terça-feira, 2 de setembro de 2025

O pensar é uma acção imanente a quem pensa segundo a exigência da espécie pela qual pensa aquele que pensa

Escrito por S. Tomás de Aquino


Averroes

«A empresa de conciliação entre o cristianismo e o aristotelismo, já tentada, desde 1231, por Gregório IX (...) e depois servida com tanto fervor e tanta competência por Alberto Magno, não só parecia marcar passo, mas até, em determinados sectores, visivelmente recuava. Por volta de 1250, o movimento dos averroístas (isto é: dos que preconizavam a obediência cega a Aristóteles, segundo os comentários que o famoso Doutor árabe de Córdova tinha feita do Estagirita) surgira na civitas philosophorum. E poucos anos mais tarde, a 9 de Março de 1255, o regulamento da Faculdade das Artes ordenara o ensino oficial do aristotelismo, sem fazer o menor caso das proibições da Igreja. Alexandre IV, alarmado, solicitou de Alberto Magno uma refutação dos erros da nova escola – que o professor de Colónia efectivou no tratado De Unitate intellectus contra Averroem (1256). Mas, como a tendência combatida não dava sinais de esmorecer, Urbano IV, pelas cartas de 19 de Janeiro de 1263, viu-se forçado a renovar as interdições de Gregório IX quanto ao ensino do Perípato. E, no mesmo ano, encarregou Tomás de Aquino, ajudado pelo filólogo Guilherme de Moerbeke, de levar a cabo a famosa obra da sua cristianização. Por volta de 1266, porém, a personalidade exepcional de Siger de Brabante evidenciou-se no meio parisiense e veio a dar às efervescências duma parte da mocidade académica o que até aí lhes faltava: um chefe cheio de valor, de prestígio e de audácia. Siger de Brabante era um flamengo talentoso e astuto, notabilíssimo nos debates dialécticos, um dos raros émulos de Tomás de Aquino, e, secundado por um confrade de mérito, Boécio de Dácia, arrastou consigo um importante núcleo de estudantes da Faculdade das Artes, onde ensinava. Devia andar pouco além dos trinta anos e sobre o seu futuro estavam depositadas as maiores esperanças. Em 27 de Agosto de 1266, na ordenação do legado pontifício Simão de Brion, apareceu pela primeira vez o seu nome, envolvido numa desordem universitária de vulto. A Faculdade das Artes dividia-se, nessa época, em quatro secções, caracterizadas por nacionalidades: a dos Franceses, a dos Normandos, a dos Picardos e a dos Ingleses. No primeiro semestre de 1266, estalou um conflito entre o grupo dos Franceses e os outros três, à soma dos quais era, por si só, numericamente equivalente. A desavença prolongou-se, agravou-se, a ponto de se declararem os Franceses inteiramente autónomos, elegerem um reitor seu e romperem as suas relações com o resto da Faculdade, que assim se via ferida pelo mais perigoso dos cismas. Não tardaram a travar-se autênticas escaramuças que atingiram aspectos de desenfreada violência. Siger de Brabante tomou papel preponderante nesses acontecimentos e suspeita-se mesmo que tenha sido dos maiores responsáveis por certos excessos praticados. Assim o mostra o documento assinado por Simão de Brion, que revela ao mesmo tempo a proeminência alcançada pelo jovem professor e a sua posição de autêntico demagogo universitário, seguido por um partido aguerrido e numeroso.

Ao mesmo tempo, os mestres seculares retomavam a ofensiva. Gerardo d’Abbeville, amigo de Guilherme de Saint-Amour, compôs um novo libelo, que vinha insistir nos temas desenvolvidos pelo De periculus novissimorum temporum, e se intitulava: Contra adversarium perfectionis christianae.

Por outro lado, do campo augustiniano partiam novos ataques contra a orientação aristotélica do ensino ministrado em Paris, anos atrás, por Alberto Magno e Tomás de Aquino – que se queria envolver na mesma condenação solicitada para o averroísmo latino de Siger e dos seus companheiros.

Tudo isto fez com que o Aquinense, que então se encontrava em Viterbo, onde fora agregado à Corte de Clemente IV e ensinava no Studium Curiae – se visse repentinamente chamado a Paris. Caso extraordinário, nunca até aí verificado entre os dominicanos, que não tinham por hábito fazer regressar a Paris uma individualidade que já ali tivesse exercido o magistério. Só alguns anos depois, em 1287, nova excepção se registaria, com Guilherme de Hotham.

