quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Leitura de Álvaro Ribeiro

Escrito por Orlando Vitorino





«Com facilidade se compreende que Portugal seja um país culturalmente dependente, embora não abandone a autonomia artística e filosófica que lhe é própria. Se de algumas poucas correntes filosóficas se pode reconhecer que foram introduzidas na nossa cultura – o tomismo e o positivismo, por exemplo –, só nos mais próximos dias a obra de Hegel começou, não diremos a ser pensada, mas apenas a ser conhecida entre nós. Se, como vimos, o hegelianismo foi, nos outros países, reivindicado pela generalidade das doutrinas políticas embora os seus textos originais estivessem esquecidos e ignorados, também em Portugal se podem encontrar os sinais da inconsequente atenção que alguns dos nossos mais representativos escritores prestam à obra ou ao nome de Hegel.

Por atitude pessoal de Antero e por formalismo de escolas literárias, algumas descrições artísticas fizeram correr a fama da cultura filosófica daquele poeta através de um ingénuo pitoresco coimbrão, vendo-se Antero à janela de uma "república", a declamar sobre as trevas da noite, trechos de Hegel. Tratava-se de trechos das adaptações de Vera, e o próprio Antero veio a afirmar como não passavam de simples veleidades os seus conhecimentos filosóficos. Entretanto, quem primeiro, entre nós, se referiu a Hegel, foi Alexandre Herculano, poderoso e admirável escritor para quem a filosofia era "fria e vã": limitou-se a citar Hegel para apoiar a sua defesa dos direitos de autor.

A Teófilo Braga se deve, além de expressões de combate ao longo de outros livros, uma breve e superficial exposição da estética hegeliana em "As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa"; capítulo de pequena divulgação, é, no entanto, significativo num pensador que assumiu a direcção espiritual cultural e política do positivismo. Teófilo reuniu assim o que em Itália era representado por R. Ardigò e B. Spaventa numa simultaneidade que causa a estranheza dos historiadores. Compreende-se, portanto, que tendo utilizado de Hegel, para aquele capítulo de "As Modernas Ideias", a primeira tradução francesa da "Estética", que era acompanhada de um longo prefácio, logo nos livros posteriores pretenda refutado o hegelianismo, numa atitude análoga à de Oliveira Martins.

Nos pensadores ainda contemporâneos de Teófilo, nem de Sampaio Bruno conhecemos qualquer referência a Hegel, e, posteriormente, não há de Leonardo Coimbra sinais de uma demorada meditação do hegelianismo, como não também ficaram dos professores que em Lisboa e Coimbra ensinaram filosofia. Explica-se isso por ter correspondido a sua actividade especulativa ou docente – realizada como é neste país culturalmente subordinado – ao período de esquecimento europeu do hegelianismo.

Quando, depois da reacção contra o positivismo, se assiste, como ainda hoje assistimos, à expansão do conhecimento de Hegel, começa tal redescoberta por ser representada entre nós por Fernando Pessoa. Falando do que entende dever constituir o verdadeiro sistema de filosofia, declara: "Há dele um exemplo único e eterno. É essa catedral do pensamento, a filosofia de Hegel". Pouco manifesta o grande poeta as consequências que se deveriam esperar de tal admiração por um hegelianismo considerado sobretudo no que tem de místico; antes, em alguns ensaios, mostra não ter em conta um pensamento que naqueles termos admira e que poderia esclarecer, por exemplo, a sua infeliz tentativa de "uma estética não-aristotélica". No entanto, embora assim análogo às veleidades filosóficas de Antero, vale este, entre nós, como um primeiro sinal».

Orlando Vitorino (in Prefácio à 1.ª edição de Hegel, «Princípios da Filosofia do Direito»).



«Seria de previdente fertilidade aplicar o método, preconizado por Santayana no seu livro Três Poetas Filósofos, à história da poesia portuguesa. Aos mais altos poetas do nosso tempo, aqueles que mais valem pela mitologia intrínseca ou extrínseca das suas obras, a Teixeira de Pascoais, Fernando Pessoa e José Régio, poderiam ser aplicados estudos semelhantes aos que para Lucrécio, Goethe e Dante, respectivamente, efectuou o notável pensador atlântico. As semelhanças aparecem em flagrante paralelismo, e não haverá leitor inteligente que não persiga os efeitos desta proposição.

O estudo comparativo das formas por que os poetas portugueses vão sucessivamente tratando os mitos helénicos e as narrativas bíblicas, e, mais ainda, a atenção aos elementos que vão livremente intercalando, permitir-nos-á ver a que alturas chegou no nosso século a poesia portuguesa. Há, porém, actualmente uma leviana incompreensão do epopeico (devida talvez à exegese demasiadamente historicista, positivista e ateia que tem deturpado a interpretação de Os Lusíadas), obstáculo a contornar ou derrubar pela cultura filosófica dos estudiosos de Aristóteles. Dessa incompreensão sofreu também Fernando Pessoa quando disse estar aberto o caminho para o advento de um Super-Camões, impossibilidade que se afigura evidente a quem situe o elemento profético nos versos ainda não revogados de Dante.

Seguindo o exemplo de Santayana, e aproveitando as indicações dadas por Leonardo Coimbra em vários artigos da revista A Águia, poderíamos ver em Nietzsche o filósofo a quem se refere Teixeira de Pascoais. Há na obra de Nietzsche, porém, várias soluções ao mesmo problema da substância, variantes que não permitem estabelecer paralelo com a obra do poeta das Sombras e da Vida Etérea. Acerca da mulher nos diz Pascoais em O Homem Universal ser ela tão evasiva que só a morte a pode cingir nos seus braços.

Fernando Pessoa é, como Goethe, o pensador preocupado com o problema da causalidade, aquele que persegue o oculto até às formas invocatórias dos processos mágicos e dos sortilégios. A imaginação criadora leva-o à projecção pluralista de personalidades em representação novelística. Mérito de João Gaspar Simões é o de haver mostrado que em Fernando Pessoa se dá a superação do ilusionismo do Natal pela simples visão da Mulher em termos de amor maternal.

