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domingo, 14 de outubro de 2012

A conversão católica de Leonardo Coimbra (ii)

Escrito por Sant'Anna Dionísio






«Se o próprio Deus precisou dum filho para se humanizar!

E, dizendo melhor, Deus reencontrou o filho, porque ele tinha começado por ser o Pai, o tronco da árvore familiar.

(...) A maior realidade cósmica, que aos homens foi dado ver com os imediatos olhos do Espírito, foi Cristo.

 Quem criou o seu pensamento e a sua vida, toda ela um imediato pensamento de universal e concreto amor?

Pensamento e vida tão unidos que são o próprio Verbo fluindo do centro do Universo.

Compreendeis a flor sem raiz?

Aqui o pensamento é raiz, pelos veios da rocha, através do planeta, abraçando o Cosmo; a vida é a flor, embalsamando o Mundo.

Não é o caso dum ideal suposto realidade, mas o caso duma realidade ideal em tangível e corpórea presença.

Quem teria pensado tão alta doutrina sem plenamente a viver? Não é ela um movimento partido do centro do universo e tudo assimilando ao seu íntimo segredo de amor?

A distância entre o real e o ideal pode existir para os nossos particularistas, para a insaciável sede de presença que nos queima; não existe para um ideal que é a própria consciência de mais absoluta realidade, da completa penetração, da inteira compreensão do Universo. Isto é já muito para indicar que a essência do cristianismo é a própria alma da existência cósmica; é terminante para mostrar a impossibilidade da figura de Cristo com o ideal concebido a que se ajustasse a realidade vivida.

Depois, a vida de Cristo é absolutamente cheia de imprevistos nos mais ocultos detalhes, repassada de acontecimentos de aparente fraqueza, que o papel heróico de personagem concebido como Deus não comportava. Como das mais altas montanhas, surge o sol, ainda mais alto, a reverberar-se na neve, que as cobre, dos evangelhos levanta-se um vulto, que os excede, e, de cuja luz, as suas páginas refulgem. É a figura de Cristo.

Através dos evangelistas nós podemos reconstituir na sua pureza, como a luz branca para além dos corpos, que dela colheram isolados aspectos. A personalidade de Cristo revela a sua essência naquele ponto central da sua vida e do seu pensamento, em que através do finito e do temporal transparece o infinito e o eterno.

O resto é a refracção no atónito pensamento dos discípulos, no próprio papel do Evangelho».

Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»).




Basílica do Santo Sepulcro (Jerusalém).










Catholicon grego







«Cada vez condeno mais o cristianismo do Leonardo, mas cada vez mais respeito a sua atitude perante a Morte. Ora o cristianismo é ritual de enterro. A paixão do Leonardo pelo Cristo, tão anormal, tão patológica, tão monstruosa, leva-o a fraudes como aquela que V. pode ler a págs. 196-197 do Pensamento Criacionista. Já os padres da Igreja queriam atribuir a Moisés o milagre grego: o Leonardo violentamente despoja a lenda grega dum curiosíssimo significado que ele descobriu para maior glória do cristianismo.

Eu creio na ressurreição de Pan» (21 e 25 de Janeiro de 1932).

«Quem quiser fazer um estudo honesto e profundo sobre o que na nossa geração se afirma, quem não quiser limitar-se a um superficial panorama, terá de explicar duas personalidades: Leonardo Coimbra e José Régio.

Em Leonardo Coimbra não há, felizmente, moral. Há política e religião. Pena é que a Morte e o Cristianismo manchem de sombra tão belo espírito. Mas temos de respeitar a morte dum filho...

Em José Régio existe a amarga e profunda expressão do individualismo - e um heroísmo como o de Nietzsche interpretado por Chestov» (24 de Março de 1931).

«Que nós discordamos do catolicismo social do Leonardo como do protestantismo social do Sérgio já é sabido há muito tempo, mas nessa discordância não pode o Leonardo ver qualquer acto que implique a mínima deslealdade para com ele, que nós muito admiramos e estimamos» (Lisboa, 9 de Agosto de 1933).

«Suponho que V. tenha recebido correspondência regular do Marinho e do Sanches. Escuso, pois, de lhe dizer que o que em Portugal se passou de mais interessante foi a publicação do livro de Sant'Ana sobre Leonardo Coimbra e a consequência polémica com António Sérgio, no Diabo.

(...) Sabe que o filho do Leonardo (o Leonardo Augusto), talvez por sugestão do Ângelo César, está disposto a escrever um folheto sobre o pai, defendendo-o das acusações de A. S. e do Sant'Anna? É desanimador» (10 / XI / 1936).



Porto, Cidade Invicta







«Depois da morte do Leonardo Coimbra, o país caiu desoladoramente. O Porto é o mesmo burgo de comerciantes, sem interesse espiritual, como no tempo de Amorim Viana. Não há grupos de intelectuais nos cafés, não há conferências, e a própria indústria de livraria desceu de nível. O Porto lê o "Suplemento Literário" do Diário de Lisboa. Não tem vida espiritual própria; o seu bairrismo é desportivo, industrial, jacobino. Um portuense culto, engenheiro e professor, dizia-me à tempos: "O Porto nunca mais progrediu depois de D. Pedro IV e da Carta; mas também não recuou nem perdeu o espírito liberal". Mentalidade burguesa, de burgo e de burguesia, azeda em marxismo nas gerações estudantis. Publicaram-se duas resvitazinhas, o Sol Nascente e o Pensamento, que são a expressão da mentalidade marxista, na medida em que a censura o permite; são as publicações orientadoras de bastantes estudantes de ciências, medicina e belas artes.

(...) Leonardo Coimbra, depois de morto, tem sido atacado grosseira e vilmente por quantos o temiam em vida. Entre esses destaca-se Abel Salazar, jornalista agressivo e incansável na proclamação da falência da metafísica. Abel Salazar escreve em quase todas as publicações consideradas da esquerda, e entrou já na Seara Nova, onde foi recebido com honras especiais. Apesar das divergências em questões menores, disse-lhe António Sérgio, estamos de acordo num ponto fundamental da doutrina seareira, em que: "a filosofia é essencialmente reflexão sobre a ciência" e não certo lirismo místico que em Portugal aparece e que na Germânia abunda». [Maio-Junho de 1937].