As grandes dificuldades do momento explicam, todavia, que se lançasse mão deste recurso singularíssimo. Tomás de Aquino era, com efeito, a única pessoa capaz de afrontar as circunstâncias e de dar batalha, com vantagem, a tantos e tão temíveis inimigos.»

João Ameal («São Tomás de Aquino»).

 


«A Escolástica caracteriza-se filosoficamente por aceitar a tese entre as leis do pensar e as leis do ser, tese da qual se infere a possibilidade humana de conhecer absolutamente a verdade. A esta tese está ligado o merecido atributo de lógica, porque relacionado com o logos, referido que seja a Heraclito, o Obscuro, ou a S. João, o Evangelista. Nem a gramática, nem a retórica, nem a dialéctica nos oferecem mais do que as leis do escrever e do falar, porque o pensar excede-as por imanência e transcendência.

A aceitação da lógica de Aristóteles, superior à de Platão e à de Plotino, corresponde a um momento de mais lúcida visão do propósito da filosofia escolástica. Toda a filosofia helénica poderá ser interpretada como uma variação de doutrinas sobre a irrealidade do mundo sensível. Não aludiremos apenas ao cepticismo grego que por demais se compadece com o pessimismo trágico, segundo a interpretação de Burckhardt, Nietzsche e H. S. Chamberlain. Referimo-nos a toda a linha de oposição dialéctica entre o sensível e o inteligível tendente para a desvaloração do homem, do mundo e de Deus. A tradição semítica, pelo contrário, admitindo a criação divina e a criatura humana, marcava acento valorativo sobre o carácter espectacular do mundo sensível, embora induzisse os pensadores religiosos nos erros que resultam de má interpretação das relações entre a imanência e a transcendência.

A lógica aristotélica daria expressão, comunicação e demonstração a três tradições religiosas que conviria unificar. Antes do aristotelismo de Santo Alberto Magno já a Escolástica estava habilitada a resolver o problema da solidariedade da teologia cristã com a filologia latina e com a filosofia grega, num corpo doutrinal capaz de flutuar sobre as correntes que dissolvem as relações da razão com a fé. Efectivamente a fé define-se, nos dizeres de S. Paulo, como a relação do visível com o invisível. Esta relação só é apreensível por símbolos, mas como o símbolo se presta a uma pluralidade de interpretações que faculta o trânsito da heterodoxia para a heresia, tiveram os Santos Padres e os concílios o cuidado de procurar fórmulas inequívocas, para o que recorreram aos termos da filosofia grega e da eloquência romana. Os doutores escolásticos não só continuaram a missão dos concílios, que na definição da fé procede da flutuação simbólica para a fixação dogmática, mas quiseram também fazer a dedução cronológica dos dogmas, que não é arbitrária ou artificial porque deve reflectir o plano divino segundo as sistematizações teológicas, ou sumas. Os séculos XII e XIII são os séculos das sumas, entre as quais se distinguem as de Hugo de S. Vítor, a de Pedro Lombardo, a de Alexandre de Halles e a de S. Tomás. Ora os autores dessas sumas quiseram também fixar a argumentação probante de cada um desses dogmas. O ideal seria de com tais encadeamentos de raciocínios querer forçar a convicção dos leigos, dos gentios e dos infiéis.

Explica-se assim a formação do racionalismo medieval, precursor do racionalismo moderno. A partir dele vai sendo cada vez mais condicionada, e depois restringida, a liberdade de interpretar os símbolos, os mistérios e os sacramentos, agora definidos numa rigorosa sequência de palavras, em fórmulas que se denominam dogmas. Maior liberdade é concedida às artes plásticas que exprimem pensamentos vedados às artes da palavra. Estas ficam perfeitamente limitadas nos colégios, nos mosteiros e nas Universidades. Além da rigorosa disciplina do trívio, a constituição das Universidades consolida o predomínio da filosofia grega e do direito romano, doutrinas estas que hão-de estruturar a própria Igreja Católica. Depois de fortes lutas contra a teologia, que ainda defende a fé em termos de S. Paulo, e que ainda defende a tradição, a revelação e o sobrenatural, procuram os escolastas tornar independentes a filosofia jurídica e a filosofia natural, segundo um racionalismo que constituirá sem dificuldade o direito, a sociologia e a tecnologia

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).