José Régio, representando uma filosofia superior à de Demócrito e à de Espinosa, e uma poesia superior à de Lucrécio e à de Goethe, apresenta-se-nos depois de Teixeira de Pascoais e de Fernando Pessoa. Não interessa comparar a obra realizada, possivelmente menos complexa e menos extensa do que a dos poetas referidos. O que interessa é mostrar que, comparável à de Dante, haure em mais sublimes fontes a sua melhor inspiração.








A preocupação teológica de José Régio está significante no título dos seus livros. Brilha na poesia de José Régio a verdade de que Deus é transcendente, mas referve também uma luta dramática pela expressão ortodoxa dos atributos divinos. Luta dramática, quer dizer, tanto teatral quanto o pensamento dialéctico desce à prosa de personagens e máscaras humanas.

Esta alteração de posições, entre Deus e o Diabo, entre Deus e o Homem, entre o Anjo e o Patriarca, entre o Rei e o Povo, entre o Juiz e o Réu, ressente-se de pouco dinamismo por falta de mediação. Todo o lirismo de José Régio é o lirismo do homem pecador, do pecado confessado na Biografia e do pecado distribuído no Jogo da Cabra Cega, mas pecado que justifica e explica o mistério da encarnação, pecado absolvido pelo mistério da redenção. Meditando na teologia redentorista, conforme cumpre aos poetas e aos filósofos que pretendam compreender o cristianismo, José Régio confirmará que "a salvação do Mundo" não depende daquela evolução naturalista em que confiavam os melhores positivistas, nem da revolução sociológica em que confiam os piores materialistas.

Afastando-se do movimento de A Águia, porquanto a sua preocupação clássica o fez desconfiar da figuração pitoresca e da retórica musicalidade, José Régio não aceitou do transcendentalismo panteísta a visão poética da Natureza. Adverso ao homem de tipo fáustico, e sem esconder algum desdém pela magia implícita no romantismo germânico, situa-se também afastado do movimento do Orfeu. Vai perdendo de vista os antecedentes saudosos, nada vê de novo na projecção futurista, mas ouve distintamente a voz ascética do ser que perenemente o salva de se precipitar no abismo.

A realidade do Sobrenatural (Céu) é mais fortemente afirmada por José Régio do que a realidade da Natureza (Terra). A poesia de José Régio denuncia-nos um saber esotérico, como de alguém que tivesse assistido, não à origem dos mundos, mas ao nascer da alma para o espírito, ao inefável mistério da encarnação pagã que nem o apriorismo platónico nem o inatismo cartesino conseguem explicar com beleza maior do que a dos tradicionais contos de fadas. O fado tem, na poesia de José Régio, o mais alto significado de destino humano, nacional e universal.

A liberdade, que se compõe com o destino, aparecerá luminosa a quem aprofundar a angelogia de Paulo Claudel, Eugénio d'Ors e Sampaio Bruno, visto que sem o prévio estudo da angelogia ninguém compreende o que é compreensível no mistério da Santíssima Trindade. Liberta-se quem se despede da dialéctica platónica, afirmada no Parménides, para encontrar no Banquete a nutrição fortificante, pois se ao doutrinador intelectual mais agrada o primeiro diálogo pela sua pureza racionalista, a leitura do simpósio convém muito mais à intuição do homem pecador. Admirável a visão da Mulher de Mantineia, rodeada de todos os coros dos anjos; admirável também porque da sua transfiguração aristotélica resultou aquela divina imagem que no poema de Dante preside aos benefícios de toda a humanidade.

Meditando a teologia do mistério da redenção, José Régio, que não situa a esperança na evolução naturalista, como Demócrito e Lucrécio, ou na revolução sociológica, a exemplo dos filósofos alemães, está em condições intelectuais de nos dar ainda a significativa epopeia que na escala dos valores poéticos marcará o progresso sobre as obras de Teixeira de Pascoais e de Fernando Pessoa. A angelogia que tem inspirado os seus melhores poemas, há-de garantir, se Deus quiser, a iniciação do poeta em mais augustos mistérios. Depois de Camões, a poesia portuguesa tende a anunciar o advento de um super-Dante.



Fernando Pessoa




Errou Fernando Pessoa quando pretendeu combater, corrigir ou superar Aristóteles. Erram sempre os que assim procedem, e só quem permanentemente desconfia das más interpretações que dos escritos aristotélicos foram apresentadas pelos adversários, só quem se der ao cuidado de pensar o que Aristóteles pensou, deixará de repetir as falsidades que maculam até os representantes de uma tradição. Tivesse Fernando Pessoa meditado o que significava a imitação da Natureza, como decifrou inscrições mais obscuras, teria admirado a verdade do silogismo no transcendentalismo panteísta.

Imitar a natureza é tornar visível o invisível. Só esta encarnação pode ter valor para a génese da poesia. Confundir o mistério espiritual da manifestação, ou da encarnação, a que aludia Aristóteles, com a reprodução figurativa do teatro natural, foi o erro que academias e classicistas expiam agora perante as exposições técnicas de arte abstracta.

Entendida, assim, a doutrina aristotélica, já o transcendentalismo panteísta de Fernando Pessoa vale de expressão adequada à poesia e à filosofia dos Portugueses. É tese para demonstrar numa História da Poesia e numa História da Filosofia. Tal demonstração será inoperante se não houver o cuidado de mostrar que numa expressão aparentemente heterodoxa está o significado precursor do movimento cultural que hoje se observa nos limites da mais pura ortodoxia».

Álvaro Ribeiro («Escritores Doutrinados»).


«[...] A nossa poesia caminha para o seu auge: o grande Poeta proximamente vindouro, que encarnará esse auge, realizará o máximo equilíbrio da subjectividade e da objectividade. Diga da sua grandeza esta sugestão para raciocinardes. Super-Camões lhe chamámos, e lhe chamaremos, ainda que a comparação implícita, por muito que pareça favorecer, ante-amesquinhe o seu génio, que será, não de grau superior, mas mesmo de ordem superior ao do nosso ainda-primeiro poeta.

