Ruínas da nave da igreja do Convento do Carmo de Lisboa
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Quereria corresponder à generosa intenção de quem me convidou a participar activamente neste colóquio, oferecendo aos estudiosos do Carmo e aos portugueses em geral o discurso do próprio Nun'Álvares (Comemoração dos 600 anos da Fundação do Convento do Carmo em Lisboa. Actas do Colóquio Comemorativo, Lisboa, Associação dos Arqueólogos, 1989, pp. 73-86). Tantas vezes me tem sido dado falar do Santo Condestável - e só hoje, afinal, me acolho a esta sua Casa, para o propor à contemplação e à amizade dos seus irmãos em Pátria. Bem é que seja ele a falar, e eu não passe de escriba.
Parto da ideia, que me serve de hipótese de trabalho e ao mesmo tempo de guia espiritual, de que é legítimo ter por autêntico - não direi cada palavra, mas o discurso global que os cronistas seus contemporâneos lhe atribuem. A gelada desconfiança com que os historiadores pegam, a medo, esses textos, já de há muito me pareceu sem verdadeiro fundamento. Embora geralmente se diga que a estenografia (ou notas tironianas) caiu em desuso durante a Idade Média, parece bem possível supor que alguns dos clérigos ou outros homens cultos que desde cedo acompanharam o fronteiro de Ante Tejo e Odiana, o membro do Conselho de Regedor do Reino, o Condestável e Mordomo-Mor de El-Rei, o Conde de Barcelos, de Ourém e de Arraiolos, o íntimo da Família Real - algum entre tantos fosse tendo o cuidado de recolher, com melhor ou pior técnica, as palavras de D. Nuno. Fernão Lopes refere-se, como é sabido, a vários autores que se dedicaram a escrever os feitos do Herói. Definitivamente desterrada (será possível dizê-lo?), a tese identificadora do autor da Crónica de D. João I, o trabalho de cotejar ambas as Crónicas, seguindo, por vezes, a aguda análise do grande historiador dos nossos Reis e do nosso Povo, creio eu que permite uma conclusão aproximada da verdade - verosímil - como tantas coisas em História! Por outro lado, há na massa de discursos e proposições atribuídas ao Condestável, sem esquecer as simples exclamações, os clamores de incitamento bélico, quase diríamos o seu fresco riso e o suave cântico da sua alma em prece - há em tudo isso, e também nas cartas que com alguma felicidade dele se puderam conservar, uma tão perfeita unidade, uma harmonia tão acolhedora, que soa a falso o sorriso do céptico.
Dir-me-ão que há regras precisas e exigentes, para escrever história. E há. Mas tomara eu conseguir apresentar-vos, minhas Senhoras e meus Senhores, uma sombra que fosse das duas Crónicas!...
O que vou provar a V. Exas. não é, como me perdoarão que ainda não seja, um trabalho completo e de inteiro rigor. Gostaria de ter ainda ocasião de tentar uma análise de tudo quanto, nessas duas obras exemplares, nos traz, em discurso directo e mesmo no indirecto, a fala ou a escrita do Condestável. A esses trechos se juntaria, somente, a breve e mal tratada epistolografia - e, como é óbvio, as fontes diplomáticas. Por hoje, vou apenas cuidar de justapor e depois encadear e de algum modo ordenar com certa lógica e um aceno de hierarquia axiológica - as palavras do Conde Santo que vão sangrando as páginas das suas Crónicas. Só raramente atendi ao discurso indirecto, tratando de ver o direito desse avesso. E tive presentes, para me estimularem e guiarem, algumas das obras modernas dedicadas à biografia do Condestável, com preferência para aquela que julgo ser a mais científica: a do Pe. Valério Cordeiro, que entendo mereceria uma reedição actualizada. Muito devo também ao eruditíssimo e exigentíssimo estudo do Pe. Carlos da Silva Tarouca, "O 'Santo Condestável' Pode Ser Canonizado?", publicado na Brotéria de Agosto-Setembro de 1949.
Vamos ouvir Nun'Álvares. Dele escreveu Fernão Lopes: "Nun'Álvares era de pouca e branda palavra e seu gasalhado e doces razões contentava muito a todos" (I, 173 da ed. Civilização); e ainda: "(...) com boas palavras, com gesto ledo e prazível" (I, 180 id.). E o Cronista, depois de falar do "evangelho português", esclarece: "A qual pregação, Nun'Álvares e os seus, por palavra e obra, fizeram tão cumpridamente, que alguns deles, como depois vereis, foram mortos por a defender" (30 id.). A palavra que havemos de escutar é daquelas raras palavras em que o sangue e o espírito estão presentes, ensinam e comandam, recordam e vivificam. Sequiosos dessa água viva, perdidos como estamos no dilúvio da palavra morta, peçamos ao Espírito Santo (cuja festa de avizinha), que nos renove interiormente para que a palavra viva do Seu Servo não morra ao entrar em nós.
