toda a vida da casa de D. Henrique - e "para todos se mostrava afável", acrescenta o italiano Mateus Pisano que, tendo sido aio do jovem D. Afonso V, deve ter conhecido muito bem o Infante.

Quanto à sua alegada frieza - o francês Antoine de la Salle, que acompanhou os infantes a Ceuta em 1415, parece ter visto D. Henrique a outra luz. Se a história de La Salle se pode tomar a sério, o jovem príncipe chorou, dias e noites seguidos, a morte de Vasco Fernandes de Ataíde, seu preceptor e grande amigo. Deve evidentemente dar-se o devido desconto aos floreios jornalísticos do século XV. La Salle foi escritor popular da sua época, e o gosto do público pedia comoção às carradas. Como "a grande dor fora de toda a medida", a que Malory deixa entregar livremente os seus cavaleiros, as lágrimas de D. Henrique, como no-las descreve La Salle, são, por certo, efeito literário em parte. Mas dêmo-lhes o desconto que quisermos, não se pode negar que o Infante não deu a impressão de insensível ao forasteiro na corte de seu pai.

De todas as narrativas se depreende que aqueles que serviam o Infante lhe eram profundamente afeiçoados e não há entre eles discrepância de opiniões a respeito do seu carácter. Poderemos rejeitar Zurara como panegirista, mas que se há-de dizer de D. Gonçalo de Sousa? Quando alguém manda inscrever no próprio túmulo, não as suas virtudes, mas as do senhor que serviu - senhor que morrera muitos anos antes - não podemos atribuir o facto a lisonja ou a oportunismo.

O embaraço perante a personalidade de D. Henrique provém de se não poder encontrar fórmula que satisfatoriamente a defina. Esta circunstância é aflitiva para os historiadores, que gostam de apresentar as grandes figuras do passado, cada uma com a sua etiqueta, como objectos de museu. Parece não haver dois que concordem sobre a maneira como o Infante D. Henrique se deve definir. Cruzado - homem de ciência - promotor de empreendimentos comerciais - realista - sonhador - reaccionário - moderno - cada um destes atributos tem sido defendido com ardor, como se um excluísse os outros!

D. Henrique foi tudo isto. Nascido numa época de transição, o seu espírito olhava para dois lados. A flama que iluminou o soldado da cruz acendeu-se-lhe no coração na primeira mocidade, e conquistar Marrocos aos mouros foi ambição da sua vida. Nunca desembainhou a espada em qualquer outra causa. Era, portanto, cruzado e guerreiro medieval também, apaixonado pelos feitos de cavalaria e proezas guerreiras, como as praticavam os heróis do seu tempo. Partilhava os ideais místicos e a fé inabalável da sua época, mas procurava ao mesmo tempo o saber científico - iluminação do espírito e da alma. A sua investigação paciente dos factos era inteiramente antimedieval, como era o realismo prático que o afastava de todas as ideias fantasistas. D. Henrique era visionário que adivinhava mundos invisíveis, mas não sonhador fantástico. Nunca esperou, como Colombo, encontrar rios que vinham do Paraíso. Não contou com monstros, nem milagres, nem Eldorados. Os seus horizontes, embora vastos, foram sempre limitados por factos positivos. Lentamente, pacientemente, tenazmente, procurou as regiões desconhecidas da terra firme, e, quando as encontrou, lavrou-as e semeou-as, e aproveitou-as bem.














Todavia, esta intuição do valor prático das coisas não excluía um fim superior ao mero lucro material. As novas terras não deviam considerar-se apenas como herdades rendosas. Embora muito se pudesse tirar delas, muito se tinha também de lhes dar. As terras pagãs eram reinos a conquistar para Cristo, e a direcção destas raças atrasadas, dever a que não podia eximir-se. O Infante tomou sobre si esta responsabilidade. Se tinha o espírito do cruzado, tinha igualmente o do missionário. Onde explorou, o seu objectivo foi evangelizar, civilizar e educar os ingénuos selvagens com os quais os seus navegantes entravam em contacto. Enviou mestres e pregadores aos pretos do Senegal. Educou crianças indígenas para virem a ser evangelizadores do seu próprio povo, tratou os chefes africanos, não como vassalos, mas como príncipes irmãos e aliados, e empregou os seus melhores esforços para lhes mostrar um nível de vida superior. É glória da expansão portuguesa de além-mar ter continuado no caminho que D. Henrique lhe traçara.

O mundo nem sempre se lembra do muito que deve ao Infante, que inaugurou uma nova idade. Supõe-se vulgarmente que a época medieval acaba com a queda de Constantinopla. Com muito maior verdade poderia recuar-se trinta anos para a data em que D. Henrique enviou as primeiras caravelas. A descoberta do mundo desconhecido modificou muito mais profundamente a civilização do que o renascimento dos estudos clássicos. Um renascimento, afinal, não é senão o ressurgimento do que já foi - o movimento iniciado por D. Henrique criou inteiramente novas condições sobre a Terra. Em todos os milénios da História da Humanidade, só dentro dos últimos quatrocentos anos tem havido relações entre as raças humanas do orbe terrestre. Nasceram e morreram civilizações, surgiram e desmoronaram-se grandes impérios, e todos passaram sem conhecerem a Terra em que viviam, a não ser numa pequena parte. D. Henrique foi o primeiro a encontrar a chave que abriu ao homem, de par em par, as portas do seu património.