Há mais uma observação a fazer para a completa caracterização psicológica da nossa nova poesia. Deduz-se do que se acha concluído acerca da plena e igualada subjectividade e da quase total objectividade dessa poesia.  Resultam deste modo de ser três coisas. A primeira é o já citado equilíbrio seu. A segunda é que, sendo ao mesmo tempo, e com quase igual intensidade, poesia subjectiva e objectiva, poesia da alma e da natureza, cada um destes elementos penetra o outro; de modo que produz essa estranha e nítida originalidade da nossa actual poesia - a espiritualização da Natureza e, ao mesmo tempo, a materialização do Espírito, a sua comunhão humilde no Todo, comunhão que é, já não puramente panteísta, mas, por essa citada espiritualização da Natureza, superpanteísta, dispersão do ser num interior que não é Natureza, mas alma. Decorre daqui uma terceira coisa. Esta interpretação das duas almas da sua alma una obriga a nova poesia portuguesa a ser puramente e absorvidamente metafísica: ser outra coisa seria para ela descer. Por isso não tem ela poetas de amor, ou poetas "sociais", ou outros assim, de género não-metafísico. Na nova poesia portuguesa todo o amor é além-amor, como toda a Natureza é além-Natureza. Pode o amor, cantado por um dos nossos actuais poetas, ser amor nas duas quadras de um soneto; nos tercetos é já oração. E assim com todo o outro género de poesia geralmente submetafísica. Quaisquer poemas da corrente podem servir de exemplo. De um canto à luz tira Junqueiro uma das maiores poesias metafísicas do mundo, poesia que se pode comparar só a Ode: Intimations of Immortality de Wordsworth. Em um assunto aparentemente amoroso, Teixeira de Pascoais transcende logo o amor, torna-o degrau para a religiosidade; é da Elegia que se trata.

Ora, de ser a nossa nova poesia absorventemente metafísica há uma conclusão a tirar. Poesia metafísica implica emoção metafísica; emoção metafísica é simplesmente sinónimo de religiosidade.






A actual poesia portuguesa é, pois, uma poesia religiosa. Prova-o materialmente o seu uso de expressões tiradas do culto religioso - com outra religiosidade usadas, claro está - como ungir, sangrar, etc. É de todo religioso o tom geral e imediatamente perceptível da nossa actual poesia. - Há mais: a religiosidade da nossa actual poesia é uma religiosidade nova, que não se parece com a de nenhuma outra poesia, nem com a de qualquer religião, antiga ou moderna. Contrasta-se nisto com o simbolismo, que não tem religiosidade própria; e não a tem porque a que tem é católica ou quase católica; vem do passado, é morte - ponto de capital importância, porque mostra nitidamente o carácter degenerativo e mórbido do simbolismo.

[...] Na classificação dos sistemas filosóficos temos a considerar duas coisas: a constituição do espírito e os fins a que tende na sua actividade metafísica.

O espírito humano, por sua própria natureza de duplamente - interiormente e exteriormente - percipiente, nunca se pode pensar senão em termos de um dualismo qualquer; mesmo que se esforce por chegar, e até certo ponto chegue, a uma concepção monística há um dualismo. Mesmo que dos dois elementos constitutivos da Experiência - matéria e espírito - se negue a realidade a um, não se lhe nega a existência como irrealidade, como aparência - o que transforma o dualismo espírito-matéria em dualismo realidade-aparência; mas realidade-aparência é, para o espírito, um dualismo.

O género de dualismo, porém, depende de, é condicionado por, o que se considera a Realidade Absoluta, a realidade realmente real; e é a procura dessa realidade que é o fim da especulação metafísica. O espírito não pode admitir duas realidades: a ideia de realidade absoluta envolve a ideia de unidade. Mesmo, portanto, que o espírito admita, como em alguns sistemas - e flagrantemente no espiritualismo clássico - dois princípios, com igual objectividade, reais, é forçado a admitir que o género de realidade de um desses princípios é superior ao da do outro.

Temos, pois, que todo o sistema filosófico envolve um dualismo e um monismo. A constituição do espírito impõe-lhe, por mais que ele lhe queira fugir, que pense dualisticamente; a noção de realidade obriga-o a pensar monisticamente. O espírito não pode construir um sistema pura e integralmente monístico; e um sistema puramente dualístico não seria um sistema filosófico.

Todo o sistema filosófico, sendo, portanto, a tentativa para reduzir a um monismo o dualismo essencial do nosso espírito, é de subentender que represente uma sistematização de elementos da Experiência em torno àquela parte da Experiência - matéria ou espírito - que o filósofo, por causas que, em sua essência, são de temperamento, considera a Realidade. Temos, pois, que, consoante para o filósofo o espírito ou a matéria se apresenta como a realidade essencial, um de dois sistemas pode directamente surgir - o espiritualismo ou o materialismo. - Para o materialista a forma essencial da realidade, seja ela especializadamente qual for no seu especial sistema, é sempre uma realidade de que forma parte inalienavelmente um elemento ou espacial, ou, pelo menos, de inconsciência. - Para o espiritualista, através das várias formas que pode tomar o espiritualismo, há sempre de central e essencial um elemento, o elemento consciência, que é o que o espírito imediatamente concebe como sua base própria. Daqui partem todas as teorias características do espiritualismo - a imortalidade da alma (concebida impossibilidade de anular a consciência), o livre-arbítrio (concebida superioridade do consciente sobre o inconsciente) e a existência de um Deus clara ou obscuramente tido como pessoal, isto é, como consciente.






A ideação metafísica pode, porém, tentar monismo de outro modo mais queridamente absoluto. Não há, é certo, outros elementos da Experiência que não a matéria e o espírito; o pensamento, porém, de certo modo tenta suprimir este dualismo. E de três modos o pode fazer: 1.º Negando toda a realidade objectiva a um dos elementos da Experiência, isto é (consoante já passim vimos), reduzindo o dualismo ao minimamente dualístico (ainda que impossivelmente de todo monístico) dualismo de realidade-aparência. Conforme é o espírito ou a matéria o elemento eliminado, temos o materialismo absoluto ou o espiritualismo absoluto. - 2.º Admitindo a realidade igual de ambos os elementos da Experiência; ora, como isto resulta num absurdo de sistema - dado que a existência de duas, iguais, realidades é impensável -, fatalmente essa dupla realidade tira o seu carácter de realidade de ser, basilarmente, a dupla manifestação de qualquer cousa em sua essência tida por nem matéria nem espírito, ainda que somente existente e real naquelas suas manifestações. Se essa substância as transcendesse, isto é, fosse outra cousa, existisse substancialmente à parte da sua manifestação através de matéria e espírito, estaríamos então piorados para três realidades. 3.º - Negando a realidade a ambos os elementos da Experiência, considerando-os apenas como manifestação, não real mas ilusória, de uma transcendente e verdadeira e só realidade. - Temos assim, além dos citados materialismo e espiritualismo absolutos, no segundo sistema citado o panteísmo, e no terceiro o transcendentalismo.

