O Globo, 13 de abril de 2002
“Nous étions des cons.” Yves Montand, referindo-se à militância esquerdista.
O sr. Immanuel Wallerstein, numa obra festejada pela mídia como o nec plus ultra do pensamento esquerdista nos últimos anos, afirma ter descoberto a “profunda irracionalidade” do capitalismo. Ela consiste na idéia do lucro ascendente: ganhar mais para ganhar mais para ganhar mais. Com o objetivo de demonstrar isso ele escreveu um tratado de centenas de páginas, nas quais só se esqueceu de uma coisa: dizer o que a idéia de riqueza crescente tem de irracional, já que justamente ela corresponde a um dos mais naturais instintos humanos e a um dos motores essenciais de todo progresso social.
Mas a intelectualidade marxista, filha de um notório mentiroso, mitômano e charlatão, cujas trapaças científicas são hoje bem conhecidas pelo simples cotejo dos documentos que usou para escrever “O capital”, não poderia ser mesmo muito exigente consigo própria. Daí sua compulsão de celebrar como elevado produto do espírito humano qualquer nova cretinice inventada por alguém de suas fileiras, seja a genética de Lyssenko, a “revolução na revolução” de Régis Débray ou a via gramsciana para o socialismo. Esta, por exemplo, jamais consegue chegar ao socialismo mas, no caminho, vai transformando a sociedade capitalista num inferno mediante a destruição sistemática dos valores culturais, religiosos e morais que a sustentam, substituídos por um cinismo individualista que depois a própria militância gramsciana, sem ver que se trata de obra sua, denuncia como um horror inerente ao espírito do capitalismo.
Já a irracionalidade do socialismo não precisa de muitas páginas para ser demonstrada. Basta-lhe um breve parágrafo. Compreende-a, num relance, quem quer que seja capaz de apreender intelectivamente o conceito mesmo de socialismo tal como expresso por seus apóstolos. Esse conceito é o de um Estado que destitui do poder a classe rica em nome da classe pobre. Ora, para intervir eficazmente numa luta em defesa do mais fraco agredido pelo mais forte é preciso, por definição, ser mais forte que o mais forte. Logo, a vanguarda socialista, para vencer a burguesia, deve acumular mais poder político, militar, policial e judiciário do que a burguesia jamais teve. Porém, como todo poder custa dinheiro, é preciso que a vanguarda detenha também em suas mãos o controle de uma riqueza maior do que a burguesia jamais controlou. Donde a supressão de toda distinção real entre poder político e econômico, que no capitalismo ainda permite aos pobres buscar ajuda num deles contra o outro. Qualquer criança de doze anos pode concluir, desse rápido exame, que a formação de uma nomenklatura politicamente onipotente e dotada de recursos econômicos para levar uma vida nababesca não é um “desvio” da idéia socialista, mas a simples realização dela segundo o seu conceito originário. Infelizmente, nem todo cidadão imbuído de seu sacrossanto direito de expressar opiniões políticas tem a maturidade intelectual de uma criança de doze anos.
Mas mesmo sujeitos desprovidos de capacidade abstrativa para deduzir conseqüências do simples enunciado de um projeto deveriam ser capazes de tirar conclusões de cem anos de experiência socialista, que confirmam repetidamente aquela dedução. Se, incapaz de análise lógica, o indivíduo também se recusa a aprender com a experiência que a confirma, então é porque sua mente desceu ao último estágio do obscurecimento, o que é de fato o único motivo que alguém pode ter hoje em dia para continuar acreditando em socialismo.
A objeção gramsciana, que a muitos ocorrerá automaticamente, de que o Estado socialista será controlado por sua vez pela “sociedade civil organizada”, é apenas um subterfúgio muito desonesto, porque basta ter lido Gramsci para saber que a tal “sociedade civil organizada” não é senão a estrutura do Partido, a vanguarda propriamente dita, que, permanecendo legalmente distinta do Estado, estará “integrada” com ele na estrutura maior que o ideólogo italiano denomina “Estado ampliado” — uma expressão cujo sentido ameaçador e tenebroso pode ser apreendido à primeira vista por quem compreenda o que lê, o que infelizmente não é em geral o caso da militância esquerdista, mesmo universitária.
Também não é intelectualmente respeitável, nem como fantasia passageira, a crença corrente de que as conseqüências lógicas da aplicação da idéia socialista, tal como as acabo de descrever, não estiveram nunca nas “intenções” da militância, inspirada sempre por elevados ideais de justiça e bondade.
O termo “intenção”, no caso, designa o valor (moral, político, jurídico, religioso que seja) que a mente socialista associa à idéia ou conceito a realizar. Mas quem quer que compreenda a idéia socialista percebe, no ato, a contradição insolúvel entre essa idéia e o valor associado. Se o socialismo é o que é, não pode valer o que dizem que vale.
Ora, cultivar uma “intenção” subjetiva que a priori já está desmentida pelo simples conceito daquilo que essa intenção pretende realizar é um estado psíquico de cisão esquizofrênica, que um homem não pode cultivar por muito tempo sem ser levado a uma sucessão de crises insolúveis.
Por exemplo, um sujeito que se case alimentando ao mesmo tempo a “intenção” de conservar a liberdade sexual de um jovem solteiro, ou que contraia muitas dívidas com a “intenção” de manter intacto o seu saldo bancário mês a mês, estará alimentando uma contradição vital que, em breve tempo, o levará a um desenlace trágico. Ele dirá que esse resultado não estava nas suas “intenções”, mas nenhum homem adulto tem o direito de camuflar indefinidamente a absurdidade intrínseca de seus atos com um verniz de belas intenções.
Mais ainda: como qualquer mentira existencial básica prolifera inevitavelmente numa infinidade de mentiras instrumentais necessárias à sua tradução em atos, em breve todo o campo mental do sujeito estará repleto de mentiras que ele já não poderá reconhecer como tais sem uma dolorosa e humilhante tomada de consciência. E desta ele se esquivará enquanto puder, mediante a produção de uma terceira, de uma quarta e de uma quinta camadas de subterfúgios e racionalizações, e assim por diante até à completa fragmentação da psique e à perda da dignidade da inteligência humana.
Esta tem sido a história do socialismo. É só isso que explica a facilidade com que, de um legado monstruoso de terror e misérias, superior em número de vítimas à produção somada de duas guerras mundiais, a alma socialista pode colher como a mais bela das flores morais a mitologia renovada das “intenções”, e ainda ter a inigualável cara-de-pau de denunciar a “irracionalidade do capitalismo”.
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