Escrito por S. Tomás de Aquino
«A
empresa de conciliação entre o cristianismo e o aristotelismo, já tentada,
desde 1231, por Gregório IX (...) e depois servida com
tanto fervor e tanta competência por Alberto Magno, não só parecia marcar
passo, mas até, em determinados sectores, visivelmente recuava. Por volta de
1250, o movimento dos averroístas (isto é: dos que preconizavam a obediência
cega a Aristóteles, segundo os comentários que o famoso Doutor árabe de Córdova
tinha feita do Estagirita) surgira na civitas
philosophorum. E poucos anos mais tarde, a 9 de Março de 1255, o
regulamento da Faculdade das Artes ordenara o ensino oficial do aristotelismo,
sem fazer o menor caso das proibições da Igreja. Alexandre IV, alarmado,
solicitou de Alberto Magno uma refutação dos erros da nova escola – que o
professor de Colónia efectivou no tratado De Unitate intellectus contra Averroem (1256). Mas, como a tendência
combatida não dava sinais de esmorecer, Urbano IV, pelas cartas de 19 de
Janeiro de 1263, viu-se forçado a renovar as interdições de Gregório IX quanto
ao ensino do Perípato. E, no mesmo ano, encarregou Tomás de Aquino, ajudado
pelo filólogo Guilherme de Moerbeke, de levar a cabo a famosa obra da sua
cristianização. Por volta de 1266, porém, a personalidade exepcional de Siger
de Brabante evidenciou-se no meio parisiense e veio a dar às efervescências
duma parte da mocidade académica o que até aí lhes faltava: um chefe cheio de
valor, de prestígio e de audácia. Siger de Brabante era um flamengo talentoso e
astuto, notabilíssimo nos debates dialécticos, um dos raros émulos de Tomás de
Aquino, e, secundado por um confrade de mérito, Boécio de Dácia, arrastou
consigo um importante núcleo de estudantes da Faculdade das Artes, onde
ensinava. Devia andar pouco além dos trinta anos e sobre o seu futuro estavam
depositadas as maiores esperanças. Em 27 de Agosto de 1266, na ordenação do
legado pontifício Simão de Brion, apareceu pela primeira vez o seu nome,
envolvido numa desordem universitária de vulto. A Faculdade das Artes
dividia-se, nessa época, em quatro secções, caracterizadas por nacionalidades:
a dos Franceses, a dos Normandos, a dos Picardos e a dos Ingleses. No primeiro
semestre de 1266, estalou um conflito entre o grupo dos Franceses e os outros
três, à soma dos quais era, por si só, numericamente equivalente. A desavença
prolongou-se, agravou-se, a ponto de se declararem os Franceses inteiramente
autónomos, elegerem um reitor seu e romperem as suas relações com o resto da
Faculdade, que assim se via ferida pelo mais perigoso dos cismas. Não tardaram
a travar-se autênticas escaramuças que atingiram aspectos de desenfreada
violência. Siger de Brabante tomou papel preponderante nesses acontecimentos e
suspeita-se mesmo que tenha sido dos maiores responsáveis por certos excessos
praticados. Assim o mostra o documento assinado por Simão de Brion, que revela
ao mesmo tempo a proeminência alcançada pelo jovem professor e a sua posição de
autêntico demagogo universitário, seguido por um partido aguerrido e numeroso.
Ao
mesmo tempo, os mestres seculares retomavam a ofensiva. Gerardo d’Abbeville,
amigo de Guilherme de Saint-Amour, compôs um novo libelo, que vinha insistir
nos temas desenvolvidos pelo De periculus
novissimorum temporum, e se intitulava: Contra
adversarium perfectionis christianae.
Por
outro lado, do campo augustiniano partiam novos ataques contra a orientação
aristotélica do ensino ministrado em Paris, anos atrás, por Alberto Magno e
Tomás de Aquino – que se queria envolver na mesma condenação solicitada para o
averroísmo latino de Siger e dos seus companheiros.
Tudo
isto fez com que o Aquinense, que então se encontrava em Viterbo, onde fora
agregado à Corte de Clemente IV e ensinava no Studium Curiae – se visse repentinamente chamado a Paris. Caso
extraordinário, nunca até aí verificado entre os dominicanos, que não tinham
por hábito fazer regressar a Paris uma individualidade que já ali tivesse
exercido o magistério. Só alguns anos depois, em 1287, nova excepção se
registaria, com Guilherme de Hotham.