Álvaro Ribeiro («Cartas para Delfim Santos»).


«Também o filósofo Leonardo Coimbra nos aparece de enquadrar nos coléricos. Sempre empenhado, aproveitando todas as oportunidades para agir, talento demonstrativo e oratório manifesto. Espírito largo convivente, de feição optimista e luminosidade solar. Dado à acção pessoal directa, mas assistemático, reassumam da sua vida e obra emotividade primária e a febre de acção. Pedagogo apóstolo por excelência, vivia o imediatismo e a dialéctica das relações humanas; deixou por isso discípulos».

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).




Francisco da Cunha Leão




«A Universidade portuguesa não marcou positivamente o jovem Leonardo Coimbra. Pelo contrário, marcou-o negativamente; Leonardo é contra a Universidade que conheceu como estudante desde o mais fundo das suas entranhas. É mais contra a Universidade de Coimbra do que contra o Curso Superior de Letras, de Lisboa, que conheceu nos primeiros anos do século XX e em que teve Adolfo Coelho como um dos seus professores. O antagonismo com Lisboa não demorará, no entanto, a estalar; a defesa da sua dissertação de concurso não poderá chegar ao fim, em 1912».

Manuel Ferreira Patrício («Leonardo Coimbra» - Colectânea de Estudos).


«Maldita seja essa Universidade em que se quebram tantas energias e se desvirtuam tantas intenções! Que seja arrasada, incendiada, demolida pedra a pedra (…)».

Leonardo Coimbra («Universidade de Coimbra», in Nova Silva, 1909, Ano I. N.º 3).


«(...) ainda não está bem explicado que o esoterismo cristão de Teixeira de Pascoaes, com paralelo na poesia de Dante, evolui para a ortodoxia católica na obra de Leonardo Coimbra».

Álvaro Ribeiro («Sampaio Bruno e a Verdade Oculta», in Revista do Norte, 9, Porto, 1955).





A conversão católica de Leonardo Coimbra


Os homens, por mais fortes que sejam (ou pareçam), raras vezes deixam de ter os seus desfalecimentos nas ocasiões em que sofrem demais; simplesmente, os que são verdadeiramente fortes sabem em regra vencer as crises de excesso de sofrimento por processos, por vezes, os mais simples. Goethe, por exemplo, um dia, no limiar da velhice, ao ver o filho mortalmente doente, viu que não podia suportar em pé aquela terrível vicissitude. E o que fez? Recolheu ao leito, - como se estivesse, ele também, gravemente enfermo; e só de lá saiu decerto quando sentiu que poderia encarar de novo a situação de pé. A conversão de Leonardo Coimbra, no fundo, terá sido alguma coisa desta espécie: terá sido uma maneira diferente de «recolher ao leito».



Goethe



Assim considerada, a sua conversão, tem um significado compreensível; mais dramático que religioso, é bem verdade; mas é precisamente esse carácter dramático das suas experiências o que mais se coaduna com a índole deste homem. Tê-la na conta de uma transformação definitiva do seu temperamento metafísico é esquecer a sua idiossincrasia profundamente humoral, tão propensa às mais inesperadas «fugas». De resto, uma conversão por desespero (como especificamente foi a de Leonardo Coimbra), não é propriamente uma conversão cristã; porque o desespero (embora Kierkegaard se canse a dizer o contrário) é um sentimento caracteristicamente trágico; isto é, pagão. O cristão, de facto, não começa por desesperar, começa por sentir que tudo está bem, nem desesperando perante as suas mais pecaminosas reincidências, nem perante as injustiças aparentemente mais gritantes do destino; o mal, por ele feito, sente-o como um espinho, mas não duvida nunca da sua reparação; o mal que lhe fazem (venha ele donde vier) sente-o como tal, com amargura, mas não tem uma sombra sequer de apreensão acerca do advento da sua compensação. Leonardo Coimbra quis sempre pensar que «tudo estava bem»; mas na verdade não podia aceitar sem horror os males concretos que o destino lhe designava para sofrer: sinal de que no seu espírito havia um obscuro compromisso de teólogo e de homem trágico, de metafísico optimista, quanto ao transcendente, e de homem natural fortemente impressionado com os absurdos do plano imanente; um conflito enfim de uma certa idiossincrasia sacerdotal, defensora da Lei, com um temperamento inclinado a viver a Vida num regime de arbítrio, como se ela própria, a Vida, fosse também, essencialmente, uma coisa redondamente arbitrária.

Na realidade, um homem como Leonardo Coimbra que procura durante anos consecutivos atingir pelo pensamento, por sua conta e risco, a solução do que mais lhe importava; que procura, pela reflexão autónoma, convencer-se de que a Vida é uma coisa terrivelmente séria e com um sentido definido, e (mais) persuadir-se ainda de que do procedimento de cada indivíduo consciente depende, digamos assim, o maior ou menor custo do andamento do curso universal das coisas no sentido desse sentido; que, no entanto, apesar de todos os esforços do seu pensamento não conseguiu nunca possuir a segurança de que necessitava para aferir constantemente o seu procedimento pelas indicações do pensamento, tendo de facto vivido, em grande parte, à margem do esquema de verosimilhanças que o seu pensamento traçava - e que num dado instante, ou dia, ou quadra da vida, dá como inteiramente resolvido tudo o que lhe importava, deveria necessariamente, passar a viver, a partir desse instante, ou dia, ou quadra, como se alguma coisa de extraordinário se tivesse passado nas profundidades da sua pessoa; porque só desse modo a sua profissão de fé terá significado de transmutação temperamental exemplar. Ora, perguntamos nós a todos os que conviveram com Leonardo Coimbra, nos seus últimos dias, até à noite desastrosa, de breu, de 31 de Dezembro: apresentava ele, esse homem angustiado e humoral os sinais de ver tudo de novo»? as suas palavras, os seus actos, os seus hábitos exprimiam alguma profunda transformação interior?

« - Sim (dizem alguns) L. C. parecia outro».

« - Não (dizem outros) L. C. era o mesmo. Apenas mais preocupado com a morte».






