segunda-feira, 25 de abril de 2011

Linhas Gerais de Restauração do Ensino (ii)

Escrito por Orlando Vitorino






«"Letras são tretas", diz-se vulgarmente; e este êxito teve já a consagração do escol, quando alguns escritores, ou letrados, compreendendo bem a anomalia universitária, se opuseram à multiplicidade excessiva dessas escolas heterogéneas».

Álvaro Ribeiro




3 - ENSINO SUPERIOR

A - Situação em que se encontra


O ensino superior, ou universitário, tem sido deixado incólume pelos sucessivos governos socialistas. O último, o actual, apenas prevê, no respectivo programa, o aumento dos ordenados mensais dos professores e a criação de mais um curso.


B - Crítica


A política socialista, ininterruptamente prosseguida desde o veiga-simonismo, deixou pois ficar incólume o ensino superior, ou a universidade. Mas já ele havia ficado incólume durante todo o salazarismo. E, antes do salazarismo, durante o republicanismo. E, ainda antes, durante todo o liberalismo da monarquia. De modo que o nosso ensino superior é, substancialmente, o que dele fez o Marquês de Pombal, orientado pelo pensamento iluminista da época, cujos principais representantes - Verney, R. Sanches, Castro Sarmento - são ainda hoje enaltecidos, através dos panegíricos de A. Sérgio e semelhantes, por epígonos de menor saber que se denominam de progressistas. Ao mesmo tempo, ignora-se, ou faz-se ignorar, a linha mais sábia e mais original do pensamento pedagógico e didáctico português, aquela que, preconizando que a organização do ensino se deduz da filosofia que Pombal e os pombalinos de ontem e de hoje decretaram ser «abominável», culminou em Leonardo Coimbra e se prolonga até nossos dias nas obras de Delfim Santos, Santana Dionísio, José Marinho, Agostinho da Silva e Álvaro Ribeiro. Com tudo isto, tornou-se tão patente que a universidade actual é a universidade pombalina que se pôde chegar à anedota de nunca ter havido, em Coimbra, um professor universitário que não fosse parente de outro professor. Entretanto, impõe-se reconhecer que só uma vez a universidade foi, entre nós, objecto de uma contestação essencial e nacional com a consequente proposta da sua radical remodelação condicionada pela prévia extinção das Faculdades e Institutos existentes. Referimo-nos à contestação feita, em 1919, por Leonardo Coimbra, na Câmara dos Deputados da 1.ª República, contestação que, sempre com a hostilidade dos poderes políticos de todos os credos, nunca deixou de ser reafirmada e actualizada pelos discípulos e continuadores do grande pensador.






O que entre nós acontece, acontece em geral nos outros países, embora alguns se tenham conseguido defender melhor do que nós das inevitáveis consequências de um «ensino superior» que, nos últimos decénios, só consegue não ser uma instituição caduca por ser uma instituição vazia. Os professores, agarrados aos privilégios tradicionais do ofício, constituem-se cada vez mais num sindicato de classe e fazem dos corpos docentes universitários uma associação de socorros mútuos. Movidos pela má consciência do seu magistério vazio, confiam a perduração do ofício e a segurança do emprego à adopção de doutrinas cada vez mais acessíveis, mais fáceis e mais degradadas, de doutrinas que tudo vão concedendo à dispensa de preparação cultural, de estudo documental e de reflexão intelectual e que lisonjeiam, portanto, o atrevimento raciocinante da juventude mais apressada, mais oca e mais afirmativa, de doutrinas acessíveis às formas mais comuns da ignorância. As universidades acabaram, deste modo, por se fazerem instrumentos para a formação de comunistas ou criptocomunistas, meios para a divulgação do comunismo do qual já se disse, com irrefutáveis razões, que é «a única doutrina acessível a todos os estúpidos». Assim se criou aquilo que, numa expressão já corrente, se designa por «marxismo universitário», mistura manhosa de comunismo e criptocomunismo que facilitará a obtenção de emprego bem remunerado numa sociedade dominada por complexos socialistas, que satisfará para toda a vida as estreitas carências intelectuais dos alunos menos dotados, mas que será, para os outros, os mais dotados, reflexivos e sérios, um obstáculo ou um malefício de formação escolar a cuja remoção vão ter de dedicar depois os melhores anos da sua vida. Neste momento, alguns membros da oligarquia socialista que domina o nosso país, oferecem-nos já o doloroso espectáculo da luta que travam consigo próprios para removerem de si o marxismo que a universidade lhes instilou; um deles é, precisamente, o Ministro da Educação.

Vamos apontar alguns exemplos do «marxismo universitário» que é, há já alguns anos, a doutrina característica do nosso ensino superior.


Nas Faculdades de Direito foi marginalizada em relação a todas as cadeiras do curso, chegou a ser ridicularizada com o consenso da generalidade dos professores, foi portanto praticamente abolida, a Filosofia do Direito. Sem a filosofia, o direito fica ensinado como sendo um simples formalismo, uma colecção de formas mais ou menos articuladas entre si mas que não se deduzem de princípios e que portanto não se fundamentam nem em conceitos nem na realidade. É evidente que isto facilita a tarefa dos professores que mais não sabem do que descrever as diversas combinações formais das instituições jurídicas, mas suscita no aluno a convicção de que o direito é, como ensina o comunismo, uma convenção arbitrária que não contém em si mesma a razão de si e não é mais do que um instrumento ao serviço de certos interesses. A este criptocomunismo de fundo acrescenta-se, depois, um criptocomunismo descritivo. Nas sebentas de Direito Comercial, por exemplo, as categorias como «mercado» e «propriedade» são descritas como transitórias, como sendo o que são só enquanto se mantiverem, o que leva o aluno a concluir, como ensina o comunismo, que elas estão condenadas a desaparecer.

Nas Faculdades de Letras, tanto a literatura como a linguística e até a filosofia, são ensinadas apenas segundo critérios descritivos e historicistas: aparecem como histórias da literatura, da linguística ou da filosofia e não se apresentam à inteligência dos alunos como manisfestações da ontologia ou dos valores que lhe são próprios. A pobre e insustentável concepção marxista de que a história é «a única ciência» vê-se assim consagrada, e o aluno fica preparado para aceitar que tudo isso - literatura, linguística, filosofia - são infra-estruturas, produtos fictícios destinados a desaparecer tal como segundo o marxismo, a filosofia já desapareceu: Hegel terá sido o derradeiro filósofo.

Nas Faculdades de Economia, o ensino não é mais do que um ensino de técnicas contabilísticas. Além de incompetentes para ensinarem as teorias da economia política clássica (sobre a inacreditável incompetência dos professores universitários, leia-se o testemunho insuspeitável de Delfim Santos em «Linha Geral da Nova Universidade») os professores de economia ignoram literalmente as mais importantes doutrinas contemporâneas e os alunos saem da Faculdade sem nunca terem sequer ouvido pronunciar nomes como os de Bohem Bawerk, L. von Mises ou Frederico Hayek e pouco mais saberem, além do nome, de economistas como Walras e Pareto. Quer dizer: todos aqueles economistas que, sobre os sectarismos demagógicos das ideologias políticas, restabelecem o saber económico como saber científico, são ignorados da Universidade. Em vez deles, ou em vez da ciência económica, o ensino fecha-se nos limites da técnicas contabilísticas que têm a sua aplicação mais importante e prestigiosa na irracionalidade dos planeamentos. Ora os planeamentos são o domínio quase exclusivo da economia socialista, e os alunos são, portanto, levados a optar pelo comunismo como a doutrina que lhes é acessível com a pobre preparação que a Universidade lhes deu, embora seja uma doutrina a que nunca se reconheceu valor científico e se viu infiltrada na degradação universitária graças aos poderosos meios de propaganda que adquiriu com a revolução russa de 1917.


Apenas enunciados, estes exemplos são bastantes elucidativos da situação, mais do que caótica, em que se tem deixado permanecer incólume o ensino superior. E organizados os corpos docentes em associações de socorros mútuos, fácil lhes foi infiltrarem os seus agentes nos centros de poder dos diversos e opostos regimes e governos que entre nós se têm sucedido. A 1.ª República foi, toda ela, dominada por dois professores universitários: Teófilo Braga (cuja obra de governante, sempre tão exaltada, consistiu substancialmente em aumentar os privilégios da Universidade) e Afonso Costa. A 2.ª República, a salazarista, foi, como ela própria se chegou a denominar, um «governo de professores». E na actual 3.ª República será deveras instrutivo observar como os professores universitários nela se vão infiltrando.