Os Textos
I. Diante de Deus e da Imagem de Deus:
1 - "Amigos! Eu vos quero contar um segredo e grande feito que trago cuidado em meu coraçom, o qual é este: assim é que eu vejo, no meu entendimento, um poço mui alto e mui profundo, cheio de grande escuridão; e bem me diz a vontade que non há homem que nele salte que d'ele possa escapar, salvo por grande milagre, querendo-o Deus livrar d'ele por sua mercê. E nom posso com meu coraçom se nom todavia que salte em ele. (...) Amigos! O poço mui alto e escuro que vejo ante meus olhos é a grande demanda que o Mestre dizem que quer começar por defensom destes reinos contra El-Rei de Castela. E entendo que quem com ele em ela entrar que lhe será grave e mui perigoso, nem é ainda de cuidar que d'ela escape, salvo per graça de Deus". (F.L., Crónica de D. João I, I, 74-75).
2 - "Isto é obra de Deus, que se quer lembrar do reino de Portugal (...)". (Cr. do Condestável, 44).
3 - "Deus que Vos deu a Cidade, Vos dará o Castelo". (F.L., Cr. I; cf. Cr. Cond., 49).
4 - "Outrossim porque nós temos justa querela e razom dereita para defender nossa terra, crendo que Deus é justo juiz, cheguemo-nos a Ele que nos ajude; e, se assi fezermos tendo firme esperança em Deus, poucos de nós venceram muitos". (F.L., Cr. I, 172).
5 - "E Deus que o a esto chamou encaminhará seus feitos de bem em melhor, e o trará em sua guarda, e à fim que ele deseja (...)". (F.L., Cr.I, 145; cf. Cr. Cond., 56-57).
6 - "Amigos! Nenhum nom duvide de mim; e todos aqueles que me ajudardes, Deus seja aquele que vos ajude; e, se eu aqui morrer per vossas culpas e míngua, Deus seja aquele que vos demande minha morte". (F.L., Cr. I, 181).
7 - "(...) minha vontade é, com ajuda de Deus, em companha de vós outros, de os ir buscar ante que entrem, e pelejar com eles. E espero na mercê de Deus que nos dará deles tão bom vencimento (...)". (F.L., Cr. I, 174; cf. Cr. Cond., 65).
8 - "Amigos! Eu nom sei mais que diga, do que vos tenho dito; pero ainda vos quero responder a esto a que me dissestes. (...) todo vencimento é em Deus e nom nos homens. (...); mas, não embargando isto, se vossa tenção é todavia qual me dissestes, aqueles que se quiserem ir pera suas casas e lugares, vam-se com Deus (...)". (F.L., Cr. I, 176; Cr. Cond., 66).
9 - "Ora, amigos, eu vos rogo que os que comigo quiserdes ir a esta obra, que vos passeis da parte além deste regato d'água; e os que nom quiserdes, ficai desta outra parte". (F.L, Cr. I, 176).
10 - "Oh! Irmãos, amigos! E pera vós é fazerdes tal obra? Leixardes tanta honra como vos Deus tem prestes (...)". (F.L., Cr. I, 177; cf. Cr. Cond., 67).
11 - "(...) eu, da intençom que tenho tomada, nom me mudarei em nenhuma guisa, senom com a ajuda de Deus levá-la em diante (...)". (F.L, Cr. I, 179; cf. Cr. Cond., 69).
12 - "Nom me parece bem nem aguisado tomar dinheiros de nenhuma pessoa, salvo daquela a que se entenda servir (...)". (F.L., Cr., I, 248).
13 - "Desta vez, meu Senhor o Mestre será rei, a prazer de Deus (...)". (F.L., Cr. I, 423).
14 - "Amigo meu! Eu vos agradeço bom conselho; mas esta cousa Deus a fará melhor do que vós dizeis; e, para vós não verdes esto que assi sonhastes, eu vos mando que fiqueis e nom vades comigo; per esta guisa vós nom vereis vosso sonho cumprido, nem prazerá a Deus que será assi". (F.L., Cr. I, 321).
15 - "À Senhora Dona Izabel, minha netinha, faça Deus Santa. (...)". (Carta atribuída ao Santo Condestável por antigos cronistas; datada de 11 de Abril de 1429; in Valério Cordeiro, 164 n).
16 - "Afonso Pires amigo! Ora prouvesse a Deus de serem aqui as gentes de todo o reino de Castela, cá, com a graça de Deus, tanto haveríamos maior honra. (...)". (Cr. Cond., 134-35).
17 - "Ora prouvesse a Deus que, de tanta terra me a mim Deus e meu senhor El'Rei há feito mercê, eu nom tevesse nenhuma cousa: e tal cousa nom fosse feita". (Cr. Cond., 373).
18 - "Pela nossa fé santa, de verdade e com boa e desejada vontade". (Cr. Cond., 24).
(in S. Nuno de Santa Maria, Nuno Álvares Pereira, Antologia de documentos e estudos sobre a sua espiritualidade, Selecção e Apresentação de J. Pinharanda Gomes, Zéfiro, 2009, pp. 59-62).
Detalhe da porta principal com tímpano e arquivoltas (Mosteiro de Santa Maria da Vitória, Batalha).
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Nave central e Capela-mor
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Claustro real
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Capela do Fundador
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Abóbada da Capela-mor
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Abóbada
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Interior da Igreja
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Continua
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