Necessariamente, esta maneira de pôr a questão deve parecer a um ou outro extremamente rude. Mas as questões desta natureza não podem ser postas no plano vago das considerações gerais, sem pontos duros de referência. Ora, assim como afastando-nos daqueles que supõem resolver esta questão por uma simples alusão à frase de Henrique IV, nós achamos que o primeiro dever que se nos impunha era o de aceitar esta conversão como um facto profundamente sério e isento de qualquer interferência alheia à essencialidade de um acto desta natureza, assim, em face daqueles outros que se limitam, com ar jubiloso, a registar «mais este exemplo», nós achamos que nos incumbe procurar e invocar todos os factos que nos autorizem a mostrar que o «exemplo» é menos edificante do que parece. No fundo, tanto os que parodiam a frase transaccional de Henrique de Navarra, como os que se limitam a registar, sorridentes, «mais este exemplo», não fazem senão fugir às responsabilidades de reflexão que um problema desta ordem impõe.

Um antigo professor, e notável, já morto, da Faculdade de Letras do Porto, costumava dizer a cada passo: «um facto é, muitas vezes, um equívoco; ou, como dizem os franceses, um acto manqué. Quantas vezes uma pessoa quer dizer ou fazer uma coisa e diz ou faz a oposta! As conversões religiosas são factos privilegiadamente favoráveis a esta interpretação. No entanto, em princípio, uma conversão religiosa deve ser sempre aceite como um facto, e extremamente sério. Mas dessa aceitação não se segue que não se deva honestamente procurar outros, igualmente incontestáveis, em função dos quais ele deva ser julgado e compreendido. Assim: perante a conversão de Leonardo Coimbra, embora aceitando este facto, como o velho professor mandava aceitar - «como um murro» - e embora reconhecendo que em L. C. havia, desde há muito, uma tendência acentuada para a aceitação formal do cristianismo, como atitude convivente e como concepção, não devemos esquecer que, uma tarde, em uma das suas horas de mais profunda intimidade, o pensador não escondeu perante um antigo aluno esta confissão de considerável importância:


« - Eu nunca consegui sentir a realidade ontológica do pecado».


Quer dizer: Leonardo Coimbra acreditava, pelo pensamento, que fazer bem era a missão mais alta do homem; mas a sua experiência íntima não lhe dizia que os desvios dessa missão fossem tão graves como a teologia cristã, e particularmente a romana, assegura. A declaração final que fez, segundo se diz, poucas horas antes de morrer, de que «não se lembrava de ter feito mal a ninguém», não vem senão confirmar a sua incapacidade, digamos assim, para possuir a experiência deste sentimento especificante cristão, tão agudamente sentido pelos próprios santos, o arrependimento. Outro facto ainda: Leonardo Coimbra chamado um dia, não há muito tempo ainda, por um amigo íntimo que se sentia prestes a morrer (no mesmo pavilhão, por sinal, onde L. C. passou também os seus últimos dois cruciantes dias) e consultado por esse amigo, com toda a serenidade, sobre o que seria a morte, não teve a coragem (era a sua própria expressão quando ao depois falava dessa dramática consulta) de lhe garantir nada sobre esse trânsito, tendo-se limitado a dizer-lhe algumas palavras comovidas e vagas de encorajamento.






Por estas recordações não pretendemos negar que Leonardo Coimbra tenha sido, de certo modo, um espírito cristão. De facto, no seu pensamento existiu sempre uma pronunciada simpatia pelo cristianismo como esquema concepcional da existência e como posição de alma convivente. Mas o seu temperamento era mais forte que o seu pensamento. As suas dúvidas, e mais ainda do que as suas dúvidas, as solicitações da sua compleição de homem extremamente forte, exuberante, exigente de expansão múltipla e multímoda, de convivência ácida, de alimentação abundante, de influência social, prendiam-no e envolviam-no nas malhas sempre perigosas da convivência excessiva, pondo a descoberto a cada instante o fundo humoral (ou arbitrário, que é o mesmo) do seu duplo. De resto, L. C. não era homem que tivesse a condição mais elementar à realização de uma conversão religiosa profunda: a firmeza e disciplina de vontade. Será lícito invocar, como prova por suplência desta asserção, o seu modo literário de trabalho? Quem ignora que os seus livros foram escritos, alguns, os menores, em poucos dias, os mais volumosos, em algumas semanas? O trabalho tenaz e vagaroso de aperfeiçoamento olhou-o sempre depreciativamente, não atribuindo estima senão às coisas em que achava uma forte impulsão espontânea, sincera e lúdica.

« - Eu conheci ainda, em pequeno, um velho cavalo escanselado - dizia ele algumas vezes - que fez durante vinte anos o transporte do correio da Lixa a Caíde. Vocês acham que devo estimar moral ou intelectualmente esse exemplar de trabalho

A sua obra de orador (quase toda perdida, pois ele nunca escreveu uma linha para ler ou recitar em público) acusa bem a «tendência» que estruturalmente o movia de ser sempre incoercível, nunca hipotecando as indeterminações do seu devir, desafiando todos os esforços de visão antecipada do seu procedimento, mostrando-se alternadamente pueril e severo, inquieto e calmo, comovido e cáustico, intratável e lhano, orgulhoso e simples, corajoso e pusilânime, transições rápidas de humor; provocando, em suma, toda a espécie de perplexidades e inquietações. Daí as múltiplas expressões desconcertantes que ele deixou, quer no espírito dos que apenas o viam pelos seus gestos forenses, quer no espírito dos que o conheceram na intimidade. Como é que um temperamento destes - perguntamos pois - poderia realizar uma atitude religiosa tão exigente de estabilidade de ânimo como é a atitude cristã? Deveremos crer que um homem tão complacente com as vagas do seu humor poderia subordinar-se com rigorosa firmeza a uma fórmula de viver de tão difícil realização? Passado o estado dramático de necessidade que condicionou o que alguns afirmam ter sido uma transformação radical e definitiva, não renasceria, mais dia menos dia, o lume rebelde da inquietação -, o regresso ao que não salva mas preenche e dignifica mais que tudo a miséria do homem: a reflexão livre? Nós não ousamos abertamente dizer que esse regresso era inevitável, porque a morte opõe-se à verificação; mas consideramo-lo, pelo menos mais verosímil que a chamada pacificação definitiva. E se suportamos a tentação de negar a possibilidade da transformação radical de tonus convivente de Leonardo Coimbra, fundando-nos com nova insistência na variabilidade de humor da sua vida anterior, é porque reconhecemos que o humor é um «elemento» que interfere apenas à superfície de vida espiritual de um homem. O timbre de uma pessoa, para ser profundamente ouvido, deve ser escutado muito para lá das expressões, muitas vezes mistificadoras, que são os chamados desequilíbrios, fugas ou falhas e outras coisas olhadas de revés pelo consenso social que confecciona os verbetes da reputação. Em trabalhos ulteriores será necessário portanto ir mais fundo e não considerar os desalinhos e as fugas de Leonardo Coimbra como sendo a expressão mais fiel da sua maneira de ser; porque, se um homem superior nas suas zonas superiores é, essencialmente, uma obra de si mesmo, nas suas zonas inferiores é, em grande parte, uma consequência da ambiência, é um espelho que reflecte, ampliados (justamente por ser maior), os defeitos e os erros dos que o cercam. Se quiséssemos, pois, terminar com a nota a mais justa e a que mais importaria salientar, seria necessário colocar este problema de Leonardo Coimbra em uma posição diferente daquela em que acabamos de o colocar, para se mostrar que o seu humorismo (origem dos seus aspectos desconcertantes), foi, muito provavelmente, por um lado, uma espécie de legítima defesa e, por outro, um disfarce púdico de um sentimento doloroso extremamente recalcado: o sentimento de que a situação perante o meio era um pouco como a de um homem, em uma praça cheia de gente estranha, falando outra língua, a querer baldadamente fazer-se entender.