LINHAS GERAIS DA ORGANIZAÇÃO QUE SE PROPÕE

1 - Na generalidade


a) Reconhecer que toda a organização dos diversos graus do ensino - como organização que é para a transmissão do saber - se deduz do grau superior, ou universidade. O ensino, no seu conjunto, será portanto aquilo que for a universidade.

b) Extinguir a Universidade actual.

c) Reconhecer, ao lado do direito de aprender - e prioritariamente - o direito de ensinar.

d) Reconhecer, em todos os graus de ensino, todas as formas de ensino livre - equivocamente designado na Constituição por «ensino particular» - e estabelecer para ele um estatuto jurídico idêntico ao que a Constituição (art.º 28.º) estabelece para a imprensa: assim como, nos termos daquele artigo, «a liberdade de imprensa implica o direito de fundar jornais e quaisquer outras publicações», assim deverá a liberdade do ensino implicar o direito de fundar escolas e quaisquer outras instituições de aprendizagem.

e) Abolir, ou interpretar ao invés, o preceito constitucional que considera o «ensino particular» (o ensino livre) como supletivo do oficial. Abandonar definitivamente o predomínio do Estado na organização do ensino como já preconizava o nosso primeiro pedagogista moderno, D. António da Costa, quando mostrava que «ao inverso de todas as nações cultas, em Portugal o Estado é o elemento principal da instrução» (5). Nos últimos tempos, estes que vão correndo, tal predomínio do Estado, em vez de ser diminuído, antes se acentuou e ampliou, havendo até partidos políticos que preconizam a abolição de todo o ensino livre, o que, além de ser a negação imediata do direito de ensinar, é também a negação da liberdade de aprender e, até, da liberdade política, como o nosso primeiro pedagogista moderno citado já demonstrava há, precisamente, um século (6).

f) Reconhecer que o Estado, para que possa ser a garantia ou a efectividade do direito, não pode atribuir-se qualquer autoridade para formular doutrinas religiosas, filosóficas, científicas, jornalísticas, culturais, artísticas ou pedagógicas. Tal como a religião, a filosofia ou a arte, também o ensino só pode ser alguma coisa quando independente do Estado. E se a organização do ensino, para poder abranger toda a população, carece da intervenção do Estado, esta intervenção não pode ser senão supletiva e transitória; se a organização do ensino carece efectivamente do apoio e vigilância dos Governos, tal intervenção do Estado não pode ser senão complementar e subsidiária.






g) Reconhecer que o fim do ensino e da aprendizagem é o saber, não a utilidade nem a técnica nem a prática, as quais só têm valor efectivo quando resultam do saber ou são atributos e consequências do saber.

h) Reconhecer que só a filosofia pode dar sentido ao ensino, o qual, em todos os seus graus e formas, é uma via que liga os homens aos princípios ou à universalidade. Este reconhecimento implica o repúdio de toda a unilateralidade doutrinária, ideológica ou partidária com suas pretensões a monopolizar a organização do ensino. Para empregarmos as palavras em sua acepção corrente, diremos que todo o ensino depende da filosofia mas não de uma filosofia.


2 - Ensino Primário


a) Apoiar, como em todos os outros graus do ensino, as escolas livres, resultantes da iniciativa de quaisquer entidades. Transferir imediatamente o ensino primário oficial para as autarquias locais, de preferência as freguesias (o que implica, evidentemente, a atribuição efectiva às autarquias daquela autonomia que a Constituição lhes reconhece mas que os Partidos não respeitam nem parecem dispostos e capazes de respeitar).

b) Definir as «matérias» de ensino adequadas à idade dos alunos das escolas primárias e o seu escalonamento por «classes» com o sentido original que teve a introdução delas no ensino de Português: as classes determinam-se na coincidência da idade dos alunos com os programas e métodos do ensino. A substituição das «classes» pelo «arranjo» que actualmente foi estabelecido, equivale ao recuo de um século, ao regresso à situação anterior a Jaime Moniz.

c) Abolir das escolas primárias os métodos próprios das escolas designadas pré-primárias, que levam a atrasar o natural desenvolvimento mental da criança.

e) Insinuar na criança os valores invioláveis da natureza e nesse sentido programar o ensino elementar da Geografia, da Biologia e da Física.

f) Insinuar na criança o significado da História, desenvolvendo a sua imaginação mitogénica num sentido ético e artístico mediante a exaltação dos heróis, dos feitos e das obras.




















g) Contrapor à minimização profissional e social do professor primário, a sua exaltação ética, moral e cultural. O que se minimiza, desaparece. E os professores - que até alguns decénios eram personalidades respeitadas e veneradas pelas comunidades - viram-se quase totalmente substituídos por professsoras. Sem deixarmos de reconhecer, admirar e enaltecer as características e as funções das mulheres como professoras, sobretudo em domínios que lhes são mais próprios como o ensino de línguas estrangeiras, não podemos deixar de reafirmar que o magistério masculino é insubstituível quando a criança transita com tudo o que a escrita implica. Este trânsito na aprendizagem corresponde ao trânsito do colo materno para a liberdade paterna. O professor identifica-se, então, com o pai: substitui-o ou prolonga-o na escola. A mais remota e a mais recente sabedoria pedagógica, ontem como hoje, desde a «psicologia socrática» dos gregos até à «psicologia das profundidades» dos modernos, nunca deixou de o reconhecer. Para só referirmos os momentos mais altos desta sabedoria, apenas relembraremos Hegel (a quem os socialistas tanto se comprazem de estar ligados) que considerava a educação paternal, com toda a rigidez ou rigor da masculinidade, insubstituível para dar à criança o sentido da transcendência ou da verdade, e Freud que estabeleceu, com científicos pormenores, o mesmo imperativo.



3 - Ensino Secundário


a) Instituir um curso inicial de dois anos, obrigatório para toda a escolaridade secundária, destinado ao ensino da língua portuguesa, em suas estruturas lógicas e valores artísticos, de línguas estrangeiras, de ciências geográficas, geométricas e matemáticas, de história de Portugal, de biologia e de ciências jurídicas ou políticas.

b) Instituir a maior variedade possível de «cursos», desde os destinados à mais próxima profissionalização até aos que orientam o aluno para o ensino superior, estabelecendo-se sucessivas plataformas de transferência e transição entre os cursos.

c) Instituir um ciclo final de um ano, reservado exclusivamente ao trânsito para o ensino superior, que incidirá, consoante o ramo universitário a que o aluno se destina, sobre conhecimentos das ciências desse ramo.


4 - Ensino Superior


Condição prévia indispensável é a extinção das actuais faculdades e institutos de ensino ou investigação que lhes são inerentes. Esta extinção, preconizada por Leonardo Coimbra, foi justificada por Delfim Santos nos seguintes termos: «A extinção, só por si, valorizará imenso a nossa cultura; desaparecerá assim um valor negativo qque inferioriza grandemente os possíveis valores positivos da nossa cultura. Qualquer outra solução nos parece incapaz de consequências proveitosas. As reformas não conseguirão nada. A criação ou extinção de cadeiras de nada valerá. Depois, far-se-á a organização da nova universidade» (7).

A organização da universidade tem prioridade - pois é o seu condicionamento absoluto - sobre a organização de qualquer e todos os outros graus de ensino. Entendemos, portanto, que só depois de organizado o novo ensino superior se poderão estabelecer as linhas de reorganização do ensino primário e do ensino secundário. As indicações que nesta exposição damos sobre o ensino primário e secundário têm um carácter imediato e destinam-se a orientar e enquadrar as medidas imediatas a adoptar em virtude da situação catastrófica em que se encontra todo o ensino e em virtude de não se poderem obrigar todos os alunos a esperar pelo acabamento da organização do ensino superior.

Para o ensino superior apresentamos a seguir um plano, necessariamente esquemático, no qual se observará:

1.º - O ensino superior dividir-se-á em três ordens de cursos:

a) Na primeira ordem - cursos técnicos superiores - os alunos deverão adquirir a formação indispensável ao exercício de funções profissionais que exijam responsabilidades e competência pessoal; estes cursos abrangerão todos os ramos da actividade normal da população portuguesa, desde a agronomia e a engenharia até à pedagogia e às artes.

b) Na segunda ordem - cursos teóricos superiores - os alunos que tiverem completado os «cursos técnicos superiores» encontrarão um ensino que se destina a acrescentar ou a desenvolver as habilitações técnicas adquiridas com o conhecimento científico do qual elas se deduzem: um aluno que tenha adquirido nos primeiros cursos a competência necessária para exercer, por exemplo, funções de jurisdição aplicada ou de economia contabilística ou de docência secundária e primária, poderá nos cursos teóricos, ascender ao saber científico, do qual essa competência deriva e adquirir assim as capacidades para transitar, da aplicação de conhecimentos científicos, ao saber desses conhecimentos, sua interpretação e sua elaboração; o técnico já competente para aplicar a jurisdição (que é ao que se limita a maior parte das funções reservadas aos actuais licenciados em Direito) ascenderá a jurista e a magistrado; o técnico já competente para aplicar as regras de contabilidade e cálculo económico e financeiro, adquirirá os meios para pensar as constantes da ciência económica em suas relações com a realidade inalterável; o técnico habilitado a ministrar o ensino secundário e primário, passará a dispor da preparação científica e mental para decidir dos métodos e fins da aprendizagem.










c) Numa terceira ordem, instituir-se-á um curso superior de filosofia, igualmente acessível a todos os «formados» por qualquer dos «cursos teóricos superiores»; destinar-se-á este curso ao ensino daquilo que, na cultura do mundo em que vivemos, são os princípios últimos do saber e da ciência.