Fizeram-se viagens marítimas antes do seu tempo - por certo às ilhas Canárias, provavelmente à Madeira, e talvez aos Açores, para não falarmos das problemáticas divagações dos Fenícios da antiguidade - mas nada permanente ou útil resultou desses esforços esporádicos, que não foram continuados. As imagens de regiões vistas por viajantes isolados fulguravam na consciência das nações como sonhos experimentados de noite, e não deixavam recordação nítida. Todas as pré-descobertas tiveram de ser redescobertas, mas as do Infante D. Henrique ficaram para todo o sempre. A partir dele não se deram mais retrocessos. Deliberadamente, com estudo, paciência e método, desencadeou forças que jamais seria possível deter, enquanto sobre o Globo existisse uma terra desconhecida.

O Infante realizou assim a maior transformação que o mundo vira ou viu até hoje. Basta-nos comparar os primeiros anos dos séculos XV e XVI para nos convencermos disso.

Em 1400 temos o quadro dum mundo de civilizações e culturas isoladas, algumas das quais se sobrepõem nas fronteiras, mas que na sua maior parte se ignoram inteiramente. Embora possam negociar e combater na sua orla exterior, a Europa e a Ásia vivem separadas, e para sul do Sara, em florestas abafadiças onde não chegam as caravanas dos Árabes, os africanos nus nem sequer sonham que haja mundo fora da usa solidão. E em roda de tudo isto rola o mar, que nenhum navio atravessa, rodeando as ocultas ilhas desertas, quebrando as suas ondas ocidentais nas costas dum continente desconhecido, onde outras raças vivem tão ignorantes do outro mundo como esse mundo o é delas.

Passada uma centena de anos achamos tudo mudado. O Extremo Oriente foi alcançado pelo longínquo Ocidente, o Norte penetrou profundamente no Sul, abateram-se as barreiras da Terra - a Europa está em toda a parte. Em todo o mundo as nações estão a estabelecer novos contactos e a descobrir coisas novas umas das outras: a Europa está a conhecer níveis de luxo inimagináveis, a Ásia é sacudida no seu isolamento secular, ao passo que o Africano, atónito, vê prodigiosos homens brancos revelar-se maravilhas, e deles aprende novos usos, adquire novas necessidades, é instruído numa fé nova e melhor - e adquire alguns vícios novos!

O oceano já não é abismo impassível. Tornou-se a estrada real da Terra, atravessado em todos os sentidos por numerosos navios. As suas ilhas desertas são habitadas e produzem frutos; o continente oculto veio à luz - um novo e vasto campo de possibilidades está achado. Parece terem-se aberto de repente todas as portas da Terra. Foi o Infante D. Henrique que realizou tudo isto.

Para bem ou para mal, apresentou o mundo moderno. Benção ou maldição? Uma das coisas ou ambas? Nada se ganha na vida sem que alguma coisa se perca, e muitas vezes o êxito traz consigo a desilusão. Enquanto se não revelara todo o mundo, a imaginação entreviu sempre um lugar perfeito algures - uma ilha dos bem-aventurados, alguma cidade de ouro - algum reino dos justos, onde a inocência morava ainda. Após cada viagem as utopias retrocediam, e assim, a pouco e pouco, os homens descobriram o mundo, mas perderam o paraíso terreal.»

Elaine Sanceau («D. HENRIQUE, o Navegador»).











«Habituado a não fazer as coisas por metades, a ser inteiro em tudo quanto era, Portugal recusou-se a fazer metades de teatro. E calou-se nos tablados.

Restaria saber qual o motivo essencial de tal quebra, a que naturalmente muitos outros de carácter secundário, o que não quer dizer não importante, se vieram juntar. Quando uma actividade tão fortemente espiritual como esta se suspende é sempre de bom método buscar-lhe a causa numa falência do espírito. E essa falência de espírito vamos encontrá-la no próprio relato dos embaixadores alemães. Quando, no desfile das personagens históricas, apareceu D. Fernando, o de Fez, o povo, como uma só pessoa, o chorou num imenso clamor. Não havia Império que aos olhos do povo, agora em vida plena pelo milagre do teatro, não havia Império que justificasse ter sido tão duramente sacrificado o bom infante. Era, esse brado, esse chorar do povo, a condenação de D. Henrique; era a justificação da melancolia e da morte de D. Duarte; era a mágoa do pecado que se cometera e que D. Manuel havia de tentar redimir com o pórtico dos Jerónimos, mas inutilmente. Porque o abandono do Infante Santo ia pesar para sempre sobre o destino das empresas de Portugal. Elas iam ser apenas uma mínima parte, como toda a sua grandeza, daquilo que podiam ter sido se tivesse havido a paciência, a coragem, o cristianismo de recomeçar a expedição de Ceuta.