As
grandes dificuldades do momento explicam, todavia, que se lançasse mão deste
recurso singularíssimo. Tomás de Aquino era, com efeito, a única pessoa capaz
de afrontar as circunstâncias e de dar batalha, com vantagem, a tantos e tão
temíveis inimigos.»
João Ameal («São Tomás de Aquino»).
«A
Escolástica caracteriza-se filosoficamente por aceitar a tese entre as leis do
pensar e as leis do ser, tese da qual se infere a possibilidade humana de
conhecer absolutamente a verdade. A esta tese está ligado o merecido atributo
de lógica, porque relacionado com o logos, referido que seja a Heraclito, o
Obscuro, ou a S. João, o Evangelista. Nem a gramática, nem a retórica, nem a
dialéctica nos oferecem mais do que as leis do escrever e do falar, porque o
pensar excede-as por imanência e transcendência.
A
aceitação da lógica de Aristóteles, superior à de Platão e à de Plotino,
corresponde a um momento de mais lúcida visão do propósito da filosofia
escolástica. Toda a filosofia helénica poderá ser interpretada como uma
variação de doutrinas sobre a irrealidade do mundo sensível. Não aludiremos
apenas ao cepticismo grego que por demais se compadece com o pessimismo
trágico, segundo a interpretação de Burckhardt, Nietzsche e H. S. Chamberlain.
Referimo-nos a toda a linha de oposição dialéctica entre o sensível e o
inteligível tendente para a desvaloração do homem, do mundo e de Deus. A
tradição semítica, pelo contrário, admitindo a criação divina e a criatura
humana, marcava acento valorativo sobre o carácter espectacular do mundo sensível, embora induzisse os pensadores religiosos nos erros que resultam de
má interpretação das relações entre a imanência e a transcendência.
A
lógica aristotélica daria expressão, comunicação e demonstração a três
tradições religiosas que conviria unificar. Antes do aristotelismo de Santo
Alberto Magno já a Escolástica estava habilitada a resolver o problema da
solidariedade da teologia cristã com a filologia latina e com a filosofia
grega, num corpo doutrinal capaz de flutuar sobre as correntes que dissolvem as
relações da razão com a fé. Efectivamente a fé define-se, nos dizeres de S.
Paulo, como a relação do visível com o invisível. Esta relação só é apreensível
por símbolos, mas como o símbolo se presta a uma pluralidade de interpretações
que faculta o trânsito da heterodoxia para a heresia, tiveram os Santos Padres
e os concílios o cuidado de procurar fórmulas inequívocas, para o que
recorreram aos termos da filosofia grega e da eloquência romana. Os doutores
escolásticos não só continuaram a missão dos concílios, que na definição da fé
procede da flutuação simbólica para a fixação dogmática, mas quiseram também
fazer a dedução cronológica dos dogmas, que não é arbitrária ou artificial
porque deve reflectir o plano divino segundo as sistematizações teológicas, ou
sumas. Os séculos XII e XIII são os séculos das sumas, entre as quais se
distinguem as de Hugo de S. Vítor, a de Pedro Lombardo, a de Alexandre de
Halles e a de S. Tomás. Ora os autores dessas sumas quiseram também fixar a
argumentação probante de cada um desses dogmas. O ideal seria de com tais
encadeamentos de raciocínios querer forçar a convicção dos leigos, dos gentios
e dos infiéis.
Explica-se
assim a formação do racionalismo medieval, precursor do racionalismo moderno. A
partir dele vai sendo cada vez mais condicionada, e depois restringida, a
liberdade de interpretar os símbolos, os mistérios e os sacramentos, agora
definidos numa rigorosa sequência de palavras, em fórmulas que se denominam
dogmas. Maior liberdade é concedida às artes plásticas que exprimem pensamentos
vedados às artes da palavra. Estas ficam perfeitamente limitadas nos colégios,
nos mosteiros e nas Universidades. Além da rigorosa disciplina do trívio, a constituição das Universidades
consolida o predomínio da filosofia grega e do direito romano, doutrinas estas
que hão-de estruturar a própria Igreja Católica. Depois de fortes lutas contra
a teologia, que ainda defende a fé em termos de S. Paulo, e que ainda defende a
tradição, a revelação e o sobrenatural, procuram os escolastas tornar
independentes a filosofia jurídica e a filosofia natural, segundo um
racionalismo que constituirá sem dificuldade o direito, a sociologia e a
tecnologia.»
Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).
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«Há,
de facto, uma lenda (é a única palavra a empregar, tal a fantasia injusta que
traduz) – segundo a qual Tomás de Aquino pouco mais fez do que a arrumação e a
armazenagem dos vastos materiais oferecidos pelos autores gregos e pela
filosofia dos alexandrinos, dos patriarcas e dos árabes. Daí, esse epíteto de compilador com que se procura
amesquinhar a sua tarefa e reduzir a sua obra. Uns, apontam-no como simples
exegeta dócil de Aristóteles. Outros, como decalcador de Platão ou de Agostinho.
Outros, como engenhoso sincretizador, que foi buscar elementos a estes três
Mestres e a muitos mais, sem efectuar, em última análise, um trabalho
verdadeiramente seu.
Tudo
isto é inepto e absurdo. As raízes platónicas do tomismo estão bem patentes. As
raízes aristotélicas, também. E as plotínicas. E as areopagíticas. E as augustinianas. E tantas quantas se queiram.
Tomás de Aquino prendeu-se, sem dúvida, a inúmeras raízes. Os seus livros
aparecem-nos cheios de constantes citações, bem reveladores não só da
imensidade de conhecimentos que possuía, mas da intenção de os utilizar a cada
passo. Não falemos já em Platão e Aristóteles, no pseudo-Denis e em Agostinho.
Uma legião de filósofos, de sábios, de oradores, de poetas, de cientistas,
desfila nas suas páginas densas: da antiguidade clássica, por exemplo, socorre-se
com frequência de Zenão e Epicuro, de Horácio e de Ovídio, de César, de Cícero,
de Salústio, de Estrabão, de Tito-Lívio; da época patrística, alude frequentemente
a Hilário da Aquitânia, a Gregório de Nazianza, a João Crisóstomo, a Boécio, a
Isidoro de Sevilha, a João Dasmaceno; dos primeiros tempos medievais, mostra
conhecer Anselmo de Cantorbery e Pedro Abelardo, Bernardo de Clairvaux e Gilberto
de la Porrée, os Vitorinos, Pedro Lombardo, David de Dinant, Amaury de Bènes,
Pedro de Poitiers, Simão de Tournai, Estêvão Langton, Prepositinus de Cremona,
Robert Grosseteste, Vicente de Beauvais, muitos outros; de entre os Árabes e os
Judeus, comenta minuciosamente Avicena e Averroes, Avicebron e Maimónides; e,
sem dizer os seus nomes como era hábito então seguido, alega ou discute
asserções dos seus contemporâneos ilustres: de Pedro de Cápua como de Filipe de
Grève, de Guilherme d’Auxerre como de Guilherme de Auvergne, de Alexandre de
Hales, o «Doctor Irrefragabilis» como
de Alberto Magno, o «Doctor Universalis».
Nenhum ignora, nenhum esquece, nenhum rejeita. Mas também – e isto é que é indispensável sublinhar com justiça,
e isto é que a leitura directa faz, nitidamente, avultar – nenhum segue, nenhum
copia. De todos extrai o que pode ser útil ao seu desígnio, as pedras necessárias
à edificação do seu monumento. Mas o traçado do conjunto, a escolha das razões,
o plano orientador, as sólidas bases, a cúpula definitiva – pertencem-lhe por
inteiro. Acolheu, afeiçoou, integrou, ordenou. Arquitecto, construtor, artista – no sentido mais absoluto e
elevado do termo – o resultado nada se parece com os materiais dispersos que
acumulara, dispusera, submetera ao seu critério fundamental. E, sem apagar aqueles
de que se servira, fica acima de todos, radiante duma glória única.
Ao
que se deve esta independência e este triunfo? Ao génio de Tomás de Aquino, que
lhe permitia todos os convívios e todos os empréstimos, e lhe fazia dominar por
fim, estabelecer a sua majestosa, indiscutível supremacia. Ainda se deve mais,
porém, à directriz superior a que subordinou os autores mencionados e a que se
subordinou, antes de nenhum. Essa directriz cabia numa legenda clara e breve:
o culto profundo, exclusivo, da verdade. Da verdade absoluta. Da verdade
integral. Da verdade que existe por si,
pura e sobranceira, indiferente às interpretações variáveis e precárias dos que
dela se ocupam.