Os «cursos técnicos superiores» terão a duração preferencial de dois ou três anos; os «cursos teóricos superiores» a de três anos; o «curso superior de filosofia» terá uma duração indefinida, com um mínimo de um ano... (in ob. cit, pp. 194-204).


Notas:

(5) «A Instrução Nacional, p. 58.

(6) D. Ant. da Costa, ob. cit, p. 12.

(7) D. Santos, «Linha Geral da Nova Universidade», pp. 22-23.


sexta-feira, 22 de abril de 2011

Linhas Gerais de Restauração do Ensino (i)

Escrito por Orlando Vitorino





Mário Soares entrega Portugal ao federalismo europeísta (assinatura do Tratado de Adesão à Comunidade Económica Europeia, a 12 de Junho de 1985, no MOSTEIRO dos JERÓNIMOS).


Introdução


Portugal Amordaçado é o título de um livro que Mário Soares premeditou em São Tomé para atacar o regime de Salazar, e que, entre nós, só seria publicado em 1974 com o advento do comunismo. Entretanto, sabemos hoje o que Mário Soares e seus camaradas socialistas fizeram ao longo dos últimos quarenta anos para instaurar uma ditadura política e económica no extremo ocidental da Península Ibérica. Basta, aliás, ver a situação deplorável a que os Portugueses chegaram, e, de permeio, recordar Franco Nogueira que já, em 1978, discorria sobre as enormes dificuldades que Portugal enfrentaria num futuro obscuro:

«Li há pouco, afirmado por um responsável português, que não há perigo em pedir dinheiro emprestado porque não há memória de um país ir para a bancarrota. Fica-se aturdido perante esta irresponsabilidade. Dir-se-á que se procura criar o sebastianismo do empréstimo externo. Acredite-se que os credores apresentarão a sua factura; esta será política, e traduzir-se-á na perda da independência nacional, ou será económica, e o país transformar-se-á numa colónia do estrangeiro. Aliás, uma coisa equivale à outra, e esta situação está já a produzir-se. Ninguém o diz com mais amargura do que eu, mas a verdade é que Portugal não é hoje um país que se possa determinar com autonomia, nem de momento está em posição de escolher livremente as opções ou alternativas que mais convenham aos seus interesses. Acha que estou a exagerar? Veja: há pouco a revista francesa Express publicou um artigo sobre Portugal cujo título era: "Novo governo em Lisboa, o do Fundo Monetário Internacional". E perante o descalabro em que o país continua, não nos devemos surpreender se amanhã o FMI, que decerto já controla as nossas instituições financeiras, exigir ainda a instalação de técnicos seus em Lisboa para fiscalizar e determinar como se gastam os fundos que pedimos emprestados…» (in Juízo Final, Livraria Civilização Editora, 2000, pp. 26-27).


Ora, o FMI, o Banco Mundial, o Banco Central Europeu e toda essa sucessão de organizações internacionais especializadas no controlo e na transferência de poderes nacionais para centros de decisão supranacional, representam hoje um facto incontornável. Estamos assim perante uma realidade em que se combinam organizações burocráticas e meta-capitalistas que, por um lado, alargam e estendem os seus tentáculos políticos, jurídicos e tributários a um nível local, regional e global, e, por outro, financiam e mobilizam movimentos terroristas espalhados por zonas e pontos estratégicos do planeta. Tal é, por consequência, o que permite explicar
, em Portugal, a sistemática aplicação de uma política fiscal que, progressivamente taxada sobre os rendimentos das empresas e dos particulares, parte de estratagemas contabilísticos que ora reforçam o poder da oligarquia política, ora tornam os portugueses inteiramente dependentes do crédito estrangeiro devido à baixa produtividade totalmente absorvida por taxas, tributos e contribuições ilimitadas.






Por conseguinte, o que se tem passado à volta do Partido Socialista e do Partido Social-Democrata integra-se perfeitamente no esquema acima delineado. E assim é porque ao longo dos últimos quarenta anos estes dois partidos endividaram, saquearam e venderam Portugal. Mais: esses mesmos partidos têm ainda ao seu dispor um rol de analistas, universitários e jornalistas que, aparando a perpetuação do crime, se repetem, desdizem e contradizem num cenário de loucura generalizada.


De resto, o socialismo é aqui o denominador comum, de modo que, ao vermos partidos de extrema-esquerda condenarem o que denominam por "política de direita”, é coisa absurda e patética. É preciso não esquecer que toda a “classe política” é, entre nós, um nado-morto oriundo da revolução comunista de 1974. Agora sim, é que temos o “Portugal Amordaçado” mercê de quem, acompanhado por Almeida Santos e outros agentes do socialismo destruidor,  desempenhara papel de relevo no chamado processo da “descolonização” que tão útil fora para o poderio político-financeiro global.


No fundo, como bem vira Franco Nogueira, todo este processo fora programado, coordenado e aproveitado por forças internacionais que passaram completamente despercebidas ao povo português. Hoje, esse povo está claramente sofrendo e pagando as consequências de uma tragédia abominável, quanto mais não seja por ver o seu futuro hipotecado nas mãos de quem faz do Estado e das instituições uma permanente revolução contra a fisionomia espiritual da
Pátria portuguesa.






No lance, está igualmente a Universidade, mais poderosa ainda que os partidos políticos e a Maçonaria. É, pois, dela que saem os intelectuais versados nas mais variadas correntes revolucionárias, pese embora nem sempre conscientes do processo pelo qual foram ideologicamente formatados. E é da Universidade que também sai a "classe jornalística" prontamente comprometida com os dogmas, os sofismas e os paralogismos do socialismo triunfante, e à qual se vem juntar o professorado do ensino elementar e médio, assim como a esmagadora maioria dos economistas, políticos e tribunos de orientação antinacional.

Consequentemente, importa trazer à colação Orlando Vitorino por nos haver dito
 como a Universidade é uma instituição empenhada na propagação do criptocomunismo em todos os sectores da sociedade portuguesa. Logo, a descrição crítica da organização do ensino que se segue remonta a 1977, mas mantém, em muitos e amplos aspectos, a sua actualidade, sobretudo no que respeita às consequências destruidoras do socialismo em Portugal.

Miguel
Bruno Duarte





A socialização do ensino


Reparte-se tradicionalmente o ensino por três graus: o primário, o secundário e o superior. Estes três graus correspondem às três idades de formação da personalidade: a infantil, a adolescente e a juvenil. É, portanto, uma graduação que está de acordo com as determinações da natureza e pode dizer-se que tem sido respeitada universalmente.



Outra distinção que a natureza impõe é a distinção entre o feminino e o masculino, aos quais correspondem distintas formas e capacidades de aprender e distintos caminhos para a formação da personalidade. Esta determinação natural é, contudo, negada e até já ignorada no ensino socialista. A igualdade do homem e da mulher é um milagre em que muita gente hoje acredita (1).



DESCRIÇÃO E CRÍTICA DA ORGANIZAÇÃO EXISTENTE

1 - ENSINO PRIMÁRIO

A - Situação em que se encontra


Destina-se o ensino primário a ensinar a ler, escrever e contar, e é universal, quer dizer, alarga-se a todas as crianças independentemente do género masculino e feminino - que nesta idade ainda não estão fixados em diferenciações mentais características - e independentemente das naturais diferenças das faculdades intelectuais intelectuais que ainda se encontram num estado de informe virtualidade.