«Há, de facto, uma lenda (é a única palavra a empregar, tal a fantasia injusta que traduz) – segundo a qual Tomás de Aquino pouco mais fez do que a arrumação e a armazenagem dos vastos materiais oferecidos pelos autores gregos e pela filosofia dos alexandrinos, dos patriarcas e dos árabes. Daí, esse epíteto de compilador com que se procura amesquinhar a sua tarefa e reduzir a sua obra. Uns, apontam-no como simples exegeta dócil de Aristóteles. Outros, como decalcador de Platão ou de Agostinho. Outros, como engenhoso sincretizador, que foi buscar elementos a estes três Mestres e a muitos mais, sem efectuar, em última análise, um trabalho verdadeiramente seu.

Tudo isto é inepto e absurdo. As raízes platónicas do tomismo estão bem patentes. As raízes aristotélicas, também. E as plotínicas. E as areopagíticas.  E as augustinianas. E tantas quantas se queiram. Tomás de Aquino prendeu-se, sem dúvida, a inúmeras raízes. Os seus livros aparecem-nos cheios de constantes citações, bem reveladores não só da imensidade de conhecimentos que possuía, mas da intenção de os utilizar a cada passo. Não falemos já em Platão e Aristóteles, no pseudo-Denis e em Agostinho. Uma legião de filósofos, de sábios, de oradores, de poetas, de cientistas, desfila nas suas páginas densas: da antiguidade clássica, por exemplo, socorre-se com frequência de Zenão e Epicuro, de Horácio e de Ovídio, de César, de Cícero, de Salústio, de Estrabão, de Tito-Lívio; da época patrística, alude frequentemente a Hilário da Aquitânia, a Gregório de Nazianza, a João Crisóstomo, a Boécio, a Isidoro de Sevilha, a João Dasmaceno; dos primeiros tempos medievais, mostra conhecer Anselmo de Cantorbery e Pedro Abelardo, Bernardo de Clairvaux e Gilberto de la Porrée, os Vitorinos, Pedro Lombardo, David de Dinant, Amaury de Bènes, Pedro de Poitiers, Simão de Tournai, Estêvão Langton, Prepositinus de Cremona, Robert Grosseteste, Vicente de Beauvais, muitos outros; de entre os Árabes e os Judeus, comenta minuciosamente Avicena e Averroes, Avicebron e Maimónides; e, sem dizer os seus nomes como era hábito então seguido, alega ou discute asserções dos seus contemporâneos ilustres: de Pedro de Cápua como de Filipe de Grève, de Guilherme d’Auxerre como de Guilherme de Auvergne, de Alexandre de Hales, o «Doctor Irrefragabilis» como de Alberto Magno, o «Doctor Universalis». Nenhum ignora, nenhum esquece, nenhum rejeita. Mas também – e  isto é que é indispensável sublinhar com justiça, e isto é que a leitura directa faz, nitidamente, avultar – nenhum segue, nenhum copia. De todos extrai o que pode ser útil ao seu desígnio, as pedras necessárias à edificação do seu monumento. Mas o traçado do conjunto, a escolha das razões, o plano orientador, as sólidas bases, a cúpula definitiva – pertencem-lhe por inteiro. Acolheu, afeiçoou, integrou, ordenou. Arquitecto, construtor, artista – no sentido mais absoluto e elevado do termo – o resultado nada se parece com os materiais dispersos que acumulara, dispusera, submetera ao seu critério fundamental. E, sem apagar aqueles de que se servira, fica acima de todos, radiante duma glória única.

Ao que se deve esta independência e este triunfo? Ao génio de Tomás de Aquino, que lhe permitia todos os convívios e todos os empréstimos, e lhe fazia dominar por fim, estabelecer a sua majestosa, indiscutível supremacia. Ainda se deve mais, porém, à directriz superior a que subordinou os autores mencionados e a que se subordinou, antes de nenhum. Essa directriz cabia numa legenda clara e breve: o culto profundo, exclusivo, da verdade. Da verdade absoluta. Da verdade integral. Da verdade que existe por si, pura e sobranceira, indiferente às interpretações variáveis e precárias dos que dela se ocupam.