A olhar as coisas do lado de fora parece que Leonardo Coimbra não devia ter razão para possuir esse sentimento, pois, aparentemente, ele foi um dos homens mais aplaudidos e admirados do nosso tempo, no nosso país. Mas quem pode iludir-se? De facto os aplausos e a admiração que Leonardo Coimbra colhia (como ele não podia deixar de o perceber) eram puramente espectaculares, dirigidos apenas à sua personalidade exterior de tribuno e homem estranho: na realidade, ninguém o compreendia; e o homem de valor o que deseja é que participem das suas preocupações e não que admirem a sua figura, ou timbre de voz, ou facilidade de palavra; o que ele quer, em suma, é que o compreendam e não que o aplaudam. Leonardo Coimbra sentia com nitidez a sua incomunicabilidade, e sofria como todos os homens superiores a têm sofrido, em todos os tempos e lugares, e sofrerão sempre; sob a máscara do tribuno que frequentemente subia aos estrados para falar, falar, falar, dando-se o ar de homem que tinha a satisfação de transferir as suas ideias, havia o rictus secreto, cheio de amargura, do pensador que sabia que as suas obras somente eram vendidas nas feiras do livro a preços irrisórios, para não serem vendidas a peso. Quantas vezes nos últimos anos, quando os amigos lhe perguntavam de longe a longe se andava a pensar algum livro, ele replicava com rápida mordacidade! - «Mas para quê? Neste país não se pensa: neste país...»

A submissão deste homem ao ensino secundário (já o dissemos no dia em que o seu corpo deu entrada num adro) será seguramente apontada no futuro como um dos exemplos mais gritantes da incapacidade hostil que os contemporâneos de um homem superior têm em reconhecer o seu valor e sobretudo em lhe reconhecerem o direito de trabalhar, por solicitude social, em condições adequadas à máxima realização das suas possibilidades. Como é que um homem destes, tão consciente das suas enormes virtualidades, tão duramente amarrado ao potro dum pedagogismo burocrático e primário, deveria reagir perante a hostilidade ambiente? Como reagiu Herculano? E Soares dos Reis? E Raul Proença? Aqueles que acentuam demasiado a causticidade de L. C. esquecem que este homem extraordinário, sem dúvida alguma o homem melhor dotado de inteligência especulativa até hoje aparecido no nosso país, o homem que merecia portanto do meio a maior generosidade, foi compelido a consumir o melhor da sua maturidade a dar lições de desenho e aritmética elementar a crianças e a ensinar o abecedário de filosofia a adolescentes dos liceus - ele que por si (como mostrou), valia uma universidade. A história dos dramas espirituais mais dolorosos e significativos da nossa existência colectiva é demasiado rica em casos de mordacidade para que se possa apontar L. C. como um caso doentio e esporádico de reacção agressiva e arbitrária. Em última análise L. C. é mais um caso de fracasso, análogo ao de Antero. Num, como no outro, a vontade (em Antero lesada misteriosamente pela nevrose; em L. Coimbra prejudicada por hábitos e complexos de muitas proveniências) teve uma parte notória nesse fracasso; mas, acima de tudo, é às «circunstâncias» que devemos ir buscar a causa mestra do que há de mais lamentável nestes dois fracassos; é essa hostilidade que é necessário ter presente, se se quer compreender a irrealização das mais profundas virtualidades destes dois pensadores, e compreender em parte a justiça vingativa que há no silêncio severo de um e na causticidade de outro.



Alexandre Herculano



Certo é que alguns dizem que os homens superiores nunca podem falhar; que o que eles realizaram é precisamente o que eles tinham a realizar. Perante a obra de Leonardo Coimbra (como perante a de Antero de Quental) tal teoria afigura-se-nos radicalmente irreflectida. De facto, os homens superiores podem falhar; e falham quase sempre. Em regra, o que eles realizam fica desmedidamente aquém do que lhes era possível. Ora, desde que um desses homens tem a consciência de que as suas melhores virtualidades foram contrariadas e esmagadas pelo que lhes é exterior, natural é que no seu espírito ecluda qualquer forma cancerosa de «desforra»: nuns, essa «desforra» é uma simples abominação surda seguida do afastamento; noutros é a reacção colérica conducente à própria perda; noutros é o silêncio seguido de um desaparecimento enigmático, etc. Em Leonardo Coimbra foi a mordacidade implacável. Que é, porém, a mordacidade senão uma reacção ofensiva dos ofendidos? E quem sabe se, sem a intervenção fortuita e trágica do desastre, o seu fim não seria mais nitidamente uma acusação contra o meio? (in ob. cit., pp. 96-109).