Subordinado ao imperativo de homogeneização da existência social do homem e da mulher, do pai e da mãe, o socialismo leva o Estado a instituir, para as crianças entre os 3 e 5 anos, aquilo a que chama o ensino pré-primário destinado a substituir a educação que as mães estão impedidas de dar aos filhos pela sua ocupação no emprego a que, como os pais, se vem obrigadas. Depois, guiando-se por uma demagogia alimentada de ressentimentos e atavismos sociais e pela sua radical tendência para diminuir as faculdades intelectuais dos seres humanos, o socialismo procura alargar ao ensino da escola primária os «entretenimentos» da escola pré-primária. Nesta fase, diz que os filhos dos proletários não «gozaram» desse ensino pré-primário e será portanto necessário compensá-los de tal falta, embora em idade já tardia e imprópria. Os governos comunistas de 1974 e 1975 fizeram dos entretenimentos pré-primários matéria de ensino nos primeiros anos da escola primária. Adequados a crianças entre os 3 e os 5 anos de idade, esses entretenimentos foram assim impostos a crianças de 6, 7 e 8 anos, já abertas para o verdadeiro ensino. Os resultados, alguns já dramáticos, conduzirão, num prazo mais ou menos breve, ao aparecimento de uma geração de adolescentes com deformações e atrasos mentais talvez irrecuperáveis.

Noutro aspecto, ao lado da introdução de numerosas «inovações» pedagógicas de carácter marxista, acentuaram-se e aceleraram-se aquelas que, com o mesmo carácter, haviam sido introduzidas durante os governos de Caetano e até de Salazar. Foi assim que um «princípio fundamental» da pedagogia veiga-simonista, o de «evitar a clássica concepção épica da história» e «não dar relevo às figuras, das quais se fazia depender o curso dos acontecimentos», foi adoptado pelos governos comunistas e socialistas durante os últimos três anos. Apenas negativo na sua versão veiga-simonista, aquele «princípio pedagógico» foi buscar o seu aspecto afirmativo à teoria da história do marxismo. Em consequência, as faculdades mitogénicas, que são nas crianças o motor da inteligência, viram-se desse modo esmagadas tanto no ensino secundário como no primário, e os professores foram obrigados a explicar o «curso dos acontecimentos» por incompreensíveis e abstractas razões economistas de mais do que discutível cientificidade. Aliás, os conceitos do economismo intervencionista passaram a presidir à generalidade do ensino, desde o da história até ao de português. Assim se satisfaz a grotesca reivindicação daquele ministro caetanista que, numa mesa-redonda do semanário «Expresso», explicava pouco antes de 25 de Abril: «ensine-se, com o leite (sic), economia às crianças» e nos livros de estudo como nos exercícios escolares, as crianças deparam hoje com noções como «mais-valia» e expressões deste teor: «o helenismo foi um produto da burguesia».


B - Crítica


a) Inútil e formalista a recente substituição da designação de «classes» pela de «fases» e «anos» (em vez de 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª classes passou a dizer-se 1.º e 2.º anos da 1.ª fase e 1.º e 2.º anos da 2.ª fase), apenas pode significar a intenção de separar o desenvolvimento mental do aluno do desenvolvimento da criança. Trata-se, portanto, de um regresso a uma situação anterior à reforma de Jaime Moniz, de um recuo de mais de cem anos.

b) Repudiamos a quase total abolição da aprendizagem de ler, escrever e contar na 1.ª classe (ou na 1.ª fase) do ensino primário. Tal aprendizagem é o natural prolongamento da fala que as mães ensinam aos filhos e pode ser fatal para a criança o intervalo imposto entre a aprendizagem maternal da fala e a aprendizagem escolar de ler e escrever.



Orlando Vitorino




c) Repudiamos, por criminosa, a substituição do ensino primário pelos entretenimentos pré-primários, substituição que provoca, na formação da criança, um atraso mental para a vida inteira. Em países de mais longo predomínio do socialismo, as manifestações daquele «atraso mental» são já motivo de preocupação para alguns sectores políticos e governamentais. É o que acontece na Holanda: em zonas mais socializadas (bairros industriais de Amsterdam, por exemplo) as crianças já só entendem os professores quando eles empregam uma linguagem rudimentar.

d) Abolir do ensino a «concepção épica da história» constitui uma violação das naturais faculdades mitogénicas que são características da criança e condicionam todo o seu desenvolvimento intelectual e sua inserção na colectividade, não só presente como passada e futura, a que por natureza ela pertence. É curioso observar que o socialismo ao mesmo tempo que trata de abolir no ensino a «concepção épica da história» dos povos, procura dar um carácter épico àquilo que chama «luta de classes», ou seja, ao combate a que incita os trabalhadores de obediência socialista contra os trabalhadores que não alinham na mesma obediência.


2 - ENSINO SECUNDÁRIO

A - Situação em que se encontra


Foi sobre o ensino secundário que mais incidiu a «socialização» incessantemente prosseguida desde o veiga-simonismo.

O ensino secundário abrange a puberdade e adolescência e alarga-se entre os 10 e os 18 anos. São os anos em que todas as faculdades intelectuais e sentimentais despertam, se desenvolvem e formam. São os anos em que a individualidade se manifesta e cada ser se sabe e se afirma diferente dos outros. São os anos em que cada um revela, e descobre ou deixa descobrir, aquilo a que os pais e os professores chamarão «vocação», aquelas possibilidades e dons com que a natureza o dotou e são iniludíveis e invioláveis.

O ideal do ensino secundário seria uma diversidade tão grande de cursos quanto é grande a variedade dos indivíduos: como esta variedade é infinita, esse ideal é irrealizável. Mas não deixará o ensino de se dividir pelo maior número possível de cursos de modo a oferecer aos alunos o maior número possível de opções ou caminhos.

O socialismo faz o contrário. Indiferente à realidade das diferenciações naturais, obcecado pelo seu abstracto e absurdo ideal igualitário e unificador, procura fazer do ensino secundário um ensino único, igualmente válido para todos. Começou, entre nós, por abolir a designação de «liceu», palavra de origem aristotélica, portanto referida ao mais alto exemplo histórico de magistério, mas a que atribui uma abominada conotação elitista. Estabeleceu, depois, um prolongamento de dois anos da escola primária, ao qual deu o nome de «ciclo preparatório» e, simultaneamente, de «ensino básico», que, destinando-se igualmente a todos os púberes, desdenha das singularidades individuais que nessa idade despertam e são decisivas para toda a vida futura do aluno. Finalmente, instituiu o «ensino unificado» que irá absorvendo todo o ensino secundário à medida que os alunos forem transitando de ano para ano, assim se acabando por abolir a limitadíssima diversidade que ainda perdurou. Com os dois anos do «ciclo preparatório», a unificação já nesse momento abrange os quatro primeiros anos do ensino secundário.


B - Crítica


Contrariando e violentando, na idade mais sensível da formação da personalidade, a variedade individualizante do ser humano, a «unificação» socialista do ensino realiza-se segundo três directrizes: subordinação do ensino à utilidade social, sobrevalorização da aprendizagem em grupo e sujeição dos métodos pedagógicos aos modelos do trabalho manual. Estas três directrizes suscitam-nos os seguintes comentários críticos:

a) A subordinação do ensino à utilidade social - isto é: às conveniências, sempre necessariamente transitórias, da actividade económica - é contrária ao saber desinteressado e impeditiva do amor à ciência, sem os quais não há existência civilizada. Combate e impede, portanto, uma formação de acordo com a universalidade dos conhecimentos que dispõem as capacidades dos alunos para múltiplas formas de actividade e acção. Dá ao adolescente uma imagem de vida fechada, soturna, e, para os mais dotados, desesperante e suicida.

b) A pedagogia de grupo foi largamente difundida no período que se seguiu à última guerra mundial e depressa revelou os seus efeitos nefastos na destruição da personalidade. Mas a sua condenação, nuns casos já declarada noutros ainda tácita, deve-se sobretudo às consequências que teve para as organizações económicas e sociais ao introduzir nelas, com diplomas de habilitações tidas por verdadeiras, vagas sucessivas de uma multidão de incompetentes. Verificou-se, com efeito, que na pedagogia de grupo, os estudos apresentados por dez alunos são realizados apenas por um ou dois, limitando-se os outros a comparecer, assinar e receber o diploma escolar de habilitações que não possuem e que lhes vai assegurar o lugar profissional para o qual não têm competência.

c) A sujeição dos métodos pedagógicos aos modelos do trabalho manual instaurada em todo o ensino, foi sobretudo imposta no ensino secundário. Os professores viram-se obrigados a seguir os livros estrangeiros onde esses métodos se expõem, em especial aos do comunista francês Freinet. Deste modo se sacrificaram às imagens do trabalho, a que todos estamos sujeitos ou condenados, as formas de existência superiores e libertadoras.