Sobre o Céu ou Sobre o Cosmos (página extraída de uma edição de 1837)


Tomás de Aquino oferece-nos, a este respeito, vários textos fulgurantes. No comentário ao livro primeiro do De Caelo et Mundo, o princípio é posto com nitidez cabal: "A investigação filosófica não cura de saber o que os homens pensaram, mas o que se refere à verdade das coisas". De nada vale, então, o que os homens pensam; são totalmente inúteis os seus esforços, vãs as suas pesquisas? Pelo contrário. Os homens podem dar alguns passos em direcção à verdade, podem auxiliar ou estimular um progresso na empresa do seu pleno conhecimento. Mas cada homem só traz a sua contribuição para essa vasta empresa comum: contribuição maior ou menor, talvez, no entanto passageira, insignificante, como ele próprio. A obra tem de ser levada a cabo pela sucessão das gerações, pelo concurso desinteressado e disciplinado dos paladinos que se revezam na cruzada infindável. Apenas o tempo torna possível que, na cadeia dos esforços convergentes, nasçam as grandes linhas das descobertas fecundas.

Já por aqui se concebe a importância que Tomás de Aquino atribuía ao estudo dos seus predecessores, auxiliares para a conquista da verdade – e, ao mesmo tempo, a autonomia com que se sobrepunha aos seus juízos. Se muito colheu, se muito aproveitou – muito corrigiu também. Nesta missão, o seu desassombro era implacável – porque o serviço da verdade, praticado com tenacidade metódica, lhe dava todos os direitos, lhe impunha mesmo severos escrúpulos. Não houve uma só autoridade diante da qual se quedasse mudo ou tímido. Por maior que fosse o prestígio do autor em jogo – maior lhe parecia, e com razão, o da verdade superior que buscava. Incapaz de violências estéreis ou de qualquer espécie de sentimento hostil, discordava ou emendava com respeito, mas com firmeza. Aristóteles foi assim tratado por ele, algumas vezes – apesar da sua veneração pelo Estagirita. No Comentário à Physica não o acusou de se ter enganado e de ter falado “em contrário da fé”? Averroes merecia-lhe singular apreço; hesitou em lhe chamar corruptor (depravator) do peripatetismo? Do mesmo acusou Avicena, a quem, aliás, fez expressivos elogios. Platão e os seus discípulos católicos, um Basílio de Cesarea, um Gregório de Nazianza, o próprio Agostinho – foram constantemente refutados pelo Aquinense que, embora mantendo a sua brandura inalterável, lhes denunciou a fraqueza dos argumentos, as falhas de lógica, o divórcio do real concreto.

Compilador, Tomás de Aquino?! Etiqueta que a História da Filosofia já, de há muito, afirmou caduca e ilegítima. O seu lema inflexível foi servir a verdade, descobri-la, iluminá-la. Onde encontrava colaborações úteis, chamava-as a si, apoiava-se sobre elas. Para se instalar no terreno alheio? Não. Para o ultrapassar. Para avançar mais ainda. Para alargar horizontes.

Se Francisco de Assis atingiu a alegria verdadeira pela extrema abnegação de si próprio, pela absoluta humildade – Tomás de Aquino, através de outra forma de abnegação, da humildade intelectual (a mais difícil de todas!), atingiu a sabedoria verdadeira

João Ameal («S. Tomás de Aquino»).

 