Mas afinal, com a própria morte do Infante, Portugal estava pagando o preço de outro erro que anteriormente cometera: o erro de se ter enganado quanto ao fundamental do carácter inglês e quanto ao destino que à Inglaterra se marcara na História. Cada povo é o que é, mesmo antes de o ser. A Inglaterra era protestante mesmo antes de Lutero e de Henrique VIII. Um rei, antes de um rei matar S. Tomás Morus, mataria S. Tomás Becket. E tendo, a dirigir os seus destinos de expansão, um príncipe que era metade inglês e metade português, Portugal introduziria fatalmente o erro que fez que a Inglaterra não fosse, apesar de tudo, um grande condutor do mundo. A verdadeira grandeza do Infante D. Henrique está no que tem de português, na sua concepção religiosa da vida, na sua paciente persistência, nas suas visões ou sonhos do Espírito Santo. Mas também nele existe o que diminui a expansão portuguesa: a dureza de sacrificar irmãos, e três provavelmente, um D. Fernando, um D. Duarte, um D. Pedro também; o gosto do isolamento, separando-se de um povo cujos reis com ele dançavam noites inteiras à luz de archotes ou com ele discutiam, numa verdadeira democracia, os negócios do Reino; e a terrível tentação de fazer que importe nas empresas o lucro material. D. Henrique, na verdade, conduziu Portugal: mas o povo, que era intimamente franciscano, nunca se entregou inteiramente ao duro, só ao positivo em contas. Pelo Infante se fez história; mas se diminuiu o Espírito. Como na lenda do hino homérico, não houve a coragem de deixar que a deusa passasse pelo fogo dos empreendimentos cem vezes recomeçados o menino que destinara aos banquetes divinos; o lado inglês do Infante, para manter o homem, matou o deus.

Eis a linha de quebra, eis o pequeno passo errado que, porque estamos num universo que também é de física, vai em grande parte determinar todo o futuro. Portugal, que principiara a sua vida como missionário da nova fraternidade no mundo, quebrara essa fraternidade e num ponto em que ela mais facilmente poderia ter sido apercebida na fraternidade simples de irmão para seu irmão. É certo que Portugal, como nação, se batera contra um país que era afinal seu irmão; mas aí havia uma coisa positiva a defender: o direito à fraternidade que o castelhano, pelos séculos fora, jamais respeitaria; porque nem os seus místicos são fraternos: quase diríamos, para o místico castelhano, que mais lhe importa o Deus imanente que dentro dele brilha do que o Deus transcendente Pai de todos os homens e a todos, portanto, tornando irmãos. É certo que em Portugal um D. Afonso III se tinha batido contra um irmão e que D. Sancho, vencido, fora morrer a terras de exílio; mas era o próprio rei deposto que primeiro se esquecera dos seus deveres de fraternidade católica quando não impedia as correrias do infante de Serpa, entrava em conflito com os representantes de Roma e, de certo modo, vinha a aparecer aos olhos de Inocêncio IV mais como do lado do Império do que da gente do papado; além de tudo, o que punha as coisas claras, aliara-se com um infante de Castela, o futuro Afonso X; o que era, por se não tratar de uma Espanha liberal e dispersa, um crime contra Portugal. Mas, com o sacrifício de D. Fernando, o que se atingia era a própria e mais delicada raiz de Portugal império fraterno, império humano, império católico: Quinto Império. Matando-o.»

Agostinho da Silva («Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa»).






O Sacrifício


O conde D. Pedro de Meneses, já idoso e doente, depois de defender Ceuta durante vinte anos, recebeu com agrado o exército de D. Henrique na cidade.

Era um belo corpo de tropas, comandado pelos mais nobres fidalgos de Portugal, mas seria suficientemente numeroso?, perguntavam os veteranos da guarnição. Numa revista das forças contaram-se dois mil cavaleiros, mil archeiros e três mil peões - os infantes esperavam tomar uma cidade como Tânger com aquela gente apenas? Seria mais prudente permanecerem em Ceuta e de lá guerrear os mouros.

D. Henrique lembrou-se das objecções apresentadas pelos conselheiros do pai naquela ocasião já distante em que a armada real se encontrava ancorada nos estreitos: Seria melhor desembarcar apenas algumas tropas - seria melhor voltar para o reino - seria melhor procurar tomar Gibraltar em vez de Ceuta! Os ditames da audácia tinham prevalecido então e conseguido um êxito fácil e espetaculoso. A situação não era hoje a mesma?

"Bem sey que pera tam grande feito [disse o infante] esta gente e assas pouca; mas parece que Deus ordena e ha por bem que nos, assy como aqui aportamos, tomemos por seu serviço este trabalho, pera mais acrescentamento em nossas honras [...] Portanto avee por certo que, ainda que menos gente tevesse, eu nom estaria nesta cidade, pella maneira como me aconselhaaes, nem leyxaria de prosseguir o feito pera que venho." (1)

Os guerreiros veteranos de Ceuta não tinham resposta a dar a isto. Atravessando as colinas requeimadas e passando por Tetuão, D. Henrique conduziu as suas gentes em direcção a Tânger.

Era hoste brilhante e distinta. Encontramos entre os guerreiros os nomes que refulgem na história de Portugal usados por filhos e antepassados de heróis.

O conde de Arraiolos, neto de Nuno Álvares, comandava a vanguarda, seguido de meia dúzia de Castros. O marechal Vasco Fernandes Coutinho lá estava também e o amigo mais íntimo do infante D. Pedro, o capitão Álvaro Vaz de Almada, que combatera por Henrique V em Azincourt e fora galardoado com o título de conde de Abranches. A família Menezes, de glória passada e futura nos anais portugueses de Marrocos, estava representada por D. Duarte, o filho do velho conde, que, substituindo seu pai na qualidade de alferes-mor, levava o estandarte real. Lá ia João Gonçalves Zarco, o descobridor da Madeira, e Fernando Álvares Cabral, cujo neto descobriu o Brasil. Havia Melos e Cunhas, Sousas e Azevedos, bem como Ataídes e, pelo menos, um Albuquerque.