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Sobre o Céu ou Sobre o Cosmos (página extraída de uma edição de 1837) |
Tomás
de Aquino oferece-nos, a este respeito, vários textos fulgurantes. No
comentário ao livro primeiro do De Caelo
et Mundo, o princípio é posto com nitidez cabal: "A investigação filosófica
não cura de saber o que os homens pensaram, mas o que se refere à verdade das
coisas". De nada vale, então, o que os homens pensam; são totalmente inúteis os
seus esforços, vãs as suas pesquisas? Pelo contrário. Os homens podem dar alguns
passos em direcção à verdade, podem auxiliar ou estimular um progresso na
empresa do seu pleno conhecimento. Mas cada homem só traz a sua contribuição
para essa vasta empresa comum: contribuição maior ou menor, talvez, no entanto
passageira, insignificante, como ele próprio. A obra tem de ser levada a cabo
pela sucessão das gerações, pelo concurso desinteressado e disciplinado dos paladinos
que se revezam na cruzada infindável. Apenas o tempo torna possível que, na
cadeia dos esforços convergentes, nasçam as grandes linhas das descobertas
fecundas.
Já
por aqui se concebe a importância que Tomás de Aquino atribuía ao estudo dos seus
predecessores, auxiliares para a conquista da verdade – e, ao mesmo tempo, a
autonomia com que se sobrepunha aos seus juízos. Se muito colheu, se muito
aproveitou – muito corrigiu também. Nesta missão, o seu desassombro era
implacável – porque o serviço da verdade, praticado com tenacidade metódica,
lhe dava todos os direitos, lhe impunha mesmo severos escrúpulos. Não houve uma
só autoridade diante da qual se quedasse mudo ou tímido. Por maior que fosse o
prestígio do autor em jogo – maior lhe parecia, e com razão, o da verdade
superior que buscava. Incapaz de violências estéreis ou de qualquer espécie de
sentimento hostil, discordava ou emendava com respeito, mas com firmeza.
Aristóteles foi assim tratado por ele, algumas vezes – apesar da sua veneração
pelo Estagirita. No Comentário à Physica
não o acusou de se ter enganado e de ter falado “em contrário da fé”? Averroes
merecia-lhe singular apreço; hesitou em lhe chamar corruptor (depravator) do peripatetismo? Do mesmo
acusou Avicena, a quem, aliás, fez expressivos elogios. Platão e os seus discípulos
católicos, um Basílio de Cesarea, um Gregório de Nazianza, o próprio Agostinho –
foram constantemente refutados pelo Aquinense que, embora mantendo a sua brandura
inalterável, lhes denunciou a fraqueza dos argumentos, as falhas de lógica, o
divórcio do real concreto.
Compilador,
Tomás de Aquino?! Etiqueta que a História da Filosofia já, de há muito, afirmou
caduca e ilegítima. O seu lema inflexível foi servir a verdade, descobri-la,
iluminá-la. Onde encontrava colaborações úteis, chamava-as a si, apoiava-se
sobre elas. Para se instalar no terreno alheio? Não. Para o ultrapassar. Para
avançar mais ainda. Para alargar horizontes.
Se
Francisco de Assis atingiu a alegria
verdadeira pela extrema abnegação de si próprio, pela absoluta humildade –
Tomás de Aquino, através de outra forma de abnegação, da humildade intelectual
(a mais difícil de todas!), atingiu a sabedoria
verdadeira.»
João Ameal («S. Tomás de Aquino»).
«Dir-se-ia
que a escolástica medieval, elaborada em latim, língua do culto e da cultura,
subordinada à razão, ainda precavê como nenhuma outra os fiéis de incorrerem no
perigo dos erros filosóficos e teológicos que ameaçam o cristianismo. É, aliás,
perfeitamente compreensível e admissível que o Magistério Eclesiástico não
quebre o zelo de avisar os fiéis quanto aos erros dos sistemas filosóficos, e
assim tem procedido ao longo dos séculos, como se pode ler nos respectivos
compêndios de história. A sucessão de tantos e tão variados sistemas de
heterodoxia não impressionará, porém, o estudioso que souber qual é a causa da
ilusão, ou do prestígio, dos caleidoscópios. Cada novo sistema filosófico,
garantido pelo talento literário do seu autor, apresenta-se como agrupamento ou
composição de novos argumentos em torno de um reduzido número de teses
antiquadas. Compete à crítica examinar a validade desses argumentos e discernir
as teses que ressurgem com uma tenacidade explicável pela condição humana.
