segunda-feira, 8 de março de 2010

O Caminho para a Servidão (i)

Escrito por Frederico Hayek






Apesar de alguns dos maiores pensadores políticos do século XIX, como Tocqueville e Lord Acton, nos terem prevenido de que o socialismo significa escravidão, continuamos a caminhar decididamente no rumo do socialismo. E agora, que vemos erguer-se à nossa frente a nova forma de escravidão, não nos lembramos da prevenção daqueles pensadores e recusamo-nos a admitir que as duas coisas, socialismo e escravidão, estão ligadas (1).

A tendência actual para o socialismo significa um corte brusco, não apenas com o passado recente, mas com toda a civilização ocidental, e só poderá ser claramente entendida se a considerarmos numa perspectiva histórica mais ampla do que o século XIX. Vamo-nos desviando rapidamente das ideias de Cobden e Bright, de Adam Smith e Hume, até de Locke e de Milton e, para além delas, das características mais específicas da civilização ocidental, que tiveram sua origem nos fundamentos lançados pelo cristianismo e pelos gregos e romanos. Tanto o liberalismo dos séculos XIX e XVIII como o individualismo fundamental que herdámos de Erasmo e Montaigne, de Cícero e Tácito, de Péricles e Tucídides, vão sendo gradualmente abandonados.

O chefe nazi que descreveu a revolução nacional-socialista como uma contra-Revolução, falou mais verdade do que provavelmente se supôs. Foi ela o passo decisivo na destruição daquela civilização que o homem moderno tinha erguido desde a Renascença e que, acima de tudo, era uma civilização individualista. Individualismo é hoje uma palavra proscrita e o termo liga-se agora a egoísmo e egocentrismo. Mas o individualismo de que falamos, em contraste com o socialismo e com todas as outras outras formas de colectivismo, não tem qualquer ligação com essas acepções que lhe atribuíram. Será gradualmente que (...) tornaremos bem claro o contraste entre os dois princípios opostos. Respeitar o homem como indivíduo; reconhecer que os pontos de vista, desejos e gostos de cada um, por muito limitados que possam apresentar-se, constituem as supremas directrizes na vida de cada um; acreditar que é desejável que os homens desenvolvam as sua capacidades e qualidades individuais, são as características essenciais desse individualismo que, a partir dos elementos herdados do cristianismo e da filosofia antiga, teve o seu primeiro grande surto na Renascença e desde então não cessou de crescer e ampliar-se até constituir aquilo a que chamamos a civilização da Europa ocidental. Liberdade e liberdade individual (2) são já palavras tão gastas pelo uso e abuso que delas se tem feito que hesitamos em empregá-las para exprimir as ideias que elas designam. Tolerância é talvez a única palavra que ainda conserva todo o poder para designar aquele princípio que esteve em permanente ascensão até quando, em data recente, entrou a declinar e desapareceu completamente com o advento do estado totalitário.



Frederico Hayek



A gradual transformação de um sistema hierárquico, rigidamente organizado, por um outro, no qual seja, pelo menos, permitido aos homens darem à sua vida a forma que entenderem, um sistema no qual cada um tenha a oportunidade de conhecer e escolher entre diferentes formas de vida, constituiu uma transformação estreitamente ligada à expansão do comércio. Corresponde ela a uma nova concepção de vida que surgiu nas cidades comerciais do norte da Itália e daí se expandiu, por intermédio do comércio, para o ocidente e para o norte da Europa, através da França e do sudoeste alemão até aos Países Baixos e às Ilhas Britânicas, criando fortes raízes em toda a parte onde não houvesse poder político despótico que a sufocasse. Foi nos Países Baixos e na Grã-Bretanha que esta concepção de vida obteve, durante largos anos, um pleno desenvolvimento pois foi aí que encontrou as condições para evoluir livremente e se tornar a base da vida social e política dos povos. A partir desses países começou de novo, nos séculos XVII e XVIII, a expandir-se, já com uma forma mais perfeita, para ocidente e oriente, para o Novo Mundo e para o centro do continente europeu onde guerras devastadoras e regimes políticos opressivos haviam abafado as anteriores tentativas de uma evolução semelhante (3).

Durante todo este período moderno da história da Europa, a tendência generalizada do desenvolvimento social foi a de libertar o indivíduo dos laços que o prendiam a formas prescritas para realizar as suas actividades quotidianas. O reconhecimento e a consciência de que os esforços espontâneos e incontrolados dos indivíduos eram capazes de criar uma ordem complexa de actividades económicas, só poderiam tornar-se efectivos depois do processo ter tido um certo desenvolvimento. A posterior elaboração de um fundamentado sistema de defesa da liberdade económica foi a consequência do livre crescimento da actividade produtiva que, por sua vez, resultou, sem qualquer intervenção da vontade e do cálculo, da liberdade política.