Com os senhores temporais vinham os da Igreja. Como Turpino entre os paladinos de Carlos Magno, o valente bispo de Ceuta cavalgava para a guerra. Todo o clero o seguia, com as armas materiais amplamente reforçadas por uma coleccção eficaz de sagradas relíquias e santas imagens, acrescidas do retrato do falecido rei D. João.

O infante D. Fernando ficou com a esquadra. D. Henrique mandou-o para Tânger por mar. Um furúnculo de que sofria havia dez dias causava-lhe tanta dor e febre tão alta, que não servia senão para estar na cama. O irmão ordenou-lhe por isso que ficasse a bordo e esperasse pelo exército na baía de Tânger. Houve escaramuças entre Ceuta e Tetuão - cidade arruinada donde a população fugira após uma incursão recente comandada pelo jovem D. Duarte de Meneses. De Tetuão a Tânger não houve oposição da parte dos mouros. O exército chegou sem contratempo às ruínas romanas que ficam fora da cidade.

Armaram-se as tendas no meio dos pomares nas vertentes do cabo Espartel. Todos sentiam alegre confiança numa fácil vitória. Espalhou-se o boato de que os mouros tinham fugido, deixando as portas da cidade abertas de par em par!

Os cavaleiros mais impulsivos quiseram atacar imediatamente e ficaram assim desiludidos. As portas de Tânger estavam solidamente fechadas e, embora o furioso assalto demolisse duas delas, achavam-se fortemente defendidas do outro lado. D. Henrique enviou o conde de Arraiolos com Álvaro Vaz de Almada a chamar os assaltantes ao cair da noite e deu-se uma escaramuça acesa junto à cidade. Morreram alguns cavalos e vários homens; o conde foi ferido com uma flechada numa perna; Álvaro Vaz recebeu outra num braço e houve muitas baixas nas fileiras. A escuridão da noite pôs termo à luta nesse dia e os ferrabrases voltaram às tendas em atitude mais calma. Tânger não se podia colher como ameixa madura! E os mais supersticiosos lembravam-se com inquietação de que, quando as bandeiras se desfraldaram para as levar para as muralhas da cidade, um golpe de vento colhera o pendão do infante D. Henrique e fizera-o em farrapos!

Tânger: Muralha Velha


Imagem de satélite de Tânger




Não era, porém, ocasião de discutir sinais e agoiros. Todos tiveram de trabalhar no dia seguinte a fazer trincheiras e barricadas. D. Fernando, macilento e fraco, mas ansioso por colaborar nos trabalhos, desembarcou com a sua gente. Trabalhou tão afanosamente como qualquer e ninguém senão os seus servidores calculavam quanto lhe custava o esforço. Afinal, viera para isto e nada o podia levar a desistir.

Era necessário protegerem-se e prepararem-se porque agora todos viam claramente que os homens de Ceuta tinham razão. Não era provável que Tânger fosse conquista fácil. Observou-se que estava bem fortificada e guarnecida por sete mil mouros, comandados por aquele mesmo Sala-ben-Sala que tinha perdido Ceuta e que agora ansiava pela desforra.

Mesmo assim os pessimistas recuperaram confiança durante os dias seguintes, pois deram-se algumas batalhas renhidas e excitantes. O infante D. Fernando levou a sua gente contra uma porta, o conde de Arraiolos atacou outra, o intrépido bispo de Ceuta colocou a sua escada à muralha, ao passo que D. Henrique dirigiu o ataque ao castelo. A luta durou cinco horas. Assaltantes e defensores praticaram prodígios de valor. Os portugueses, embora inferiores em número, repeliram todas as sortidas com êxito brilhante e atacaram por sua vez; não obstante, Sala-ben-Sala conservou a cidade e o exército cristão continuava fora.

D. Henrique mandou a Ceuta buscar artilharia pesada. Ordenou que trouxessem escadas melhores e mais altas (as primeiras que vieram tinham-se quebrado) e máquinas de assalto. Levou cerca duma semana a trazerem-nas, e toda a demora nessa altura tornava-se perigosa. Como cheia que descia dos montes, formava-se nas serras vizinhas de Tânger uma torrente cada vez maior de guerreiros das tribos marroquinas. Todas as vezes que procuravam lançar-se na cidade. o exército de D. Henrique carregava e repelia-os. E sempre que os repeliam, tornavam a juntar-se na encosta da montanha. O moral do exército continuava bom, se é lícito julgar por uma carta escrita do acampamento no dia 3 de Outubro, dois dias depois de ter sido rechaçado com êxito um ataque de sete mil homens lançado pelo inimigo. "Parece-me", escreve Rui Gomes da Silva, "que nenhum homem nom podia veer mais formosa cousa […]" Não há aqui referência a maus agoiros - muito pelo contrário. Quando o exército saía ao encontro dos mouros, "pareceo sobre a metade da villa hua mui grande cruz alva como hum cristal. Esteve em vista de três mil pessoas que ficaram no Areall, os quais esteveram sempre em giolhos ata a que se desfez […] prazera a Deus que muy cedo sse poera aly a vera cruz a seu serviço". (2) Os pessimistas da bandeira rasgada podiam bem remeter-se ao silêncio perante um sinal como este.