Enquanto houver quatro tipos humanos, ou temperamentos, classificáveis pela
caracterologia, haverá também um reduzido mas irredutível número de atitudes ou
reacções para com a verdade. A classificação e a esquematização facilitam o
discernimento. Assim, no que do ponto de vista escolástico mais importa
conhecer, convém atender a que os sistemas variam pela actualização dos
argumentos às circunstâncias e às oportunidades, mas classificam-se
essencialmente em torno dos problemas singulares das relações da razão com a
fé, da filosofia com a teologia e do Estado com a Igreja.
Seria
piedosa mentira, mas por isso mesmo seria faltar à verdade, dizer-se que nunca
houve heresias e heterodoxias no território que teve outrora o nome de
Portugal. Omitir o nome de hereges célebres e de célebres heresiarcas, para
manter a ilusão de que o povo português foi sempre e totalmente fidelíssimo à
Igreja Católica, seria proceder ao contrário do que a história exige quando se
propõe explicar as razões implícitas nos eventos. Merece, por isso, perpétua
gratidão dos estudiosos admirados esse célebre monumento de erudição que é a Historia de los Heterodoxos Españoles,
escrito por Marcelino Menendez y Pelayo. A religiosidade dos povos ibéricos é
minuciosamente analisada nesse livro que inclui documentação útil sobre a
heterodoxia. Trabalho análogo, mas de resultados dispersos por publicações
efémeras, realizou-o Sampaio Bruno quando pretendeu demonstrar que a
convergência das tradições hebraica, cristã e islâmica se configura no culto do
Espírito Santo.
Tem
sido muito acentuada pelos historiadores religiosos a predilecção dos
Portugueses pelo culto mariano, ainda que dos factos verificados não hajam
extraído conclusões que esclareçam o correspondente problema doutrinal.
Explicou Sampaio Bruno que em Terra de Santa Maria a propagação do
protestantismo não teria condições naturais, pelo que são inválidos os
argumentos colhidos na acção regressiva das doutrinas da Contra-Reforma. A
heterodoxia portuguesa não cinge o mistério da encarnação. Só em pleno século
XIV, ou já perto de 1870, começa a generalizar-se entre nós a iconografia
francesa, segundo a qual a Virgem Maria aparece representada sem a companhia de
Jesus. A heterodoxia portuguesa, se alguma sistematização exige, contorna o
mistério da redenção, e o respectivo misticismo, até realizar a comunicação
pensante entre a teologia e a filosofia, transgredindo assim os preceitos
normativos dos tomistas de estrita obediência.»
Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).
«A
maior das pugnas em que o Aquinense se viu envolvido, neste período e talvez em
toda a sua vida, foi, porém, o duelo com Siger e os averroístas. Devia ter sido
um lance verdadeiramente digno de interesse, a luta dos dois jovens
professores, ambos excepcionais pela cultura e pelo vigor dialéctico, ambos
nimbados de larga fama, ambos seguidos por grupos agitados e veementes de
estudantes que os saudavam como chefes.
Em
que diferiam essencialmente Siger e Tomás? Antes de mais nada, enquanto o
primeiro, como já se disse, era um discípulo incondicional de Aristóteles – de Aristóteles
tal qual o apresentavam os seus intérpretes e comentadores árabes, como
Al-Farabi, Avicena, Averroes, etc. – o segundo reservava-se o direito não só de
desligar o Estagirita desses comentadores e intérpretes, para apurar o seu
pensamento genuíno, como até de corrigir ou contestar as suas afirmações quando
de algum modo elas se opusessem à Verdade Revelada. Note-se bem, e isto é
indispensável para se fazer plena justiça a Siger: o Mestre brabantino
defendia-se sempre de ensinar qualquer tese contrária aos dados fornecidos pela
Revelação. No entanto, estabelecera, segundo a razão natural (domínio em que
atribuía a última palavra a Aristóteles) certo número de conclusões opostas às
que a fé católica impunha. E apressara-se logo a declarar que, sempre que
surgisse conflito, deveria ser preferido o ponto de vista da fé ao da razão.