O leitor reparou que no primeiro género de sistemas acima expostos há duas formas - uma materialista, outra espiritualista. O mesmo acontece ao panteísmo e ao transcendentalismo. É que, por mais que abstractamente ideemos, realmente não temos outros modelos por onde idear senão espírito e matéria. Mesmo, portanto, que concebamos um Transcendente, inconscientemente e involuntariamente o teremos de conceber como feito à imagem da matéria ou à semelhança do espírito. Assim, tempos um panteísmo materialista e um panteísmo espiritualista. O primeiro - o de Espinosa - é o que encerra o que Espinosa, não se sabe porquê, chama Deus, nos seus atributos. Estes, são como que o corpo de Deus; mas para além desse corpo, Deus não é nada. É só o corpo de si próprio. Vê-se que o modelo é materialista; tanto quanto um panteísmo pode ser materialista, é-o o sistema de Espinosa. - O panteísmo espiritualista admite Deus substância de tudo, mas permanecendo Deus e diverso através da sua manifestação por seus atributos. Faça-se uma distinção subtil, que tem de ser subtilmente compreendida: para o panteísta materialista tudo é Deus; para o panteísta espiritualista Deus é tudo. Se houvesse sido pensado coerentemente, e despidamente de influências de estreita teologia, teria sido este o sistema de Malebranche.

Com o transcendentalismo acontece o mesmo. Importa fixar bem a diferença entre o panteísmo e o transcendentalismo, tanto mais que estabelecemos nós estes termos independentemente de como tenham sido usados antes, assim como, de resto, fazemos esta classificação de modo absolutamente original. - Para o panteísta de qualquer das duas espécies, matéria e espírito são manifestações reais de Deus, exista ele (panteísmo espiritualista) ou não (panteísmo materialista) como Deus além das suas duas manifestações. Para o transcendentalista, matéria e espírito são manifestações irreais de Deus, ou, antes, para não errarmos, do Transcendente, o Transcendente manifestando-se como a ilusão, o sonho de si próprio. - Dos transcendentalistas, para o transcendentalista materialista (Schopenhauer), a essência real, de que as cousas são a ilusão, é qualquer cousa vaga cujo carácter essencial é ser inconsciente; ora, como a consciência é a base dos sistemas espiritualistas, temos aqui um sistema que, apesar de transcendentalista, o é antiespiritualista -, isto é, materialisticamente. - É escusado definir o transcendentalismo espiritualista, que representa a hipótese contrária.

Um outro sistema pode, porém, surgir, limite e cúpula da metafísica. Suponha-se que a um transcendentalista qualquer esta objecção se faz: O Aparente (matéria e espírito) é para vós irreal, é uma manifestação irreal do Real. Como, porém, pode o Real manifestar-se irrealmente? Para que o irreal seja irreal é preciso que seja real: portanto o Aparente é uma realidade irreal, ou uma irrealidade real - uma contradição realizada. O Transcendente, pois, é e não é ao mesmo tempo, existe à parte e não à parte da sua manifestação, é real e não-real nessa manifestação. - Vê-se que este sistema é, não o materialismo nem o espiritualismo, mas sim o panteísmo, transcendentalizado; chamemos-lhe pois o transcendentalismo panteísta. Há dele um exemplo único e eterno. É essa catedral do pensamento - a filosofia de Hegel.




O transcendentalismo panteísta envolve e transcende todos os sistemas: matéria e espírito são para ele reais e irreais ao mesmo tempo, Deus e não-Deus essencialmente. Tão verdade é dizer que a matéria e o espírito existem como que não existem, porque existem e não existem ao mesmo tempo. A suprema verdade que se pode dizer de uma coisa é que ela é e não é ao mesmo tempo. Por isso, pois, que a essência do universo é a contradição - a irrealização do Real, que é a mesma cousa que a realização do Irreal -, uma afirmação é tanto mais verdadeira quanto maior contradição envolve. Dizer que a matéria é material e o espírito espiritual não é falso; mas é mais verdade dizer que a matéria é espiritual e o espírito material. E assim, complexa e indefinidamente...

[...] Se a alma portuguesa, representada pelos seus poetas, encarna neste momento a alma recém-nada da futura civilização europeia, é que essa futura civilização europeia será uma civilização lusitana. Primeiro, porém, consoante todas as analogias no-lo impõem, a alma portuguesa atingirá em poesia o grau correspondente à altura a que em filosofia já está erguida. Deve estar para muito breve, portanto, o aparecimento do poeta supremo da nossa raça, e, ousando tirar a verdadeira conclusão que se nos impõe, pelos argumentos que já o leitor viu, o poeta supremo da Europa, de todos os tempos. É um arrojo dizer isto? Mas o raciocínio assim o quer.