A artilharia chegou por fim juntamente com um castelo de madeira para encostar à muralha e ser guarnecido de besteiros. Havia além disso cinquenta grandes pelouros de pedra, mas pouca pólvora para os lançar, segundo parece, pois que D. Henrique mandou logo voltar a caravela a buscar quatro barricas a Ceuta.

Entretanto lançou-se novo ataque contra Tânger e ainda este não foi bem sucedido. As escadas eram destruídas com pez derretido e estopa inflamada tão depressa como os assaltantes as encostavam à muralha, e metade do exército tinha de se conservar na retaguarda a conter o enxame buliçoso que, descendo das alturas, incomodava continuamente. Repeliram-no todas as vezes com pesadas perdas, contudo esta ameaça não permitiu que se apertasse o cerco à cidade.

D. Henrique mostrava rosto prazenteiro a toda a gente, mas, pela primeira vez, alguma desconfiança lhe deve ter gelado o coração. As coisas não estavam a correr conforme se planeara. E se Deus não tivesse ordenado e querido que Tânger fosse tomada, afinal? Afastou de si tal pensamento. Não lhe fora concedida a visão da cruz brilhante?

"Se do terceiro combate o nom poderdes tomaar [escrevera D. Duarte no seu regimento] nom estes mais sobr'elle, dia nem ora, recolhee-vos logo, com toda vossa gente, aa frota, e vinde-vos a Cepta, onde me esperarees atee ho Março que vem; porque prazendo a Deus, entom hyrey com quantos ha em meus Regnos." (3)

D. Henrique esperava que não se chegaria àquela situação!



Montante do Infante D. Henrique



Estátua do Infante em Viseu


Planeou terceiro ataque. A bordo dum dos navios ficara uma enorme escada velha, e havia madeira com que se poderiam consertar mais. Laboriosamente os homens enterravam-se nas areias transportando a madeira às costas, e durante três dias, trabalharam afanosamente a reunir escadas.

Entretanto alguns escudeiros saíram a campo a escaramuçar com os mouros e regressaram com alguns prisioneiros ao arraial.

Que era feito do exército mourisco?, perguntaram aos cativos. Sobre este assunto havia muito que dizer. Os cristãos tinham a contar com grande perigo e duros trabalhos! Sala-ben-Sala convocara os seus aliados. O rei de Fez estava em campo assim como o rei de Beles. O rei de Marrocos e Tafilete vinha a caminho, trazendo consigo um exército de berberes dos desertos do sul. Os mouros dispunham ao todo de sessenta mil cavaleiros e setecentos mil peões! Os prisioneiros mentiam, certamente! Não, diziam a verdade. Nesse mesmo dia, erguendo os olhos para os montes, os portugueses viram-nos coalhados de gente. De todos os cumes, de todas as dobras do vale, através da planície e de todos os pontos do horizonte, como um formigueiro movediço de insectos gigantescos, os batalhões muçulmanos avançavam.

Não havia tempo a perder. Os marinheiros foram mandados para os navios, a infantaria encarregada de fortificar o acampamento, enquanto os infantes com a cavalaria saíram a tentar impedir que a artilharia, que ficara fora das muralhas, fosse tomada pelos mouros.

A horda desceu irresistivelmente, soltando brados que gelavam o sangue. Num ímpeto louco galgou até à muralha, repeliu os defensores da artilharia e apossou-se das escadas e bombardas. D. Henrique nada pôde fazer senão ordenar aos homens que abrissem caminho para o acampamento, enquanto ele ficava com a retaguarda a cobrir a retirada.

A peleja que se feriu foi rápida e feroz. O infante contra-atacou e repeliu os mouros até à muralha da cidade. Mataram-lhe o cavalo que montava, e ele próprio teria sido morto, se um pajem do seu irmão D. Fernando lhe não tivesse dado um cavalo.

Por fim todos se juntaram de novo no arraial. Os mouros precipitaram-se novamente, em grande número, contra os cristãos, mas foram mais uma vez repelidos com pesadas perdas. Isto obrigou o inimigo a afastar-se, mas este estendeu então as suas tropas entre os cristãos e o mar, e apanhou-os na ratoeira! O culpado fora D. Henrique, por ter instalado acampamento longe do mar. Os receios de D. Duarte tinham sido justificados. D. Henrique, embora capitão ousado e enérgico no campo de batalha, não era general.

As instruções de D. Duarte eram explícitas. Ou D. Henrique as não estudara cuidadosamente e tanto como o irmão esperara, ou então não fazia grande conceito das opiniões de D. Duarte em assuntos militares! "Da frota que levaes", determinava o regimento, "farees três partes […] a hua destas partes enviarees sobre Alcácer, e a outra sobre Tanger, e outra sobre Arzilla." (4) Desta maneira, declara o rei, a atenção do inimigo dividir-se-ia, e as várias cidades dos mouros não podiam reunir forças para um ataque combinado. Por motivos que melhor que ninguém conhecia, D. Henrique não dera atenção a este conselho sensato. A questão das comunicações também fora acentuada: acontecesse o que acontecesse, recomendava D. Duarte ao irmão, precisava de manter aberta uma passagem livre para o mar, "para da terra daaquem poderdes aver refresco, mantimentos e socorro, e terdes seguro recolhimento, se vos cumprir." (5)

Mas D. Henrique nunca pensara em retirada! Os seus planos previam só ataque. Instalara o arraial longe da praia e a consequência via-se agora. Os sitiantes estavam, por sua vez, cercados. Apertados por todos os lados, entre eles e os navios, sua única esperança de salvação, fervilhava a hoste infinda dos mouros. Melhor seriam precipitarem-se imediatamente para a praia, sugeriam alguns. A maior parte seria feita em postas, mas alguns conseguiriam romper o cerco.