Num texto elaborado e recentemente publicado pelo Ministério da Educação para orientação dos professores do ensino secundário, podemos colher, entre muitos outros exemplos análogos, este modelo de estultícia pedagógica e mental: «Dá-se um zero a um aluno que não sabe quem escreveu "Os Lusíadas". Pois que se dê também um zero a um aluno que não sabe como se faz o queijo» (2). O Ministério da Educação ignora assim ou procede como se ignorasse, que saber o que são "Os Lusíadas" constitui um saber de carácter universal, implica valores universais como são os valores poéticos, cuja aprendizagem através de "Os Lusíadas" é a via que, por excelência, os portugueses têm a felicidade, ou a virtude histórica, de possuir, via que tem na adolescência a idade propícia para ser iniciada, pois é essa a idade na qual o ser humano pode concentrar todas as suas virtualidades somáticas, sentimentais e intelectuais na descoberta da poesia, como as pode concentrar na descoberta do amor. Por outro lado, «fazer o queijo» é coisa que em qualquer idade, por quem quer que seja e seja qual for o seu grau de ignorância ou sabedoria, de estupidez ou inteligência, pode ser imediatamente aprendida. E a terem de saber os alunos «como se faz o queijo», então teriam de possuir também, e pelas mesmas razões, o conhecimento de uma infinidade de outros particulares e equivalentes conhecimentos, o que leva à conclusão de não haver no mundo homem algum que não fosse «chumbado» caso se aplicasse tal preceito escolar.

d) A abolição das diferenciações naturais que a unificação do ensino implica, estende-se também às diferenciações espirituais. É o que acontece, para só darmos um exemplo, com o que se está passando neste momento quanto à orientação do ensino de Português. O Ministério da Educação tem realizado, nos últimos meses, uma cerrada doutrinação dos professores no sentido de adoptarem as concepções do linguísta americano Chomsky. Fundamentalmente, trata-se, aí, de negar as características e o poder cognitivo das línguas nacionais, reduzindo as suas singularidades ao que entre todas elas há de comum: uma abstracta estrutura universal que, por sua vez, se reduzirá ou evanescerá numa estrutura lógica da mente humana que Chomsky - interpretando levianamente Descartes conforme E. Gilson lhe mostrou com paternal bonomia - confundiu com as «ideias inatas». Esta linguística de Chomsky teve, como o ensino unificado, a sua época efémera, e os filólogos procuram hoje, segundo as mais remotas concepções, a relação das categorias gramaticais com as categorias lógicas, seguindo uma linha que ascende de Lee Worf a Sapir. Tem, por isso, uma dramática ironia assistirmos aos esforços que o Ministério da Educação, com os seus pomposos e sapientes universitários, está realizando para impor uma linguística, tão rapidamente ultrapassada já, aos professores que, nas escolas secundárias, têm a seu cargo o ensino da língua pátria.

Complementar, mas talvez ainda mais elucidativa da orientação do Ministério da Educação quanto ao ensino do português, é a bibliografia recomendada e imposta aos professores do ensino secundário. De autores portugueses apenas se recomenda um bom livro de Rodrigues Lapa sobre estilística e um mau livro de Óscar Lopes sobre gramática. Ignoram-se quaisquer outros autores como se ignoram também notáveis obras da filologia brasileira, a de Câmara Júnior por exemplo. Em troca, impõem-se livros estrangeiros: um livro sobre gramática espanhola escrito por um francês, é recomendado para o ensino do Português; e também um livro de Galichet que constitui uma aplicação do estruturalismo de Chomsky; e ainda um livro de Mounod sobre as estruturas linguísticas do Português, cheio de erros elementares.




e) A unificação exprime não só a unificação do ensino como também a unificação dos alunos. Trata-se não só de ensinar a todos os alunos o mesmo como de reduzir todos os alunos a um único modelo, embora para isso se tenha de sacrificar o melhor ao pior. Tal sacrifício patenteia-se nas «instruções», que o Ministério da Educação agora distribui aos professores para a «avaliação dos alunos do 7.º e 8.º anos de escolaridade - ensino unificado» a aplicar no «ano lectivo de 1976-1977». Neste espantoso documento - modelo de confusão mental onde abundam expressões como «os níveis elementares do domínio cognitivo» ou «estudante progride no processo» - consagra-se a redução da escala de 20 valores, de que os professores dispunham para classificar ou avaliar a aprendizagem dos alunos, a uma escala de apenas 5 valores; sem deixar de ser uma «classificação quantitativa», e portanto condenável, esta «inovação» apenas se destina a reduzir o reconhecimento escolar das diferenças que sempre naturalmente existem entre os seres individuados que os alunos são. Mas ao mesmo tempo em que procede a tal violência igualitarista, o Ministério da Educação estabelece um complicado e ridículo sistema de «fichas avaliadoras» nas quais a avaliação depende, fundamentalmente, na tosca linguagem do documento, «do modo como o estudante progride no processo de aprendizagem» (sic). E o documento explica que esta «progressão no processo» se observará pela «comparação entre o que o aluno era num determinado momento e o que é num momento posterior, porque o verdadeiro objectivo será conseguir que cada aluno atinja o máximo de desenvolvimento das suas possibilidades». Ora, em virtude de, como é evidente, os alunos menos dotados serem os que têm um «máximo de possibilidades» mais curto e mais facilmente atingível, este «verdadeiro objectivo do ensino» resulta num privilégio atribuído aos alunos inferiores, numa desvalorização dos alunos com mais possibilidades e, portanto, num incentivo à degradação social dos valores humanos.

f) Resta-nos, finalmente, observar que a unificação do ensino secundário constituiu uma tendência generalizada a seguir à Segunda Guerra Mundial e foi experimentado em países como os EUA e o Canadá, nos quais as verbas do Estado, dedicadas ao ensino passaram a ser as maiores depois das dedicadas à defesa militar: «les depenses publiques d'enseignement augmentent plus vite que le produit national brut au niveau mondial» (3). Os resultados obtidos foram decepcionantes, são objecto do famoso «Relatório Hall-Denis - Living and Learning», editado pelo Ontorio Department of Education, em 1968 (o qual, «en affirmant le principe que les écoles doivent traiter les élèves comme des individus uniques, a eu des repercussions importantes dans l'ensemble du monde») e deu origem a um movimento de reflexão pedagógica que obrigou a retroceder na via de unificação do ensino, substituindo-a pela máxima pluralização (4).

Deste modo, enquanto nos países que experimentaram, ou sofreram, a unificação do ensino se procura recuperar o tempo perdido, depois de se haverem sacrificado algumas gerações, entre nós, com o habitual atraso político, procura fazer-se, do erro que ela constitui, uma «conquista dos trabalhadores» (in Exaltação da Filosofia Derrotada, Guimarães Editores, 1983, pp. 185-194).


Notas:

(1) Este «estudo» foi publicado na revista «Escola Formal» em Julho de 1977. A sua primeira parte, «Descrição e Crítica da Organização Existente», refere-se à situação em que o ensino então se encontrava, organizado a partir de uma Constituição Política socialista ou, como ela a si mesmo se denomina, de «transição para o socialismo». Ora esta Constituição mantém-se e a situação do ensino, passados estes sete anos, é a mesma em que estava, como é também a mesma em que se encontrava nos dez anos anteriores à revolução militar que proclamou em Portugal um regime socialista. Deve ainda observar-se que se trata de uma organização do ensino exemplificativa: com o predomínio mundial do intervencionismo do Estado é ela análoga à que existe em quase todos os países. Fundamenta-se, aliás, em directrizes provindas de instituições e organizações internacionais, como a Unesco, e é executada por técnicos e financiamentos internacionais.



Estando assim referido, este estudo, ao exemplo concreto de uma situação generalizada à maior parte dos países, o leitor vai deparar com algumas expressões efémeras que é possível já ter esquecido ou sempre ter ignorado, como «veiga-simonismo» que provém do nome do homem que era Ministro da Educação nos anos 60, quando se começou a dar entre nós execução programada e obediente ao modelo internacional de organização do ensino. Também o leitor estranhará (...) que utilizemos palavras que hoje têm uma conotação já quase só sectária, como socialismo e comunismo. Fazemo-lo porque são essas as palavras com que a si mesmos se designavam os poderes políticos que, em 1977, reivindicavam a originalidade revolucionária da organização do ensino existente apesar de não fazerem mais do que continuarem docilmente o veiga-simonismo e lhe serem, portanto, rigorosamente idênticos.

É evidente que a situação do ensino aqui descrita e criticada durante muitos anos irá espalhar os seus malefícios, ser mais um factor da degenerescência genética e degradação mental (...), e sacrificar numerosas gerações vindouras, entre nós como lá fora. Mas não há nisso motivo para desistirmos de dizer e de saber que as coisas são o que são.