[...] Sendo o transcendentalismo panteísta um sistema essencialmente envolvedor de uma fusão de elementos absolutamente opostos, segue-se que a criação resultante da nova alma lusitana deverá envolver, em seu resultado definitivo e último, o estabelecimento de qualquer nova fórmula social onde uma fusão dessas se dê. Uma rápida análise, aqui eliminada, determina facilmente que o raciocínio permite profetizar que a futura criação social da Raça portuguesa será qualquer cousa que seja ao mesmo tempo religiosa e política, ao mesmo tempo democrática e aristocrática, ao mesmo tempo ligada à actual fórmula da civilização e a outra cousa nova. Inútil será apontar quão flagrantemente esta dedução vaga e precisa decorre da constatação já feita sobre o carácter fundamental, metafisicamente patente, de alma lusitana. Igualmente inútil deve ser notar quanto essa futura fórmula deve distar do cristianismo, e especialmente do catolicismo, em matéria religiosa; da democracia moderna, em todas as suas formas, em matéria política; do comercialismo e materialismo radicais na vida moderna, em matéria civilizacional geral. E, finalmente, é da mesma inutilidade acrescentar, acentuando e especializando a sua divergência da democracia, que as formas extremas ou perturbadas desta - anarquismo, socialismo, etc. - serão varridas para fora da realidade, mesmo do sonho nacional; os humanitarismos morrerão ante essa nova fórmula social, de portuguesa origem, mais alta, provavelmente, em sentimento religioso do que outra qualquer que tenha havido, mais rude e cruel talvez em prática social do que o mais rude militarismo comercialista. Console-nos, isto, desde já, no meio de ver, de leste a oeste de Portugal, a nossa sub-humanidade política e a nossa proletariagem humanitariante. Tudo isso, que afinal é estrangeiro, morrerá por si, ou à boca dos canhões do nosso Cromwell futuro.

E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são constituídas "daquilo de que os sonhos são feitos". E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal ante-arremedo, realizar-se-á divinamente.

Brasão de Armas do Infante D. Henrique





[...] Os poetas da Renascença pensam por ideias ou por abstracções: os românticos pensam por imagens. Isto é, os primeiros pensam em termos de alma, os segundos em termos de Natureza. Nenhum romântico poderia escrever um soneto como o Alma minha gentil, tão despido de imagens, tão directamente exprimindo a alma.

Ora, sendo estes os característicos dos dois grandes períodos da poesia europeia moderna, será possível deduzir deles os característicos que deverá ter o grande período da poesia que se lhes seguirá? A dedução não é fácil; é facílima. Para a Renascença a Realidade é a Alma; para o Romantismo a Realidade é a Natureza. Ora, como o nosso conhecimento não tem outros objectos além da Alma e da Natureza, a nova Renascença (chamemos-lhe assim) não tem outra coisa que tomar para Realidade. A sua originalidade só poderá vir portanto de uma fusão do psiquismo da Renascença com o psiquismo do Romantismo.

Não há outra hipótese concebível.

Essa fusão, porém, produz um facto curioso - a coexistência de dois sentimentos da Realidade, uma dupla noção de Realidade. Mas só pode haver noção de uma Realidade; a Realidade é concebível só como uma. Resulta, portanto, que para a Nova Renascença a Realidade deverá ser fusão de Natureza e Alma. A realidade será pois Natureza-Alma. Isto é, pela Nova Renascença a Natureza será concebida como Alma».

Fernando Pessoa («A Nova Poesia Portuguesa»).


«A falta do sentido da modalidade representa um estádio primitivo da mentalidade se não soubéssemos como ela é correlata do absolutismo que caracteriza a separação que o português estabelece entre o que pensa e o que faz, entre todo o pensamento e toda a realidade.  Em relação com a liberdade, a ausência do sentido do modo é o que explica a atitude servil que o português sempre começa por adoptar socialmente e na qual em geral permanece. Tendo absolutizado a liberdade no puro pensamento ou no mais ignoto íntimo da sua existência subjectiva, não sabe ver o modo que permite discernir o que é que, no absoluto e na abstracção, oferece possibilidades de se manifestar e, depois, dentro da relatividade de toda a manifestação, torna real o possível. Tal incapacidade equivale ao suicídio ou conduz à servidão de que dá espectáculo a vida social portuguesa. Cremos que será difícil encontrar povo onde o pobre tão tácita e profundamente saiba como depende do rico, o fraco do forte, o desamparado do poderoso, o vencido do triunfador.

Tão profunda e generalizada servidão, tão absoluta incapacidade para realizar o possível, apresenta exemplos extremos por confirmação e por compensação naqueles aspectos que têm a generalidade em sua própria natureza, como seja a política e a literatura.

É evidente que, em absoluto, não há doutrina política que não se proponha os fins da mesma política: o governo dos povos, o bem-estar dos indivíduos e famílias, a realização da justiça e da liberdade. Nos meios ou nos modos de alcançar estes fins é que, depois, se distinguem as doutrinas, os partidos e os regimes, os fascistas e os democráticos, os comunistas e os capitalistas. É, pois, fácil observar, como frequentemente se tem observado, que aos Portugueses não é acessível uma política assente na harmonia possível da variedade necessária. Entre nós, em qualquer circunstância e em qualquer tempo, a política é, toda, só a do governo. E como não consideramos modos nem meios, de todo o governo se exige sempre a imediata realização dos princípios e fins absolutos da política. O governo, por sua vez, que dentro desse mental absolutismo também apresentou os seus fins, vê-se a braços com os meios de que pode dispor ou em face dos modos que a realidade lhe impõe, isto é, descobre tardiamente a categoria da modalidade.



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Os corolários de tal situação encadeiam-se indefinidamente; e entre um absoluto irrealizável e a realização logo condenada, negada e recusada do que é possível, a política ainda não deixou de ser alguma coisa que ou fica, inoperante e inofensiva, à margem da vida, ou está entregue ao oportunismo dos que possuem o poder, a força, o triunfo ou a riqueza e não deixam de os empregar como armas para manter e alargar a servidão humana.

Ao contrário do que assim acontece na política, o que se dá na literatura é, por um fenómeno de compreensão, a exorbitância da categoria moral até extremos onde se perde toda a medida do absoluto, do real e do possível. Por um lado, confina-se a produção literária aos limites que ficam entre a repetição e a imitação, por outro lado, desviam-se os valores estéticos para minúcias e pormenores, como seja a riqueza vocabular, onde se comprometem e anulam as finalidades da arte. O modo - que na literatura faz o trânsito do intuído e do imaginado para a expressão - é assim confundido e identificado com essa só expressão, separada e cindida da função realizadora e manifestante que a promove. A modalidade reduz-se ao formalismo.