«Dir-se-ia que a escolástica medieval, elaborada em latim, língua do culto e da cultura, subordinada à razão, ainda precavê como nenhuma outra os fiéis de incorrerem no perigo dos erros filosóficos e teológicos que ameaçam o cristianismo. É, aliás, perfeitamente compreensível e admissível que o Magistério Eclesiástico não quebre o zelo de avisar os fiéis quanto aos erros dos sistemas filosóficos, e assim tem procedido ao longo dos séculos, como se pode ler nos respectivos compêndios de história. A sucessão de tantos e tão variados sistemas de heterodoxia não impressionará, porém, o estudioso que souber qual é a causa da ilusão, ou do prestígio, dos caleidoscópios. Cada novo sistema filosófico, garantido pelo talento literário do seu autor, apresenta-se como agrupamento ou composição de novos argumentos em torno de um reduzido número de teses antiquadas. Compete à crítica examinar a validade desses argumentos e discernir as teses que ressurgem com uma tenacidade explicável pela condição humana. Enquanto houver quatro tipos humanos, ou temperamentos, classificáveis pela caracterologia, haverá também um reduzido mas irredutível número de atitudes ou reacções para com a verdade. A classificação e a esquematização facilitam o discernimento. Assim, no que do ponto de vista escolástico mais importa conhecer, convém atender a que os sistemas variam pela actualização dos argumentos às circunstâncias e às oportunidades, mas classificam-se essencialmente em torno dos problemas singulares das relações da razão com a fé, da filosofia com a teologia e do Estado com a Igreja.

Seria piedosa mentira, mas por isso mesmo seria faltar à verdade, dizer-se que nunca houve heresias e heterodoxias no território que teve outrora o nome de Portugal. Omitir o nome de hereges célebres e de célebres heresiarcas, para manter a ilusão de que o povo português foi sempre e totalmente fidelíssimo à Igreja Católica, seria proceder ao contrário do que a história exige quando se propõe explicar as razões implícitas nos eventos. Merece, por isso, perpétua gratidão dos estudiosos admirados esse célebre monumento de erudição que é a Historia de los Heterodoxos Españoles, escrito por Marcelino Menendez y Pelayo. A religiosidade dos povos ibéricos é minuciosamente analisada nesse livro que inclui documentação útil sobre a heterodoxia. Trabalho análogo, mas de resultados dispersos por publicações efémeras, realizou-o Sampaio Bruno quando pretendeu demonstrar que a convergência das tradições hebraica, cristã e islâmica se configura no culto do Espírito Santo.

Tem sido muito acentuada pelos historiadores religiosos a predilecção dos Portugueses pelo culto mariano, ainda que dos factos verificados não hajam extraído conclusões que esclareçam o correspondente problema doutrinal. Explicou Sampaio Bruno que em Terra de Santa Maria a propagação do protestantismo não teria condições naturais, pelo que são inválidos os argumentos colhidos na acção regressiva das doutrinas da Contra-Reforma. A heterodoxia portuguesa não cinge o mistério da encarnação. Só em pleno século XIV, ou já perto de 1870, começa a generalizar-se entre nós a iconografia francesa, segundo a qual a Virgem Maria aparece representada sem a companhia de Jesus. A heterodoxia portuguesa, se alguma sistematização exige, contorna o mistério da redenção, e o respectivo misticismo, até realizar a comunicação pensante entre a teologia e a filosofia, transgredindo assim os preceitos normativos dos tomistas de estrita obediência.»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).



«A maior das pugnas em que o Aquinense se viu envolvido, neste período e talvez em toda a sua vida, foi, porém, o duelo com Siger e os averroístas. Devia ter sido um lance verdadeiramente digno de interesse, a luta dos dois jovens professores, ambos excepcionais pela cultura e pelo vigor dialéctico, ambos nimbados de larga fama, ambos seguidos por grupos agitados e veementes de estudantes que os saudavam como chefes.

Em que diferiam essencialmente Siger e Tomás? Antes de mais nada, enquanto o primeiro, como já se disse, era um discípulo incondicional de Aristóteles – de Aristóteles tal qual o apresentavam os seus intérpretes e comentadores árabes, como Al-Farabi, Avicena, Averroes, etc. – o segundo reservava-se o direito não só de desligar o Estagirita desses comentadores e intérpretes, para apurar o seu pensamento genuíno, como até de corrigir ou contestar as suas afirmações quando de algum modo elas se opusessem à Verdade Revelada. Note-se bem, e isto é indispensável para se fazer plena justiça a Siger: o Mestre brabantino defendia-se sempre de ensinar qualquer tese contrária aos dados fornecidos pela Revelação. No entanto, estabelecera, segundo a razão natural (domínio em que atribuía a última palavra a Aristóteles) certo número de conclusões opostas às que a fé católica impunha. E apressara-se logo a declarar que, sempre que surgisse conflito, deveria ser preferido o ponto de vista da fé ao da razão. Assim procurava salvaguardar a ortodoxia, mas a sua doutrina não deixava de ser perigosíssima. Conduzia a vincar uma dualidade inadmissível entre as conquistas da razão, na ordem que lhe é própria – e os imperativos ditames da Revelação divina. “É muito grave” – assinalava Tomás de Aquino, ao desmascarar o subterfúgio de Siger – “dizer: concluo necessariamente pela razão que há uma única inteligência; creio, porém, firmemente o contrário de acordo com a fé. Isto equivale a pensar que a fé ensina verdades cuja contradição pode ser necessariamente estabelecida. Como só o verdadeiro é necessário e o seu oposto é o falso ou o impossível, seguir-se-ia, dentro de semelhante opinião, que a fé ensina o falso ou o impossível”- Eis aqui denunciadas com a maior limpidez as consequências da posição mental de Siger de Brabante.

