Apesar de alguns dos maiores pensadores políticos do século XIX, como Tocqueville e Lord Acton, nos terem prevenido de que o socialismo significa escravidão, continuamos a caminhar decididamente no rumo do socialismo. E agora, que vemos erguer-se à nossa frente a nova forma de escravidão, não nos lembramos da prevenção daqueles pensadores e recusamo-nos a admitir que as duas coisas, socialismo e escravidão, estão ligadas (1).
A tendência actual para o socialismo significa um corte brusco, não apenas com o passado recente, mas com toda a civilização ocidental, e só poderá ser claramente entendida se a considerarmos numa perspectiva histórica mais ampla do que o século XIX. Vamo-nos desviando rapidamente das ideias de Cobden e Bright, de Adam Smith e Hume, até de Locke e de Milton e, para além delas, das características mais específicas da civilização ocidental, que tiveram sua origem nos fundamentos lançados pelo cristianismo e pelos gregos e romanos. Tanto o liberalismo dos séculos XIX e XVIII como o individualismo fundamental que herdámos de Erasmo e Montaigne, de Cícero e Tácito, de Péricles e Tucídides, vão sendo gradualmente abandonados.
O chefe nazi que descreveu a revolução nacional-socialista como uma contra-Revolução, falou mais verdade do que provavelmente se supôs. Foi ela o passo decisivo na destruição daquela civilização que o homem moderno tinha erguido desde a Renascença e que, acima de tudo, era uma civilização individualista. Individualismo é hoje uma palavra proscrita e o termo liga-se agora a egoísmo e egocentrismo. Mas o individualismo de que falamos, em contraste com o socialismo e com todas as outras outras formas de colectivismo, não tem qualquer ligação com essas acepções que lhe atribuíram. Será gradualmente que (...) tornaremos bem claro o contraste entre os dois princípios opostos. Respeitar o homem como indivíduo; reconhecer que os pontos de vista, desejos e gostos de cada um, por muito limitados que possam apresentar-se, constituem as supremas directrizes na vida de cada um; acreditar que é desejável que os homens desenvolvam as sua capacidades e qualidades individuais, são as características essenciais desse individualismo que, a partir dos elementos herdados do cristianismo e da filosofia antiga, teve o seu primeiro grande surto na Renascença e desde então não cessou de crescer e ampliar-se até constituir aquilo a que chamamos a civilização da Europa ocidental. Liberdade e liberdade individual (2) são já palavras tão gastas pelo uso e abuso que delas se tem feito que hesitamos em empregá-las para exprimir as ideias que elas designam. Tolerância é talvez a única palavra que ainda conserva todo o poder para designar aquele princípio que esteve em permanente ascensão até quando, em data recente, entrou a declinar e desapareceu completamente com o advento do estado totalitário.
Frederico Hayek |
(...) Nos seus princípios fundamentais, o liberalismo não contém nada que possa fazer dele um credo estacionário, não contém regras rigidamente estabelecidas e de uma vez para sempre. O princípio fundamental de que, na resolução dos nossos assuntos, devemos tirar o maior partido das forças espontâneas da sociedade e recorrer o menos possível à coacção, é susceptível de uma infinita variedade de aplicações. Existe, particularmente, uma diferença enorme entre a criação deliberada de um sistema no qual a concorrência actuará do modo mais vantajoso e a aceitação passiva das instituições tais como se apresentam. Nada, terá, talvez, prejudicado tanto a causa do liberalismo como a teimosa insistência de alguns liberais em certas «rules of thumb» e, acima de tudo, no princípio do «laissez-faire». Em certo sentido, porém, isso era necessário e até inevitável. Na verdade, só com directrizes muito firmes se poderia lutar contra os inumeráveis interesses empenhados em mostrar como determinadas medidas, que traziam a alguns benefícios imediatos e evidentes, causavam malefícios mais vastos, mais indirectos e difíceis de observar. E como se havia, sem dúvida alguma, generalizado uma opinião favorável à liberdade industrial também se tornava difícil resistir à tentação de a apresentar como uma regra sem excepções, coisa a que ninguém opunha qualquer objecção.