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A conversão católica de Leonardo Coimbra (i)

Escrito por Sant'Anna Dionísio








«Há uma liberdade, excedendo as suas criações; uma intenção de amor, maior que todas as suas obras; um Infinito unindo, por dentro, todas as formas; um Irracional criando todas as razões, sem nelas se esgotar nem sequer diminuir.

É o que mostrou a Natureza inteira e a alma humana.

Uma vida houve, porém, que resumiu, em si, toda a beleza do Universo, todo o significado transcendente da quantidade, do movimento e do Ser, todo o heroísmo e astral pensamento da alma, toda a comunicabilidade espontânea e todo o amor atento.

Foi Cristo.

A Graça pelo mundo, e, por caminhos de açucenas, lírios e boninas, levou os homens para a vida substancial e eterna.

Os eruditos que carregam a erudição, quer dizer, os que ignoram a Graça, criaram o problema de Cristo.

Como pouco interessa a sua identificação civil é, no entanto, fácil o problema.

Como pelas manhãs se erguem, sobre o leito dos rios, fantasmas de névoa cobrindo o fugidio corpo das águas, das inquietas páginas do Evangelho levanta-se uma figura serena, mais real e positiva que as incertas letras da história.

A harmonia, a proporção, o ajustamento natural, vivo e flexível das intenções e dos actos, a Graça, que ondula, de incessantes nascentes, a vegetal frescura da palavra; a continuidade duma vida abraçando todas as pequenas vidas; a perfeita humildade, compreendendo o nada das ambições e vaidades terrenas, essa ordem transcendente e livre só pode provir duma Unidade plena, duma alma colocada no foco da Realidade, ali, onde os raios do Amor, unam todos os seres.

Essa unidade é a consciência de Cristo.

Que importa o seu registo civil, se só uma suprema personalidade moral pode produzir a vida, que os evangelhos contam?

Quanto ao seu pensamento, o escritor que o tivesse criado seria o próprio Cristo. Quanto à acção, como explicar a unidade dos testemunhos sem a visão dum exemplar?

E, admitindo o absurdo dum propositado arranjo, como há almas supremas e iguais para a invenção dum modelo, que afinal refractam tão diversamente? Donde vem esta sublime orquestração?».

Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»).








«Não se deteve Leonardo Coimbra a meditar na fórmula evangélica: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Estas três expressões bíblicas significam três rumos, e não três termos que limitem as virtudes teologais. O mistério da encarnação é solidário do mistério da redenção.

No livro intitulado Jesus, o nosso pensador, utilizando a equivalência evangélica de Cristo com o Verbo, escreveu comovidamente: "Cristo é a Verdade, a Beleza e a Bondade". Tal cristologia encerra, assim, a evolução de todos os valores, e portanto opõe-se ao progresso da filosofia. A imagem da crucificação representa, para Leonardo Coimbra, adequada relação entre o tempo e a eternidade.

A dificuldade da doutrina cristã não consiste no enunciado de cada mistério que é proposto à fé. Separadamente, nenhum dos mistérios repugna à razão, logo que de algum modo se admita a distinção entre o que é natural e o que é sobrenatural. A dificuldade consiste em conciliar os mistérios de molde a apresentar à cultura actual uma satisfatória sistematização da teologia.

Sabemos qual era, para o autor de A Alegria, a Dor e a Graça o mistério central do cristianismo. Sabemos também que o pensador levou a vida a estudar todas as formas de cristologia, desde as mais superficiais e exotéricas até às mais profundas e esotéricas, antes de se submeter definitivamente ao ensino da Igreja Católica. Foi justamente o saber-se que Leonardo Coimbra era um estudioso muito exigente e, além disso, crítico muito severo, da apologética desenvolvida entre nós, que determinou a suspeita sobre a insinceridade da sua conversão.

A surpresa dos descrentes explica-se porque Leonardo Coimbra desde novo meditava sobre o significado do anticlericalismo que em Portugal se desenvolveu na vigência da Carta Constitucional, e longe de atribuir a culpa aos infiéis julgava os actos dos sacerdotes responsáveis. Condenava principalmente os maus livros adoptados para ensino nos seminários, os quais, na justa prevenção contra os erros e heresias correntes no mundo católico, demasiado insistiam em acontecimentos e doutrinas que apenas interessam à História da França (jansenismo, molinismo, enciclopedismo, erros de Voltaire, de Rousseau, de Renan, etc.), propagando nos meios intelectuais o que pretendiam eliminar. O antigo aluno do Colégio de Penafiel, que conhecera os defeitos do nosso ensino médio, via claramente os inconvenientes desta subordinação à apologética escrita por padres católicos para povos de língua francesa.

Reciprocamente, os nossos pensadores religiosos de cultura francesa recusavam-se a ver na filosofia de Leonardo Coimbra o esboço de uma nova síntese católica, e só quando, por indiscrição de alguns estudantes, se divulgou a notícia de que o pensador regressaria à prática dos sacramentos cristãos, cessaram os ataques injustos dos jornalistas clericais. Estava o ambiente cultural português muito saturado de positivismo no princípio da primeira Guerra mundial, e todos os escritores interessados em questões de ordem pública, concordavam em repelir a filosofia: uns, porque a consideravam adversa à ciência, outros porque a consideravam perigosa para a religião. Nem sequer a notável actividade do instituto  Filosófico de Lovaina, devida à energia e à persistência do Cardeal Mercier, era suficientemente conhecida entre nós quando a Sagrada Congregação dos Estudos formulou as vinte e quatro teses tomistas que iriam servir de directrizes seguras para o ensino da filosofia eclesiástica».

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).







«A mensagem de Leonardo Coimbra é, de todas, a que possui maior sentido de perenidade, pois foi ele quem viveu o pensamento na maior altura, mais universalmente e mais consciente dos problemas que a vida de hoje põe ao Homem de Sempre.

Leonardo Coimbra atingiu a profundidade do Homem de Sempre, porque atingiu Cristo pela angústia metafísica do homem contemporâneo. E à luz de Cristo, viu renovada a face da Terra: o sentido da história, do progresso e da civilização, o problema do amor, da dor e da alegria, da razão e da imortalidade, da ciência e da beleza. E tudo isto nos foi dado, no drama da sua obra e da sua vida e em muita beleza de arte.

Só quando em Portugal houver um escol de pensadores vivendo os problemas na profundidade e altura de Leonardo Coimbra, haverá também a certeza de que Portugal se reintegrou no sentido da sua missão histórica».