De facto, considerando-se suficientemente amparado pela sua engenhosa subordinação do mundo da especulação racional ao mundo das verdades da fé, o discípulo latino de Averroes defendia determinadas teses incompatíveis com o ensino católico e herdadas da escolástica árabe: por exemplo, que Deus não era causa eficiente do universo, mas apenas causa final; que o mundo não tivera começo; que todos os fenómenos se reproduziriam indefinidamente, através dos tempos sem fim, etc.  A mais escandalosa, porém, das teses averroístas de Siger era a de que existia uma inteligência única para todos os homens – uma inteligência activa, comum à totalidade da espécie. Isto arrastava às seguintes deduções fatais: negação da responsabilidade do ser humano, da imortalidade da alma, das penas ou recompensas eternas.

Foi contra esse erro, que preocupava mais que nenhum outro os meios intelectuais do catolicismo ortodoxo e que Siger expusera no tratado de Anima intellectiva – aliás de forma habilíssima e citando com alto respeito Alberto Magno e o seu mais ilustre discípulo – que Tomaz de Aquino respondeu com energia e minúcia no famoso De Unitate intellectus contra Averroistas, que tudo indica ter sido composto em 1270. Poucas vezes o Santo Doutor terá sido tão eloquente e terá manifestado tão exaltada veemência. Em certa passagem, muito conhecida, lança mesmo um repto ao adversário, desafiando-o a não emitir apenas os seus juízos impudentes e subversivos perante auditores desprevenidos – mas a replicar-lhe de maneira directa: “Encontrar-me-á diante de si, e não só eu, que sou o mais insignificante de todos, mas muitos outros que têm o culto da verdade. Opor-nos-emos aos seus erros e daremos remédio à sua ignorância...”.

Lembrar-se-ia o Mestre dominicano que era duma família de guerreiros? Parece que o sangue dos Aquinos lhe ferveu nas veias durante a polémica com Siger e que, excepcionalmente, se decidiu nela a vibrar golpes implacáveis, apagada por momentos a sua doçura em homenagem a uma indignação compreensível.»

João Ameal («São Tomás de Aquino»).

 

Santo Tomás confundindo Averroes, por Giovanni di Paolo


O pensar é uma acção imanente a quem pensa segundo a exigência da espécie pela qual pensa aquele que pensa

 

Falta ainda inquirir o que é em si mesmo aquilo que se pensa. Se dizem, realmente, que o que é pensado é uma única espécie imaterial existente no intelecto, não se dão conta que, de uma certa maneira, passaram para a doutrina de Platão, o qual sustentou que não pode haver ciência das coisas sensíveis, mas que toda a ciência que temos da pedra versa sobre a forma única da pedra que está no intelecto; de facto, em ambos os casos seguir-se-ia que as ciências não versariam sobre as coisas que estão aqui, mas apenas sobre as coisas separadas. Mas como Platão defendeu que essas formas imateriais subsistem por si, podia também, juntamente com isto, defender que vários intelectos participam no conhecimento pela forma separada de uma verdade única. Os averroístas, por seu lado, porque defendem que essas formas imateriais – que consideram ser pensadas – estão no intelecto, devem necessariamente admitir que só há um intelecto, não só em todos os homens mas em absoluto.