Assim procurava salvaguardar a ortodoxia, mas a sua doutrina não deixava de ser
perigosíssima. Conduzia a vincar uma dualidade inadmissível entre as conquistas
da razão, na ordem que lhe é própria – e os imperativos ditames da Revelação
divina. “É muito grave” – assinalava Tomás de Aquino, ao desmascarar o
subterfúgio de Siger – “dizer: concluo necessariamente pela razão que há uma
única inteligência; creio, porém, firmemente o contrário de acordo com a fé.
Isto equivale a pensar que a fé ensina verdades cuja contradição pode ser
necessariamente estabelecida. Como só o verdadeiro é necessário e o seu oposto
é o falso ou o impossível, seguir-se-ia, dentro de semelhante opinião, que a fé
ensina o falso ou o impossível”- Eis aqui denunciadas com a maior limpidez as
consequências da posição mental de Siger de Brabante.
De
facto, considerando-se suficientemente amparado pela sua engenhosa subordinação
do mundo da especulação racional ao mundo das verdades da fé, o discípulo
latino de Averroes defendia determinadas teses incompatíveis com o ensino
católico e herdadas da escolástica árabe: por exemplo, que Deus não era causa
eficiente do universo, mas apenas causa final; que o mundo não tivera começo;
que todos os fenómenos se reproduziriam indefinidamente, através dos tempos sem
fim, etc. A mais escandalosa, porém, das
teses averroístas de Siger era a de que existia uma inteligência única para
todos os homens – uma inteligência activa, comum à totalidade da espécie. Isto arrastava
às seguintes deduções fatais: negação da responsabilidade do ser humano, da
imortalidade da alma, das penas ou recompensas eternas.
Foi
contra esse erro, que preocupava mais que nenhum outro os meios intelectuais do
catolicismo ortodoxo e que Siger expusera no tratado de Anima intellectiva – aliás de forma habilíssima e citando com alto
respeito Alberto Magno e o seu mais ilustre discípulo – que Tomaz de Aquino
respondeu com energia e minúcia no famoso De
Unitate intellectus contra Averroistas, que tudo indica ter sido composto
em 1270. Poucas vezes o Santo Doutor terá sido tão eloquente e terá manifestado
tão exaltada veemência. Em certa passagem, muito conhecida, lança mesmo um
repto ao adversário, desafiando-o a não emitir apenas os seus juízos impudentes
e subversivos perante auditores desprevenidos – mas a replicar-lhe de maneira
directa: “Encontrar-me-á diante de si, e não só eu, que sou o mais
insignificante de todos, mas muitos outros que têm o culto da verdade.
Opor-nos-emos aos seus erros e daremos remédio à sua ignorância...”.
Lembrar-se-ia
o Mestre dominicano que era duma família de guerreiros? Parece que o sangue dos
Aquinos lhe ferveu nas veias durante a polémica com Siger e que, excepcionalmente,
se decidiu nela a vibrar golpes implacáveis, apagada por momentos a sua doçura
em homenagem a uma indignação compreensível.»
João Ameal («São Tomás de Aquino»).
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Santo Tomás confundindo Averroes, por Giovanni di Paolo |
O pensar é uma acção imanente a
quem pensa segundo a exigência da espécie pela qual pensa aquele que pensa
Falta
ainda inquirir o que é em si mesmo aquilo que se pensa. Se dizem, realmente,
que o que é pensado é uma única espécie imaterial existente no intelecto, não
se dão conta que, de uma certa maneira, passaram para a doutrina de Platão, o
qual sustentou que não pode haver ciência das coisas sensíveis, mas que toda a
ciência que temos da pedra versa sobre a forma única da pedra que está no
intelecto; de facto, em ambos os casos seguir-se-ia que as ciências não
versariam sobre as coisas que estão aqui, mas apenas sobre as coisas separadas.
Mas como Platão defendeu que essas formas imateriais subsistem por si, podia
também, juntamente com isto, defender que vários intelectos participam no
conhecimento pela forma separada de uma verdade única. Os averroístas, por seu
lado, porque defendem que essas formas imateriais – que consideram ser pensadas
– estão no intelecto, devem necessariamente admitir que só há um intelecto, não
só em todos os homens mas em absoluto.