Esta idiossincracia limitadora e minorativa alia-se a características sociais que mais acentuam os seus efeitos negativos. Fechada no formalismo a que reduziu a modalidade, a nossa literatura é o abrigo dos preconceitos sociais dominantes. É esclarecedor verificar que a quase totalidade dos nossos escritores são recrutados na pequena e média burguesia e, ao mesmo tempo, de formação universitária. Tal origem social e tal formação cultural definem as mentalidades mais sensíveis a reflectir toda a espécie de preconceitos.

Por um lado, a pequena e média burguesia é uma classe de transição; transição entre o pavor de cair no proletariado sempre sujeito a largos períodos de pobreza e miséria e que está paredes meias com ela, e a ambição de, pelos acasos da fortuna ou prémio do honesto esforço em que o bacharelato é o primeiro passo, ascender à burguesia estável cuja segurança inveja e cujos costumes admira e imita.

Por outro lado, a formação universitária dá-lhes o que lhes pode dar uma instituição que, sem possuir entre nós nem tradição nem actividade científica que vá além de uma superficial a pretensiosa função repetidora, se veio fazendo herdeira de todas as limitações ao desenvolvimento intelectual e de todas as proibições de informação cultural e científica ancestralmente atribuídas a organizações que, no progresso de actualização, as vieram abjurando, como as do ensino e da censura eclesiásticos.

O escritor português limita assim as suas virtualidades - e disso dá a nossa literatura, especialmente a novelística e a poética, amplo testemunho - a exprimir o pavor pela vida de pobreza e miséria do proletariado e a repugnância pelos consequentes costumes e moralidade, pavor e repugnância que ele ilude ou sublima mas não consegue ocultar ao observador atento, nas canções doces das descrições rústicas, na elegia dos tempos passados, na imitação da retórica da burguesia estável tipo "este bom povo da nossa terra", na veemência de um socialismo falso e abstracto de ideal humano, universal e fraterno, denunciador de todas as injustiças sociais. Sobre tudo isto, pesa o bacharelato universitário, com a formação que deu ao escritor fixando-o intelectualmente, e a possibilidade efectiva de um emprego burguês, um casamento burguês, uma vida burguesa.



António Sérgio



Nada, pois, mais apto, na origem e na formação, ao domínio dos preconceitos e dos formalismos. Nada pois mais fácil do que verificar a observação, atribuída a António Sérgio, de que "em Portugal, a classe mais estúpida é a dos intelectuais". Antes de António Sérgio, bem o sabiam os poderosos, os ricos, os triunfadores, que entre nós há muito se riem da função libertadora que há quem teime em atribuir à intervenção da cultura na consciência social. Tão grande é, neste aspecto, a debilidade dos nossos escritores, tão radical é neles a ausência do modo de definir o possível e exprimir o real, que basta uma simples instituição de censura para lhes impedir completamente, como eles mesmos o declaram, qualquer intervenção desse tipo.

Assim, de todos os lados convergem para a literatura os motivos que explicam - por compensação, por idiossincrasia, por condicionalismo social - ser ela o domínio da exorbitância do modo e sua consequente diluição no formalismo. Exprime-se tal domínio na extrema, quase exclusiva valorização do aspecto formal das obras literárias com a correlata tendência para reduzir aos géneros, como a ficção e a poesia, mais propícios a essa valorização, toda a importância da actividade cultural. Ao mesmo tempo que se promovem e se consagram obras de conteúdo apenas apologético, imitativo ou retórico e de um estilo análogo ao daquela literatura "fradesca" que se julgava ter Eça de Queirós definitivamente abolido, tenta-se passar por alto, como se não tivesse qualquer significado ou até não existissem, as obras e os géneros literários em que o conteúdo é primacial e a expressão tem de provir de um esforço inovador se não criador. É assim que, por um lado, se valoriza uma linha de retrogradação à literatura anterior a Eça de Queirós e até a Garrett, como é a dos inúmeros novelistas apologetas e a da prosódia complicada, com a sua pretensiosa abundância de uma sinonímia vocabular só designativa de objectos e coisas, nunca de ideias, conceitos ou sequer sentimentos. Por outro lado, tudo se faz para esconder que no prolongamento da linha que vai de Junqueiro a Régio, de Pascoais a Pessoa, de Camilo a Branquinho da Fonseca, são os ensaístas que, sobre as conquistas alcançadas na expressão das instituições poéticas e das ficções prosaicas, tenham a grande façanha de dar à nossa literatura as possibilidades de expressão especulativa e filosófica. Com o cuidado e a segurança que lhe são peculiares, distingue José Régio como os nossos maiores "escritores de ideias", António Sérgio, Oliveira Salazar, José Marinho e Álvaro Ribeiro. Dos quatro, deve reconhecer-se que foi Álvaro Ribeiro que, sem os compromissos ainda muito literários de um, sem a distância classicizante e fria de outro, sem a nudez branca e fugidia do terceiro, conseguiu juntar, ao rigor lógico da expressão conceptual, o calor dos ritmos que asseguram a compreensão e seduzem a inteligência. Quem cotejar uma página de Álvaro Ribeiro com uma página de Leonardo Coimbra - aliás seu mestre e muito mais beneficiado do que ele em inspiração e imaginação - ficará surpreendido com a grande distância percorrida desde a prosa especulativa cheia de compromissos com as formas poéticas até à rigorosa expressão discursiva da filosofia. E quem, indo mais atrás, fizer o mesmo cotejo com as melhores páginas de um dos nossos pensadores do século passado, um Amorim Viana, um Cunha Seixas, um Antero de Quental, poderá concluir que os ensaístas contemporâneos realizaram, na história da nossa expressão linguística, uma alteração equivalente à que, no puro domínio literário, foi feita por Garrett, Camilo e Eça. É, todavia, isto que, no significativo empenho de exorbitarem a modalidade, na falta do sentido que dá o trânsito entre o possível e o real, por todos os meios se procura esconder».

Orlando Vitorino (in Prefácio a Stuart Mill, «Ensaio sobre a Liberdade»).