(2) «Cadernos de Documentação e Textos de Apoio para o Ensino Unificado», Cad. n.º 4, p. 6, Ed. do Minist. da Ed. e Inve. Científica, 1976.

(3) E. Fapre e outros, «Aprendre à Être», Paris, 1972, p. 26.

(4) Ver na publicação da Unesco - B. I. E. «Expériences et Innovations en Education», n.º 5, 1973, o relatório de Alan M. Thomas e Naomi Diamond.




Continua


terça-feira, 19 de abril de 2011

Linha Geral da Nova Universidade (ii)

Escrito por Delfim Santos







O mal de que sofre o ensino das ciências é precisamente o contrário ao mal sofrido pelo ensino de certos ramos de letras. Nestes, como em ciências, não se estudam os problemas, isto é, não se revivem os problemas em todo o significado da sua existência e valor: bordejam-se teorias, fixam-se nomes e, quando muito, lêem-se tratados. As fontes originais desprezam-se, o culto pelo trabalho pessoal não existe. No curso de filosofia estuda-se a história e não os problemas que a constituem. O mesmo em todos os cursos; as literaturas, por exemplo, são todas estudadas sob o ponto de vista histórico. Aqui tomou demasiada importância o que, embora importante, não pode ter primazia: a história. Por isso nas velhas faculdades de letras dois vícios perniciosos e aniquiladores: o filologismo e o historicismo (1). E nelas, como nas faculdades de ciências, carência de reflexão filosófica sobre o que mais importa: o sentido da cultura e o seu valor de influência social. Em ambas desconhecimento dos problemas. Numa, a história desvitalizada desses problemas; noutra, a última solução prática, que, às vezes, não é a última. Muito se tem dito a propósito da reforma da Faculdade de Letras. As páginas da «Seara Nova» e da «Nação Portuguesa» contêm boas sugestões para a remodelação do ensino das filologias (2).

Expostos os males mais flagrantes que enfermam o nosso ensino, sintetizemos um esboço de plano para a nova Universidade, a corrigir ou a desprezar. Nada têm de definitivo as notas que vão seguir-se; pretendem apenas acentuar discordância com a Universidade velha.

A nova Universidade dividir-se-ia em três secções ou faculdades:


   1ª. faculdade - Filosofia;
    2ª. faculdade - Ciências;
3ª. faculdade - Letras.


A primeira faculdade seria constituída por quatro grupos ou licenciaturas:


a) filosofia;
    b) pedagogia;
                  c) política e economia;
d) história.


A segunda faculdade seria constituída pelos grupos:


    a) ciências matemáticas;
         b) ciências físico-químicas;
c) ciências biológicas;
 d) ciências geológicas.


A terceira faculdade seria constituída também por quatro grupos (3):


a) cultura clássica;
   b) cultura românica;
    c) cultura germânica;
      d) cultura portuguesa.






(...) [A Faculdade de Filosofia] seria o núcleo propulsor da Alta Cultura e o centro coordenador de toda a acção especulativa e técnica. Nela, todos os licenciados em ciências ou letras, que pretendessem o magistério médio ou liceal e superior, seriam obrigados a estagiar em filosofia e pedagogia. Escolher-se-iam os candidatos mais competentes para o ensino oficial. O estágio para os seleccionados deveria ser remunerado para permitir uma melhor preparação docente. O magistério primário, preparatório e profissional exigiria igualmente um estágio especial na Faculdade de Filosofia, cuja missão, em parte, seria idêntica à das Escolas Normais Superiores Francesas. O magistério oficial, em todos os seus graus -, sendo um serviço público e para bem da Nação, deveria ter as mesmas facilidades que hoje têm outras profissões consideradas de utilidade pública. Referimo-nos ao Exército e à Marinha que possuem escolas especiais para preparação dos seus orientadores, em condições por nós defendidas para a preparação dos candidatos ao magistério oficial.

(...) Nas faculdades de Ciências reunir-se-iam as ciências pedagógicas com as geográficas e o ensino seria feito em todos os grupos com interesse formativo e não apenas informativo, como já deixámos dito. Criar-se-iam novas cadeiras; extinguir-se-iam muitas das que actualmente existem e acentuar-se-ia a orientação filosófica, correspondente a cada domínio do saber científico.

Nas faculdades de Letras o ensino perderia o carácter puramente filológico e acentuaria o essencial: a cultura dos povos clássicos, românicos e germânicos em todos os seus aspectos. Desapareceria a licenciatura em ciências históricas e geográficas, associação superficialmente feita pelo legislador. Porque a história num determinado povo se desenrolou num determinado país não nos parece ser necessário, para melhor compreensão dessa história, o conhecimento da natureza geológica e mineralógica da região. Geografia económica, política e social, ou todos os aspectos da geografia humana, passariam para o grupo - história - da primeira Faculdade; as geografias física, matemática, etc., passariam para o grupo - ciências geológicas - da segunda Faculdade, onde este estudo está indicado pela sua grande importância na interpretação dos fenómenos geológicos.

No grupo de cultura portuguesa, especialização da filologia românica, estudar-se-ia a nossa literatura, a arte e todos os outros aspectos da nossa evolução histórica, como história dos descobrimentos, da colonização, etc. Todas as manifestações da nossa tendência para a filologia e arqueologia seriam bem arrumadas num curso que desenvolveria todas as investigações respeitantes ao país.

Haveria, junto de cada Faculdade, institutos de investigação, onde os alunos provindos dos cursos técnicos que quisessem aprofundar culturalmente a sua especialidade estagiriam com os universitários em trabalho livre e de afirmação de valor pessoal. A estes institutos caberia a mais alta missão: coordenação da técnica com a cultura. Seriam a ponte intermediária entre a escola técnica profissional e a especulação pura. Os institutos jurídicos, de biologia, de histologia, de anatomia, de engenharia, etc., etc., admitiriam os alunos com maior capacidade para o trabalho de investigação original e concederiam a estes os mesmos títulos universitários, depois da publicação de trabalhos previamente discutidos.




(...) Não será preciso dizer que a remuneração dos professores universitários deveria estar de acordo com as novas exigências e que, qualquer outra profissão ou outro grau de ensino, seriam absolutamente incompatíveis com o magistério superior. Não esqueçamos, no entanto, que o vencimento dos professores nada tem que ver com o importe das matrículas dos alunos. Defendemos o ensino absolutamente gratuito em todos os seus graus. A instrução é o serviço público mais importante. Ninguém admite que os candidatos aos serviços públicos do Exército e da Marinha paguem aos seus instrutores. Isso seria absurdo: o pagamento da preparação docente por aquele que vai dedicar-se ao ensino oficial. Não terá até o professor uma missão muito mais importante do que o marinheiro ou o militar? (in ob. cit., pp. 31-34; 38-44).


Notas:

(1) Historicismo é, para nós, o uso e abuso duma perspectiva arqueológica. Não implica desvalorização da história, como actividade auxiliar e elementar da cultura.

(2) Agostinho da Silva, n.º 154, de 28 de Março de 1929; R. de Sá Nogueira - Questões de ensino - «Nação Portuguesa», n.º 6, tomo I, série V, de 6 de Dezembro de 1928.

(3) Substituímos filologia por cultura. Queremos com isto significar que estes estudos deverão perder o seu aspecto filológico ou excessivamente gramatical que sempre tiveram entre nós. Em compensação, com a palavra cultura queremos significar que o estudo deve abranger todos os aspectos da vida dos povos a que se refere. Não esquecemos quanto pode ser criticável esta substituição. Haverá culturas especializadas? Não será a negação do que, em geral, queremos significar com este termo? Não será igualmente ilógico o emprego de cultura artística, cultura filosófica, ou cultura científica? Sempre que especializamos a cultura negamo-la. A cultura é sempre cultura do espírito no seu aspecto integral. Os alemães têm a palavra Ausbildung que exprime o que pretendemos dizer com esta substituição.


domingo, 17 de abril de 2011

Linha Geral da Nova Universidade (i)

Escrito por Delfim Santos








Preâmbulo

Sob a chancela dos Cadernos de Cultura Democratista, veio a lume, em 1934, o opúsculo intitulado «Linha Geral da Nova Universidade», de Delfim Santos. Ora, um tal opúsculo, não obstante um certo influxo anti-burguês - próprio do ideário um tanto ou quanto socialista do Movimento da Renovação Democrática, lançado a 16 de Fevereiro de 1932 -, constitui, sem dúvida, um interessante quão significativo retrato da Universidade da época. Mas torná-lo presente, não significa, da nossa parte, remoer o passado, mas tão-somente salientar aqueles aspectos que transcendem o carácter efémero e contingente das circunstâncias epocais, no preciso sentido do que já Delfim Santos considerara ser a superação dinâmica da cultura superior perante uma Universidade estática e parasitária.