Com esta atitude, adoptada por muitos dos seus defensores, a doutrina liberal ficaria a um passo de ruir totalmente logo que as suas posições fossem refutadas nalguns pontos. Para mais, tais posições viam-se enfraquecidas quando, na coerência com a sua doutrina, se confiavam à evolução inevitavelmente lenta de uma política que tinha por objectivo o gradual aperfeiçoamento da organização institucional de uma sociedade livre. Esta evolução dependia da nossa capacidade para compreender as forças sociais e as condições mais propícias ao seu funcionamento de modo desejável. Importava, antes de tudo, apoiá-las, se necessário completá-las e, para isso, era preciso começar por compreendê-las. A atitude do liberal para com a sociedade é análoga à do jardineiro que cuida de uma planta e procura criar-lhe as condições mais propícias ao seu crescimento; exige o conhecimento de tudo quanto se refere à estrutura e ao modo como funciona.
Enquanto, por um lado, o liberalismo se via a braços com o carácter necessariamente lento do progresso no domínio daquilo que vulgarmente se chama «positivo» e, por outro lado, tinha de em grande parte confiar, para o seu aperfeiçoamento, no gradual aumento da riqueza que a liberdade traz consigo, ainda se via também forçado a lutar continuamente contra propostas que constituíam ameaças ao seu desenvolvimento. Acabou por ser considerado uma doutrina «negativa» porque pouco mais podia oferecer aos indivíduos do que a participação no progresso comum, um progresso que já não era reconhecido como a consequência de uma política da liberdade mas entendido como um facto dado de uma vez por todas. Poderá, deste modo, dizer-se que o êxito do liberalismo foi a causa do seu declínio. Em consequência do progresso alcançado, os homens foram-se mostrando cada vez menos dispostos a tolerar os males ainda existentes, que passaram a afigurar-se-lhes insuportáveis e sem razão de ser (in O Caminho para a Servidão, tradução de Maria Ivone Serrão de Moura, revista por Orlando Vitorino, Teoremas, 1977, pp. 39-42 e 45-47).
Notas:
(1) Até advertências muito recentes, que se revelaram terrivelmente verdadeiras, foram quase esquecidas. Ainda não decorreram trinta anos desde que Hilaire Belloc, num livro que explica o que veio a acontecer na Alemanha melhor do que muitas obras escritas depois dos acontecimentos, afirmou que «o efeito da doutrina socialista na sociedade capitalista é dar origem a uma terceira forma diferente da de qualquer dos dois progenitores: o Estado Servil» - The Servile State, 1913, 3.º ed., 1927, p. XIV.
(2) No original. liberty e freedom. Como se sabe, os ingleses possuem estes dois termos para distinguir aquilo que nós designamos igualmente por liberdade; mas trata-se efectivamente de termos com significados diferentes. Os portugueses têm procurado salvaguardar essa diferença falando da liberdade e das liberdades, distinção introduzida pelos monárquicos integralistas e ainda hoje utilizada, para fins de mera propaganda, pelos «comunistas» que, como se sabe, em sua doutrina não podem ter o conceito nem o princípio da liberdade. De qualquer modo, o leitor reconhecerá que a liberdade - liberty - tem um carácter principial e transcendente, garantia de as liberdades - freedom - que, sem ela, nada podem ser. Em rigor, liberty será a liberdade principial, e freedom a liberdade individual. Num ensaio de G. Dietze sobre «Hayek on the rule of Law», encontramos a seguinte observação: «Hayek emprega indiferentemente as palavras liberty e freedom. Parece não atribuir qualquer distinção ao significado dos dois termos, embora tudo indique que prefere o segundo» (N.T.).
(3) O mais fatal destes acontecimentos, de consequências ainda hoje extintas, foi a sujeição e parcial destruição da burguesia alemã pelos príncipes territoriais dos sécs XV e XVI.
Lord Ralph Harris, Arthur e Friedrich Hayek |
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