(...) Nos seus princípios fundamentais, o liberalismo não contém nada que possa fazer dele um credo estacionário, não contém regras rigidamente estabelecidas e de uma vez para sempre. O princípio fundamental de que, na resolução dos nossos assuntos, devemos tirar o maior partido das forças espontâneas da sociedade e recorrer o menos possível à coacção, é susceptível de uma infinita variedade de aplicações. Existe, particularmente, uma diferença enorme entre a criação deliberada de um sistema no qual a concorrência actuará do modo mais vantajoso e a aceitação passiva das instituições tais como se apresentam. Nada, terá, talvez, prejudicado tanto a causa do liberalismo como a teimosa insistência de alguns liberais em certas «rules of thumb» e, acima de tudo, no princípio do «laissez-faire». Em certo sentido, porém, isso era necessário e até inevitável. Na verdade, só com directrizes muito firmes se poderia lutar contra os inumeráveis interesses empenhados em mostrar como determinadas medidas, que traziam a alguns benefícios imediatos e evidentes, causavam malefícios mais vastos, mais indirectos e difíceis de observar. E como se havia, sem dúvida alguma, generalizado uma opinião favorável à liberdade industrial também se tornava difícil resistir à tentação de a apresentar como uma regra sem excepções, coisa a que ninguém opunha qualquer objecção.


Com esta atitude, adoptada por muitos dos seus defensores, a doutrina liberal ficaria a um passo de ruir totalmente logo que as suas posições fossem refutadas nalguns pontos. Para mais, tais posições viam-se enfraquecidas quando, na coerência com a sua doutrina, se confiavam à evolução inevitavelmente lenta de uma política que tinha por objectivo o gradual aperfeiçoamento da organização institucional de uma sociedade livre. Esta evolução dependia da nossa capacidade para compreender as forças sociais e as condições mais propícias ao seu funcionamento de modo desejável. Importava, antes de tudo, apoiá-las, se necessário completá-las e, para isso, era preciso começar por compreendê-las. A atitude do liberal para com a sociedade é análoga à do jardineiro que cuida de uma planta e procura criar-lhe as condições mais propícias ao seu crescimento; exige o conhecimento de tudo quanto se refere à estrutura e ao modo como funciona.

Ninguém, com um mínimo de capacidade para compreender, poria em dúvida que as regras imperfeitas nas quais se exprimiam os princípios da política económica do século XIX, constituíam apenas um começo e que muito mais havia a aprender e a realizar. Nas linhas já traçadas, abriam-se imensas possibilidades de progresso. Mas este progresso só se podia realizar à medida que se fosse conseguindo um crescente domínio intelectual das forças a utilizar. Havia tarefas imediatas a cumprir, como o controlo do sistema monetário e a prevenção e limitação dos monopólios, e um número maior de tarefas menos importantes a realizar noutros campos onde se tornava evidente que os governos possuíam um poder enorme para fazer o bem ou o mal. Havia todas as razões para esperar que um dia, com uma melhor compreensão dos problemas, seria possível utilizar esse poder da maneira mais proveitosa.

Enquanto, por um lado, o liberalismo se via a braços com o carácter necessariamente lento do progresso no domínio daquilo que vulgarmente se chama «positivo» e, por outro lado, tinha de em grande parte confiar, para o seu aperfeiçoamento, no gradual aumento da riqueza que a liberdade traz consigo, ainda se via também forçado a lutar continuamente contra propostas que constituíam ameaças ao seu desenvolvimento. Acabou por ser considerado uma doutrina «negativa» porque pouco mais podia oferecer aos indivíduos do que a participação no progresso comum, um progresso que já não era reconhecido como a consequência de uma política da liberdade mas entendido como um facto dado de uma vez por todas. Poderá, deste modo, dizer-se que o êxito do liberalismo foi a causa do seu declínio. Em consequência do progresso alcançado, os homens foram-se mostrando cada vez menos dispostos a tolerar os males ainda existentes, que passaram a afigurar-se-lhes insuportáveis e sem razão de ser (in O Caminho para a Servidão, tradução de Maria Ivone Serrão de Moura, revista por Orlando Vitorino, Teoremas, 1977, pp. 39-42 e 45-47).






Notas:

(1) Até advertências muito recentes, que se revelaram terrivelmente verdadeiras, foram quase esquecidas. Ainda não decorreram trinta anos desde que Hilaire Belloc, num livro que explica o que veio a acontecer na Alemanha melhor do que muitas obras escritas depois dos acontecimentos, afirmou que «o efeito da doutrina socialista na sociedade capitalista é dar origem a uma terceira forma diferente da de qualquer dos dois progenitores: o Estado Servil» - The Servile State, 1913, 3.º ed., 1927, p. XIV.

(2) No original. liberty e freedom. Como se sabe, os ingleses possuem estes dois termos para distinguir aquilo que nós designamos igualmente por liberdade; mas trata-se efectivamente de termos com significados diferentes. Os portugueses têm procurado salvaguardar essa diferença falando da liberdade e das liberdades, distinção introduzida pelos monárquicos integralistas e ainda hoje utilizada, para fins de mera propaganda, pelos «comunistas» que, como se sabe, em sua doutrina não podem ter o conceito nem o princípio da liberdade. De qualquer modo, o leitor reconhecerá que a liberdade - liberty - tem um carácter principial e transcendente, garantia de as liberdades - freedom - que, sem ela, nada podem ser. Em rigor, liberty será a liberdade principial, e freedom a liberdade individual. Num ensaio de G. Dietze sobre «Hayek on the rule of Law», encontramos a seguinte observação: «Hayek emprega indiferentemente as palavras liberty e freedom. Parece não atribuir qualquer distinção ao significado dos dois termos, embora tudo indique que prefere o segundo» (N.T.).

(3) O mais fatal destes acontecimentos, de consequências ainda hoje extintas, foi a sujeição e parcial destruição da burguesia alemã pelos príncipes territoriais dos sécs XV e XVI.



Lord Ralph Harris, Arthur e Friedrich Hayek



Continua


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