Delfim Santos faculta-nos, pois, uma oportunidade única para podermos assim distinguir o pensamento pensado do pensamento em acto, na esteira, aliás, de Leonardo Coimbra. Daí o constante influxo do filósofo criacionista no opúsculo em questão, bem como a frontalidade com que Delfim Santos põe a nu os burocratas estéreis e esterilizados de uma instituição que se limita a interesses ideológicos e corporativos acautelados em exames e concursos afins. Há, por conseguinte, uma diferença substancial entre o pensamento propriamente dito e a cultura universitária que não quer, não pode nem sabe reconhecer, muito menos ver e compreender, essa abissal diferença.

Não foi por acaso que Álvaro Ribeiro, ciente da tradição portuguesa, apelara para um Colégio das Artes a partir do qual o estudante já poderia entrar na escola superior de uma forma livre, independente e criadora. Entretanto, seguir-se-ia uma diminuição dos anos de frequência universitária, para que aquele lograsse realizar uma obra de sublimação simultaneamente pessoal, nacional e universal. Logo, vencer-se-ia, na medida do possível, todo e qualquer condicionalismo académico inibidor do aperfeiçoamento e da redenção espiritual do homem português.

Actualmente, o ensino, tal como vem configurado em manuais e planos curriculares, encontra-se todo ele programado e incutido a martelo. Enfim: ontem, tínhamos o analfabeto a par da potencial sabedoria das barbas brancas; hoje, temos o diplomado, o mestre e o doutor sobejamente empedernidos e ignorantes à laia de
estruturas universitárias de ostensiva expressão socialista.

Miguel Bruno Duarte





Linha Geral da Nova Universidade




A instituição medieval que ainda hoje conservamos com o nome de Universidade tinha por missão orientar a vida e a cultura de certas classes.

Desde então, toda a acção social e política tendeu a fazer desaparecer os privilégios dessas classes ou, quando o não conseguiu, a fazer transferência desses privilégios, com novo valor e significado, para outras, criadas de acordo com a nova orgânica social. À maior parte das instituições sucedeu o mesmo: ou desapareceram ou transferiram o seu significado. Tal não sucedeu à Universidade.

Porque esse significado institucional era imutável? Não. Apenas porque a Universidade se colocou à margem da evolução ideológica e na defesa calculada da estática social e dos interesses particulares das classes agora despojadas dos privilégios tradicionais. É, pois, lícito afirmar que o espírito do ensino universitário não está em correspondência com a vida e a cultura do nosso tempo, e que a futura Universidade deverá, para o conseguir, procurar novos fundamentos ideológicos e sociológicos.

Outra prova de que a velha Universidade perdeu totalmente o seu significado e valor consiste na inversão de funções nela operada: longe de ser um activo e persistente foco dinamizador do espírito e da vida cultural, é apenas um organismo passivo e receptador da cultura extra-universitária que a modela naquilo que ainda lhe resta de suficientemente plástico para admitir tal influência. Ora, se a função vitalizadora da cultura passou do domínio universitário para o extra-universitário, se essa função já não pertence, como de direito e de facto deveria pertencer, à Universidade, inútil é a sua existência. A função de conservação a que, por senilidade, se dedicou, não pode justificar a sua existência num período de vida como o dos nossos dias. Hoje, compreende-se o pouquíssimo valor do estatismo social em qualquer dos seus aspectos ou instituições...

A Universidade, como a Academia que lhe sucedeu para acamaradar no mesmo plano de inutilidade, é um albergue de homens sem vida e sem curiosidades pela vida, sem culpa nenhuma da sua incompreensão do tempo actual. A culpa é toda nossa. Primeiro, porque os deixamos lá estar; segundo, porque lhes demos a certeza de respeitarmos a velhice.

Todavia, nada há, como neste caso, menos digno de respeito e mais digno de piedade: respeito pela velhice é qualquer coisa que, no nosso tempo, tende a tornar-se incompreensível. Este respeito fê-los supor que admirávamos as suas capacidades. Precisamos de lhes mostrar o engano em que incorreram. Respeitamos as capacidades, as possibilidades e o valor nos novos e nos velhos; não podemos respeitar carência e vacuidade, quer nuns, quer noutros. Mas, só por si, a velhice não é mais respeitável do que a infância ou a adolescência. Respeita-se a velhice pela sua experiência. Mas a experiência dos anteriores não nos pode interessar. Só nos interessa a nossa própria experiência; só ela poderá ter valor, porque é feita nestas condições especiais: por nós e no nosso tempo. A deles foi feita no tempo deles e só para eles serviu, enquanto o seu tempo se não modificou. Depois, nem a sua experiência serviu. É para o novo, e não para o velho, que nos teremos de voltar. O velho adaptou-se, minorizou-se, idealizou realidades, subordinando-se a elas interessadamente; o novo procura adaptar a si o mundo circundante e realizar ideais de vida nova. (Chamamos velho e novo a duas orientações na vida, independentes da idade civil...) No entanto, repetimos, eles não têm culpa. Preparam um saber eruditíssimo para o seu tempo e, com essa preparação intensa, impediram qualquer possibilidade de adaptação a outro qualquer tempo. Não têm culpa da volubilidade da vida. Firmes, eles lá estão, imutáveis e sublimes, nos seus museus.






(...) As funções docentes não dependem da idade civil que, por isso, não deve ser fixa e a mesma para todos. Precisamos de despejar as universidades, pois a acção do catedrático não termina com o limite de idade: continua indefinidamente. Os novos que ingressam na carreira universitária são seleccionados pelos seus antigos professores e, é bem de ver, apenas serão escolhidos aqueles que manifestarem concordância com as suas ideias ou falta de ideias, e lhes admitirem os métodos de ensino. Assim, não haverá possibilidade de jamais renovar o espírito do ensino universitário, enquanto os velhos professores escolherem os novos, tendo em conta, como quase sempre sucede, aquilo que eles manifestam de semelhante e, portanto, de velho. Há excepções, certamente. Há alguns catedráticos competentes, concordamos. Mas o seu exíguo número e a experiência do problema universitário português nos últimos vinte anos levam-nos a admitir, como única e proveitosa, a solução radical, ainda que dos competentes se fizesse uma justa reintegração.

Um parêntese: quando nos referimos ao ensino universitário, entendemos o ensino chamado de Letras e Ciências e as faculdades assim denominadas. As outras faculdades (medicina, direito, engenharia) e as escolas superiores de agronomia, farmácia, comércio, belas artes, música, colonial e veterinária não devem pertencer à Universidade, e não aparecem, pois, no problema universitário. São escolas técnicas, especializadas na aplicação de conhecimentos, estreitamente profissionais, levantando a sua organização problemas derivados, diferentes do universitário.

Não se suponha, porém, que depreciamos o ensino técnico - só o contrário é verdade. Pretendemos distinguir o que no actual plano universitário é confuso e equívoco. A técnica é um domínio de aplicação da cultura e, só por ela, esta se pode renovar e aprofundar. Por isso mesmo, há uma distinção. Porque tal não tem sido feita, está sofrendo consequências funestas a nossa civilização. O ensino técnico ou profissional não é superior nem inferior ao universitário: é diferente. No esboço de plano universitário que vamos apresentar, os dois ensinos aparecem como ramos convergentes, cujos pontos de encontro são os Institutos de cultura e investigação, anexos indispensáveis de cada faculdade.

(...) Conhecemos muitos factos denunciantes da crise universitária; mas sobretudo, conhecemos alguns professores que, melhor do que os factos, exprimem a decadência e o ridículo da nossa Universidade.

Valerá a pena denunciá-los?

Todos nós os conhecemos. As nossas três universidades estão recheadas de homens sem probidade intelectual, sem carácter e sem a menor capacidade para o trabalho remunerado pelo Estado e exigido pela sociedade. Dizer que temos professores plagiários e ignorantes - é dizer uma verdade sem novidade nenhuma. Dizer que, em cada faculdade universitária, há meia dúzia de professores que possuem as virtudes raras da seriedade e da contemporaneidade é ser excessivamente generoso».