Padre António de Magalhães («Testemunhos dos seus Contemporâneos»).


«"A minha conversão - exclama Leonardo Coimbra - não foi obra da ilusão sentimental nem de leviandade, oportunismo ou coacção de espírito, mas sim o natural epílogo de uma evolução lenta em que lucidamente e em plena liberdade de consciência prestei formal adesão à doutrina do Evangelho e abjurei o meu passado sem Deus"».

Moreira das Neves («O Anjo das Três Loucuras»).


«Lembremos que Leonardo Coimbra, tendo abandonado a Maçonaria se tornou, depois de 1923, um arauto do direito da escola católica».

Pinharanda Gomes («A Cidade Nova»).





A conversão católica de Leonardo Coimbra


Leonardo Coimbra



(...) Leonardo Coimbra embora falando frequentemente da Morte, embora fazendo conferências e livros sobre ela, debatendo-a como problema, tecendo formosas grinaldas verdes sobre as frontes das figuras simbólicas que o seu verbo esculpia em honra dessa Entidade esfíngica, apesar de a cantar como uma chama sagrada e depuradora, - apesar disso tudo, a grande verdade é esta: ele não olhava a Morte de frente. A sua cabeça enorme, lacónica, de gladiador, perante essa Sombra, erguia-se, a linha da sua face larga e trágica colocava-se quase paralela à linha de terra, fixando a altura vaga dos espaços - mas não as águas glaucas do rio que corria a seus pés. Ao contrário de Raul Brandão, em quem a preocupação da morte foi uma preocupação concreta de certos instantes íntimos e terríveis em que esse grande trágico do quotidiano sentia a unhada do caruncho do tempo, «o roído de morte que rói e persiste» e se comprazia, aterrado, a escutá-lo, Leonardo Coimbra fugia de colocar o ouvido à escuta do misterioso silêncio da floresta estática, vaga e temerosa da outra margem. A prova de que, para o seu espírito autêntico, a inquietação não pôde ser aplacada ou reprimida, ainda nas crises em que teria sido movido pela maior necessidade de confiança, depreende-se do modo como se refere à morte no princípio do livro que é a resultante das suas mais ardentes diligências experimentais para obter uma prova que suprisse a insuficiência das provas dialécticas: «Mas que poderemos - diz -, os filósofos, armados do poder da ciência, de todo o poder do pensamento, neste combate directo com a morte?». Esta interrogação, saturada da sua própria negativa, é a confissão bem patente das suas incuráveis apreensões acerca do destino do homem; porque, reconhecer que a Morte é um segredo inviolável, é o mesmo que confessar que, de seguro, nada se poderá saber quanto ao valor e sentido da existência do homem, - o que, por sua vez, equivale a uma confissão de dúvida sobre este ponto de fé, o mais, ou pelo menos, um dos mais importantes da religião para a qual o seu espírito tendia, que é a crença na imortalidade pessoal e no valor primacial da individualidade. É claro que se poderá sempre objectar que o pensador inquieto de 1915 tem pouco que ver com o pensador tranquilizado de 1935; que, ao seu espírito foi, de facto, difícil a obtenção das verdades absolutas e calmantes; mas que, por fim, essas verdades se lhe impuseram e que, ao cabo, o seu espírito se pacificou, e de vez. Esta objecção é, evidentemente, legítima; mas a dúvida quanto à pacificação definitiva não o é menos.

Daqueles que participaram da convivência de Leonardo Coimbra, e hoje podem desprevenidamente reflectir sobre as suas recordações, raros devem ser os que admitem a crença de que o seu espírito era susceptível de uma atitude definitiva de alma perante o Insondável. Aliás, Leonardo Coimbra não foi só o primeiro, mas o último, a denunciar essa impossibilidade de fixação do seu espírito em qualquer ortodoxia: o primeiro, porque já em 1912, na sua primeira obra literária, em uma passagem extremamente importante advogando a sua ideia de que o Estado não deveria separar-se da Igreja (1), afirma que o sacerdócio, para ser verdadeiramente à altura da sua missão, teria de ser formado por uma educação eminentemente livre, científica e metafísica, para que as suas ideias e sentimentos não fossem cousificados; o último, porque, segundo o testemunho inestimável de uma pessoa de família, ele fez, poucas semanas antes do desastre [de automóvel na Serra de Baltar], esta impressiva declaração (2):


«Como católico eu nunca poderei ser senão um Anarquista».






Destas palavras não desejamos que se pressuponha que a conversão religiosa de L. C. é por nós tida como um acto de superfície. Essa «explicação» (se na verdade fosse a que intimamente possuímos) seria grosseira de mais para que o alongamento destas considerações não constituísse um verdadeiro exercício discursivo de eufemismos.O que queremos dizer é que esse acto só se compreende, dado o temperamento de L. C., como um acto de circunstância. Se de facto quiséssemos (como alguns parece que querem), considerar essa conversão como um terminus, seria necessário esquecer as fugas do passado ideológico e afectivo deste homem; e, por cima disso, esquecer a natureza, sempre sujeita a recidivas, de toda a pessoa que, depois de ter tentado durante o melhor da sua maturidade, resolver pelo pensamento pessoal os seus problemas, quer um dia, ou julga um dia, tê-los definitivamente resolvidos por uma transacção afectiva; se, por outro lado, se pretende ver nesse acto alguma coisa como uma étape dialéctica final de um pensamento, há que reconhecer que esse pensamento se consumiu em excessivos rodeios, e se muniu de apetrechos demasiado caros, para atingir uma colina tão acessível; se, finalmente, se deseja considerar esse acto simbólico como um vínculo indestrutível de uma posição de alma, - é necessário ter uma visão excessivamente ingénua acerca do que é normal no behaviour dos homens desta natureza. Recorde-se a este propósito o soneto final de Antero Na mão de Deus e confronte-se o compromisso dessa poesia com o procedimento do poeta na noite fatal de Ponta Delgada, de 11 de Setembro! Que Leonardo Coimbra quis e julgou decerto ter obtido finalmente o repouso, nesse transe, como o Poeta, naquele outro em que monologou: Já sossega, depois de tanta luta, / Já me descansa em paz o coração, queremos admiti-lo; que efectivamente o tivesse obtido «de uma vez para sempre», achamos inverosímil. Como compreender, de resto, que um espírito pacificado, e tão recentemente, manifestasse uma simpatia tão pronunciada por uma obra profundamente perturbada e herética, no ponto de vista do cristianismo romano, como é esse já aludido Tratado do Desespero, de Kierkegaard?