Deve dizer-se, portanto, em conformidade com o ensinamento de Aristóteles, que aquilo que é pensado, que é uno, é a própria natureza ou quididade da coisa; na verdade, a ciência natural e as outras ciências versam sobre as coisas, não sobre as espécies pensadas. De facto, se o que é pensado não fosse a própria natureza da pedra que está nas coisas, mas a espécie que está no intelecto, seguir-se-ia que eu não pensaria a coisa que é a pedra, mas tão-só a intenção que é abstraída da pedra. Mas é verdade que a natureza da pedra, enquanto está nos singulares, é pensada em potência e passa a ser pensada em acto pelo facto de as espécies das coisas sensíveis chegarem, mediante os sentidos, à imaginação e de as espécies inteligíveis que estão no intelecto possível serem abstraídas pela virtude do intelecto agente. Contudo, para o intelecto possível, estas espécies não são aquilo que ele pensa, mas as espécies pelas quais o intelecto pensa, tal como as espécies que estão na vista não são aquilo que se vê, mas sim aquilo pela qual a vista vê; a não ser no caso em que o intelecto reflecte sobre si mesmo, o que não pode suceder no caso dos sentidos.

Se pensar fosse uma acção transitiva que passa para uma matéria exterior, como queimar ou mover, seguir-se-ia que o modo de ser do pensar seria o mesmo que o da natureza das coisas singulares, tal como a combustão do fogo acontece segundo a maneira de ser do combustível. Mas uma vez que o pensar é uma acção imanente a quem pensa, conforme Aristóteles diz no livro IX da Metafísica, segue-se que o pensar tem o modo de ser daquele que pensa, a saber, a exigência da espécie pela qual pensa aquele que pensa. Uma vez que é abstraída dos princípios individuais, essa espécie não representa as coisas nas suas condições individuais mas apenas na sua natureza universal. De facto, se duas coisas se juntarem na realidade, nada impede que uma possa ser representada nos sentidos sem a outra, o que explica que a cor do mel ou da maça seja vista pela visão independentemente do seu sabor. Assim, também, o intelecto pensa a natureza universal, pela abstracção dos princípios individuais.

É portanto único o que é pensado por mim e por ti, mas é pensado por mim de um modo diferente de ti, a saber, por meio de uma outra espécie inteligível; e o meu pensar é diferente do teu pensar; e o meu intelecto é distinto do teu intelecto. Por isso, Aristóteles diz, nas Categorias, que uma dada ciência é singular no seu sujeito «como certa ciência gramatical que está num sujeito que é a alma, embora não seja dita de nenhum sujeito». De onde, quando o meu intelecto se pensa a pensar pensa um certo acto singular; já quando pensa no pensar puro e simples, pensa algo de universal. Não é a singularidade mas sim a materialidade que é incompatível com a inteligibilidade, pelo que, como há alguns singulares imateriais, como é o caso das substâncias separadas, conforme dissemos atrás, nada impede que se pense tais singulares.

Por aqui se vê claramente como a ciência num aluno pode ser a mesma da de quem ensina. É a mesma naquilo que se sabe, mas não quanto às espécies inteligíveis pelas quais cada um deles pensa; é de facto aqui que a ciência se individualiza em mim e em ti. Não é preciso que a ciência que existe no aluno seja causada pela ciência que o mestre tem, tal como o calor da água pelo calor do fogo, mas antes como a saúde que está na matéria é causada pela saúde que reside na alma do médico. Assim como no doente se encontra o princípio natural da saúde, ao qual o médico administra os meios auxiliares com vista ao aperfeiçoamento da saúde, assim também no aluno se encontra o princípio natural da ciência, ou seja, o intelecto agente e os primeiros princípios conhecidos por si mesmos; aquele que ensina administra algumas pequenas ajudas deduzindo conclusões dos princípios conhecidos por si mesmos. Por isso, o médico esforça-se por curar da maneira em que a natureza curaria, a saber, aquecendo ou arrefecendo. Do mesmo modo, o mestre conduz até à ciência de modo a que quem investiga adquira a ciência por si mesmo, ou seja, começando pelo que se conhece até se chegar ao que se desconhece. E tal como no doente a saúde não acontece por causa da potência do médico, mas da capacidade da natureza, assim também a ciência é causada no aluno não por causa do mérito do mestre mas da capacidade do aprendiz.

(In São Tomás de Aquino, A Unidade do Intelecto contra os Averroístas, Edições 70, 1999, pp. 149-155).



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