«A propósito da faculdade fabulatriz, que distingue da imaginação, Bergson escreve este luminoso texto:

"Deixemos, pois, de lado a imaginação, que não passa de uma palavra, e consideremos uma faculdade bem definida do espírito, a de criar personagens cuja história narramos a nós próprios. A faculdade fabulatriz toma uma singular intensidade de vida nos romancistas e nos dramaturgos. Há-os que chegam a ser verdadeiramente obsidiados pelo seu herói; são por ele muito mais conduzidos do que o conduzem; chegam a ter dificuldade de se desembaraçar dele quando acabam a peça ou o romance. Tais escritores não são necessariamente aqueles cuja obra atinge alto valor; mas, muito melhor do que outros, tornam-nos palpável, pelo menos a alguns de nós, a existência de uma faculdade especial de alucinação voluntária".



Henrique Bergson




A transição para o teatro, de ordem espectacular, caracteriza a última fase da teoria da literatura de Bergson, mais directamente preocupado com os problemas de moral e religião. No teatro a acção realiza-se plenamente, com seus conflitos visíveis, ou realiza-se simbolicamente, por meio de dizeres mais ou menos alegóricos, mas é próprio do autor dramático possuir essencialmente os dons de esquematização e de dedução lógica. A própria limitação no espaço e no tempo, a que a técnica não dá solução senão imaginável ou imaginária, obriga todas as personagens a viverem com sentimentos cristalizados perante as leis morais e sociais, em seus conflitos autónomos e heterónomos.

[...] No teatro, dadas as restrições de espaço e de tempo, as acções visíveis são geralmente as que mútua e reciprocamente praticam duas pessoas, em diálogo que pode ir sendo alterado por quem mais estiver ou entrar em cena. No palco, visíveis, significativos e decisivos são os actos até à mais refinada e subtil injúria. O espectador assíduo a representações teatrais convencer-se-á de que os actos são sempre três, fáceis de prever, e pouco variáveis, afinal.

A mesma sobriedade de actos tem seu paralelo também nas palavras. Em Matière et Mémoire já Bergson havia dito: "Conforme for a natureza da peça que se representa, os movimentos dos actores serão mais ou menos extensos: quase tudo, se for uma pantomima; quase nada, se for uma delicada comédia". Em La Pensée et le Mouvant esclarece melhor: "No teatro, cada actor diz só o que é preciso dizer, e só faz o que é preciso fazer; as cenas são muito bem recortadas; a peça tem um começo, um meio e um fim e tudo está disposto do modo mais parcimonioso possível em vista a um desenlace, que será feliz ou trágico.

A tendência romântica para confundir a arte com a vida levou a misturar os processos destes três géneros de literatura. Bastará citar os nomes de três dramaturgos, Shakespeare, Victor-Hugo e Maeterlinck, para exemplificar os casos mais notáveis de interferências do romance e da poesia no drama. Todavia ao crítico subtil será possível distinguir o que a cada obra de arte é essencial e clássico.

Acerta Bergson ao mostrar que o teatro não tem por fim descrever estados de alma, como a poesia, nem progressos de sentimento, como o romance, mas conflitos entre o ser natural do homem e a sua condição social. Assim escreve em Le Rire: "O drama dá à natureza a sua vingança sobre a sociedade. Ora irá direito ao fim; então chamará, do fundo para a superfície, as paixões que fazem saltar tudo. Ora obliquará, como fez mais vezes o drama contemporâneo; então nos revelará, com uma habilidade por vezes sofística, as contradições da sociedade consigo própria; exagerará o que pode haver de artificial na lei social; e assim, por um meio desviado, dissolvendo desta vez o invólucro, far-nos-á também atingir o fundo. Mas nos dois casos, quer enfraqueça a sociedade quer reforce a natureza, persegue o mesmo objecto, que é descobrir-nos uma parte escondida de nós próprios, o que se poderia chamar o elemento trágico da nossa personalidade".

Num passo célebre do mesmo livro, mostra Bergson o carácter das personagens, no declive da tragédia para a comédia, como da individualidade para o tipo, para o género, para a multidão. Isso observa-se até nos títulos. Assim na tragédia mais própria de elementos psicológicos, significativo da individualidade superior do herói ou da heroína, enquanto os nomes comuns ou colectivos servem de título às comédias, mais próximas do entendimento do vulgo, mas já distantes da subtileza da análise psicológica, Bergson atribui, porém, maior efeito sugestivo à tragédia do que à comédia, porque a "sinceridade é mais comunicativa".







O carácter social do teatro aparece não tanto na condição de ser um espectáculo, e portanto público, como na sua temática ética, moral e política, a qual dá motivo a que os legisladores prevejam e limitem a acção sugestiva dos autores sobre proletários e pequenos burgueses. O teatro tem sido utilizado para simbolizar os conflitos religiosos e os conflitos políticos, por quantos lhe atribuem uma função social. Com efeito, muitos dramaturgos utilizam o palco para defenderem a utopia segundo a qual será um dia instaurado um regime político que ponha fim a todas as injustiças sociais, tanto as silenciadas como as clamantes, em toda a face da Terra.

Há, no entanto, uma lição que o teatro concede a toda a gente, mas de que só tiram proveito os espectadores inteligentes. Essa lição é a de que o verdadeiro progresso da humanidade não é ético, moral ou político. Essa lição é dada pela inevitável presença do mal, - da maldade ou da malícia, no dizer de Bergson, - razão ou causa dos conflitos representados no protagonista ou no antagonista, quer estes se apresentem com nomes próprios e vestes figurativas, quer se apresentem em alegorias que se esfumam na abstracção intelectual».

Álvaro Ribeiro («Escritores Doutrinados»).





Leitura de Álvaro Ribeiro


1. O progresso da humanidade 


Numa página do último livro de Álvaro Ribeiro, dedicado a «Escritores Doutrinados», lê-se: «... uma lição que o teatro concede a toda a gente... é a de que o verdadeiro progresso da humanidade não é ético, moral ou político». Será este o terceiro momento na teoria do teatro que Álvaro Ribeiro atribui a Henri Bergson. O primeiro momento é este: «O teatro não tem por fim descrever estados de alma, como a poesia, nem progressos do sentimento, como o romance, mas conflitos entre o ser natural do homem e a sua condição social».