(...) Desde que se compreende a dialéctica do desespero de Kierkegaard e se sabe que, nos seus últimos dias, Leonardo Coimbra não viveu senão para a apreensão terrível de perder o filho, o problema íntimo da sua conversão religiosa afigura-se-nos relativamente simples. A solução, quanto a nós, é esta: Leonardo Coimbra refugiou-se na fé por desespero, por não poder compreender as ameaças impensáveis que ele sentia a rondá-lo. No fundo, Leonardo Coimbra foi sempre um homem que viveu num insolúvel e precário compromisso de esperança e desespero, ao sabor das circunstâncias e dos golpes de humor que delas resultam: a esperança traduzindo-se sob a forma de pensamento especulativo, interrogativo, optimista, exaltado, eloquente; o desespero traduzindo-se, alternadamente, em causticidade, na convivência, em pânicos secretos perante os vislumbres das doenças e da morte, na intimidade. A despeito de todas as propensões (incontestavelmente fortes) que no seu temperamento metafísico existiam a favor da confiança no transcendente (3), os seus olhos não deixavam nunca, supomos, de perscrutar sem temor as funduras do Insondável. Entretanto o seu pensamento conseguiu suportar (com ameaças embora de desfalecimento, por vezes) o equilíbrio desse compromisso, durante a maior parte da sua vida. Ultimamente, porém, essa angustiosa apreensão de perder o segundo filho (que era, para ele, verdadeiramente a justificação mais concretamente metafísica, como utensílio de compreensão, pareceu-lhe dolorosamente insuficiente, operando-se de novo a disjunção que, vinte e quatro anos antes, por morte do primeiro, o levara a recorrer à experiência das indagações espíritas, para tentar suprir a insuficiência do pensamento perante o facto consumado, irredutível e desconforme. Desta vez, porém, assumia um aspecto mais terrível, na sua nudez morna de ameaça: o valor do sacrifício que a fatalidade parecia querer impor-lhe era incomparavelmente maior; a tonalidade da tragédia que o envolvia (e ele supunha inevitável por vezes) era mais sinistra que da primeira vez. Qual a explicação de tal imposição? Como Abraão, ao conduzir o filho ao cimo do monte, Leonardo Coimbra não podia compreender a ordem que ele julgava ouvir bater-lhe de novo à porta; no silêncio da sua meditação (como no silêncio de todos os pais sobre quem pesa a mesma ameaça) essa ordem afigurava-se-lhe, evidentemente, como uma arbitrariedade absurda. O seu desespero não podia deixar de ser grande. E compreende-se bem que, nessas circunstâncias trágicas, o encontro do tratado de Kierkegaard fosse recebido pelo seu espírito como um verdadeiro socorro providencial, como uma verdadeira consolação, sugerindo-lhe uma solução tão adequada à sua formação intelectual, eminentemente optimista, mas sempre especulativa: a sugestão de se evadir do desespero pela crença na infinidade do Possível!






Esta evasão, porém, não podia ser inteiramente eficaz, segundo pensamos. Uma pessoa que vive num dado momento num estado agudo de desespero está, sem dúvida, em condições de passar mais facilmente, de um momento para outro (como um líquido que atinge o ponto de saturação), para um estado de aparente tranquilidade, do que uma outra que viva num estado de desespero relativamente sofrível; e é fácil compreender que, depois de obter essa suposta tranquilidade, tal pessoa esteja em boas condições de se convencer a si própria (e ainda melhor de persuadir os outros), que a sua pacificação é, não só profunda, mas definitiva; na realidade, porém, é sob o desespero que vive. É, pelo menos, afigura-se-nos, o que se poderia verificar se os convertidos desta espécie fossem suficientemente corajosos para, logo que passasse a fase aguda do seu desespero, estudassem a segurança da sua chamada paz interior.

Na realidade, uma «conversão» operada por saturação e desespero não pode deixar de ser uma conversão precária, nomeadamente se o espírito em quem ela se opera tem hábitos especulativos relativamente inveterados, - como é, tipicamente, o caso que estudamos. E, consequentemente, essas conversões são destituídas de significado «ortodoxo». Conversões, como se costuma dizer, edificantes, são somente aquelas em que a pessoa se transfigura por uma espécie de avassalamento imprevisto, rápido, inefável, inteiramente gratuito, de uma ideia ou sentimento (ou como quiserem chamar-lhe) que transforma, de chofre, toda a sua vida íntima e de relação. A conversão de Leonardo Coimbra não foi uma transfiguração desta índole; foi uma experiência moral precedida de quinze anos, pelo menos, de hesitações. Esta longa hesitação significa que, no fundo, Leonardo Coimbra era um angustiado incurável - ou, para nos servirmos da terminologia do Tratado do Desespero (4): «um doente até à morte». Para alguns, esta afirmação parecerá estranha, principalmente para aqueles que dele guardam a imagem de um homem pronunciadamente «satisfeito» e cáustico. Mas o que é a causticidade senão uma espécie de sublimação da melancolia? E, que são os grandes humoristas senão homens profundamente tristes na intimidade? Em virtude do seu desespero subjacente, vindo de muitos nascentes diferentes, ele não podia deixar de ser uma pessoa incorrigivelmente humoral. Em primeiro lugar, era a tristeza metafísica, chamemos-lhe assim, de reconhecer que o plano da Natureza é insuficiente; tristeza nele extremamente reflectida. Em segundo lugar, o pesar obscuro de não encontrar no pensamento uma garantia bastante de que essa insuficiência do imanente tinha a sua complementariedade noutro plano do ser; e embora reconhecendo, por reflexão e por temperamento, a necessidade desse complemento ontológico, sofrendo do desespero, latente em todos os espíritos exigentes, de não vislumbrar concretamente o seu modo de ser. Em terceiro lugar, a melancolia recalcada (fonte das suas reacções mordentes) da sua situação de homem deslocado e, sob muitos aspectos, vencido pelo meio e por deficiências secundárias de si próprio.