D. Henrique não teria qualidades de general, porém, serenidade e decisão nunca lhe faltaram. Encarou o exército alegremente, como se nada corresse mal. Não se deviam tentar ainda remédios desesperados, disse. A primeira coisa a fazer era melhorar as defesas do acampamento. E quanto a provisões? Efectivamente! As investigações deram a conhecer que as havia para dois dias. Os abastecimentos tinham ficado a bordo dos navios, na suposição fácil de que se poderiam mandar vir à medida que fossem precisos.

Perante esta dolorosa descoberta, os homens ficaram consternados. Porque haviam de morrer como ovelhas num redil?, bradaram. Era melhor fazerem imediatamente uma sortida, e morrerem como guerreiros em campo!


Panorâmica da almedina de Fez


Parecia, porém, que os mouros lhes não deixavam alternativa. Já se viam a preparar-se para o ataque. O rei de Fez avançava ao som de trombetas, seguido pelo rei de Beles e o vizir Lazeraque. Era ridículo, diziam os mouros uns aos outros, serem detidos por um punhado de homens. Que se liquidassem sem mais demora!

D. Henrique montou a cavalo, animando as suas gentes "dizendo-lhes palavras para o caso, assy doces e próprias com que dos coraçoens de todos arrancava temor e espanto, se o alguém tynha, e prantava logo huua nova maneyra d'ardideza e esforço." (6)

A batalha durou horas. Os cristãos não cederam um palmo. Defenderam o terreno tenazmente, e, embora as suas perdas fossem leves, causaram pesadas baixas aos mouros.

Era coisa extraordinária, gloriosa, que, todavia, não podia acabar senão duma maneira. Alguns milhares de homens com falta de provisões e equipamentos, cercados por um inimigo de muito mais de meio milhão, não poderiam resistir. Tinha de se encontrar algum remédio drástico, se alguém houvesse de embarcar. Uma corrida para a praia ao abrigo da noite parecia ser a única solução. Seria possível que os mouros, colhidos de surpresa, fossem incapazes de impedir que ao menos uma parte do exército rompesse o cerco.

Um traidor extinguiu esta réstia de esperança. Um dos capelães de D. Henrique, de nome Martim Vieira, de súbito descoroçoou e desertou para os mouros. Pior do que isso, revelou-lhes o plano de seu amo. Esta negra traição chocou de tal modo um renegado que havia muitos anos andava entre os mouros, que, tomado de arrependimento pelo seu pecado, fez o contrário e foi juntar-se ao arraial dos cristãos! Por ele souberam como tinham sido traídos.

Parecia que não restava nada a fazer senão esperar pela morte. Sofriam já terrivelmente de fome e de sede. Os reis mouros entretanto reuniram-se em conselho. Apesar da heróica resistência que ainda os desafiava, sabiam como estavam senhores da situação. Sendo assim, era pura perda de tempo e de vidas continuar às cutiladas ao inimigo até o destruírem. Nada se lucrava com isso. Seria melhor aproveitar a situação infeliz dos cristãos entrando em negociações vantajosas.

Consequentemente, hastearam a bandeira de tréguas, e enviaram mensageiros ao arraial. Se Ceuta fosse restituída a Sala-ben-Sala, diziam, e todos os prisioneiros mouros em Portugal libertados, então o exército dos infantes seria autorizado a embarcar, contanto que deixasse o equipamento.

Foi esta a escolha mais terrível que D. Henrique jamais teve que fazer. Ceuta era-lhe tão querida como a própria vida - mas não era apenas a sua vida que estava em risco. Acaso teria direito a pedir à sua gente que aguentasse e se deixasse massacrar? Afinal fora ele que a colocara nesta situação. O conselho disse-lhe que devia aceitar as condições, e ele concordou - com que amargura, só podemos imaginá-lo.

Enviou Rui Gomes da Silva - o mesmo homem que escrevera coisas tão lindas a respeito da cruz de cristal, não havia quinze dias - ao campo dos mouros a discutir as condições do armistício.

Quando Rui Gomes compareceu perante o inimigo, porém, achou que os mouros já tinham mudado de parecer! Sala-ben-Sala e os reis seus aliados estariam dispostos a negociar, mas os ferozes membros das tribos que constituíam o grosso das suas tropas bramavam pela batalha. Ceuta não lhes interessava - o seu único desejo era sangue e saque.

Sala-ben-Sala recebeu Rui Gomes cortesmente, mas disse-lhe que as negociações estavam interrompidas. De nada lhe servia voltar para os seus e ajudar a defender uma causa perdida; "ficai connosco enquanto a batalha se trava", sugeriu o mouro amavelmente, "depois poderei desembarcar-vos em Castela".