Deve
dizer-se, portanto, em conformidade com o ensinamento de Aristóteles, que
aquilo que é pensado, que é uno, é a própria natureza ou quididade da coisa; na
verdade, a ciência natural e as outras ciências versam sobre as coisas, não
sobre as espécies pensadas. De facto, se o que é pensado não fosse a própria
natureza da pedra que está nas coisas, mas a espécie que está no intelecto,
seguir-se-ia que eu não pensaria a coisa que é a pedra, mas tão-só a intenção
que é abstraída da pedra. Mas é verdade que a natureza da pedra, enquanto está
nos singulares, é pensada em potência e passa a ser pensada em acto pelo facto de as espécies das coisas sensíveis chegarem, mediante os sentidos, à
imaginação e de as espécies inteligíveis que estão no intelecto possível serem
abstraídas pela virtude do intelecto agente. Contudo, para o intelecto
possível, estas espécies não são aquilo que ele pensa, mas as espécies pelas
quais o intelecto pensa, tal como as espécies que estão na vista não são aquilo
que se vê, mas sim aquilo pela qual a vista vê; a não ser no caso em que o
intelecto reflecte sobre si mesmo, o que não pode suceder no caso dos sentidos.
Se
pensar fosse uma acção transitiva que passa para uma matéria exterior, como
queimar ou mover, seguir-se-ia que o modo de ser do pensar seria o mesmo que o
da natureza das coisas singulares, tal como a combustão do fogo acontece
segundo a maneira de ser do combustível. Mas uma vez que o pensar é uma acção
imanente a quem pensa, conforme Aristóteles diz no livro IX da Metafísica, segue-se que o pensar tem o
modo de ser daquele que pensa, a saber, a exigência da espécie pela qual pensa
aquele que pensa. Uma vez que é abstraída dos princípios individuais, essa
espécie não representa as coisas nas suas condições individuais mas apenas na
sua natureza universal. De facto, se duas coisas se juntarem na realidade, nada
impede que uma possa ser representada nos sentidos sem a outra, o que explica
que a cor do mel ou da maça seja vista pela visão independentemente do seu
sabor. Assim, também, o intelecto pensa a natureza universal, pela abstracção
dos princípios individuais.
É
portanto único o que é pensado por mim e por ti, mas é pensado por mim de um
modo diferente de ti, a saber, por meio de uma outra espécie inteligível; e o
meu pensar é diferente do teu pensar; e o meu intelecto é distinto do teu
intelecto. Por isso, Aristóteles diz, nas Categorias,
que uma dada ciência é singular no seu sujeito «como certa ciência gramatical que
está num sujeito que é a alma, embora não seja dita de nenhum sujeito». De
onde, quando o meu intelecto se pensa a pensar pensa um certo acto singular; já
quando pensa no pensar puro e simples, pensa algo de universal. Não é a
singularidade mas sim a materialidade que é incompatível com a
inteligibilidade, pelo que, como há alguns singulares imateriais, como é o caso
das substâncias separadas, conforme dissemos atrás, nada impede que se pense
tais singulares.
Por
aqui se vê claramente como a ciência num aluno pode ser a mesma da de quem
ensina. É a mesma naquilo que se sabe, mas não quanto às espécies inteligíveis
pelas quais cada um deles pensa; é de facto aqui que a ciência se individualiza
em mim e em ti. Não é preciso que a ciência que existe no aluno seja causada
pela ciência que o mestre tem, tal como o calor da água pelo calor do fogo, mas
antes como a saúde que está na matéria é causada pela saúde que reside na alma
do médico. Assim como no doente se encontra o princípio natural da saúde, ao
qual o médico administra os meios auxiliares com vista ao aperfeiçoamento da
saúde, assim também no aluno se encontra o princípio natural da ciência, ou
seja, o intelecto agente e os primeiros princípios conhecidos por si mesmos;
aquele que ensina administra algumas pequenas ajudas deduzindo conclusões dos
princípios conhecidos por si mesmos. Por isso, o médico esforça-se por curar da
maneira em que a natureza curaria, a saber, aquecendo ou arrefecendo. Do mesmo
modo, o mestre conduz até à ciência de modo a que quem investiga adquira a
ciência por si mesmo, ou seja, começando pelo que se conhece até se chegar ao
que se desconhece. E tal como no doente a saúde não acontece por causa da
potência do médico, mas da capacidade da natureza, assim também a ciência é causada
no aluno não por causa do mérito do mestre mas da capacidade do aprendiz.
(In São Tomás de Aquino, A Unidade do Intelecto contra os Averroístas, Edições 70, 1999, pp. 149-155).
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