Os recalcamentos provenientes destes vários ressentimentos, uns de ordem ideal, outros de ordem pessoal, estavam habituados a encontrar na sua natureza «infantil» uma complacência demasiado indulgente para que o seu comportamento pudesse ter alguma vez aquela uniformidade de ânimo que é a condição mais importante do homem religioso que não vive em regime celular; que é o mesmo que dizer: L. C. não possuía a inibição essencial da vida religiosa efectiva, se se parte do princípio, como partimos, de que a atitude religiosa deve ter a sua pedra-de-toque na convivência e não no eremitério; porque, no cimo dum monte, ou na rasura dum deserto, solitariamente, não há homem algum que não seja sério; o que é difícil é ser sério, impecável e constantemente, no comércio concreto das relações com os outros homens. Por outras palavras: para se ser religioso, ou para se demonstrar que se transitou do regime de humor arbitrário para o regime de tranquilidade, não basta crer nestas ou naquelas «certezas», admitir esta ou aquela «concepção» ou «explicação» do mundo como inteiramente satisfatória: o essencial é viver em função delas, pelo procedimento. É, em virtude deste princípio, que nós supomos que uma conversão só pode ser considerada como um acontecimento profundamente significativo quando dele resulta uma inalterável modificação do tonus convivente da pessoa em quem de tal acontecimento se diz sucedido. Conversão «edificante» deve ser, portanto, somente aquela que dá, de alguma maneira, a sugestão de uma metamorfose (5), ou fenómeno de catálise, ou alguma coisa desse género; deve ser, enfim, algo como uma catástrofe interior da qual deve resultar uma visibilidade diferente do mundo; as coisas, as criaturas devem passar a ter fisionomias tão diferentes como quando se vêem os caminhos ou as paisagens pelo conselho de Chatterton, colocando a cabeça entre os joelhos.


Buda



É claro que dessa catástrofe, chamemos-lhe assim, não pode deixar de seguir-se uma profunda modificação do tonus convivente (como se vê, de modo edificante, na renúncia de Buda ou de Francisco de Assis, e casos análogos); de um momento para outro todos os valores vulgarmente estimados (afectivos, económicos, mundanos) sofrem uma depreciação total; alguma coisa como uma quebra fraudulenta, tal é o sentimento de mistificação que invade a pessoa perante as recordações das suas preocupações anteriores; a pessoa que verifica essa fraude parece emergir de um banho lustral: as brisas inconstantes de humor cessam; a pessoa parece respirar uma atmosfera balsâmica e calma seriedade; antes, vivia ao sabor das instáveis marés de melancolia e satisfação, com instantes alternados de angústia e aturdimento; um pouco, embriagada na contemplação das suas posses e êxitos; outro pouco, roída pela consciência da sua irreparável fragilidade; agora, arrogante, logo, oprimida; em um dia, olhando a natureza como um belo campo de jogos de sentidos; no dia seguinte (ou no mesmo), descobrindo nela um ar sinistro e mandibular de monstro e abismo; após a «catástrofe», este regime de «marés» cessa: o humorismo tem aí o seu termo; o indivíduo, desde esse momento, passa a possuir, parece, uma intuição tão nítida e segura dos seus fins e uma inibição tão afinada na contenção dos impulsos próprios do estado-natureza, que a sua vida interior parece não ser mais do que uma tranquila sucessão de emoções, ideias e propósitos impecavelmente sérios, e  a sua vida de relação uma sucessão extremamente plácida de palavras e reacções zelosamente aferidas por esses fins nitidamente intuídos. Este é o tipo, supomos, do que poderá considerar-se uma convenção «edificante». A profissão religiosa de Leonardo Coimbra afigura-se-nos muito distante deste tipo. Em nosso entender, a sua conversão deu lugar a uma modificação profunda da sua idiossincrasia. Transitoriamente, enquanto subsistissem as circunstâncias dramáticas que o angustiavam, seu modo de conviver poderia parecer relativamente modificado; mas essa modificação era devida a essas circunstâncias, predominantemente, e não, como alguns querem crer, à pacificação derivada do acto formal de crença. Na sua essência (repetimos) este acto terá sido uma experiência requerida pela ruptura da sua capacidade de suporte da angústia, como em 1912 havia sido a sua crença na possibilidade da verificação experimental da imortalidade (in «Leonardo Coimbra», Lello & Irmãos Editores, Porto, 1983, pp. 79-83; 88-96).


Notas:

(1) Esta questão, como muitas outras, é objecto de exame sistemático em um trabalho que está a ser realizado por um dos mais dedicados e cultos amigos do pensamento de Leonardo Coimbra, como a seu tempo se reconhecerá.

(2) Testemunho de um parente próximo de L. C., comunicado ao autor deste escrito, depois da leitura na Casa da Imprensa e do Livro (1936). Esse familiar do Filósofo, filho do médico António Penafiel, dar-nos-ia, nessa data, em uma viagem breve, do Porto a Penafiel, impressivas informações íntimas que, precisamente pela sua delicadeza, deixámos diluir e perder após a sua inesperada e dramática morte, por pura abnegação.




(3) Leonardo Coimbra gostava de repetir algumas vezes este argumento extremamente sugestivo da verosimilhança irresistível da transcendência:

« - A nossa Vida - dizia - é como que a base monumental de uma grande estátua truncada pelo nevoeiro; isto é, com o cimo invisível - mas forçosamente existente».

(4) ... «o desesperado é um doente de morte». Ob. cit., p. 33 (trad. port.) p. 75 (ed. Gallimard).

(5) William James diz: «segundo nascimento». Leonardo Coimbra ao estudar, sob o aspecto religioso, Guerra Junqueiro, alude precisamente a esta característica de W. James, achando que Junqueiro nem apresenta, pelo seu «religiosismo» os indícios de ser um once born nem um twice born, e, a esse propósito, sugere a conveniência de se distinguir uma terceira classe de espíritos religiosos: os «flutuantes». Com isto queria ele, evidentemente, abranger as individualidades cuja «religiosidade» depende muito do que usualmente se chama o humor. Leonardo Coimbra, a despeito da sua conversão, parece-nos ser caracterizadamente dessa terceira ordem.

Continua