Reitoria da Universidade de Lisboa


(...) A extinção da Universidade, só por si, valorizará imenso a nossa cultura; desaparecerá assim um valor negativo que inferioriza grandemente os possíveis valores positivos da cultura nacional. Qualquer outra solução nos parece incapaz de consequências proveitosas. As reformas não conseguirão nada. A criação ou extinção de cadeiras de nada valerá. Nomear um ou dois professores novos para trabalhar junto dos antigos é contraproducente. Formar-se-ão correntes de opinião e fácil é prever quem dominará. Os novos e os velhos não se poderão entender. E quando os novos se entendem com os velhos, duvidemos. Não temamos a falta de competências; a competência é uma função da cultura e, renovada esta, aparecerá aquela. Os novos poderão, dentro dos seus interesses, superar muito facilmente todas as glórias nacionais existentes. O que elas têm de insuperável pelos novos é precisamente o que lhes não interessa nada superar: eruditismo, academismo, catedratismo, arqueologismo, positivismo, filologismo, burguesismo, clericalismo ou anti-clericalismo... O problema é de espírito novo e não é com formalismos de ordem administrativa e externa que se resolve; portanto, primeiro, extinção. Daí não adviria mal a ninguém: os competentes voltariam a ocupar os seus lugares e os incompetentes procurariam uma melhor situação, de acordo com as suas possibilidades. Depois, organização da nova Universidade.

Esta não terá por fim fornecer a uma classe instrumentos de domínio sobre as outras. Terá como finalidade ser um orgão propulsor de cultura e acção social, tendente a melhorar, sobre todos os aspectos, a vida nacional. Não à margem da vida, mas dentro da vida; não uma sociedade fechada, mas uma sociedade aberta a todas as influências, a todas as teorias e a todos os problemas, sem quaisquer limites traçados pelos diplomas jurídicos ou pela pressão social.

Não é, porém, uma universidade neutra perante todas as influências a instituição que pretendemos. Não acreditamos na neutralidade dum ser vivo. Viver é tomar posição e aderir ao que mais importa. A Universidade terá de ser um organismo vivo e, portanto, dirigido intencionalmente para uma finalidade humanista. O professor, também, não poderá ser neutro perante as soluções propostas a uma sociedade, como nenhum homem que pense com o seu próprio pensamento. E só destes homens deve haver na futura universidade.

Pretendemos, nas linhas que vão seguir-se, traçar um plano, mais ou menos aproximado, da instituição a que desejaríamos dar o nome de Universidade.

Surgem para nós dificuldades. Não temos um plano de reforma da mentalidade e bem sabemos, para desgraça nossa, que a mentalidade alheia se não reforma com planos. Consegue-se com a acção de mentalidades renovadas, mas acção que não deverá ter por fim a reforma da mentalidade de outrem. Não se trata de modelar os outros segundo um tipo mais ou menos abstracto, em série, como vulgarmente se diz. Orientação e não modelação.

Partiremos da crítica a alguns defeitos do ensino da velha universidade para melhor compreensão do sentido a dar à nova. Apreciaremos primeiramente o ensino ministrado nas faculdades de ciências e a seguir o ensino ministrado nas faculdades de letras, fazendo ressaltar da nossa crítica, e, por oposição ao existente, a linha geral que proporíamos para a reorganização dessas escolas. Demorar-nos-emos a traçar, com certa minúcia, o plano especial da Faculdade de Filosofia, escola que, para quem tiver cultura actualizada e perfeita intuição da vida espiritual, deverá ser a alma da Universidade.






O principal defeito no ensino superior de ciências consiste na especialização excessiva e na falta de correlação com o saber total ou cultura. Ensina-se matemática, ensina-se física, ensina-se química e ciências naturais sem relação de qualquer espécie com os problemas da cultura e sem procurar integrar estes diferentes aspectos do saber. Isto é, segue-se, em qualquer destas especialidades, um tratado com limites fixados para as respectivas ciências; respeitam-se absolutamente esses limites e repetem-se de memória os resultados alcançados pela ciência, sem a menor curiosidade pelo élan dinamizador que conseguiu esses resultados e que, em si, traz vitalidade suficiente para ir além. A ciência para a quase todos os mestres da Universidade velha é estática; é um conjunto de resultados ou de fórmulas e, muitas vezes, um conjunto de palavras imutáveis em si e na sua sintaxe a repetir mecanicamente, sem outra preocupação que não seja bem repetir. Mas a ciência não está nos livros; ou só está nos livros a parte da ciência que já morreu. A ciência é acção pensante; é função de criação e renovação no mundo intelectual; é sempre resposta a inquietações sérias e profundas e, por sua vez, fonte de novas inquietações; manifesta-se progressivamente como produto de reflexão sobre a experiência; é incessante procura dum acordo entre o homem e o universo e entre o homem e os outros homens. É, pois, criação, vida, movimento. Só um método marcando acordo com este dinamismo poderia desenvolver a actividade científica, tendo em vista que os resultados práticos da ciência não são a própria ciência, como os actos da vida não são a própria vida. Estes actos foram motivados pela vida; mas a vida, que os supera, poderá renová-los, corrigi-los, ampliá-los, dar-lhes novo sentido e nova significação. Assim a ciência e os factos científicos.

Todo o ensino das ciências na faculdade respectiva deverá, por conseguinte, ser orientado segundo o método genético ou epistemológico. A ciência, enquanto problemática, é filosofia; as ciências, quando sistematizadas, são o caminhar dirigido pela reflexão filosófica ao longo da natureza. Não se compreende que alguém saiba matemática, desconhecendo os problemas fundamentais que a originaram e a especulação filosófica que a orientou. Não se compreende o ensino da física ou da química sem uma concepção geral do Universo e sem o conhecimento da especulação filosófica acerca da estrutura íntima da matéria. Ainda há pouco, certo professor de física, falando acerca da relatividade e dos princípios da ciência moderna, confessava estranhar as dúvidas que alguns físicos, como Heisenberg, tinham da causalidade. Estas dúvidas, aceites agora por ele, nunca poderiam ter originalmente surgido ao seu espírito porque, para ele, o princípio da causalidade não admitia dúvidas, pelo menos no macrofísico. Defeito dum ensino que pôs fora da ciência os princípios que a orientam.

Da biologia poder-se-ia dizer o mesmo. Para os respectivos professores, a biologia é uma ciência fechada, sem relações com a vida universal. Quando muito, procuram relações com a física e com a química, subordinando assim o estudo vital aos métodos apropriados para o estudo da matéria inerte. A importância da especulação filosófica da biologia é por eles desconhecida e poucos saberão situar os seus problemas na cultura contemporânea. Não poderão entender os filósofos, que nunca ninguém lhes ensinou a ler, e, portanto, os biólogos que, como Cuénot, Vialleton e Driesh, compreenderam ser impossível a biologia sem uma concepção geral da vida. Por estes exemplos se pode ver quanto certos métodos de ensino impossibilitam a verdadeira compreensão da realidade a estudar. Muitas vezes acusam-se os laboratórios e a falta de aparelhos; é para muitos boa desculpa, mas é falsa. O problema é de método e não de instrumentos laboratoriais. Não diremos que os nossos laboratórios universitários são completos; mas diremos, convencidamente, que com eles se poderia e poderá fazer muito mais.




A história das ciências, a epistemologia e metodologia especial de cada ciência deverão orientar o ensino na respectiva faculdade; sem isto tudo continuará na mesma, ainda que se renovem os programas e se enriqueçam os laboratórios. A criação da cultura científica portuguesa e a renovação, nesta parte, da cultura universitária depende do estudo da filosofia das ciências ou epistemologia. Poderão estas palavras parecer demasiado optimistas. Não o julgamos. Recordemos qualquer dos poucos homens que em Portugal desenvolveram as ciências e fizeram descobertas; concluiremos que todos eles tinham o conhecimento aprofundado da história e da filosofia dos seus problemas científicos. Certamente, não basta o conhecimento da história das ciências e da epistemologia para criar ciência. Mas nunca, quando essa criação é possível, se poderá fazer sem o conhecimento orientador da epistemologia. A ciência ensinada até hoje nas nossas velhas universidades - (fazemos, é claro, excepções) - é demasiadamente técnica, de aplicação prática imediata e poderia, sob este aspecto, continuar a ser ensinada nos institutos especiais técnicos e nas escolas de engenharia, então distintas da universidade, em virtude das suas respectivas finalidades nada terem de comum. Para qualquer das carreiras técnicas exigir-se-ia a frequência preliminar na Universidade da cadeira de filosofia e história da ciência que mais afim fosse com o curso técnico escolhido. Abolição do F.Q.N. e dos preparatórios de engenharia a ministrar nas respectivas escolas, etc. (in Linha Geral da Nova Universidade, Cadernos de Cultura Democratista, Lisboa, 1934, pp. 9-17; 22-31).

Continua