Rui Gomes declinou delicadamente o oferecimento. Não podia ficar de fora enquanto os seus camaradas se batiam. E foi ter com eles a tempo de os ajudar a sustentar um novo assalto.

Este ataque foi furioso, mas os portugueses resistiram firmemente e não cederam terreno quando os mouros, enfurecidos pela resistência, tentaram incendiar as barricadas com lenha e pez inflamados.

Infante D. Henrique: Conquista Portuguesa de Ceuta


Vista do porto de Ceuta


Localização de Ceuta


Bandeira de Ceuta







D. Henrique, a cavalo, estava ao mesmo tempo em toda a parte, ajudando e animando a todos. O odioso armistício estava posto de parte por enquanto e qualquer coisa era preferível a isso! O infante D. Fernando, no seu posto, resistia aos assaltos, sofrendo "grandes trabalhos com muito bom coração". (7) E o valente bispo de Ceuta era clérigo da velha têmpera dos cruzados, de armas materiais e espirituais sempre prontas. Precedido pela hóstia para inspirar os vivos e consolar os moribundos, e envergando armadura completa, recebia e dava rijos golpes. Enquanto a batalha refervia, curvava-se sobre os caídos a ouvir-lhes a confissão e absolver os moribundos.

A luta andou acesa durante sete horas, tempo durante o qual os mouros foram muitas vezes reforçados. Apesar de todos os esforços não conseguiram desalojar os portugueses dos seus entrincheiramentos, e quando a noite caiu cansaram-se de combater e retiraram-se a descansar.

Não houve descanso para o exército sitiado durante toda essa noite. Os infantes e a sua gente pegaram em enxadas e pás e ergueram mais valos em volta do arraial. O inimigo, porém, não atacou no dia seguinte, que se passou tranquilamente, embora no maior desconforto.

Provisões já não havia. A maioria dos cavalos tinham sido mortos e a carne comida meio assada em fogueiras feitas com palha tirada das selas. Era coisa desagradável, mas a sede que todos sofriam era muito pior ainda. Não havia água no acampamento. Só uns aguaceiros lhes trouxeram algum alívio e houve muita gente que se pôs a sorver o lodo.

Todavia o inimigo não atacava. Os mouros estavam fartos de combater com um adversário que vendia tão caro a vida. Renovaram as ofertas de paz, e desta vez a sério.

Tinha de ser. D. Henrique mandou novos emissários, e três dias se passaram em discussões. Sala-ben-Sala não quis reduzir nada às suas exigências. Haviam de entregar-lhe Ceuta e todos os prisioneiros. Insistiu ainda sobre uma garantia de paz de cem anos - o período habitualmente estipulado nos esperançosos tratados daqueles tempos!

Como era costume em tais negociações, tinham de trocar-se reféns, e também neste ponto Sala-ben-Sala era exigente - não dispensava um dos infantes, declarou -, embora da sua parte estivesse pronto a garantir a sua lealdade com o seu próprio filho.

D. Henrique ou D. Fernando? Ambos estavam prontos para o sacrifício. D. Fernando tivera sempre a disposição que faz os mártires, e D. Henrique julgava que, se ele próprio fosse dado como refém, poderia impedir que Ceuta fosse entregue em sua troca. A opinião geral, porém, era que D. Henrique não devia ir. Bastava a desgraça sofrida sem a humilhação suplementar de entregar ao inimigo o chefe da expedição. Teria de ser D. Fernando, mas todos estavam convencidos de que não seria por muito tempo. Afinal os portugueses teriam o filho de Sala-ben-Sala como garantia da sua parte.

D. Henrique deixou-se convencer. Sem dúvida que teria sido menos amargo ficar cativo dos mouros do que conduzir o exército desbaratado para o reino. Mas era o chefe e, tendo de levar tudo até final, deixou ir D. Fernando.

Nessa tarde Sala-ben-Sala chegou de Tânger, a cavalo, trazendo outro animal para levar o prisioneiro. Os irmãos estreitaram-se num último abraço. D. Fernando montou então ao lado do mouro e afastou-se com ele, nas sombras que se adensavam, em direcção às severas muralhas da cidade. Sete dos fiéis servidores do infante acompanharam espontaneamente seu amo para o cativeiro. D. Henrique contemplou o irmão que se afastava a cavalo, enquanto morria o dia. O fim duma cruzada! De ora avante seria ou Ceuta ou D. Fernando, a não ser que se pudesse excogitar qualquer meio de os salvar a ambos.

Foi um momento trágico, mas mais negro foi ainda o dia seguinte, quando chegou a ocasião de evacuar as gentes, e pareceu que o sacrifício amargo fora em vão. Sala-ben-Sala tinha proposto e concedido condições. O exército sob as suas ordens imediatas podia ser obrigado a respeitá-las - mas não os seus aliados. Os ferozes nómadas do deserto meridional nada se importavam de obrigações ou tratados, de palavra dada ou fé jurada. O que eles queriam era massacrar e roubar, e o aniquilamento dos inimigos da sua fé. Enxameavam em redor do acampamento tão estreitamente como dantes, lançavam carcaças de animais nos poços da parte de fora e interceptavam todos os mantimentos enviados da esquadra. D. Henrique protestou perante Sala-ben-Sala, que encolheu os ombros e respondeu que não tinha poder sobre aquela gente! Indicou a D. Henrique qual o caminho que em sua opinião seria o mais seguro para a praia. Experimentou-se esta vereda, mas, embora alguns homens conseguissem passar, os outros foram mortos ou presos.