A teoria funda-se, assim, numa concepção agónica que nós interpretamos como a irredutibilidade daquilo que o homem é (sua natureza) àquilo que o homem parece (sua condição social). Tal agonia situa-se, imediatamente, no domínio da ética ou da moral ou da política. Todavia, não é na ética, nem na moral, nem na política que reside o progresso da humanidade. É essa mesma a lição que o teatro concede.


2. O que liberta e o que revela 


Se ao teatro limitarmos a teoria, logo concluiremos que para Bergson (interpretado por Álvaro Ribeiro) o teatro constitui uma transição. Mostrando que são vãs as esperanças que os homens atribuem a domínios de onde insistem, de onde teimam em não as tirar, convida-os, incita-os a situarem-nas onde não haverá lugar para o desespero e a revolta. O teatro será, pois, o momento transitório do ilusório para o real, do erro para a verdade. Se o homem é o prisioneiro da alegoria platónica, que só pode olhar as sombras, o teatro mostra-lhe – não os seres reais e verdadeiros que projectam tais sombras, mas que as sombras, são apenas sombras. Já, porém, não tem poderes para o pôr em frente dos seres reais e verdadeiros. O momento transitório é, pois, o momento da libertação. E só isso. O teatro liberta mas não revela.


3. Transição e crise 


A transição pode também interpretar-se naquilo que ela significa. Transição equivale a crise. O teatro será teatro do homem em crise e dá-lhe a sabedoria de que é de crise a sua situação. As personagens são sempre hamletianas e, fechada no momento que o teatro representa, a situação do homem será sempre trágica («trágica» no sentido clássico, pois. Álvaro Ribeiro propõe uma interpretação freudiana da tragédia). Quer dizer: o homem em crise recorre à ética, à moral e à política, não tem possibilidades de passar da libertação à liberdade ou – para empregar um conceito comum a Bergson e Álvaro Ribeiro – não tem possibilidades de evolução (cremos, todavia, que já não é essa a «lição que o teatro concede»).





4. Teoria da arte 


Esta teoria do teatro faz parte de uma mais ampla teoria da arte. Álvaro Ribeiro parece, neste domínio, desviar-se da tradição aristotélico-hegeliana de que a generalidade do seu pensamento está mais próxima. É certo, que não conhecemos completamente a «Poética» de Aristóteles de que só temos a parte referente ao teatro; mas de Hegel sabemos o que pensava: «O drama que, tanto pelo conteúdo como pela forma, constitui a totalidade mais completa, deve ser considerado como a fase mais elevada da poesia e da arte. Com efeito, se em contraste com os outros materiais sensíveis – madeira, pedra, tinta e som – só a linguagem, a palavra e o discurso constituem o elemento digno de servir a expressão do espírito, também a poesia dramática, por sua vez, que reúne a objectividade épica e a subjectividade lírica, é um género superior...». Pelo contrário, Álvaro Ribeiro coloca o drama entre o solilóquio do lírico e a universalidade do épico. Na sua lógica triádica, o teatro representa o momento dialogante ou dialéctico, a dualidade finita que fica entre a univocidade imediata e a universalidade infinita.


5. O formalismo dos escritores 


Não estamos habituados a que nos falem de teatro nestes termos, isto é, que nos falem em referência ao que as artes significam e não ao formalismo que lhes é próprio. No formalismo, os artistas perturbam-se, confundem-se, perdem-se. Acabam por fazer arte superficial, literatura magazinesca, teatro de cordel. Todo o valor, todo o saber da arte passa a procurar-se numa comparação inesgotável de obras ou de formas, numa comparação onde passam a residir todos os critérios de apreciação estética e que se vai pretender sobrepor à verdadeira reflexão, ao verdadeiro saber da arte. Neste caso, como noutros domínios, a comparação é o que se pretende substituir à filosofia ausente ou hostilizada. Onde não há filosofia do direito põe-se o direito comparado, onde não há filosofia da literatura põe-se a literatura comparada. E quando, na interminável floresta de comparações se procura o classicismo da simplicidade, que só o conceito dá, o caminho está já perdido. O formalismo passa então a ser – como dizia há dias José Marinho numa deslumbrante conferência - «um excesso de conteúdo».


6. O escritor estranho à filosofia 


Estes termos do livro de Álvaro Ribeiro afiguram-se-nos, pois, estranhos, estrangeiros. Álvaro Ribeiro é um pensador ou um filósofo, não é um homem do teatro, não é um literato. Não é sequer um escritor, porque enquanto escritor destina à escrita o que imagina, sente e vive, formas e modos que lhe permitam escrevê-lo. Já o filósofo se destina a pensar: e o pensamento satisfazendo-se a si mesmo, o que procura é tornar-se independente das formas e modos que a imaginação, o sentimento e a vida representam, até quando sejam os caminhos que a ele levaram. Resulta, todavia, que entre os maiores escritores se contam os filósofos: Platão é o maior prosador da Grécia, o francês clássico é a língua que Descartes fez, não havia linguagem literária alemã sem Lutero, etc. E hoje, entre nós, diz José Régio que só três nomes se podem pôr ao lado do de Álvaro Ribeiro na arte prosaica da expressão.

Sem ser escritor, o filósofo é o maior escritor. O paradoxo explica-se. Não é, porém, disso que se trata agora.


7. Formas e significações 


Do que se trata é disto de se nos afigurarem estranhos, estrangeiros, a nós homens do teatro ou de letras, estes termos em que os pensadores como Álvaro Ribeiro falam da arte que julgamos só nossa. A estranheza será saudável e fecunda: compreendo-a, arrancamo-nos ao formalismo e ficamos sabendo que o que, no princípio e no fim, importa é o pensamento ou a significação.

Mas guardemo-nos também de reduzir toda a arte, no caso todo o teatro, às significações. Guardemo-nos, sobretudo, de transferir o que pertence à forma e ao modo para o conteúdo e o conceito. Na verdade, o teatro mostra que o progresso da humanidade não reside na ética, na moral e na política, mas não se confunde ele com a moral, a ética e a política. Ao libertar delas as nossas paixões e acções, o teatro noutros domínios põe, para outros domínios lança o nosso ser. E é aí que há-de encontrar a sua verdadeira significação (in Diário de Notícias, 102º ano, n.º 35918, Lisboa, 3 de Março de 1966, pp. 15-16).







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