Efígie do Infante Santo no Padrão dos Descobrimentos (Lisboa, Portugal).



Evidentemente não havia remédio senão abrir caminho à mão armada. A única vantagem alcançada pelas negociações com o inimigo era que aquilo que outrora fora impossível não era agora senão difícil e perigoso. Tinham pela frente os Berberes e não as forças mais organizadas do exército mourisco. Passo a passo e lutando sempre, D. Henrique deslocou o arraial barricado em direcção ao mar. Os homens levavam consigo o equipamento que podiam, porque não tendo os mouros cumprido os seus compromissos, D. Henrique já se não julgava preso aos seus. Só o que era demasiado pesado para se transportar facilmente se deixou, com grande descontentamento do inimigo.

Os mouros perseguiam o exército em retirada em todo o percurso e os homens não conseguiram embarcar senão sob uma barragem de tiros de bestas. Uma carga final obrigou os besteiros a abandonar a sua posição e os homens lançaram-se a nado para os navios e treparam a bordo como puderam.

Tal precipitação tolerava-se às gentes das fileiras, mas nada podia induzir os chefes a mostrar pressa indecorosa. "Depois de vós!", disse Álvaro Vaz de Almada cortesmente ao marechal Vasco Fernandes Coutinho, depois de terem tratado do embarque dos seus homens, ao encontrarem-se junto dum batel. O marechal não queria de modo nenhum cometer a descortesia de entrar primeiro, e ali permaneceram na praia discutindo precedências, "com palavras de muyta cortesia" (8) enquanto a morte os rondava de perto. Não sabemos qual destas relutâncias corteses primeiro se deu por vencida, mas por fim ambos embarcaram ilesos - tendo sido perfeitamente correctos!

D. Henrique mandou a esquadra para o reino, com o conde de Arraiolos e a maioria dos fidalgos. Ele navegou para Ceuta, e daí mandou recado a Sala-ben-Sala. O tratado de nada valia, declarava, visto que os mouros tinham deixado de cumprir o prometido. Que Sala-ben-Sala recebesse o filho e entregasse D. Fernando.

O portador desta mensagem foi o infante D. João. Rumores de que as coisas não corriam bem tinham já chegado a Portugal, e no dia seguinte àquele em que D. Henrique aportou a Ceuta, desembarcava ali o irmão, vindo com uma frota do Algarve. Imediatamente desceu a costa até Tânger.

D. Fernando e o seu carcereiro já ali não estavam. No dia seguinte ao embarque das tropas, Sala-ben-Sala transferia-o da torre situada por cima das portas da cidade, onde fora encerrado. Montou os prisioneiros em selas velhas, albardas, ou em pelo, e levou-os adiante de si como gado para fora da cidade. "Fracos de fome, e meos cegos de sede", (9) como um deles os descreve, chegaram a Arzila, onde a população se juntou para os apedrejar e cuspir-lhes, e aí foram encarcerados.

Batida pelos ventos do Outono, a esquadra do infante D. João chegou e ancorou no porto desabrigado de Arzila. Sala-ben-Sala não se mostrou pronto a negociar e D. Fernando não sabia ainda que o irmão se achava ali, quando um forte vendaval do Atlântico obrigou os navios a sair. Lutando pela vida, atingiram por fim a costa do Algarve, onde D. João desembarcou com o filho de Sala-ben-Sala.

D. Henrique, esgotado e doente, esperava em Ceuta na maior angústia.

D. Fernando, atrás das paredes da prisão, passava os dias em oração e jejuns, enquanto a luz da esperança amortecia.

As tempestades invernais uivavam de sudoeste e gemiam através do mar. (in Elaine Sanceau, D. HENRIQUE, o Navegador, Civilização Editora, 2013, pp. 150-162).



Notas:

(1) Pina - Crónica de D. Duarte, cap. XXII.

(2) Carta de Rui Gomes da Silva. Biblioteca Mediceo Laurenziana de Florença. Fond-Ashburn - citada por Domingos Maurício na revista "Brotéria".

(3) Pina - Crónica de D. Duarte, cap. XXI. Quem não gostava desta perspectiva era a rainha D. Leonor! Por muito que aprovasse a ida dos cunhados a Tânger, por nada deste mundo queria que o marido os seguisse. "Este es el maior cuydado que al presente yo tengo", escrevera ela ao bispo de Lérida em Janeiro de 1437. Talvez já se arrependesse do apoio dado aos projectos do infante D. Henrique!

(4) Pina - Crónica de D. Duarte, cap. XXI.

(5) Ibid.

(6) Pina - Crónica de D. Duarte, cap. XXXI.

(7) João Álvares - Crónica do Infante Santo, cap. XI.

(8) Rui de Pina - Crónica de D. Duarte, cap. XXXIV.

(9) João Álvares - Crónica do Infante Santo, cap. XIII.



O Infante D. Fernando feito prisioneiro e arrastado pelo Souk de Tânger e humilhado pela população nativa (pintura de Eugène Delacroix, designada "Os Fanáticos de Tânger"). 




Brasão de Armas do Infante Santo. Sua divisa: "Le bien me plaît".


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